domingo, 31 de julho de 2016

CARTOGRAFIA SOCIOAMBIENTAL E NOMES DE LUGARES DO MARAJÓ


Rio Mapuá (Breves),  o "rio dos Mapuaises" segundo o padre Antônio Vieira (século XVII) -- Reserva Extrativista Mapuá (área federal na ilha do Marajó sob gestão do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), potencial para ser considerado Monumento Natural de relevante interesse etno-histórico).


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A Reserva Extrativista é uma área utilizada por populações extrativistas tradicionais, cuja subsistência baseia-se no extrativismo e, complementarmente, na agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte, e tem como objetivos básicos proteger os meios de vida e a cultura dessas populações, e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da unidade. É de domínio público, com uso concedido às populações extrativistas tradicionais, sendo que as áreas particulares incluídas em seus limites devem ser desapropriadas, de acordo com o que dispõe a lei.
A Reserva Extrativista será gerida por um Conselho Deliberativo, presidido pelo órgão responsável por sua administração e constituído por representantes de órgãos públicos, de organizações da sociedade civil e das populações tradicionais residentes na área, conforme se dispuser em regulamento e no ato de criação da unidade. A visitação pública é permitida, desde que compatível com os interesses locais e de acordo com o disposto no Plano de Manejo da área. A pesquisa científica é permitida e incentivada, sujeitando-se à prévia autorização do órgão responsável pela administração da unidade, às condições e restrições por este estabelecidas e às normas previstas em regulamento.

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COMO A GENTE MARAJOARA HÁ DE TER EXPRESSÃO NACIONAL E INTERNACIONAL

Não existe dúvida de que falta vontade política ao Governo Federal no sentido da proteção e promoção da Cultura Marajoara pré-colombiana como patrimônio nacional, como também ao Estado do Pará a fim de concluir estudos ou levantamento de dados, que nunca acabam e -- enfim! --, apresentar o bendito projeto estadual de candidatura da Reserva da Biosfera Marajó-Amazônia, iniciados entre 2007 e 2010, em atendimento à demanda da comunidade através da Carta de Muaná de 08/10/2003, durante a reunião regional preparatória à I Conferência Nacional de Meio Ambiente.

A história desta demanda -- somente para fazer chegar a dita carta entre Marajó e Belém, e depois daí até Brasília --, é uma novela com paladinos e vilões. Entretanto, se acrescentar os antecedentes desde a Constituinte de 1989, que inscreveu a Área de Proteção Ambiental do Arquipélago do Marajó (APA-Marajó) na constituição estadual (Artigo 13, VI, Parágrafo 2º), já teríamos então um romance e tanto. Para ter uma ideia, somente depois de 27 anos é que se começou a organizar o comitê gestor da APA que, entre outras funções em parceria com a comunidade, poderia mobilizar as populações dos dezesseis municípios na preparação da candidatura da Reserva da Biosfera conforme recomenda a Comissão Brasileira do programa Homem e Biosfera (MaB), da UNESCO, responsável pela lista mundial de reservas da biosfera.

É verdade que as RB's brasileiras (Mata Atlântica, Pantanal, Caatinga, Cerrado, Serra do Espinhaço e Amazônia Central) embora cartograficamente ambiciosas com biomas que somam cerca da metade do território coberto pelo MaB em todo mundo; ainda tem uma prática periclitante que não contribui para melhorar a imagem do Brasil com fama de país do "jeitinho" e falta de seriedade.

Então, a que propósito a RB do Marajó? Em primeiro lugar, tecnicamente APA não difere de RB, exceto pelo fato de ser esta uma modalidade internacional de unidade de conservação prevista na legislação nacional (o SNUC). Desta maneira, a fachada marítima da Fronteira Norte poderia receber cooperação externa multilateral com ampla transparência e controle das autoridades brasileiras. Suspeitas recorrentes sobre ONG's estrangeiras e envolvimento de nacionais em atividades ilícitas atuando na Amazônia poderiam ser esclarecidas e as populações ribeirinhas melhor preparadas para ser elas mesmas vigilantes da soberania do Brasil.

Brasília não conhece a Amazônia brasileira, noves fora raros especialistas quase desconhecidos na região. Por outra parte, Belém do Pará cresceu de costas para o rio e nem desconfia que entre a população suburbana e dos entornos da Capital há, talvez, tantos ou mais marajoaras quantos os habitantes dos dezesseis municípios do Marajó: a organização social, econômica e ambiental do Povo Marajoara como ele tem direito e enunciado no inacabado Plano de Desenvolvimento Territorial Sustentável do Arquipélago do Marajó (PLANO MARAJÓ), incluindo o programa Territórios da Cidadania - Marajó e o Projeto NOSSA VÁRZEA de regularização fundiária --,  daria ao Brasil 1.000.000 de brasileiros vigilantes, participativos e criativos, livres do analfabetismo e do ínfimo IDH. Este conjunto de ações seriam suficientes para cumprimento da Agenda 2030 para os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), caso o pacto federativo deixasse de ser uma quimera na parte em que diz respeito a esta gente ribeirinha deixada à margem da história desde os inícios da Colonização, no século XVII.

Com a indispensável participação e integração dos municípios marajoaras, coletivamente organizados em Consórcio Intermunicipal (incluindo prefeitos, vereadores e representantes das comunidades municipais eleitos periodicamente em consulta pública) na gestão conjunta da APA e RB do Marajó; a complexidade do golfão Marajoara e da mesorregião do Marajó (525.317 mil habitantes (2014), território federativo de 104.140 km²), conforme dispositivo da Constituição do Estado do Pará supracitado; estaria atualizado não importa qual tenha sido a intenção do deputado constituinte há 27 anos passados. O chamado "jabuti" no jargão legislativo passaria a ser visto com o instrumento legal geoestratégico que a região do delta-estuário Pará-Amazonas reclama desde sempre.

Poucos habitantes do Marajó conhecem suficientemente as três microrregiões Arari, Breves e Portel. Cada um dos municípios é um pequeno Marajó que não conhece completamente o "país" que é o grande Marajó, berço da milenar Civilização Marajoara.  A maior parte de moradores das cidades marajoaras não conhece a vida de seus conterrâneos que sobrevivem penosamente no interior do próprio município em áreas de campo, mata, rios, igarapés e lagos dentre cerca de 2000 ilhas e uma vasta porção continental (microrregião de Portel). Enfim, com a instalação efetiva da APA concomitante à preparação da Reserva da Biosfera, as populações tradicionais do maior arquipélago fluviomarinho do planeta, no delta-estuário do maior rio do mundo; poderiam dispor no âmbito do MaB/UNESCO de uma Cartografia Socioambiental "ad hoc", elaborada e atualizada continuamente em participação com com as comunidades locais como base de reconhecimento e empoderamento do território.



O NOME DOS LUGARES TEM A MEMÓRIA DA TERRA



Começa pelo próprio nome Marajó. Quem pela primeira vez usou este nome? Que quer dizer? É nome da ilha ou nome do habitante das ilhas? Certamente, não foram os antigos "índios" da ilha que deram este nome. Segundo o espanhol Pinzón (1500) os índios que ele capturou diziam que a ilha se chamava Marinatambalo... Admite-se que os "negros da terra" levados pelo piloto de Colombo poderiam ser Aruãs. Segundo a arqueologia marajoara, os Aruãs foram criadores da última fase ceramista, aparecem vestígios desta cultura desde 1300 até fins do século XIX, quando eles foram dados como extintos. Segundo Ferreira Pena, os Aruãs chamavam Analau Yohynkaku à ilha grande. 

Outros nomes da famosa ilha foram dados por estranhos a ela: Ilha dos Nheengaíbas.... Ilha dos Aruans.... Ilha Grande de Joanes... Marajó... Tais nomes adotados pelos portugueses e registrados na crônica colonial são, com certeza, a marca dos conquistadores Tupinambá aliados aos soldados, missionários e colonos.

Até hoje não se sabe exatamente quantas comunidades locais há na região do Marajó. Estimam-se em, aproximadamente, 500 localidades espalhadas na teia de rios e caminhos de terra. Qual o significado do nome de cada lugar? Que história os próprios moradores desses lugares sabem contar sobre suas comunidades? Como localizar e descrever a geografia local? Que a metodologia de cartografia socioambiental pode auxiliar a responder estas perguntas? Aqui se trata de algo menos que um esboço. Acho que as prefeituras poderiam coordenar as informações sob orientação da Associação dos Municípios em parceria com universidades em atuação na região. Não existe mistério, o que há é desinteresse e falta de espírito comunitário.

onomásticaato de nomear, dar nome; não é bicho de sete cabeças, só o título em grego é complicado. Trata-se simplesmente do estudo dos nomes próprios de todos os gêneros, das suas origens e dos processos de denominação no âmbito de uma ou mais línguas ou dialetos. Nasceu na metade do século XIX, considerada como parte da linguística, com ligações com a história e a geografia.



EXERCÍCIO TOPONÍMICO À DISTÂNCIA

Pelo Facebook o amigo professor Edne Maués disponibilizou uma fotografia feito por dispositivo celular móvel, onde aparece cena na comunidade de Japuíra (Cachoeira do Arari). Curioso em aprender, eu perguntei onde se localiza esse lugar. Seguiu-se um diálogo interessante como ponto de partida para envolver na "conversa" outros amigos a seguir e este artigo.
Comentários
Edne Maués Essa é a terra onde moram meus pais, lá temos a Festividade do Divino Espírito Santo, a terceira maior festa de santo de Cachoeira do Arari, o Santo pertencia a Feliciano Veríssimo, meu bisavô. A comunidade fica no ramal do Bacuri, de lá chegamos em Aranaí, Chipaiá, Urubuquara, Anuerá, Guajará, Mata Fome, Furo Grande, Açaí, José Joaquim e Caracará. Em Cachoeira ainda temos as vilas de Retiro Grande, Jaboti, Jará, Jauacá, Sé, Bacuri, Soledade, Gurupá, Baixo Arari, Umarizal, Camará, Camaraú, Boca pequena, Diamantina, São Miguel, Urubu, Recreio, Japum (onde mora D. Teodora, sexta mulher mais velha do Mundo), Marajateua, posso ter esquecido de alguma.

José Marajó Varella Edne Maués olha aí... Eu me lembrei do nome de algumas comunidades do município de Ponta de Pedras: Mangabeira, Praia Grande, Paricatuba, Bacabal, Urinduba, Araraiana, Paruru, Anajás, Lavrado, Baixo Arari, Porto Santo, Crairu, Santana, Tartarugueiro, Jaguarajó, Ipauçu, Laranjeiras, Curral Panema, Marajó-Ité, Fortaleza, Tijucaquara ... 



Agostinho Quintino Batista nos limites dos quatros municípios Ponta de pedra, Boavista, Muaná, Anajás onde os seringueiros não tinha nome, nos anos 50, era apelido, mas foi este povo que deu nome os lugares, saparara, trisidela, varado, espera grande, gangurra, tapira, samauma, as cutias, ponta serrada, japucu, roda, pata larga, mutum, pimenta, barreiro, flores, jesuino, pau de rosa, aldeia, quinco, e outros, muito destes nomes era indígenas

José Marajó Varella Obrigado Mestre Agostinho Quintino Batista vamos em frente descobrir os nomes de lugares do nosso velho Marajó, antes que fiquem esquecidos e estrangeirados.

José Marajó Varella diga lá mestre Celio Barros Celio Barros a toponímia de Breves.

Celio Barros Celio Barros Boca de Breves, caruaca, arapijo, Santo Amaro, furo do abacati, siriri, furo de Breves, oleria, mearim, corcovado, são José do tajapuru, Santa Cruz, Antônio lemos, curumu, Liverpool, baiano do gabaia, Porto cacique, são Miguel dos macacos, taujuri, m...Ver mais

Celio Barros Celio Barros Tauracu, urubu, angelim, ajara, jepuuba, macaquinho, puxador, tamandua, arama, aturia, batata, tanbururi, saracura, carapana branco, compania, matunin, beija flor, Ilha comprida, majoim, jupatituba, jaburu, Jacaré grande, jacarezinho, arozal, três bocas, tucupi, Rio jai, Rio rapariga.

José Marajó Varella Obrigado mestre Celio Barros Celio Barros vamos cutucar nossos amigos dos mais municípios para contribuir...

José Marajó Varella Celio Barros Celio Barros uma vez fui ao Mapuá levado pelo vereador Camilo Gonçalves e subimos até o Braço Esquerdo do Mapuá, vi várias comunidades no curso do rio.

Celio Barros Celio Barros Isso mesmo. Canta galo, Santa Maria, cumaru, Vila Amélia, Bom Jesus.

Agostinho Quintino Batista estes nomes foi dados pelo chefe Mumuna o mumua no inicio da guerra dos cabano, ( conto de Antônio Tavares ) as margens do rio mumuna era a aldeias nos anos 50 inda tinha marcas, Tapiíra, gurupá, parita, tapuru-quara, jandia, esteio grosso, onde morou o cabano ximangue

Agostinho Quintino Batista no inicio da guerra dos cabanos mumua foi morto pelos legais,

Edne Maués onde fica Japuira no município de Cachoeira Ilha de Marajó? Olha o rosto desse curumim marajoara... Ele tem direito de saber que somos -- com muito orgulho -- descendentes de índios ...

segunda-feira, 25 de julho de 2016

Ressignificando o suposto encontro do Padre Antônio Vieira e os Sete Caciques marajoaras em Ponta de Pedras, antigo lugar de memória dos Guaianá


Dom Angelo Maria Rivatto S.J. (1924-2011), primeiro bispo da Diocese de Ponta de Pedras (ilha do Marajó - Pará) e fundador da Prelazia precedente instalada em 1967.


Já tive oportunidade de agradecer a dom Angelo Rivatto pela preciosa informação sobre a paz de 27 de Agosto de 1659, entre portugueses do Pará e índios do Marajó. Há cinco anos, neste blogue caboco (23/08/2011) fiz breve registro do falecimento de dom Ângelo, ocorrido na Itália três dias antes, aos 87 anos de idade, dos quais mais de vinte vividos numa Amazônia neocolonial dilacerada entre o anticomunismo da guerra fria na Ditadura militar e o aggiornamento da igreja católica romana, sob ventos do concílio Vaticano-II, insuflando o movimento eclesial de base e a teologia da libertação. Eis trecho principal do texto supracitado:

"Nesta oportunidade, quero apenas lembrar que no dia 25 de julho de 1995, assisti missa campal celebrada pelo bispo Angelo Rivatto S.J. na agrovila "Antônio Vieira", município de Ponta de Pedras. Na homilia ele afirmou ter sido naquele lugar que, nos idos do século XVII, o Padre Antônio Vieira tinha realizado a célebre pacificação da ilha do Marajó em acordo com sete caciques. Eu, confesso, apesar do vício da leitura nunca houvera lido ou ouvido falar nada a respeito do assunto...

A curiosidade me assaltou e mal esperei acabar a missa para perguntar a fonte e ele, sempre escapando, respondeu de repente, "está no livro do padre Serafim Leite". Bastou... É a "História da Companhia de Jesus no Brasil", 4 tomos maçudos pejados de notas. 

Logo vi, Dom Angelo não era homem de perder tempo com leituras complicadas, parecia mais um ativista templário: ele estava redondamente enganado, nunca o Padre Antônio Vieira havia posto os pés na praia da Mangabeira ou no sítio Pau Grande, que o bispo emérito de Ponta de Pedras teve cuidado de trocar para, justamente, "Antônio Vieira". Entretanto, por capricho da história aquele povoado fora antes o Lugar de Vilar (segundo o naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira), que na reforma toponímica do estado do Grão-Pará e Maranhão determinada pelo Marquês de Pombal em função da expulsão dos jesuítas, substituiu a antiga aldeia de índios "Guaianazes" [Guaianá, deve grafar conforme a convenção moderna].

Aí está a graça da coisa: que os Guaianá foram um dos sete povos citados pelo Padre Antônio Vieira, em longa carta enviada à regente de Portugal, Dona Luísa de Gusmão; dando conta da missão do Pará até fins do ano de 1659; que na confederação dos Nheengaíbas [etnias nuaruaques do Marajó] celebraram as pazes com os portugueses do Pará, num encontro incrível - desdenhado pelos historiadores, mas pelo menos poetas e romancistas ficam a dever - que deu termo à guerra suja (1623-1647) para expulsão dos Hereges (protestantes) holandeses e ingleses do estuário amazônico.

 O verdadeiro lugar que Dom Angelo buscava e não encontrou por que não leu todo palimpsesto do historiador da Companhia de Jesus no Brasil, ou leu mas não quis dizer; fica no município de Breves, mais precisamente no "rio dos Mapuaises" [Mapuá], que hoje é, por acaso, a Reserva Extrativista Florestal Mapuá (Resex Mapuá).


Numa conversa compartilhada com Ercílio Marinho, disse-nos o bispo de Ponta de Pedras que havia tão-só por líderes Jesus Cristo e Dom Helder Câmara... Ele ficou conhecido na diocese por seu temperamento autoritário e a companhia constante de sua colaboradora pessoal Nella Remella: ambos tentaram realizar uma singular obra de feição kibutziana. As famosas "cooperativas da Nella" como o povo local dizia. Para mim, um caso de sucesso social em "reforma agrária" feita pela Igreja Católica e um fiasco econômico; jamais considerado como deveria ser pela pesquisa acadêmica."





A utopia do Padre refeita pelo Bispo

Quem vem pelo mar não entrará no Amazonas ou Pará, nem há de subir o maior rio do mundo sem passar pelo golfão Marajoara e contornar o maior arquipélago fluviomarinho da Terra, com as suas duas mil e tantas ilhas grandes e pequenas, de dentro (fluviais) e de fora (marítimas). Por acaso, o delta-estuário Pará-Amazonas - sem consulta popular e aviso prévio -, para evitar uma grande guerra entre os dois reinos cristãos da Península Ibérica por causa do descobrimento das Índias Ocidentais, por Colombo em 12 de outubro de 1492; foi dividido por uma linha imaginária a 370 léguas de distância oeste de Cabo Verde, conforme o tratado de Tordesilhas de 1494.

Até então, os povos "nheengaíbas" existiam há pelo menos 5000 anos nas terras baixas da América do Sul. E lá pela altura do ano 400, cem anos após o Imperador romano Constantino declarar-se convertido ao cristianismo e convocar o primeiro concílio de Niceia; nos centros da ilha do Marajó surgiu o que viria ser a Civilização Marajoara cuja arte cerâmica alcançou seu apogeu cerca de 1300; quando a Arqueologia identifica os mais antigos vestígios da chegada dos famosos Aruã, derradeiros "nheengaíbas" extintos em fins do século XIX. 

Achar que "índios bárbaros" e "primitivos" não são capazes de inventar engenharia de aldeias suspensas sobre terras alagadas e de criar arte cerâmica sofisticada, a ponto de despertar a curiosidade dos civilizados e ser colecionada com avidez pelos maiores museus do mundo, revela complexo de inferioridade tremendo e conformismo à ditadura da Colonialidade onipresente.

O papa Alexandre VI (o escandaloso Rodrigo Bórgia) sancionou o acordo de limites ultramarinos entre os monarcas de Espanha e Portugal. Sob protestos do rei da França, Francisco I; que invejoso do arranjo colonial ibérico e a Santa Sé reclamou seu quinhão no que ele chamou de "Testamento de Adão". Ato contínuo, começaram a frequentar ilhas do Caribe e costas da Terra Firme corsários franceses, holandeses e britânicos sob a proteção dos seus respectivos reis, até se tornarem piratas sem lei. Mas aí, o ouro e a prata roubada dos índios americanos já estava nas arcas reais da civilizada Europa (era tempo de aliança eterna entre o Altar e o Trono).

Segundo Tordesilhas 1494, revogado pelo Tratado de Madri (1750) e, finalmente, o de Santo Ildefonso (1777), a fronteira colonial luso-castelhana dividia a baía do Marajó, no Rio Pará: deixava a Portugal a margem direita do grande mar de água doce em direção ao Salgado e o nascente até as Índias Orientais. Para Espanha caberia toda porção a oeste da Índias Ocidentais, inclusive a grande ilha do Marajó, por isto a beira da ilha para o lado da baía do Marajó foi chamada, na crônica colonial até fins do século XVIII, Costa-Fronteira do Pará.

Jovem ainda, pelos anos de 1960, eu vi chegar em Ponta de Pedras o jesuíta Guido Fossatti que foi mandado soerguer a velha paróquia de Nossa Senhora da Conceição. Aquilo foi um ar novo no marasmo reinante. Uma obra comunitária teve começo na construção do Centro Paroquial movimentando a mocidade. Então, a gente murmurava especulando que a paróquia removada iria dar espaço a uma prelazia e talvez padre Guido fosse ser sagrado bispo. 

Quando, em 1967, de fato viu-se instalar a Prelazia de Ponta de Pedras tendo o recém-chegado padre Angelo Rivatto por bispo, houve uma certa decepção e o bispo novo já começou a granjear antipatia dos paroquianos mais conservadores, sobretudo quando ele mandou padre Guido para a paróquia de São Sebastião da Boa Vista e a praticar mudanças na igreja que impactaram o catolicismo popular, com a supressão de santos de oratório doméstico e tradicionais festividades profano-religiosas como as folias de santo, por exemplo.

Dom Ângelo ficou famoso pelas polêmicas, notadamente o caso do padre Giovanni Gallo (ver Giovanni Gallo, "O homem que implodiu"), teve inimigos ostensivos e dissimulados, assim como colaboradores tais como Rolando Montanier e a onipresente "tia Nella" (Nella Remella), como escreveu um jornalista francês que visitou Ponta de Pedras pelos anos 80.

Fossem quais fossem os motivos íntimos daquela bela italiana do Piemonte para sacrificar sua juventude numa prelazia remota na ilha do Marajó (falavam à boca pequena que Nella curtia paixão pelo padre Ângelo, elevado a bispo); a verdade é que ela mais do que tia, foi uma mãe para muitos pequenos e pequenas marajoaras desamparados acolhidos na Casa da Fraternidade, conhecida popularmente como a "casa da Nella"... (principalmente os seus trigêmeos órfãos adotados de uma família pobre). Dizem que Nella e Ângelo praticaram algo como uma operação Robin Wood para realizar as obras sociais da igreja pontapedrense. Criou-se uma narrativa dizendo que ricos católicos da Holanda, Suíça e Itália eram doadores da prelazia e depois diocese de Dom Ângelo (o padre Gallo contestou a informação circulante em Belém, dizendo ele que na verdade o dinheiro em questão era coletado entre imigrantes católicos naquelas paróquias também elas pobres solidários com outros pobres. Antes fosse, mas pena por que a gente não sabia que devia ser mais agradecido).

O escritor Dalcídio Jurandir era agnóstico e vivia distante no Rio de Janeiro desde a década de 1940, mas ao saber da obra extraordinária do padre Gallo na paróquia de Santa Cruz do Arari e das cooperativas do bispo Dom Angelo, de Ponta de Pedras sua vila natal; manifestou aplausos entusiásticos. O povo falava "cooperativa da Nella"...
De fato, Nella era uma 'pasionária'... Amou aquela criaturada sem eira nem beira, naturalizou-se brasileira quando lhe atiraram em cara ser "uma estrangeira" e puxava briga para defender os cabocos... Sem ela talvez Dom Ângelo não se tivesse feito tantas coisas naquele antigo feudo de que conta o romance "Marajó" (escrito na vila de pescadores de Salvaterra (1939) por um caboco acabado de sair da cadeia de São José preso por perseguição política). É verdade que aquilo tudo foi um enorme desperdício de dinheiro e mesmo perda de oportunidade para fazer diferente...

Mas precisava conhecer o antes e o depois da Prelazia para assistir a uma animada conversa sobre a política municipal e entender a "revolução", onde o "senadinho" sentado sob o ócio de uma frondosa mangueira plantada pelo patriarca dos donos da municipalidade discutiam. E, passando pelo ajuntamento de brancos da terra, com suas ferramentas de trabalho um tal de 'Caboquinho' [nome fictício para proteger a identidade da pessoa] meteu bedelho onde não foi chamado, dizendo ele livremente o que pensava da situação. E se foi embora arengando por despedida "vocês tão co'a vida ganha, mas eu inda tenho que me virá"... Ante o silêncio da surpresa daquela intervenção do preto que já desconhecia seu lugar, algum dos brancos perguntou: "O que é isto?". No que outro apenas disse: "Dom Ângelo". Para bom entendedor meia palavra basta.

É claro que com a minha precária instrução, como a maior parte de nossa sociedade provinciana, o nome do padre Antônio Vieira não me era estranho até aquelas horas. Porém, se por acaso me perguntassem se eu o conhecia, teria que responder que nem nossos sumanos cabocos, "enxergo"... Querendo dizer com isto não ter conhecimento bastante sobre a dita pessoa. 

Entretanto, aquele inesperado encontro há 21 anos passados, no sermão do bispo de Ponta de Pedras aos produtores rurais da agricultura familiar, à beira da baía do Marajó na agrovila de Antônio Vieira; foi o eureca no meu longo curso em busca de saber quem inventou o mundo... Sim, é verdade! Vieira é o cara do século XVII no mundo que o português inventou. Verdade que o afrodescendente, neto de uma criada preta em Portugal; que defende a liberdade dos índios no Brasil e a escravidão dos negros; não passa sem contradição. Seria inverossímil o relato que o superior das Missões do Maranhão e Grão-Pará fez ao rei de Portugal acerca do antigo conflito entre portugueses e índios das ilhas do arquipélago do Marajó? Não, tampouco o requerimento que fez a Câmara de Belém do Pará para o governador André Vidal de Negreiros (1656-1666) dar a "guerra justa" (extinção e cativeiro) aos chamados Nheengaíbas (diversas etnias nuaruaques) e os esforços dos padres para concertar a paz com os ditos índios insubmissos. Prova de que a paz de Mapuá foi um fato está que a guerra requerida pelos vogais da Câmara de Belém não aconteceu. Além disso, a fundação das aldeias missionaria de Aricará (Melgaço) e Arucará (Portel), com índios nheengaíbas, geralmente escapa à observação dos críticos do padre grande.

É exagerado considerar genial a fantasia e imaginação do autor da carta secreta "As esperanças de Portugal" (na qual declara ser o poeta Bandarra verdadeiro profeta sobre a ressurreição de Dom Sebastião e, por conseguinte, pelo mesmo viés sebastianista proclamar que el-rei Dom João IV, restaurador do reino português, falecido em 1656; seria re-suscitado)?  

Talvez, mas é preciso considerar os fatos. E estes nos dizem que o cenário se acha na transição da alta Idade Média para início da Idade Moderna onde o maravilhoso em Portugal àquela altura, estava preso ao complexo bipolar da depressão pela morte de Dom Sebastião e a euforia da restauração da independência do Reino até 1823. Como pensar Portugal no século XVII, debaixo da soberania de Espanha (1580-1640) e depois, malmente independente, sem o Maranhão e Grão-Pará, segunda colônia portuguesa no Novo Mundo ao lado do estado-colônia do Brasil? Imagina no século XXI a Amazônia brasileira (60% do território nacional) sem ter existido aqueles acontecimentos passados... Certamente eu e outros "amazônidas" não estaríamos aqui para contar história. 

Já deveríamos saber que, diferente da historiografia que retrata passo a passo o andar das gerações; a História é uma ciência evolutiva sempre presente e inacabada, que se destina a estudar os fatos sem engrandecer ou desmerecer os mortos. Um conhecimento progressivo para ajudar os vivos a saber a obra dos mortos também eles interessados em compreender donde viemos, onde estamos e aonde vamos afinal de contas. 

Embora a pletora da historiografia brasileira continue a conservar e avantajar o papel dos colonizadores e a retratar "índios" e "negros" como rebanho que obedece cegamente a seu dono ou bandos selvagens perigosos para a Ordem e o Progresso, a história do Brasil virou o final do século XX sob uma nova perspectiva, que muito tem a ver com o advento dos direitos humanos universais e o progresso das ciências do Homem. 

É certo que o padre grande não inventou o Maranhão (Amazônia) de seu tempo, mas durante a missão, de 1653 a 1661, inculcou a região ainda em odor selvagem e foi inculcado pela bruta humanidade dela. Rasgos antropológicos inusitados na obra do missionário dão ressonância ao conceito, divergente do cânone taxionômico, cometido pelo naturalista de Coimbra, Alexandre Rodrigues Ferreira, ao classificar o nativo amazônico como Homo sapiens, variedade Tapuya. Uma variedade humana "primitiva"...

Sem querer, o bispo jesuíta de Ponta de Pedras, ardoroso militante das mudanças do Concílio Vaticano-II, apaixonado pela figura ímpar do "padre grande" dos índios, vinha por acaso de me dar uma chave que abre a porta da invenção da Amazônia. Não importa se, na verdade, o Padre Vieira nunca esteve na praia da Mangabeira, onde só depois da sua expulsão do Pará (1661) chegaram os primeiros jesuítas a fim de fundar a fazenda São Francisco (Malato) e a aldeia das Mangabeiras (lugar de Ponta de Pedras), em 1686. 

O relato pelo padre Vieira de tratativas de paz com índios piratas, chamados pejorativamente "nheengaíbas" (falantes da língua ruim, barbaresca) será considerada inverossímil até bem mais tempo que o período de processo, julgamento e condenação do mesmo pelo tribunal da Inquisição sob acusação de heresia judaizante.

A História não é feita exclusivamente de verdades absolutas, fosse assim a Grécia bafejada pelos deuses do Olimpo e Roma criada miticamente pelos filhos da Loba não teriam desafiado os séculos e inventado o mundo antigo.

Se é verdade que em 1637/39 o capitão Pedro Teixeira e seus mamelucos e índios Tupinambá romperam a "linha" de Tordesilhas (1494) para levar a fronteira da Amazônia colonial portuguesa ao Alto Amazonas; por outra parte a conquista lusa no rio Amazonas não ficaria de pé sem adesão (por bem ou mal) da massagada tapuia do rio Babel (ver José Ribamar Bessa Freire, "Rio Babel, a história das línguas na Amazônia", Rio de Janeiro: ed. UERJ, 2004).

Para muitos, a iniciativa de paz com os caciques do Marajó, auto atribuída por Vieira segundo a longa carta de 29/11/1659 (publicada em Lisboa em 11/02/1660) a el-rei Alfonso VI (sucessor de dom João IV, amigo e protetor de Vieira) seria uma "lambança" a mais, daquelas que fizeram o monarca português da Restauração a adverti-lo com a célebre frase: "ponha tudo isso no papel, mas não me venha com muita lábia"... A famosa lábia de Vieira corresponde a tão elogiada lábia de Maquiavel. A diferença é que, enquanto o florentino procurava fazer a cabeça do Príncipe (o todo poderoso Lourenço de Médicis sobre a arte de governar a republica); o "imperador da língua portuguesa" pretendia materializar o reino de Jesus Cristo na terra, sob o trono de Portugal... Um reino de paz onde judeus, cristãos e muçulmanos se reconhecessem como irmãos: a sua utopia evangelizadora. Antonio Vieira precursor da Teologia da Libertação e também do pontificado do Papa Francisco?

Assim, pude eu me arvorar em defensor da Paz de Mapuá de 27 de Agosto de 1659, negligenciada pela intelligentsia luso-brasileira. Baseado na "História da Companhia de Jesus no Brasil", de Serafim Leite; escrevi o capítulo Uma Política sem lábia para o Príncipe [páginas 202 a 235], do meu primeiro ensaio "Novíssima Viagem Filosófica -- da arte iberiana das viagens e aliança pós-colonial afro-ibero-americana", Belém: Secult, 1999.


Um certo Cacique Piié: ressignificando a guerra e a paz entre tupinambás, nheengaíbas e lusos.

O teatro do payaçu esconderia um plano secreto que a Inquisição portuguesa abortou? O Egito Antigo estava fragmentado e sob domínio líbio até que Piye, rei da Nubia (Etiópia e Sudão atual), promoveu a reunificação do Nilo e depois de vencer várias batalhas foi considerado o primeiro faraó negro do Egito, dando início à 25ª dinastia e uma série de Faraós Negros com origem na Núbia. 

Vieira, como se lê na "História do Futuro", pretendeu transplantar o livro de Isaías ao Maranhão (Amazônia) forçando interpretações "ad hoc" para justificar a teoria segundo a qual seriam os índios das Américas descendentes das tribos perdidas do cativeiro da Babilônia. Esta ideia aproximava judeus e cristãos nas colônias. A Antropologia engatinhava: hoje se sabe que o verdadeiro nome étnico de um índio é segredo mortal, logo o cacique dos Mapuá poderia ser real, mas certamente "Piié" é nome que lhe foi atribuído, seja por apelido dado pelos próprios companheiros ou pelo padre grande. Neste caso, seria uma mensagem cifrada entre eruditos na Europa? O faraó negro inspiraria um modelo etíope para o cacicado amazônico judaizante? E a cooperativa kibutziana do bispo de Ponta de Pedras, o que tem a ver com esta viagem no tempo para a última fronteira da Terra?

Viveram os diversos "Nheengaíbas" em bom entendimento com as feitorias que mercadores holandeses começaram a fazer no Amazonas e Xingu (cf. Arthur Cezar Ferreira Reis, "Limites e Demarcações na Amazônia Brasileira": Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1947) desde 1599, aproximadamente. Uns e outros praticavam escambo de miçangas (facas, machados de aço, anzóis, contas de vidro, espelhos, etc.) em troca de "gados do rio" (peixe-boi, tartaruga e pirarucu) e "drogas do sertão" (cacau, resinas aromáticas, urucu, salsaparrilha).

Na verdade, os tais "nheengaíbas" eram diversas etnias de cultura e língua Aruak, que habitaram o circum Caribe indo das Antilhas, ao Acre e Pantanal. Segundo Ciro Flamarion Cardoso, os marajoaras pertenciam à grande área cultural guianense, que se estendeu do arquipélago do Marajó até Trinidad e Tobago (ponte das grandes migrações do Caribe para a Amazônia).

Naturalmente, o regime de ventos e correntes marítimas determinou a geografia humana da nascente Amazônia daquele tempo. Importa bastante saber que os primeiros conquistadores desta enorme região - então chamada Tapuya tetama (terra Tapuia) -, foi a brava nação Tupinambá, enfrentando encarniçada resistência dos ditos Tapuia (palavra guarani, originada de tamu (avô), já na acepção de inimigo). Data de 1538 o primeiro relato de uma grande migração tupinambá que chegou ao Peru, no Alto Amazonas, depois de varar o sertão e navegar o rio até o Solimões... Só para lembrar que depois da passagem de Pinzón (1500) na ilha do Marajó, som em 1542 ocorreu o "descobrimento" do rio de Orellana (Marañon ou Amazonas): a massagada aruaca chamava ao Amazonas apenas Uene (rio), enquanto os tupis o chamaram Paraná-Uaçu (rio grande). O nome dos lugares é a marca territorial de seus ocupantes... Amazônia (nome tirado das imaginárias mulheres guerreiras do Mar Negro) foi obra dos colonizadores portugueses.

Todavia, sem a religião dos Tupinambás movidos pela utopia selvagem em busca da Terra sem mal parece evidente a impossibilidade demográfica do pequeno reino de Portugal abarcar o país gigante da América do Sul sem aliança das armas e barões assinalados com remos e arcos dos caraíbas antropófagos. Então, para quem considera inverossímil o relato do Padre Antônio Vieira sobre as pazes com os belicosos Nheengaíbas, resta incrível acreditar que Pedro Teixeira tenha realizado uma longa e penosa expedição de Belém do Pará a Quito (Equador), durante dois anos (1637/1639), contrariando determinações de Madri e às vésperas da nova independência de Portugal (1640), fim da União Ibérica que havia possibilitado transpor a linha de Tordesilhas, para expulsão dos Hereges (colonos franceses do protestante Daniel de La Touche, no Maranhão (1615), tomada de Gurupá, Nassau e Orange no Xingu (1623), destruição do forte inglês de Cumaú e outros estabelecimentos até 1647); sem o decisivo apoio do Bom Selvagem tupinambá, enfim catequizado e convertido em 'índio cristão'. Mais tarde, indiferentemente, tupis, aruaques ou galibis todos reduzidos a índios cristãos e, finalmente, caboclos, no Diretório dos Índios (1757-1759).

Então, Vieira inventou a figura simbólica do cacique nheengaíba para anunciar a vitória da paz sobre a guerra justa? O suposto Piié, como José do Egito seria na verdade um "negro da terra" escravo dos padres no convento de Santo Alexandre? Um líder indígena que se recusou a prestar vassalagem ao rei de Portugal, e num longo discurso "diz" o que o próprio Vieira dizia? Do que se trata, em verdade? Aquele ano de 1659 na vida e obra do Padre Antônio Vieira teve importância capital. Em 1656 a morte do rei amigo e protetor Dom João IV o deixa fragilizado face a seus inimigos, que não eram poucos nem desprovidos de poder. Também o fracasso da missão pacificadora do padre João de Souto Maior aos ditos Nheengaíbas, seguida do desastre e morte deste jesuíta na viagem do ouro, no rio dos Pacajás, no mesmo ano; deixaram o superior das Missões abalado.

Em seu labirinto amazônico, Vieira vai a remo ao rio dos Tocantins, levados pelos tais 'índios cristãos' (tupinambás) em direção à aldeia de Camutá-Tapera (Cametá). Toma decisão arriscada de escrever a famosa carta secreta que o levaria à prisão e condenação pela Inquisição. Preparava-se, evidentemente, para retornar a Portugal... Precisava colher um trunfo importante, que de uma vez para sempre, calasse a seus inimigos e detratores... Fora ele a Cametá preparar caminho para a volta à Lisboa? Carta de 29 de novembro de 1659, relatando a missão do padre Souto Maior, a retomada da proposta de paz a fim de evitar a guerra "impossível de vencer"; a carta-patente supostamente enviada aos caciques nheengaíbas através de dois "embaixadores" nheengaíbas escravos do convento de Santo Alexandre, que imploram para não ir ao encontro dos parentes "ferozes"; o regresso dos embaixadores já alegres e bem satisfeitos do cumprimento da missão trazendo logo, quando os padres acreditavam no pior, uma delegação de sete caciques, dentre os quais o tal Piié, o mais ladino de todos...

O primeiro português a tentar a conquista do Marajó foi o donatário de Cametá, Feliciano Coelho, matou muitos nheengaíbas e fez escravos, mas perdeu também muita gente e não conseguiu desembarcar. Mais duas tentativas armadas fracassaram... Foi de fato Vieira e um confrade ao rio Mapuá? Se não esteve lá, a reportagem que fez é extraordinária pelos tantos detalhes. Então o Cacique Piié seria um herói criado dos relatos ouvidos dos escravos indígenas no convento, inclusive no confessionário? Serafim Leite escreveu que o Marajó "foi também o maior campo missionário da Companhia de Jesus".

Significativamente, na célebre carta a el-rei de Portugal, o nome de Piié é o único que Vieira forneceu de todos outros mais caciques dos Mapuás, Guaianases, Pixi-Pixi, Camboca, Mamaianás, Anajás e Aruãs; aparece além destes nheengaíbas, um cacique dos Tucujus (que eram índios do Amapá). Deus se esconde nos detalhes... O projeto de criação da Prelazia de Ponta de Pedras teria sido uma tentativa para ressignificar a missão do Padre Antônio Vieira, trezentos anos depois da sua expulsão do Pará, em 1661? 

Dom Ângelo criou o Seminario Antônio Vieira onde formou seminaristas e padres marajoaras, além de promover duas cooperativas mistas de produção e consumo, uma com mais de dez agrovilas para assentamento de famílias sem-terra, dentre as quais a agrovila Antônio Vieira (ex-povoado Pau Grande, lugar de Vilar, que teve São Francisco por padroeiro e foi aldeia dos Guaianazes (Guaianá). 

O mesmo Vieira vaticinou o Apocalipse para o ano de 1666... Desastroso para o autor da "História do Futuro" condenado por heresia judaizante e para a história de Portugal. Marajó, à parte, iria dar fim à Ilha dos Nheengaibas ou dos Aruans, para criar a Capitania hereditária da Ilha Grande de Joanes (1665). Mas, o donatário dr. Antônio de Sousa de Macedo, secretário de estado, provavelmente leu a carta do superior das Missões sobre a ilha e queria educar os índios incorporando-os, pouco a pouco, à civilização portuguesa.