sexta-feira, 30 de maio de 2014

mais uma vez, O NOSSO MUSEU DO MARAJÓ pede S.O.S











DE CACHOEIRA DO ARARI, ILHA DO MARAJÓ, PELO FACEBOOK A SENHORA MARIA JOSÉ CONCEIÇÃO GAMA, MAIS CONHECIDA COMO "DONA ZEZÉ"; PRESTIMOSA VOLUNTÁRIA DO MUSEU DO MARAJÓ EXPRESSA SUA GRANDE DECEPÇÃO QUE É A MESMA DE TODOS NÓS MARAJOARAS, COM OS CONFUSOS PODERES DA REPÚBLICA.

Decepção! É o que nós do Museu do Marajó estamos sentindo hoje pois estávamos aguardando com ansiedade o parecer do Ministério da Cultura, com relação a prestação de contas do convênio nº575/2005 MinC/FNC-PRONAC gerido pela gestão passada que causou a inadimplência da Instituição, por ter sido reprovada por duas vezes a referida prestação foi encaminhada pela gestão anterior a nós gestores atuais para que a mesma fosse encaminhada, mais uma vez e esperávamos que dessa vez nossa Instituição se livrasse da Inadimplência e pudesse dá um passo a frente e pra nossa decepção hoje recebemos o resultado via ofício nº059/2014,, foi mantido o parecer anterior e a divida só aumentou para R$ 175.408,94 , de acordo com demonstrativo do TCU. anexo. É muito triste falar sobre isso mais é preciso que os sócios que não podem comparecer nas reuniões pois estão fora do Município tenham conhecimento da situação do Museu do Marajó junto ao MINC... 


SIMPLES ASSIM...

A tecnoburocracia de BrasIlha não quer nem saber quem foi esse padre maluco que deixou o primeiro mundo para se meter com gente ignorante no fim do mundo...

Isto do caboco Vadiquinho pegar "cacos de índio" deixados sobre rastros de ladrões de gado e contrabandistas de cerâmica marajoara pré-colombiana não é como os impolutos ministro do TCU nem com os diplomados e concursados técnicos do Ministério da Cultura.

Que diabo vai fazer turismo na ilha dos Marajós além do marquetingue pra inglês ver? Dona Zezé e seus colegas do museu do Gallo que se lixem e percam o sono... A dívida vai desembestar e se duvidar empaca a vida dos bestas que não deixaram o museu fechar quando o padre morreu.

Isto não é problema do prefeito de Cachoeira, nem da presidenta da Associação de Municípios do Marajó (AMAM), nem do Excelentíssimo Senhor Governador ou dos ilustres Deputados estaduais, federais ou Senadores.

Muito menos será da conta da Senhora Presidenta da República e da Ministra da Cultura ocupada com aqueles magníficos museus que consomem toda verba e o verbo do IBRAM, tais como o Museu Nacional e de Etnologia da USP onde jazem coleções de cerâmica marajoara que nunca filhos de caboco poderá ver; tiradas e levadas, Deus sabe como; dos "tesos" da pobre ilha do Marajó...

Besteira minha - depois de ler "Cultura Marajoara" de Denise Schaan - sonhar com a possibilidade de intercâmbio com museus que se podem considerar FIÉIS DEPOSITÁRIOS como o próprio Museu do Marajó; e posterior REPATRIAMENTO de peças e coleções de cerâmica para a ilha do Marajó fazer TURISMO CULTURAL com geração de renda e empregos locais a par da esperada UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARAJÓ...

O diabo é que a brava gente briga entre si feito cão e gato, mas amolece quando é hora de encarar os "brancos" da casa-grande... Tudo que Dalcídio Jurandir e Giovanni Gallo queriam com a EDUCAÇÃO libertadora era ver a Criaturada grande de cabeça erguida: não importa a cor do gato... Amigo de Platão, mas mais amigo da verdade.

Pensam esses senhores e senhoras da casa-grande: "Dona Zezé que se lixe! Ela e a diretoria passada, presente e futura"...caso ainda haja um futuro para esses voluntários ingênuos ou nem tanto, que não largaram o padre à deriva prestes a "implodir" (cf. "O homem que implodiu") e depois de sua morte não deixaram o museu fechar as portas.

Quem manda os "herdeiros" do Gallo não se entenderem lá com eles mesmos? Há de pensar um burocrata de quinto escalão ao ler a resenha do Convênio nº 575/2005, de passagem sobre sua inquisitorial mesa, donde o vaidoso de seu efêmero poder vê a árvore, mas não vê a floresta. Ou vê o cisco no olho dos outros, mas não enxerga a trave no seu próprio...

O sistema é fogo! Não foi que a Presidenta assinou sem saber tudo sobre contrato de compra de refinaria da Petrobras? Como vai a Ministra da Cultura saber que coisa é essa do Museu do Marajó estar sem pagamento... O que foi que aconteceu? No começo da gestão da atual diretoria do Museu do Marajó o IBRAM ainda estava dando primeiros passos e mandou um técnico a Cachoeira para ver que 'estória' era aquela de um museu para ser visto "com a ponta dos dedos"... 

Mas, ao que parece, não esquentou a cadeira por pouca receptividade. E não voltou mais por que esqueceu ou por que não lhe chamaram... De maneira que o buraco é mais embaixo e não pode ver visto em preto e branco, pra falar a verdade.

Epa! Espera aí... de 2005 a 2014 e está rolando pelos escaninhos da Esplanada dos Ministérios como carro velho que as multas e taxas de licença acumuladas, mais as taxas de mora chegam agora NOVE ANOS DEPOIS (sic) a espantosa importância de R$ 175.408,94!!!...

Além de Dona Zezé e ninguém da atual diretoria não ter nada a ver com a origem da maldita dívida tranca-rua, ela poderia dizer aos auditores do TCU: meus senhores, se nós tivéssemos agora, que o museu está precisando de umas latas de tinta para tirar tuíra das paredes, pelo menos 175 mil reais... mandávamos fazer outro museu...  

Bom, veja bem, poderá dizer um técnico auxiliar mas em 2005 "nós" não estávamos no governo para tomar as devidas providências dos responsáveis para zerar a inadimplência. Tenha paciência, não sou eu... É a lei!...

E a lei também manda muitas coisas que não se cumprem neste país. A demarcação das terras indígenas, por exemplo; e a cobrança de dívidas do BNDES que até andou fazendo farol com promessas de recursos a fundo perdido em ajuda ao Museu do Marajó e depois sumiu.

Puxa vida! Será que não tem ninguém para levar um recado à Casa Civil? Cadê o livro do Gallo, "Marajó, a ditadura da água", que na reunião do Plano Marajó em Soure, autografado por todos presentes; foi portador representante da então chefa da Casa Civil Dilma Rousseff para ser entregue ao Presidente Lula... Será que foi para o Instituto Lula ou foi parar na lata de lixo?

Cadê a Bancada do Pará? Cadê todo mundo que corre atrás de voto da gente marajoara? Cadê a SOLIDARIEDADE de todos ao Museu do Marajó?

Será que os marajoaras estão preparados para um grande gesto de consenso (que haja apuração de responsabilidades sem prejulgamento nenhum). O que se não deve fazer é brigar em casa e perder de vista que o Estado e a União devem muito ao Marajó. 

A obra de Giovanni Gallo, "Motivos Ornamentais da Cerâmica Marajoara", com apresentação da diretora do Museu Paraense Emílio Goeldi, Ima Vieira; e prefácio da arqueóloga Denise Schaan; podemos dizer é o "testamento" do criador do Museu do Marajó. Por que não reunir todos e todas acima de ressentimentos e vaidades em prol do bem-comum?

Lá nos "Motivos Ornamentais" ficou a última vontade do Gallo: transformar a Associação em uma Fundação mantenedora... Esta tem sido desde o falecimento do Gallo meu invariável posicionamento. Basta conferir neste mesmo blog. Faço isto pela memória do Gallo e também de Dalcídio Jurandir (cf. Correspondência com Maria de Belém Menezes) que o incentivou a publicar o já clássico "Marajó,a ditadura da água".

Mas, tudo isto nos remete a um PROBLEMA anterior e que reflete a DÍVIDA NACIONAL com a Cerâmica Marajoara: a opção preferencial do IPHAN pelo barroco colonial em detrimento do barro da genuína civilização brasileira, que a arqueologia marajoara representa (cf. Heloísa Alberto Torres). Mas, não adianta fazer carga contra o IPHAN (seus servidores em greve dizem tudo...) nem contra o IBRAM, se nós mesmos não conseguirmos um CONSENSO...

Se a Ministra da Cultura pode se eximir desta dívida, por não estar no ministério se não há pouco tempo, mais razão tem Dona Zezé para não ter que pagar a tal inadimplência.

Vamos lá minha gente! TODOS A FAVOR DO MUSEU DO MARAJÓ!

domingo, 25 de maio de 2014

MINHA AVÓ ANTÔNIA


imagem do tema: a índia morta e sua 
cria caboca  predestinada a resistir à
destruição do patrimônio ancestral.


"A gente não morre. Fica encantada" (Guimarães Rosa).

Noite estrelada - Van Gogh


Eis que aprendi em certa noite estrelada a lição inesquecível de um índio maquiritare, à margem do rio Uraricoera no distante ano de 1977. Havia eu 40 anos de idade e este meu mestre de fortuna tinha, aparentemente, pouco mais da metade de minha idade. O que torna o caso mais interessante. Conforme velho costume, ele fora contratado entre uma dezena de índios da fronteira para ajudar a mateiros "suraras" (trabalhadores cabocos, do nheengatu 'soldado') para guiar na floresta demarcadores de limites do Brasil e Venezuela a achar no terreno o divisor de águas das bacias do Amazonas e do Orenoco. 

Os índios das regiões amazônicas sabem perfeitamente o que é um divisor de águas... Enquanto alguns bons "civilizados" acreditavam que demarcadores de limites subiam montanhas carregando latas d'água para ver em que direção corre a "fronteira" nos termos dos tratados de demarcação. Mesmo nos diversos cursos de geografia e história no país são raros mestres que sabem e ensinam o papel fundamental dos índios da Amazônia nas demarcações de fronteira. Muito especialmente a histórica contribuição -- sine qua non --, da nação Tupinambá na conquista da Amazônia e construção territorial do Brasil. Quando, finalmente, a antropologia ameríndia entrar no primeiro capítulo da História do Brasil o povo brasileiro há de descobrir que nossa historiografia oficial é potoca.

Meu ocasional mestre em apreço, sobrinho do então cacique de Auaris, Frenaro cuja família adota o nome do famoso "explorador" (naturalista) espanhol na Venezuela Apolinário Días, convertido ao idioma maquiritare ou maigong, nem sonhava ser eu um relaxado neto de índia marajoara. Mesmo assim, gentilmente, me cercou de atenções deliberando por conta própria ensinar-me num curso intensivo que durou de janeiro a maio algumas noções da língua e cultura de seu povo. O aluno continua sendo tacanho, malgrado o empenho do professor. O melhor de tudo para mim - pelo que serei grato até o fim da vida - foi sobre a imortalidade dos pajés e dos caciques. 

Veja, dizia-me ele, aquela estrela. É fulano de tal... Foi ele um grande líder na terra e agora mora no céu. E ali mais em cima está beltrano, foi um pajé extraordinário. E contava os tantos prodígios daquelas vidas transformadas em heróis no infinito. Eu acho que entendi a lição de patrimônio cultural imaterial duma maneira verdadeira que talvez nem na Convenção da UNESCO sobre diversidade cultural se encontraria explicação mais feliz. 

A memória viva da tradição oral é, então, maior garantia de sobrevivência que nenhum museu ou outro meio morto de comunicação poderá substituir. Lá junto às estrelas a astúcia evolutiva da cultura não poderá jamais ser corrompida pela destruição inexorável das coisas terrenas, onde tudo se dissolve no ar. Todavia é preciso religar os conhecimentos. Ativar a rede neuronal da memória entre pais e filhos, fundamentalmente o insubstituível papel das mães em cada comunidade local. Índio morto não é apenas uma tragédia local, mas sobretudo uma pesada perda para a humanidade inteira. Não podemos ser ingênuos nessa história de 500 anos de civilização "universal": por outra parte, a soberania nacional sem autodeterminação do povo é miragem. Uma nacionalidade postiça sobre meia dúzia de capitanias hereditárias, fazendo tabula rasa dos povos originais do país, é comparável a um castelo de areia e porta aberta a todas conquistas. De toda forma, a cidadania planetária é para todos no concerto das nações -- sem apartheid entre classes, "raças", gêneros e países --, ou então cale-se o empolgante discurso da Civilização.

No mundo mágico, Preto velho e índio Pena Verde habitam o reino da Encantaria, na terra sem males da esperança do tempo sem fim - onde não existe fome, trabalho escravo, doenças, velhice e morte -, junto aos deuses ancestrais. Todavia, ainda faz escuro e os poetas da negritude do país natal de todos os negros da Terra precisam cantar com os galos da madrugada: que é para o dia nascer feliz no parto da utopia da fraternidade. Nada é mais urgente na crise civilizacional da Modernidade...

Hoje ainda, em realidade, é mais fácil a população se movimentar indignada contra suposto superfaturamento da FIFA na Copa do mundo ou o real descaso das autoridades quanto à má conservação dum monumento colonial qualquer, do que o povo unido reclamar do esquecimento induzido da memória da ancestralidade original do povo brasileiro a respeito da idade do barro na Arte primeva brasileira: naturalmente, a cerâmica marajoara de 1500 anos descoberta por acaso no Dia da Consciência Negra (de 20 de Novembro de 1756, conforme a "Notícia Histórica da Ilha Grande de Joanes ou Marajó" (1783), do naturalista de Coimbra Alexandre Rodrigues Ferreira, longamente adormecida entre coleções de obras raras a par de sua congênere de 1754, atribuída a autor anônimo e guardada entre preciosidades da Real Biblioteca da cidade do Porto, em Portugal, hoje felizmente ao alcance da internet) que - com efeito! - 99% do povo marajoara não sabe quem foi, extraída na casa da mãe Joana e repartida no mundo, sem lenço nem documento, pelos donos do poder. 

O mundo inteiro clama contra a devastação das florestas tropicais e mais particularmente no que diz respeito à perda de biodiversidade da Amazônia, mas se revela negligente na hora de comprar madeira não certificada e não está nem aí diante da extinção das línguas e culturas indígenas. Quando não se orgulha em concordar e repetir, cinicamente, o velho ditado colonial "índio bom é índio morto", alimentando a colonialidade da indiferença. Achando cheio de si que a destruição das Índias foi o maior triunfo da Civilização e não o fato que deveras foi: o maior genocídio da Terra.


A PARTE QUE ME TOCA DESTE LATIFÚNDIO

Agora que o "índio sutil" Dalcídio Jurandir já morreu, como disse o falecido poeta Carlos Drummond de Andrade. E Guimarães Rosa também já morreu. Jorge Amado. O pai da negritude, o amado Cesaire da Martinica. Bruno da Academia do Peixe Frito e todos acadêmicos do Ver-O-Peso do tempo de São Benedito da Praia... Giovanni Gallo do Museu do Marajó já morreu como o seu irmão desafeto bispo de Ponta de Pedras, dom Angelo... Gabriel Garcia Marques foi embora para o Macondo celestial, porém o realismo mágico não há de morrer jamais, por que ele precedeu a humanidade filha da animalidade. 

Meus pais também já passaram desta para melhor e é bom que eu também vá me preparando a atravessar a fronteira entre a vida e a morte. Entre o real e o virtual. Começar a compreender o absurdo da pintura esquizofrênica de Von Gogh, por exemplo, com o absurdo preço de seus quadros atribuídos por seus colecionadores que não se comovem com a loucura abandonada entre mendigos e drogados pelas ruas das grandes cidades. É bom que eu comece a entender o elogio da loucura de Erasmo e comece também a escolher uma distante estrela numa noite estrelada qualquer para a única e definitiva morada desta nossa vida absurda, onde a abundância e a indiferença caçoam da fome e abandono de tanta gente. 

Minha avó Antônia morreu ao fim de um parto laborioso de gêmeos filhos do capitão Alfredo meu avô paterno. Do casal nasceram Sophia, Raymundo, Laudelina, Otaviano, Ambrosina, Lindinha e no sétimo parto da índia os gêmeos da tragédia. Era o dia 22 de agosto de 1904, o penúltimo filho da índia minha avó nasceu morto: mesmo assim, parece que ele foi parido para ser meu tio anjinho no além... Este natimorto do paraíso perdido recebeu nome de Emanuel e desceu à terra fria feito anjo enterrado ao lado de sua falecida mãe. 

O capitão meu avô, então viúvo, se casou depois com dona Margarida Ramos e numa segunda viuvez casou-se ainda com dona Isabel Trindade que faleceu depois do branco velho. Ambas mulheres eram negras, que com a índia tapuia deram ao descendente de portugueses dezesseis filhos ao todo, acrescidos de outros que ele teria arranjado fora dos tais casamentos ao tempo da solteirice em terra farta de "icamiabas" (mulheres sem marido), rica de filhos de boto na mina de cunhados e afilhados bons pra toda obra. Com que o resistente matriarcado amazônico vai ganhando tempo face ao outrora avassalador e agora decadente patriarcado ultramarino. 

O outro gêmeo, supostamente natimorto como o primeiro, foi deixado de lado pela parteira ao fundo duma rede que, cada passante, na ânsia de salvar a mãe passava como pé de vento e balançava a rede como galho de árvore na ventania... Foram debalde as tentativas para estancar a hemorragia da mulher, então o choro e o desespero tomaram conta do chalé familiar na vila de Ponta de Pedras, onde a vizinhança acorria à porta... Só então alguém se lembrou de ver o recém nascido e escutou um vagido vindo no fundo da rede: enfim, restava uma vidinha em lugar daquela que se despedia da terra para ir morar no céu das recordações de seus parentes.

Logo, Sophia, a filha mais velha aos dezoito anos de vida, ajudada pela irmã Lodica (Laudelina) de dezesseis anos, assumia a criação do irmãozinho órfão e responsabilidade dos irmãos mais novos. Ambrosina ficara cega... E as duas irmãs mais velhas iriam ficar solteiras para cumprir a missão deixada pela mãe. A criança cresceu fraquinha, mas revelava fortaleza de espírito a par de humildade e dignidade incorruptíveis. 

O filho da índia Antônia sobreviveu, ele chamava de mãe a sua irmã Sophia. Foi meu pai e mestre por toda vida, guiando-me constantemente até quase seus 90 anos de idade, com ele aprendi a enfrentar e suportar o inferno verde e ainda hoje seu exemplo de vida me orienta e inspira. Meu pai caboco recebeu nome de Rodopho Antonio, escolhido por meu avô, para lembrar o padrinho imigrante alemão e honrar a memória da índia morta. 

O caboco sobrevivente da tragédia ameríndia se casou com a galega de olhos azuis, Othilia, católica apostólica romana de velha cepa, filha de camponeses da Espanha tropicalizados por necessidade e acaso na ilha do Marajó em meio a uma peculiar negritude da diáspora africana no rio das Amazonas, orgulhosa gente branca de rígida opinião que "quebrava, mas não vergava"... Esta linda mulher, amável e indomável ao mesmo tempo, foi minha mãe. E o casal autor da minha vida me deixou por herança esta singular metáfora de fé na vida, ainda que nas piores circunstâncias. 

Pena que mamãe, em sua simplicidade tenha sido vítima dum catolicismo fanático e de crônico distúrbio nervoso bipolar, insistindo para eu "não puxar" a meu pai no seu modo de vida de "livre pensador". Na verdade, só isto me interessa. A heresia de um caboco gentil, mas que não se enganava com cantos de sereia e se orgulhava de suas raízes tendo "sangue cabano" correndo nas suas veias.

Rodolpho e Othilia se casaram, presumo, em 1936. Ele havia 32 anos de idade e ela 28 anos. Foram morar numa casa modesta próximo ao Curro Municipal onde ele, servidor da prefeitura, era administrador cumulativo com o cargo do Mercado Público, bairrozinho na beira do rio chamado o Fim do Mundo. A gravidez sobreveio logo no início no ano entre chuvas de inverno e cantos dos sapos alegres... Provavelmente, a idade da mãe e o medo do pai lembrado de sua tragédia pessoal, ademais aconselhado por suas duas irmãs também receosas do que pudesse acontecer em mãos de parteiras locais, tivesse sido bom motivo para ir à cidade grande buscar assistência médico-obstetrícia que faltava no lugar, durante o primeiro parto da branca para parir o caboquinho que vos fala. 

Ainda hoje muitas mulheres da ilha do Marajó, em dificuldade ou prevenção na hora do parto, pedem socorro a Belém. Tradicionalmente, índias, quilombolas e cabocas tinham seus filhos sozinhas ou com ajudas de parteiras. As brancas também tinham por costume pedir ajuda às parteiras do lugar. Mas, em 1937, fosse por que fosse acompanhada de meu pai minha mãe embarcou em igarité veleira na vila do Itaguari (Ponta de Pedras), desceu o rio Marajó-Açu, atravessou a baía sob vento ponteiro certamente e desembarcou na doca do Ver o Peso, na cidade grande de Belém do Pará, onde o casal pegou bonde da linha Circular ou automóvel de aluguel com chauffeur (naquele tempo Paris n'América, os bons burgueses ainda não diziam táxi, como depois da americanização pós-guerra). Saltaram depois de alguns quarteirões pela avenida 16 de Novembro, na esquina com Veiga Cabral indo bater a porta de minha tia e segunda mãe, casada com português de Póvoa de Varzim, moradores da casa número 369, antiga numeração.

A 16, antiga estrada de São José, era uma rua reta como um fuso, os trilhos do bonde cravados entre paralelepípedos de granito - nunca esquecerei como é difícil a um caboco recém saído do mato pronunciar 'pa-ra-le-le-pí-pe-do - , calçada de pedras de lioz de ponta a ponta, margeada de altas palmeiras reais... Claro que eu só vi estas coisas seis ou sete anos depois, naquela hora eu estava bem arranjado dentro da barriga de minha mãe...  

Nasci dias depois na maternidade da Santa Casa de Misericórdia do Pará, de parto natural. Como era de esperar, minha mãe não deu azo ao Diabo e mandou me batizar imediatamente na igreja da Santíssima Trindade (agora sei que o terreno desta igreja era uma rocinha dos irmãos Abranches, imigrantes das ilhas do Açores, e que ali vinha dar o Igarapé do Piry e começava o caminho do Maranhão), foram meus padrinhos a tia Hermengarda e o primo de minha mãe Herculano Sidney, chamado Sidinho. Feito isto, meus pais zarparam de volta à ilha natal com sua cria devidamente cristianizada.

Tudo isto são recordações dos outros, das quais me apropriei ao longo do tempo, depois que abri meus olhos e ensaiei os primeiros passos no Fim do Mundo. Era como despertar de um longo sono e ao acordar compreender, pouco a pouco, quem eu sou... donde vim. E agora aonde irei depois do fim. Se houver um fim. Achei na internet a figura de uma índia amamentando. Já que toda minha vida prestes, a cravar 77 anos, se transforma também ela em história que nem um rio que nasce em fontes desconhecidas e promete continuar a jornada para além da própria vida, me dou conta de que minha avó Antônia é um símbolo de outras vidas que se escondem pelas margens da história. Para conseguir este fragmento de memória coletiva, careci importunar durante muito tempo minha avó postiça Sophia e tia Lodica a fim de tirar água da pedra da desmemória.  


METÁFORA DA AVÓ ÍNDIA

Muitos de nós enterramos nossas avós índias e pretas no recanto mais escuro das lembranças. E queremos restaurar o patrimônio colonial. Congelar a felicidade dos bons tempos e apagar da memória as ruínas da barbaridade. Parece justo operar esta seleção mas os sábios da alma dizem que é impossível deletar o passado e os tratados médicos costumam dizer que esta tentativa desesperada, muitas vezes, é sintoma de uma conhecida doença. Próximos dos 400 anos de Belém, convém desde já cuidar para que cada peça do patrimônio material recuperado seja também uma senha que abre portas do patrimônio imaterial deslembrado. E que esta ampla revitalização liberte também a Feliz Lusitânia de seus fantasmas.

sábado, 10 de maio de 2014

PONTA DE PEDRAS, ITAGUARI: O MARAJÓ COMEÇA AQUI

Chegada em Ponta de Pedras pelo Rio Marajo Açu, Por Antonio Ernesto Teixeira da Silva
Ilha do Coati, rio Marajó-Açu, lugar encantado onde mora a cobra grande Boiúna no fundo
e passa, segundo a lenda, sob a ilharga do Fim do Mundo num subterrâneo imaginário que termina debaixo da igreja matriz no altar-mor de Nossa Senhora da Conceição. A estória se repete na capela da fazenda Arari, que foi propriedade dos frades das Mercês no outro rio famoso do Marajó.


«É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.» (José Saramago)


Antes que eu me esqueça, em priscas eras, a fé desta gente era tanta que acreditava até que a imagem santa em certas noites saia de sua igreja a passeio lá na praia da Mangabeira, a duas léguas de distância da pacata vila de Ponta de Pedras. Diz-que, a senhora da Conceição sentia saudades de sua antiga capela de palhas coberta na aldeia de índios mangabeuaras pescadores, os quais deram origem ao município nos primeiros tempos como prova a Camboa dos Padres

Conforme antigos relatos na família, o meu avô capitão Alfredo Nascimento Pereira, pai do romancista Dalcídio Jurandir, imprimiu folheto em sua gráfica artesanal ao lado da foguetaria em sua própria residência (hoje terreno de captação de água potável da empresa Cosanpa, na rua Lauro Sodré), contando a fabulosa estória para memória do lugar. Nunca achei um exemplar do folheto, aliás, encomendado pelo prefeito Wolfando Fontes da Silva, o velho Fango, conforme me contou o próprio pelo ano de 1961, quando fomos companheiros de quixotada como candidatos à prefeitura do município.

Naquele tempo santos, deuses, caruanas e orixás habitavam juntos e misturados à gente que nem na velha Grécia. Mitos e fábulas eram preceitos de grande antiguidade da literatura oral e interesse popular d'além e aquém mar da mais pura tradição de África e Portugal. Sem esquecer, certamente, o fato de que graças a nossos antepassados ameríndios a Amazônia é pátria natural do realismo mágico. 

A ilinha encantada do Itaguari, a dita Coati; por exemplo...  Um monumento natural ainda não declarado e que precisa ser inserida com urgência -- antes que se descaracterize mais e que se perca para sempre, entre chuvas e esquecimento -- pela Secretaria Municipal de Turismo de Ponta de Pedras no Polo Marajó, dentro da estratégia do Plano Ver-O-Peso de turismo do Estado do Pará (ancorado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento - BID e o Ministério do Turismo - MinTur), como indicativo do potencial ecoturístico das ilhas da Amazônia Marajoara.

 No passado comum, o maravilhoso era apanágio dos viventes conforme nos conta José Saramago na sua Viagem a Portugal, no roteiro literário de Almeida Garrett. Foi por conta desta estupenda "viagem" de Saramago que me aventurei, audaciosamente, a escrever meu primeiro ensaio Novíssima Viagem Filosófica (na "Revista Iberiana": Secult, Belém, 1999; com apoio da empresa pública Companhia Paraense de Turismo - PARATUR).  Novíssima viagem, disse eu, porque esta última se faz no roteiro do naturalista da Viagem Philosophica (1783-1792), o célebre sábio da Universidade de Coimbra, Alexandre Rodrigues Ferreira.

 Ora, embora os devotos do Búfalo tremeterra juntos com metade da população da mesorregião do Marajó (200 mil almas, aproximadamente) analfabeta de pai e mãe ignorem; até as pedras da extinta aldeia de Joanes sabem que Alexandre Rodrigues Ferreira deu o primeiro passo de sua monumental viagem amazônica pela ilha do Marajó. 

Precisamente, na vila de Monforte (Joanes), aldeia sacaca que veio a ser município de Salvaterra... Mas, originalmente, Monforte e Salvaterra são vilas antigas em Portugal... Assim, também, Chaves, Melgaço, Portel, Oeiras, Curralinho e Soure metidas a muque a bordo do Diretório dos Índios (1757-1798). Pouca gente do Marajó sabe mas Marajó, justamente, quer ser polo turístico. O turismo inteligente pode, com certeza, fazer o milagre de tirar a Criaturada grande de Dalcídio da rabeira da lista dos piores IDH's do Brasil... Portanto, a gente quer inventar a pajelança do Dia de Alfredo...

Alfredo nasceu das entranhas memoriais do chalé de Chove nos campos de Cachoeira. Mas, ele só saiu do papel e do caroço mágico de tucumã (Astrocarium vulgare) pela pena de Dalcídio seguido de Marinatambalo ("Marajó"), na pobre vila de Salvaterra, num parto laborioso do qual o autor dá notícia no célebre artigo Tragédia e Comédia de um Escritor Novo do Norte

Pois bem, Salvaterra é lugar de memória da inicial viagem do sábio de Coimbra ao Marajó terminada ela em Cachoeira do Arari, conforme ficou registrada na separata (primeiro capítulo da Viagem Filosófica) com título de Notícia Histórica da Ilha Grande de Joanes ou Marajó (publicada em Lisboa em 1783).  Se o "Chove" é estória romanceada de Cachoeira, o outro romance parido da estada de Salvaterra; o "Marajó" é Ponta de Pedras com Missunga e outras gentes saindo do rio Paricatuba, Marajó-Açu acima até confundir suas águas lá pelas alturas do lago Arari, com o cantador Ramiro e suas chulas insolentes até se acabar devorado pelas piranhas. 

Ah, mas isto, então, de crítica social e metafóricas piranhas que comem gente não é bonito para entreter turistas e ganhar dinheiro com eles... Depende do turismo que se quer fazer. Se for, por exemplo, turismo literário direi: olhem o exemplo do Bloom's Day na Irlanda e, enfim, a festa literária de Paraty (Rio de Janeiro)... Só pelo fato do romance "Marajó", antes "Marinatambalo"; ter tirado suas primeiras páginas da paisagem cultural de Ponta de Pedras já justificaria o marquetingue turístico, que diz: bem-vindos a Ponta de Pedras - o Marajó começa aqui. E já se justificaria produto de turismo literário local, acrescido do fato do maior escritor marajoara ter deixado seu umbigo enterrado na beira do igarapé, na varja do Campinho, aos fundos da barraca de seu tio, zelador da igreja, Manoel Ramos.

Porém, a vila de Ponta de Pedras ou Itaguari disfarçada de Muaná ainda comparece em Passagem dos Inocentes e o Campinho agora passa como Areinha com seus pés de cajueiro, casas humildes e a beira da mata que se afasta da última rua e adentra na paisagem e na memória de seu romancista famoso. E tem mais, em Ponta de Pedras ou mais precisamente rio principal que banha este município o Marajó grande (Açu) começa pela história, esquecida ou pouco estudada, do conflito étnico que em tempos antes da ocupação portuguesa opôs os Aruãs, pela margem esquerda do Pará, aos Tupinambás, pela margem direita. E assim o Itaguari (traduzido em "ponta de pedras" para o português) foi a fronteira deste formidável duelo entre povos originais do Pará. O rio grande do Marajó ("malvado") -- Marajó-Açu --, foi a barreira humana da resistência marajoara à invasão dos guerreiros Tupinambás. E assim, definitivamente, o Marajó começou, sim, no velho Itaguari do tempo dos índios. Mas é preciso pesquisar e estudar para fazer um turismo inteligente, realmente estratégico além da tola propagando do Búfalo e do carimbó da vovó e nada mais.

Curiosamente, esta coincidência entre notícia histórica e romance antropossocial parece ter antecedentes no relato biogeográfico de grande interesse para o povo marajoara, chamado "Notícia da Ilha Grande de Joanes", de autor anônimo, datada de 1754, constante da obra O Novo Éden, de Nelson Papavero et al. edição do Museu Paraense Emilio Goeldi. Nesta, há fortes indícios de que a autoria da primeira notícia seja trabalho do guia de viagem de Alexandre Ferreira, o inspetor da ilha e fundador da freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Cachoeira do rio Arary, Florentino da Silveira Frade. 

Entretanto, obras raras ou livro em mal de recepção e escassa distribuição, mais o alastrado analfabetismo da população, malmente se remedia mediante conversas de compadres onde um ou outro "retórico" (diletante), por ouvir dizer, dá o recado na velha base de que quem conta um conto inventa um ponto...

POR FAVOR VAMOS CUIDAR DA ILINHA DO ITAGUARI

Por que -- mais uma vez --, a gente vem falar aqui de coisas velhas do tempo da vela de miriti? Se o povo quer progresso e modernidade e, para tanto, as autoridades prometem fazer acontecer a indústria sem chaminés mais conhecida pelo apelido pomposo de Turismo... Aí a porca torce o rabo. Para uns o tal Turismo seria muito som e badalação de espantar curupira para os centros onde se esconde o Bicho Folharal, o qual só aparece, agora, no carnaval. E olhe lá... 

Estes uns ouviram o galo cantar, mas não sabem onde; para eles o que interessa é encher cidade de gente de fora. Quando acaba, o moradores em maior parte ficam injuriados com esse tal de Turismo do bafafá... Barulheira infernal, desenfreio da moçada, uma droga afinal de contas. 

Em vez de gerar a prometida renda e empregos local o carnaval fora de época vai-se embora sem dizer adeus, noves fora alguma gravidez indesejada no agito da moçada na hora da balada, a desagregação da família sacrificada à loucura do progresso. Mas será mesmo, que o Turismo seria assim? Ou pelo menos só isto?

Claro que não. Em primeiro lugar, o melhor lugar para o turista inteligente é onde a gente do lugar vive feliz. Portanto, é preciso hospitalidade com respeito e dignidade local. O Dia de Alfredo pensa nessa proposta. Quase há dois anos mandamos, através do blogue da Academia do Peixe Frito (vide abaixo), sugestão com apoio do poeta Antônio Juraci Siqueira e de Marli Braga Dias, marajoara da gema; para tombamento da ilha do Coati no patrimônio natural de Ponta de Pedras. Nenhuma resposta... Um simples piteco, para remover a placa desproporcional com a intenção ecológica da ilhota mexeu com pessoa encarregada de administrar o turismo municipal, que não gostou que seu perfil no Facebook fosse marcado sobre o assunto. 

Quer dizer: como é que um cidadão, como este caboco com tempo de serviço prestado a sua terra e até tendo tido merecendência de ser lembrado pela associação de prefeitos do Marajó - AMAM; com o já polêmico "Mérito Marajoara" poderá ser voluntário na causa do desenvolvimento sustentável da gente marajoara que, há 20 anos, é bandeira do Grupo em Defesa do Marajó (GDM), o qual ajudei a criar com Camilo Vianna e outros camaradas, na Pro-Reitoria de Extensão da UFPA, a 20/12/1994?

Adversários de governos municipal, estadual ou federal; antes de oferecer qualquer crítica construtiva ou ideia participativa para melhorar a vida da Criaturada grande, começam a disparar torpedos sem aviso prévio. Aliados aos respectivos não conseguem emitir opinião contrária a seus correligionários. Assim a "comunicação" nada comunica... Torna-se enfadonha disparada de maniqueísmo.

Somos, honestamente falando, tal qual lote de porco espinho. Pisamos em ovos quando se trata de falar dos nossos e soltamos os cachorros, quando é caso de "falar mal" dos "inimigos". Inimigos ocasionais que vão passando a amigos, conforme a dança das cadeiras. Diga-se de passagem... A vítima principal do tiroteio verbal, já foi dito antes, é a verdade quase sempre... 

E com esta falência de sinceridade generalizada perde o povo que mais precisa. Sei que é utopia, eu sou chegado a utopias desde pequeno; mas o turismo podia ser espaço sob bandeira branca onde gregos e troianos poderiam dialogar e até mesmo cooperar sem rendição das respectivas convicções e compromissos.  

Diálogo não é conchavo. Aqui, certamente, uma atitude revolucionária em tempos de pescadores de águas turvas.


25/05/2012 - http://academiaveropeso.blogspot.com/

PATRIMÔNIO NATURAL MUNICIPAL DO RIO MARAJÓ-AÇU (proposição aos legisladores do município de Ponta de Pedras).

Aos Conterrâneos pontapedrenses:

Data venia, o poeta e filósofo ribeirinho Juraci "O Boto" Siqueira; 
especialista profundo do mundo das águas, 
me ajude neste extravagante pleito ao Senhor Prefeito
e aos Senhores Vereadores Municipais da antiga Vila de Itaguari;
no sentido de declarar a ilha jitinha do Coati chamada
morada da cobra grande Boiúna
porto e estaleiro imaginário do Navio Encantado,
titulo de Patrimônio Natural Municipal do rio Marajó-Açu.

Esta ilha jitinha esconde o mistério do Fim do Mundo
onde por acaso o Marajó começa rico e cheio de garças
que lhe fica fronteira à margem esquerda do rio
na orla da cidade e na terceira margem da paisagem.
Marinheiro de primeira viagem e visitante estrangeiro
não imagina que a ínsula pequenina
fazendo parte do arquipélago do Itaguari
(arquipélago esse, na verdade, parte da "ilha" do Marajó)
guarda tão grande tesouro da nossa antiguidade.

Em certas noites de lua quando o relógio da Matriz
bate as doze badaladas da meia-noite a ilha desatraca
enquanto a cidade dorme o sono da pedra
da primeira noite do mundo
evai a cobra-ilha em riba da maré descendo para a boca do rio
lá fora na correnteza do Amazonas aparece o navio
vai para alto mar todo iluminado com música a bordo
mais de um canoeiro viu
e mesmo na Mangabeira pescador indo pescar
pode jurar que o caso é real.

Outra vez um mariscador panema morto de sono
encostou a montaria na ilharga da ilha Coati
pra esperar a maré,
o pobre diabo adormeceu em riba do banco
e quando deu por si já ia a reboque no além mar
quando acaba o galo cantou lá em terra
o dia amanhecia por riba do Fim do Mundo
o caboco se acordou e achou tudo no lugar de costume
a ilhinha ingênua, remo, matapi, remo e canoa amarrada...

Oh, as mil e uma noites do Fim do Mundo!
Passado e futuro caminham pelas ruas
de mãos dadas inventando estórias deste rio.

Não deixem, meus senhores e minhas senhoras,
se perder a memória do lugar.

Zé Varela

2 comentários:

  1. Prefeito, Vereadores,
    nosso preito nu e cru,
    é ver a Ilha do Coati,
    morada da boioçu,
    Patrimônio Natural
    e também Municipal
    do rio Marajó-Açu.

    Antonio Juraci Siqueira
    poeta marajoara

  2. Muito bem! Nota máxima para os dois!
    Saudações marajoaras!!!

terça-feira, 6 de maio de 2014

TRAGÉDIA E COMÉDIA DO TURISMO NO MAIOR ARQUIPÉLAGO FLUVIOMARINHO DO MUNDO.

tema para mural "Os Nheengaíbas", pintura emblemática da Paz de Mapuá de 1659.
Quem se habilitará a ser nosso novo Cândido Portinari?  

EM CARTA ESCRITA NO CONVENTO DE SANTO ALEXANDRE (ATUAL MUSEU DE ARTE SACRA DE BELÉM DO PARÁ), DATADA DE 11 DE FEVEREIRO DE 1660, O PADRE ANTÔNIO VIEIRA PRESTOU CONTAS DA MISSÃO DO MARANHÃO E GRÃO-PARÁ CONFORME A LEI DE 1655 À REGENTE DE PORTUGAL, DONA LUÍSA DE GUSMÃO (VIÚVA DE DOM JOÃO IV E, DURANTE A MENORIDADE DE DOM AFONSO VI, TUTORA DO FUTURO REI QUE DOARIA A ILHA DOS NHEENGAIBAS AO SECRETÁRIO DE ESTADO ANTÔNIO DE SOUSA DE MACEDO). A LEI DE ABOLIÇÃO DO CATIVEIRO INDÍGENA, ARRANJADA POR VIEIRA EM LISBOA; DELEGOU PODERES DE ESTADO À COMPANHIA DE JESUS PARA TUTELA E GOVERNO DOS ÍNDIOS: FATO QUE, NA HISTÓRIA DA AMAZÔNIA PORTUGUESA, DEU PAPEL INSTITUCIONAL SEMELHANTE AO QUE HOJE DESEMPENHA A FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO (FUNAI) AOS JESUÍTAS.

Esta controvertida carta do superior dos Jesuítas à regente do reino de Portugal atualmente pode ser encontrada na internet. Mas, por muitos tempos, não se encontrou com facilidade, nem se vê no conjunto histórico Feliz Lusitânia, notadamente no Museu de Arte Sacra alguma referência à vinda de índios do Marajó chamados ao convento de Santo Alexandre tratar do fim da guerra que já durava mais de 40 anos. Contudo isto é importante para a História da Amazônia brasileira sob vários aspectos, inclusive no que concerne a fundamentação do uti possidetis de 1750, defendido por Alexandre de Gusmão nas negociações do tratado de Madri para revogar o tratado de Tordesilhas de 1494. Posto que, só a célebre entrada de Pedro Teixeira até Quito (1637-1639), sem efetiva adesão dos povos indígenas ou ocupação do território por portugueses não poderia dar realidade aos argumentos do diplomata luso-brasileiro.

Para o turismo cultural, então, viajar no tempo histórico é como refazer a construção do espaço amazônico para além dos quatro séculos de Belém do Pará. Neste documento, entre outras coisas, o superior das missões na Amazônia portuguesa relata o estado de guerra em que viveram os povos das ilhas do estuário do grande rio Amazonas - domínio imemorial dos chamados "Nheengaíbas" (Marajoaras de diversas etnias Nuaruaques) contra portugueses e tupinambás aliados a estes últimos, na terra firme. A guerra de conquista do rio das Amazonas durou mais de 40 anos, desde a tomada do Maranhão aos franceses, em 1615 e fundação de Belém do Grão-Pará em 1616. Quando, depois de três tentativas portuguesas de ocupar a ilha grande dos Nheengaíbas (Marajó) por força militar e da fracassada missão de paz do padre João de Souto Maior (1656), finalmente, a missão de paz organizada pelo padre Antônio Vieira, no início de 1659, através de dois nheengaíbas cativos no convento dos Jesuítas; teve êxito em trazer a Belém comitiva de sete caciques liderados por Piié dos Mapuás em tratativa de paz.

A ideia para artista à altura de Portinari compor mural retratando os sete caciques do Marajó poderia memorizar esse primeiro encontro pacífico entre marajoaras e portugueses. Segundo a supracitada carta, em resposta à vinda pacífica a Belém dos ditos Nheengaíbas, durante a quaresma de 1659, descritos antes como bestas ferozes; entre os dias 22 e 27 de agosto do mesmo ano, passando antes por Cametá para embarcar remadores e soldados, Vieira e um irmão de doutrina foram à ilha dos índios rebeldes ameaçados da "guerra justa" (cativeiro e extinção, nos termos da lei) e numa simples maloca levantada para servir de igreja do Santo Cristo (hoje em algum lugar não determinado da Reserva Extrativista Florestal de Mapuá), no dia 27, Marajoaras de um lado e Tupinambás de outro; com portugueses ao meio, simbolizando equilíbrio entre as duas populações em guerra nas duas margens do Rio Pará, celebraram a paz dando por terminada a guerra. 

A duração daquela guerra dos Nheengaíbas não poderia ser precisada àquela data. Porém hoje sabemos que tem a ver com a busca da Yvy Marãey (terra sem mal). Começada no Grão-Pará desde a invasão da Tapuya tetama (terra dos Tapuias) pelos Tupinambás, através do Salgado e do rio Tocantins, intensificada com a chegada dos portugueses no Maranhão (1615) e a expulsão dos holandeses do Xingu e Gurupá (1623). 

Mas as "pazes" dos Marajós terão sido exatamente como as descreveu o "imperador da língua portuguesa" (na expressão de Fernando Pessoa)? Provavelmente não. É preciso entender a oculta intenção do padre grande e a situação periclitante dos Jesuítas depois da morte do rei dom João IV, amigo pessoal do padre Antonio Vieira; cujo desfecho a partir da violenta expulsão dos missionários, em 1661, e doação da capitania hereditária da Ilha Grande de Joanes (1665), o rei dom Afonso VI deu o dito por seu pai por não dito e o tribunal do Santo Oficio condenou o padre, precursor da teologia da libertação, ao silêncio por "heresia judaizante".

Os Jesuítas no papel de tutores dos índios, num "front" de conquista de território selvagem em disputa colonial estiveram metidos numa cruzada entre reinos católicos e "hereges" (protestantes holandeses e ingleses): os protegidos dos missionários em luta com bandeirantes e colonos pagaram o pato, como se lê na obra de José Ribamar Bessa Freire. O importante, é que daquelas confabulações mato adentro, saíram Nheengaíbas pacificados, evidentemente, de volta ao território que antes era deles e donde os índios insulanos saíram empurrados por invasores Tupinambás. Aí surgiram as aldeias dos tuxauas Aricará (vila de Melgaço, depois de 1758) e Arucaru (Portel), que viria a ser considerada microrregião de Portel, na parte marajoara do continente paraense.

Aquela impossível e tênue paz marajoara, depois de décadas de guerra entre o forte do Presépio (1616) e a ilha invicta (com sua civilização ameríndia a partir, aproximadamente, do ano 400 da era cristã) -- que poderia talvez harmonizar arqueólogos, antropólogos e historiadores que se ocupam em descobrir o passado da Amazônia numa perspectiva comum - ainda precisa hoje ser trabalhada e concluída: depois de 400 anos de errância, desacordos e até mesmo ódios hereditários. que não se resolveram pelo tempo e o esquecimento. 

Já dissemos noutra ocasião, que é preciso operar a arqueologia das ideias e a psicanálise da história para inventar um futuro melhor para todos. Embora o padre grande dos índios não tivesse, no século XVII, as informações antropológicas que só em torno de 1920, a partir de Curt Nimuendaju e outros, nos permitem compreender a motivação ideológica da saga dos Tupinambás em busca da mítica Terra sem Males; ele intuiu o fato histórico incontornável de que sem arcos e remos da brava nação Tupinambá, não poderiam jamais os poucos e mal municiados soldados de Portugal se estabelecer na região amazônica. Então, andará mal outra vez, a história nestas paragens se não vencer sua cegueira e presunção ao fechar os olhos à literatura e a utopia evangelizadora do "payaçu" dos índios na mestiçagem do barroco sebastianista com a complexidade dialética dos pajés tupis e tapuias. E, cem anos após a suposta paz de Mapuá, a chegada da encantaria africana importada em contrabando nos navios negreiros da Companhia de Comércio do Grão-Pará através do Maranhão.  

Apenas a dois anos dos 400 de Belém do Grão-Pará e já talvez Belém da Amazônia, o DIA DE ALFREDO sem medo de ser feliz na Feliz Lusitânia pela internet, Academia do Peixe Frito, em qualquer escola ribeirinha, numa tapera onde houver quem leia e ensine a ler e escrever, em qualquer lugar onde morar um sumano da Criaturada grande... O dia da morte do índio sutil Dalcídio Jurandir, 16 de Junho; passa a ser dia de renascimento do índio Mapuá, Aruã, Anajás, Mamaianá, Camboca, Guaianá, Pixi-Pixi... O kuarup xinguano reinventado pelos sumanos no teatro imaginário do Ver O Peso, Solar da Beira, feira do Açaí...  Dia dos antepassados negros da terra e da Guiné... Dos avoengos desterrados dos Açores, Algarves, Madeira, norte de Portugal e da Galiza... A diáspora da ralé judia e a massagada árabe confundidas aqui com a patuléia geral das regiões amazônicas. Acima de todas as coisas: que não nos falte a dança do peixe (pirapuraceia) em memória do bom selvagem Tupinambá convertido em caboclo Pena Verde nos rituais da Umbanda; sem o qual não existiria o país chamado Pará, do Brasil sentinela do Norte, que foi além do Oiapoque, a remo e vela, estabelecer nosso velho e querido Porto Caribe.

Mas, que turismo é este no Ver o Peso? Quem quiser que venha ver o peso da Criaturada... 


"Ah! é notável a influência do peixe frito na literatura paraense! Peixe frito é o peixe vendido em postas nos taboleiros do Ver-o-Peso ao lado do mercado em Belém. É a comida para quem não deixa almoço comprado em casa. Ao chegar o meio dia, o pobre se tem a felicidade de haver arranjado dois mil réis leva um embrulhinho envergonhado de peixe para casa. A vida literária do Pará tem se movimentado em tomo do peixe frito. Conheço profundamente esse drama. Sempre fui empregadinho público como me chamou certo imortal (da Academia de Letras do Pará), morando numa barraca na São João, com família e perseguido pelos camisas verdes. Vocês sabem o que era naquele tempo viver perseguido pelos camisas verdes. Acabei gramando xadrez comum, o mesmo xadrez onde os ladrões de galinhas e porristas passam vinte e quatro horas. Nele passei três meses, apenas porque a infâmia dos camisas verdes chegava a tudo naquele tempo. Me ficava bem, aliás, estar em companhia daquela pobre gente em vez de estar na companhia dos autores da infâmia. E outras histórias. E outras misérias. E a vida do chamado intelectual na província é mais trágica do que se pensa. Bancamos bobos de rei, mas de graça. A não ser a honra dum convite para uma qualquer chateação literária e mais nada. O resto é o peixe frito." - DALCÍDIO JURANDIR



Tragédia e Comédia do Turismo no maior arquipélago fluviomarinho do mundo.

Esta insólita postagem empresta título do memorável artigo do romancista Dalcídio Jurandir, "Tragédia e Comédia de um Escritor novo do Norte", em 1940, ao receber ele o prêmio "Vecchi-Dom Casmurro", traçando paralelo entre os obstáculos da vida do autor para conseguir espaço nas letras brasileiras e no Norte do Brasil as tentativas em desenvolver uma indústria do turismo aproveitando o rico potencial da natureza e cultura da região estuarina para desenvolvimento socioambiental da brava gente descendente da primeira cultura complexa da Amazônia (apud Anna Roosevelt, Denise Schaan e outros). 

Na verdade, devíamos escrever tragédia e comédia do turismo literário na Amazônia marajoara. Pois é, precisamente, disto que se trata. Em contraste com a miopia de empreendedores e insensibilidade da sociedade paraense em geral, representada por políticos eleitos aos três níveis federativos (União, Estado e Municípios). 

Como se deve saber, mais que nunca o Turismo hoje se apresenta como tábua de salvação na longa transição industrial em crise e a desejada economia sustentável cantada em prosa e verso, onde biodiversidade e diversidade cultural das regiões planetárias são capital numero um para o desenvolvimento humano local.  E não é, por acaso, o ordinário IDH abaixo da linha de pobreza que transforma o antigo paraíso procurado na Terra numa tragédia entre choro e ranger de dentes?

Neste negócio da galinha dos ovos de ouro, o Turismo Literário tem papel fundamental de apontar o mapa da mina. No caso específico do autor de "Chove nos campos de Cachoeira", seu alter-ego chamado Alfredo flana por nove dos onze romances do ciclo Extremo Norte entre as ilhas filhas da cobragrande e a cidade grande: visitando sua criaturada, ele com o caroço de tucumã mágico desfaz bruxedos da colonialidade que habita o tempo 'bellépoquê' de nossa modernidade conservadora.  

Nós não queremos, simplesmente, um turismo rural sem pé nem cabeça no Marajó ou seja lá onde for com a dança do ventre roubando a cena do lundum... Ou a dança do fogo dos índios apaches importada de terceira mão para vender gato por lebre a gringos iludidos do marquetingue... Nós queremos reedificar os tesos de camutins... A refazenda de nossas aldeias históricas, cuidar carinhosamente de O Nosso Museu do Marajó... Levar mais longe a folia do Glorioso São Sebastião e a cultura alimentar do tipiti e os gados do rio.

Não nos interessa ver na TV propaganda de erva de cheiro, se a pobre vendedora na maior feira livre da América Latina nunca leu ou mesmo ouviu falar (por que não lhe ensinaram nem podem ensinar o que não sabem...) duma certa Eneida com seu festejado, outrora, Banho de Cheiro... Até as pedras soltas da Ladeira do Castelo sabem que nossos dirigentes políticos pouco sabem do que falam durante discursos festeiros feito carimbó da vovó... Isto é ridículo! A elite se adonar do conhecimento tradicional para fazer fortuna com água de cheiro e dar trocadinhos a gente inocente da passagem dos inocentes...

Na Irlanda, o personagem de ficção da obra literária Ulisses, de James Joyce, Leopold Bloom é motivo de feriado nacional do Bloom's Day. O dia de Bloom atravessou o oceano e chegou até o Brasil: move uma poderosa economia cultural. E nós aqui nem estamos falando em feriado para um suposto Dia de Alfredo, quando a mentira histórica fez feriado da burra "data magna" do Pará, furtando a verdade do 28 de Maio, em Muaná... Para levar o povo paraense, de desengano em desengano, à Tragédia do Brigue Palhaço e ao genocídio dos cabanos... Quando, na verdade, a obra e a vida do maior escritor da Amazônia deveria ser objeto de estudo nas escolas e manifestações populares destinadas a promover a hospitalidade da população nos municípios turísticos pela memória da Paz de Mapuá e valorização patrimonial da milenar Cultura Marajoara.

Quem, no mundo inteiro, não ficaria curioso em saber do que trata tal Dia de Alfredo que, eventualmente, poderia dialogar com o famoso Bloom's Day irlandês numa aventura comparativa da linguagem entre Dalcídio e James Joyce. Ou será isto como um sacrilégio aos olhos da crítica consagrada? Como comparar o universal com o regional? Este embaraço tão grave é, sem dúvida, sintoma de nossa colonialidade que é coisa pior que o colonialismo puro.


artesão reproduzindo peça de cerâmica marajoara: a partir da invenção de O NOSSO MUSEU DO MARAJÓ, em 1972, em Santa Cruz do Arari, pelo padre Giovanni Gallo. Leia a obra "Motivos Ornamentais da Cerâmica Marajoara" do mesmo. O lago Arari foi berço da Cultura Marajoara e dos fragmentos de cerâmica pré-colombiana recolhida a esmo, muitas vezes, pelos chamados "ladrões de gado"; começou a obra que incentivou a retomada da arte marajoara. Por coincidência, no mesmo ano de 1972, Dalcídio Jurandir recebeu o maior prêmio da literatura brasileira, o "Machado de Assis", da Academia Brasileira de Letras (ABL). 

Mas, infelizmente, formuladores da política cultural e turística não conseguem há, pelo menos  desde os anos de 1970, quando a PARATUR e CENTUR foram planejados para uso sustentável dos nossos recursos naturais e culturais; dar respostas satisfatórias ao extraordinário potencial e a dolorosa realidade social. Algo precisa acontecer para se chegar ao paradigma de desenvolvimento regional que a teoria aponta, outrossim, desde a década de 70. Ou seja, lá se vão mais de 40 anos! Que é o tempo que levou a guerra das tribos envolvidas pelos colonialistas da Holanda, Inglaterra, França, Espanha e Portugal na cobiça do rio das Amazonas até as supostas pazes dos Nheengaíbas.



   ilha do Marajó (praia de Joanes), foto de Kiki Deere

"As belezas das praias de Alter-do-Chão,  em Santarém, e do Marajó, e as delícias e encantarias amazônidas encontradas no Ver-O-Peso, em Belém do Pará, figuram entre as dez coisas inesquecíveis para ser fazer na Amazônia listadas pela jornalista inglesa Kiki Deere em artigo publicado no site “Rough Guides”, um dos mais importantes guias turísticos do Reino Unido, que cobre mais de 200 destinos. A dica é para quem visitará o Brasil durante a Copa do Mundo, e edição especial será comercializada ainda este ano na Europa, EUA e América Latina." do Blog da Franssinete Florenzano.


Tragédia e Comédia de um Escritor Novo do Norte...

Dalcídio Jurandir

Estava um pouco aperriado com a divisão do município de Itaituba em setores censitários... Tinha vindo desse município, o maior do Brasil, com uma vilazinha jogada na solidão do Tapajós, um poeta da velha escola, com rimas ricas, que é o poeta Rodrigues Pinagé e o prefeito Fortunato, patriarcal prefeito com a mesa farta, mandando buscar a banda de música de Aveiro para tocar no aniversário de sua esposa e a sua malquerença com o judeu Moisés, gordo homem que tem a única frigidérzinha da vila e um piano em casa.

Itaituba não fica muito distante das cachoeiras e dos índios lá do alto Tapajós. Tem também a febre, criatura muito conhecida na Amazônia. Há também umas sondagens de petróleo que ficaram para outra ocasião. Tomei banho, de madrugada, num poço de água sulfurosa, água morna vinda do fundo da terra, que foi uma maravilha. Cheguei a Santarém na lancha "Eulina" rebocando o seu pontão cheio de passageiros, da gente não ter um lugar para armar rede.

Dois dias assim no Tapajós, descendo. Tapajós é um grande rio, seu povo luta asperamente contra a febre, a miséria, a ignorância, a exploração comercial e vai tirando a sua borracha, o seu caucho, couros e plantando seringa na concessão Ford. Sempre dá um movimento à concessão Ford. Pena é que não deixe que os seus trabalhadores tenham garantia alguma no seu trabalho. O Instituto dos Industriários mandou seu funcionário lá e os súditos do Rei do automóvel não quiseram se explicar. Ali na concessão quem manda é Mr. Ford e isso de Caixa de Aposentadoria e Pensões é para Mr. Ford engulir. Também tem o Dr. Mac Dowel que é um grande advogado, servido por uma incomensurável cultura dentro de biblioteca tipo castelo feudal, majestosa e a pique, com a respectiva ponte levadiça por onde sua senhoria desce para o seu austero e patriótico escritório. Mas isto não quer dizer nada com o prêmio "Dom Casmurro". Estava trabalhando quando me vieram dois telegramas. Fiquei alarmado. Minha família mora em Belém e podia ser alguma notícia má. Mas era o primeiro prêmio. E o engraçado foi que em Belém deram a noticia da vitória do romance "Marinatambalo", mandado para o concurso pelo Maciel Filho e o meu querido Abguar Bastos, de São Paulo. Quando mandei o "Chove" já o outro andava no concurso. A carta de Abguar avisando, veio na hora em que se mandava o "Chove" pro Rio. Quando minha mulher mandou o telegrama de Brício de Abreu fiquei pensando em Salvaterra, onde passei a limpo, ano passado, o “Marinatambalo” e escrevi o “Chove”.

Do "Chove" tinha uma papelada velha que se pode convencionar como material todo desarrumado e roído de traças, vindo das alturas de 1929. Me lembro que fiz essa tentativa com uma literatura desenfreada e uma pretensão a fazer estilo, que era um espetáculo. Andei escrevendo em Gurupá, depois num barracão no rio Baquiá Preto nas ilhas de Gurupá, onde era empregado. Ali ensinava os dois meninos do patrão Pais Barreto, a ler, nos livros de Felisberto de Carvalho. Passou o tempo e larguei o troço sob o peso do castigo de tanta presunção literária. Em Salvaterra pensei então retirar do entulho os personagens mal esboçados, o fio de algumas impressões vagamente fixadas e fiz o romance. Nada ficou da tentativa de 1929. Estava de férias como inspetor escolar, na vila de Salvaterra, para onde me mudei de Belém, por medida de economia. E ganhando 365$000 por mês, porque 100$000 que eu podia ganhar mais, eram para pagar a prestação da máquina de escrever que tive a loucura de comprar. Sem ela não podia ir pra frente o plano de escrever o "Marinatambalo  e o "Chove". E eu e Guiomarina, minha mulher. fazíamos os maiores malabarismos com os trezentos e sessenta e cinco. Não éramos somente nós dois em casa. Eu metido com os dois romances e ela vendo se os trezentos e sessenta e cinco rendiam mais. Tinha umas diárias de 150$000 mas foram cortadas porque vieram as férias escolares. Perdi as diárias magras e arrancadas com unhas e dentes do Sr. Pernambuco Filho, diretor da Educação, apesar de ter sido eu o único inspetor escolar que saiu de Belém sem temer febre, chuva, rompendo atoleiros, andando em montarias, para visitar as escolinhas auxiliares, perdidas no mato e no campo. Roemos uma chepa fazendo os romances. Depois o dinheiro custava a vir. Esperávamos as canoas de Belém. Uma era a "Antuérpia" e outra era a "Vila de Salvaterra". Esperávamos angustiados. Tínhamos, é verdade, a camaradagem do Valdemar cavando no boteco pra salvar o capitalzinho, do Veloso da mercearia, do David Paulo, de Soure, da família Bla. Sai com os dois romances mas fiquei devendo dois meses de casa, a sessenta mil por mês, e cento e quarenta mil no Veloso, que ainda não pude pagar.

Por essa época — me lembro de certa noite que dormi no chão porque a rede já não prestava mais e dinheiro não havia para se comprar uma nova. Foi nessa época que tive a honra de ser apresentado a uma senhora Nenê Macagi, que apareceu escritora em Belém, pirangando os moles no Pará, até com a Prefeitura de Soure. Esta senhora não me deu importância alguma, primeiro porque eu, caboclinho, estava de macacão e tamanco, segundo, porque a dita senhora era uma escritora. Muita gente ainda pensa que o Pará é terra de seringueiros coronéis. Aparece uma turminha de malandros metidos a literatos, cantoras, etc., e caem em cheio em cima do governo, sangrando o Tesouro. Os da terra ficam no peixe frito.

Ah! é notável a influência do peixe frito na literatura paraense! Peixe frito é o peixe vendido em postas nos taboleiros do Ver-o-Peso ao lado do mercado em Belém. É a comida para quem não deixa almoço comprado em casa. Ao chegar o meio dia, o pobre se tem a felicidade de haver arranjado dois mil réis leva um embrulhinho envergonhado de peixe para casa. A vida literária do Pará tem se movimentado em tomo do peixe frito. Conheço profundamente esse drama. Sempre fui empregadinho público como me chamou certo imortal (da Academia de Letras do Pará), morando numa barraca na São João, com família e perseguido pelos camisas verdes. Vocês sabem o que era naquele tempo viver perseguido pelos camisas verdes. Acabei gramando xadrez comum, o mesmo xadrez onde os ladrões de galinhas e porristas passam vinte e quatro horas. Nele passei três meses, apenas porque a infâmia dos camisas verdes chegava a tudo naquele tempo. Me ficava bem, aliás, estar em companhia daquela pobre gente em vez de estar na companhia dos autores da infâmia. E outras histórias. E outras misérias. E a vida do chamado intelectual na província é mais trágica do que se pensa. Bancamos bobos de rei, mas de graça. A não ser a honra dum convite para uma qualquer chateação literária e mais nada. O resto é o peixe frito.

Agora com a geração mais nova aparecem moços que felizmente, vieram de famílias mais remediadas. Mesmo assim estão fechados na província, isolados, boicotados, negados. Se na geração de Abguar Bastos há nomes como o desse Bruno de Menezes que tem poemas lado a lado com os melhores de Jorge de Lima e Manuel Bandeira, na geração mais nova temos um Ribamar de Moura, um dos grandes pensadores jovens do Brasil, Leví Hall do Moura, cronista admirável, Stélio Maroja, F. Paulo Mendes, Machado Coelho, Cecil Meira, Daniel Coelho de Souza. Novíssimos como Carlos Eduardo, o poeta de "Este rumor que vai crescendo", e Mário Couto, um contista dos maiores entre os jovens contistas brasileiros. Nomes como De Campos Ribeiro que acaba de publicar um belo livro de poemas. Oséas Antunes que tem três romances inéditos e muito bons, Jaques Flores, poeta de Cuia Pitinga, as poetisas Miriam Morais, Adalcinda e Dulcinéia Paraense, os desenhistas Ângelus, vindo do movimento Graça Aranha, o admirável Gari e o singularíssimo Mariz Filho. Agora mesmo o autor do filme "Aruanã", Libero Luxardo descobriu em Marabá um desenhista fabuloso mesmo. Chama-se Morbach. Seus desenhos têm muita coisa de "terreur", de bruto, de essencialmente amazônico. Aquele grande amigo que é Nunes Pereira, insatisfeito e vigoroso Nunes Pereira com a sua dispersão e os seus pés infatigáveis, rompendo todos os caminhos da Amazônia, metido com índios, peixes, selvas e febres, Nunes achou em Morbach aquilo que ele entendia como verdadeira interpretação da paisagem e da humanidade na Amazônia.

Quero fazer aqui uma referência especial a "Terra Imatura", a nossa pobre e querida revista fundada pelo meu amigo Cleo Bernardo, um novíssimo, uma alegria e um entusiasmo sem limites e uma das mais puras amizades que encontrei na minha vida. Com ele lutam Sílvio Braga, Rui Barata, além dos que já falei.

Antes de acabar estas notas escritas apressadamente para pegar a mala aérea, quero contar um pouco da história do "Chove".

Pensava acabar o romance um pouco antes do encerramento do concurso. Mas não acabei. Voltei de Salvaterra sabendo do adiamento. Mendes e Stélio leram o livro e acharam que eu devia mandar uma cópia mais limpa. Como, se faltavam vinte dias para terminar o prazo? Então Guiomarina, minha mulher, doente como se achava, se dispôs a datilografar o romance. Eu, desanimado, não dava conta e depois ocupado na luta do peixe frito e mesmo porque aceitara um lugar no Recenseamento oferecido pelo amigo Adelino Vasconcelos, delegado regional do Pará. Guiomarina, doente, em quinze dias passou a limpo o romance. Foi uma obstinação. Ela queria que eu mandasse a pulso o romance para o concurso. Por isso que todo o sucesso devo a ela.

Mas faltava o dinheiro para mandar o livro pelo avião. Só havia três dias de prazo. E com Mário Couto fomos cavar entre os amigos o dinheiro. Paulo Mendes e Stélio me deram dez mil. Jorge Malcher, cinco. E eu tinha vinte. Fui à Panair expedir o livro como encomenda por ser mais barato. Mas me disseram que não se fazia mais encomenda. Olhamo-nos eu e Mário, desalentados. Meu desejo era corresponder ao esforço da Guiomarina. Não queria voltar para casa com o livro debaixo do braço e vê-la triste, sabendo que todo o trabalho havia sido inútil. Ao menos o consolo de enviá-lo ao concurso, queríamos. Saímos da Panair e voltamos. Cavamos mais dez e fomos ao correio. Entrei na bicha e esperei a minha vez. Tinha o dinheiro na mão e aflito porque não sabia de certeza quanto era a taxa. Se fosse mais? Esperei meia hora na bicha para chegar ao guichet e ouvi do funcionário que a taxa era tanto e o dinheiro não dava. E me olhou com uma tal superioridade funcional que sai humilhado. E eu era a desolação em figura. Faltavam vinte mil réis e onde encontrar esses vinte mil réis? Pensei no personagem do "Chove" e sai com Mário, atrás dos vinte mil réis. Vimos na Confeitaria Central o pintor Barandier da Cunha e Osvaldo Viana. meu amigo e uma das figuras expressivas nos meios de Belém. Eles nos deram os vinte. Corremos, faltava meia hora para fechar a mala. Entrei na bicha, suando e pensando em Guiomarina, em casa, esperando o resultado do trabalho. E mandamos o volume no porte simples, sem recibo, sem nada, para um rumo incerto, podendo nunca mais chegar ao DOM CASMURRO!

Tudo isso humilha e esgota a gente. Conto tudo isso para mostrar como é que se escreve no Brasil.

Nada direi da minha vidinha literária. Nasci em Ponta de Pedras, me criei em Cachoeira. Tenho trinta e um anos, com caderneta militar de segunda categoria, etc. Cultura: estudos primários com o professor Chiquinho e Grupo Escolar Barão do Rio Branco, em Belém. Estive dois anos no ginásio. Nele desaprendi o que levara do grupo. Quase todos os professores me desanimavam, dinheiro não havia, tive sarampo, curado pela minha segunda mãe Dona Lulú, acabei perdendo os exames do segundo ano e virei vagabundo de subúrbio em Belém, morando na barraquinha de Dona Lulú que me dava comida, luz para escrever versinhos, e um sapato de quando em quando. Fui ao Rio na terceira braba do "Duque de Caxias" e acabei lavando pratos no Hotel São Silvestre, na rua Conselheiro Zacarias, passando o esfregão no corredor da pensão onde morava de favor, dormindo em cima duma colcha rota no chão e comprando para a patroa a carne no açougueiro e levando cesto feito criado quando o amante da dona ia na feira fazer compras. Tinha dezenove anos. Tinha mais dois cartões. Um para o então senador Lauro Sodré. E o outro para o doutor Gustavo Barroso. O do Dr. Lauro não dei porque não sabia a casa dele. Com o do Dr. Gustavo Barroso fui ao "Fon-Fon". E isso depois de vou-não-vou, temendo a importância do Dr. Barroso e do "Fon-Fon". Encontrei um senhorzão bem nutrido e vestido, que ao receber a minha carta me perguntou com voz sonora c confortável "sabe revisão?” ·

Me botou num caixote à espera que o revisor da revista pedisse demissão e eu ocupasse o lugar. Um dia o desânimo aumentou. Nada do revisor sair e a dona da pensão me aponta outros empregos, muito impaciente com a minha situação. E me despedi do majestoso Dr. Barroso, cujo displicente olhar caiu sobre mim com uma tranqüila superioridade e com tão solene desdém que desci a escada do "Fon-Fon" como um escorraçado.

Voltei na mesma terceira classe do “Duque". Fracasso completo. Vagabundo sempre. Papai em Cachoeira sem nada poder fazer e Dona Lulú na barraquinha me dando o que podia arranjar na sua máquina de costura. Foi então que escrevi ao Sr. Paulo Maranhão, proprietário da "Folha do Norte" uma carta floreada como página do meigo Dr. Aluízio de Castro, pedindo um cargo de suplente de revisão. Ele me respondeu de testa que "emprego era o que não havia e que fosse bater noutra porta".

A nota vai comprida demais. Escrevo apressado para não perder a mala aérea. DOM CASMURRO me lançou e nada posso dizer porque o que ele fez foi agitar a terrível questão dos pobres escritores mergulhados na província. Foi a obra magnífica de DOM CASMURRO. Nada mais posso dizer acerca do "Chove nos campos de Cachoeira", porque somente poderia dizer coisas ruins. É um livro tão meu que não sei falar bem dele, não sei explicar finalmente. Tem toda a desordem, os defeitos, as lutas dum livro sincero. Eis a coisa ruim que posso ainda dizer... Mas quero acabar que tive uma grande homenagem por causa do prêmio. Fui com o meu amigo Cronge da Silveira, em Santarém, tomar tarubá na casa de dona Ana, no bairro da Aldeia. A casa de palha, o chão batido e as moças simples e alegres cumprimentaram o "escritor premiado...” O tarubá é uma bebida fermentada de mandioca muito usada em Santarém. E naquela noite da Aldeia, num banco no terreiro, tomamos o tarubá, bebida da terra e do povo. Não me esquecerei nunca da Aldeia.