"Orminda era mulher para andar nas histórias, ficar nas modinhas na beira dos trapiches, na lembrança dos homens, (...). Lenda que não se podia esquecer mais." (Dalcídio Jurandir, "Marajó", p.187). Leia mais em: http://www.webartigos.com/artigos/o-lirico-no-romance-marajo-de-dalcidio-jurandir/53256/#ixzz4ExTK1Are
sábado, 18 de janeiro de 2014
Que seria dos ricos se não existissem pobres?
Era uma destas tardes enormes de Tapiré onde, paresque, a quentura da terra faz a distância dos caminhos tremer e se espichar debaixo do sol de meio dia em diante. Depois da sesta adubada pelo vinho de açaí no almoço, seu Joaquim Goiaba saiu de casa na hora de costume com seu chapelão de carnaúba de aba larga abanando o calorão e foi abrir o comércio. O relógio da igreja bateu três horas em ponto... O homem era de uma pontualidade impressionante. Aquela rotina de anos a fio indo e vindo pela travessa principal da vila entre o comércio na rua da frente e sua moradia com a família à esquina da terceira rua. Ele caminhava com solenidade como se fosse cumprir horário inadiável embora nada tivesse pressa pra coisa nenhuma em Tapiré. A cada passo as abas do sombreiro do rico comerciante balançavam curiosamente inventando uma brisa para espantar o calor. O sol deveras estava muito quente naquela tarde de verão e a maré cheia convidava a um mergulho no rio antes de começar a atender à freguesia. De modo que o homem apenas abriu uma banda da porta para entrar e pegar o velho calção de banho saindo para o banheiro na beira do rio, que existia na cabeça do trapiche.
Seu Joaquim encostou a porta da taberna e reparou que o comerciante vizinho e amigo seu Jiló Pontes já havia aberto o comércio ao lado deixando o caxeiro e sobrinho dele, Roberto, a tomar conta do estabelecimento enquanto o dono ia, um instante, mergulhar na água morna do rio como de costume. Os dois compadres ficavam de molho, que nem dois búfalos na manha para se defender do mormaço; deixando o tempo escoar e a quentura passar jogando conversa fora. Lá pelas horas tantas os fregueses que vinham dos sítios próximos começavam a chegar e os dois voltavam pela ponte, toalha ao ombro, corpo pingando água pela pança balofa, calçando tamancos... Foi aí já perto que o rapaz na ponta no balcão sentado sobre um tamborete na sombra pra se esconder do sol que entrava pelas portas escutou o tio patrão, lá dele; chegar dizendo ao colega: "Que seria de nós se não existissem pobres?"...
Aos ouvidos de Roberto a frase soou como uma revelação. Puta merda!... O rapaz pensou lá com seus botões. Ali estava o segredo da prosperidade: a pobreza de muitos é a mãe da riqueza de poucos escolhidos... Sobrinho da mulher de seu Pontes o rapaz era, de fato, muito esforçado para aprender de um tudo a fim de melhorar de vida. Órfão de pai canoeiro, que não conheceu, desde cedo teve ele que se virar pra ajudar a mãe a criar seus irmãos menores. Há várias gerações, de maneira nenhuma a pobreza fora estranha à família de Roberto da Silva.
O casamento da tia Mindota com o rico comerciante de Tapiré foi a salvação da família inteira... Ainda mais que o casal não havia filhos e assim o sobrinho ficou sendo afilhado. Mas, na verdade, o rapaz sentia-se como um criado explorado e mal pago. Como tal, invejava o tio patrão e dele queria aprender a arte da fortuna. Ali estava, sem mais nem menos, a primeira grande lição que Roberto teve na vida. Qualquer outro pobre no lugar dele ouvindo uma coisa explosiva dessas iria querer ser inimigo mortal dos ricos. Não o caixeiro da casa comercial de Jerônimo Pontes, moço caprichoso que decidira a entrar para o lado da riqueza. Uma coisa, porém, é saber o que se quer e outra diferente é fazer o que é preciso. Roberto pensava, tem gente que sabe até demais da conta. E outras que fazem sem saber, de qualquer maneira. Ele queria ambas coisas pelo visto.
Desde aquela tarde Roberto começou a se interessar pela história de cada rico ou arremediado de Tapiré. Compreendeu, por exemplo, que os maiorais do lugar eram herdeiros de fazendeiros, donos de engenho, serrarias e olarias... Com rara exceção, tais propriedades estavam decadentes desde a abolição da escravatura ou a queda da borracha e a pobreza avassalava de tal maneira que quem se dizia rico, na verdade, não passava de remediado. Quem não foi herdeiro de nenhum proprietário começou a vida como marreteiro e se houve sorte foi subindo... O rapaz achou um caso particular, raríssimo ali, de um filho do lugar que ganhou na loteria e com o prêmio comprou boteco e uma canoa freteira com que escapou da desalentada pobreza de Tapiré. Então, Roberto concluiu: quem não receber herança, ganhar na loteca ou roubar coisa que preste jamais será rico nesta vida.
Roberto era esperto. Sabia ele que não tinha herança nenhuma a receber, não acreditava na sorte grande e também não queria correr risco de ir parar na cadeia por roubo. Só uma coisa ele decidiu, que não restaria pobre para sempre. Que fazer, então? Devoto da santa padroeira de Tapiré, acreditava que Deus disse faz tua parte que eu te ajudarei... Assim só pedia a Deus vida e saúde. Sempre com a frase do tio patrão na cabeça, cogitou sobre como chegar a ser rico. Pouco a pouco a arte de furtar, legalmente, foi se desenhando em sua mente. Agora sim! Nosso aprendiz estava bem decido! Mas, se enojava com a vulgar ideia de começar por baixo como reles marreteiro, conforme consta, fora começo da riqueza de seu Joaquim Goiaba, um antigo morador da vila que foi honrado marreteiro durante a mocidade e fez capital depois de velho. Procurou saber mais, através de sua mãe e da tia Mindota, a história do padrinho Jiloca eleito desde cedo como seu modelo de vida.
Ora, Jerônimo Pontes, por apelido Jiloca, apareceu um dia em Tapiré como caixeiro viajante. Procurou a quem vender as mercadorias que trazia como preposto duma certa casa aviadora. Não achando comerciante estabelecido, conversou com o prefeito Everdoza e com o vigário padre Eurico, que o incentivaram a se estabelecer no lugar. O vigário piscou um olho e disse ademais, temos aqui algumas moças solteiras. O caixeiro viajante não disse, nem lhe foi perguntado, se era casado ou não. Com pouco tempo engatou namoro com Domingas da Silva, mais conhecida na paróquia como Mindota. Logo estava com casa de comércio na praça e atendia os íntimos pelo gentil apelido de Jiló. E foi com o padrinho Jiló que Roberto da Silva se pegou a fim de realizar seu plano de fugir da pobreza...
Primeiro carecia cativar, a palavra certa é essa; seu quinhão de pobres pra ficar seus fregueses. Ora, nenhum comerciante começa com os fregueses, mas os fregueses a ser cativados é que tem que começar a dar lucro ao comércio. O pulo do gato é o tal capital inicial. E aí foi que Roberto da Silva teve que provar a si mesmo que seria capaz de conseguir sócio capitalizado para começar o negócio. Quem melhor que o tio patrão? Claro que Jiló não fazia adeus pra não abrir a mão... Mas, tendo tia Mindota como advogada a coisa era meio caminho andado. Sim, Jiló Pontes não perderia ocasião de fazer sermão ao neófito... Olha lá rapaz no que tu vais te meter... Olha essa gente não é brincadeira! Só eu sei quanto fiado já perdi... Eu sei, padrinho; dizia Roberto humildemente (com vontade de dar uma banana ao velho por suas patifarias)... Eu sei, mas veja bem. Eu aqui já lhe ajudo. E se o senhor me ajudar a abrir uma baiuca lá pra trás, o pessoal que mora longe pode ir lá comprar no meio do caminho como se fosse uma filial...
Roberto sabia que por trás do tio havia uma casa aviadora na cidade com quem ele repartia o apurado como qualquer outro marreteiro montado no cangote dos fregueses. Jiló não escondia uma ponta de vaidade por ter ensinado o pulo do gato ao afilhado. Mas, só por fingimento dizia a mulher, só por tua causa Mindota, só por tua causa... Assim, na própria casa de sua mãe Roberto da Silva fez uma puxada onde abriu a "Quitandinha de Tapiré". No começo ele roeu um osso... Não podia se arriscar e por isso colocou aviso na prateleira FIADO SÓ AMANHÃ... Sem vender fiado àqueles pobres da rua detrás a coisa ficava difícil. Mas, o caminho da riqueza paresque requeria muita paciência e constância. Bom de conversa, o Roberto botava cadeira à porta para o pessoal dar uma descansada na caminhada. Um copo d'água e cafezinho de graça, uma piada sem compromisso. Logo a rapaziada desempregada ia bater papo na porta da "Quitandinha", divagar, meteu o pau na política, fofocas mil, planos para o futuro... Tudo fiado na amizade do quitandeiro. E aí um maço de cigarros, uma lata de sardinha pra quem não pescou nada e ganhou um trocadinho de carreto; um quilo de farinha, aspirina, biotônico Fontoura; carretel de linha... Aquela gentinha foi passando os cobres devagar. Rápido o Roberto aprendeu a força do escambo. O seguinte, camarada vem da estrada com paneiro de farinha pra vender... Pede tanto, o comerciante pede desconto. Aí o lavrador compra o café, sal, açúcar... Encontram-se as contas DEVE e HAVER... Aí o saldo fica pendente para a eternidade. Fechar a conta é o mesmo que declarar a guerra. E portanto Roberto ficou rico e é tido pela gente como amigão do peito.
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