quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

A IDADE DO BARRO: arqueologia das ideias e psicanálise da história na descoberta do presente e invenção do futuro.

teso da ilha dos Bichos: monumento que Wallace não viu.
Os "donos" não o viram também, se vissem maior a ruína seria.




Ó venerável acaso, meu amado mestre!

Eu te saúdo a fim de render homenagem à tua caprichosa companheira, a necessidade; mãe de todas invenções. Tu me fizeste ousar um dia no convite louco ao augusto Saramago para comigo tomar a barca do sábio de Coimbra e juntos subir o Amazonas na novíssima viagem filosófica seguindo a antiga rota da Viagem Philosophica. Então, que nem Alexandre Rodrigues Ferreira a caminho da Ilha Grande de Joanes ou Marajó fez parada imprevista na ilha do Mosqueiro para esperar maré; na novíssima por conta e risco da falta de melhor tempo de viagem fizemos escala absurda na serra Paytuna. O que havia ali na Pedra do Pilão para um garimpeiro de letras mortas que nem eu acompanhado, virtualmente, dum naturalista do século XVIII e de um laureado escritor português do século XX? Nada. A não ser, naturalmente, tal e qual a antiguidade de Portugal considerar a idade paleolítica do Homem amazônida, taxado lindamente pelo sábio como "Homo sapiens variedade Tapuya", que é um equivoco biológico e ao mesmo tempo tremendo acerto da antropologia cultural amazônica. 

O paleo tapuia -- descoberto por acaso pelo sábio e cuja cabeça degolada foi remetida depressa a Coimbra --, depois de dois séculos passados da Philosophica, parecia estar à nossa espera na novíssima viagem entre vetustas pinturas rupestres da idade da pedra a par de vestígios da tua prodigiosa obra casada sempre com a inseparável madre necessidade. Que nos diz ainda hoje nos museus como se fossem templos do deus Tempo (Cronos), entre multidões desnorteadas, o Tapuya (tamu, tamoio, avô) de 10 mil anos atrás? 

Sempre restará alguma coisa a saber do Paleolítico amazônico e americano em geral do alto de seus enigmáticos garranchos estampados sobre a pele da pedra, grimpando paredões da aba das serras; que nem na arquitetura indígena das casas coletivas de Tumuc-Humac, discos armoriais no teto pintados com traços da pele de Tuluperê; que fala do cosmo infinito como a pintura corporal do índio ancestral sobrevive na arte marajoara do presente e restará para sempre pelo arco das novas gerações que ainda hão de vir junto a auroras que ainda não brilharam.

Talvez um índio descendente de Paytuna pudesse nos dizer, pela boca e escrita talvez de um caboco Pinta-Cuia qualquer; com mais propriedade que um viajante apressado, o que é exatamente a "última fronteira da Terra". Ou discorrer melhor, sem sofisma nem teorias conquistadoras do "espaço vital", sobre a responsabilidade de todos não só quando ao território de cada um, mas também e principalmente a respeito do tempo ancestral de toda gente do mundo. 

Pedra do Pilão, serra Paytuna - Monte Alegre_PA

Claro, para tanto, a humanidade precisaria ainda mais de uma revolução da espiral evolutiva figurada no sonho emblemático da escada de Jacó, a girar e subir das misérias mortais do chão da terra ao céu junto às estrelas imaginarias: uma utopia, melhor dizendo, lá adiante no extremo futuro. Algo esboçado, timidamente, em nosso modesto ensaio "Amazônia latina e a terra sem mal", no qual -- por necessidade e acaso -- o continuum da mãe animalidade se transforma na sua dileta filha humanidade, através da educação pelo barro.

Quem há de decifrar o amazônico mistério? Tudo ainda são suposições, especulações na pletora de rascunhos e ensaios de novas viagens... Os tolos não sabem que a busca é tudo e que a conquista é nada. Mas, exploradores e piratas tem muita pressa em descobrir tesouros e cair fora da barbaridade para morrer na praia das civilizações sem jamais pegar o espírito das viagens. Por isto, tem razão o poeta, navegar é preciso. Hoje, ó divino acaso: tu me obrigas novamente a mim como ao rabiscador do passado no tempo da pedra lascada a dar conta do recado no elogio da idade do barro.  Forte encargo, acima das forças do surara e da ínfima capacidade do jamaxi que me pertence por herança.

Pra que servem cacos de índio e montes de terra em ilhas cercadas de campos por todos os lados, escondendo caveiras dentro de "igaçabas" com grafismos de muita antiguidade? Primeiro, o público do Louvre não faz ideia do Marajó... E os marajoaras de hoje somos todos analfabetos nesta velha "escrita" extinta, como cerca da metade da população é cega para ler e escrever na língua oficial brasileira. Que nem, no tempo da colônia portuguesa do Maranhão e Grão-Pará, antepassados falantes da "língua ruim' (nheengaíba) não entendiam patavina de nheengatu (a "boa língua' catequista) nem do português colonizador...

Para o pobre e espoliado povo do Marajó de mísero IDH, vale mais o nosso estúrdio museu inventado, por acaso em estado de necessidade, pelo padre da paróquia de Santa Cruz do Arari, do que dez museus ricos e famosos no estrangeiro e grandes capitais do Brasil sétima economia mundial. A humilde amostra de "cacos de índio" e computadores feitos de pau e corda, tudo para gente da terra "ver com a ponta dos dedos", em Cachoeira do Arari, vale dez vezes mais que a célebre exposição universal de Chicago, no século XIX, onde cerâmicas do teso Pacoval foram parar; tiradas sem bilhete nem foguete para a gente ver e que nunca mais voltaram nem mandaram notícias.

De modo que o roubo do tempo arqueológico espelhado nas pinturas rupestres e na arte neolítica da cerâmica, faz parte integrante da pérfida expropriação da terra dos índios, na Ilha dos Nheengaíbas (Marajó), com a mentira da abolição dos cativeiros indígenas na iludida intenção do Padre Antonio Vieira, com que os sete caciques marajoaras deram termo à guerra de guerrilhas dos 44 anos de conquista da Amazônia lusitana. 

Assim sendo, a pax do Marajó de 1659 acabou sendo para nós que nem a de Troia. Terminaram as pazes em dois breves anos, com a violenta expulsão dos padres pelos emburrecidos colonos eles também enganados com falsas promessas de riquezas fantásticas e infalível continuação das tropas de resgate (caçadores de escravos), para final doação da capitania hereditária da Ilha Grande de Joanes (1665-1757), ao fidaldo secretário de estado português; patriarca dos barões de Joanes jamais vindos ao Pará e seus sucessores através das imorredouras sesmarias ganhas de mão beijada. Portanto, nossa infame história pesa sobre o roubo do tempo arqueológico, o sequestro dos "negros da terra" inaugurado em 1500, por Pinzón; e a expropriação da ilha dos Nheengaibas, tudo isto levando à miséria dos cabocos que hoje a história do IDH do Marajó conta.

Sem dúvida, muitos antes de mim e com mais propriedade já cumpriram esta honorável tarefa melhor do que eu poderia fazê-lo. Entretanto, o império da necessidade para não deixar morrer de todo a Arte primeva de meus ancestrais me tem consumido tempo a criar coragem para levar avante esta extraordinária façanha. Dentre outros, o incomparável marajoara adotivo Giovanni Gallo com sua criativa pesquisa, além da magistral invenção de "O Nosso Museu do Marajó", reunida nos "Motivos Ornamentais da Cerâmica Marajoara" da qual o poeta João de Jesus Paes Loureiro, na primeira edição da obra em 1990, diz como vaticínio: "... é como o pólen que se desprega das flores. Flutua, dança nas mãos do vento, e ninguém pode prever o alcance de sua fecundação."

Com o próprio testemunho do autor, "aproveitando coisas que não prestam", ficamos sabendo da prestimosa contribuição de Vadiquinho nesta aventura coletiva. Cada um a seu modo e seu tempo tem papel restaurador, assim ocasionais restos do desastre são para a gente do lugar "cacos de índio". Enquanto, ao padre vivendo dilema íntimo de sua missão no fim do mundo, extasiado diante do miserável pacote de fragmentos cerâmicos, achados por acaso junto a tesos saqueados; era verdadeiro tesouro e para a ajudante de limpeza da casa paroquial um material que servia para aterrar quintal... 

Já o poeta viu nos grafismos da cerâmica marajoara recuperados o pólen fecundador de outras recriações fazendo eco a uma arte de 1800 anos de idade. Enquanto a arqueóloga Denise Schaan, com mais cabedal, pôde atestar no prefácio da terceira edição em 2005. "Estudar o passado não faz muito sentido se não se coloca esse conhecimento a serviço do presente. Gallo sabia disso, e entendeu muito cedo que a herança arqueológica do Marajó, junto com sua bela natureza e seu povo digno e trabalhador são as maiores riquezas da Ilha". Em poucas linhas, pode-se dizer, ela resumiu o que se tem dito com rios de tinta sobre montanhas de papel.

"O conhecimento gerado pelas sociedades amazônicas não foi registrado em livros, e muita coisa foi então perdida para sempre. A cerâmica Marajoara, por isso, é um dos poucos registros de uma cultura vibrante e original, que em sua precocidade e complexidade caracterizou uma das mais importantes sociedades pré-colombianas das Américas (Denise Pahl Schaan, obra citada, XXIX).


Agora tu, venerável mestre, me convocas a dar início ao cumprimento deste dever de escriba desterrado viajando na memória do espaço e no lombo do tempo desta vida ribeirinha: já vou eu, de novo, tímida e reverentemente botar o pé sobre o velho e arrasado teso da Ilha dos Bichos, nos campos da velha Cachoeira do rio Arari. Esta "ilha" afortunada ou oásis da biodiversidade campestre onde as mães dos bichos vem parir, imersa na inóspita paisagem cultural de "savana". Que é, em realidade, lugar de memória duma milenar cultura com tapera de aldeia suspensa sobre o aterro de barro em campo alagado prenhe de priscas eras.

Quem saberá dizer, então, dos antigos engenheiros pés descalços que levantaram os tesos do barro do chão carregado com as próprias mãos ao galgar a antiga aldeia no alto do aterro com cultivar de bananeiras e roça de mandioca, como no sítio do Pacoval, à ilharga do cemitério fazendo morada aos parentes mortos na vizinhança dos viventes? Quem há de pensar nos pretos escravos fugidos da senzala e da horrível tortura do Viramundo, que se vê num canto no museu do Gallo para escarmento do tempo da iniquidade; almas penadas a errar pelos campos na escuridão da grande noite de escravidão a gritar na voz do vento entre urros de vacas paridas clamando pelas crias aos ermos da assombração: "me mostre o caminho, me mostre o caminho"?... Tarde se levantou o primeiro curral de gado no Arari, vindo de Cabo Verde ao Pará, temendo o "perigo dos índios bravios, desertores e escravos fugidos que existiam pelos centros da ilha", lembre-se. 

Na lição de Saramago, na Viagem a Portugal, viajar é também o que se adivinha para além do que se vê. A viagem ao Marajó carece de iniciação e o Museu do Marajó o melhor curso para tal. Maior ecomuseu do mundo aberto sobre o maior arquipélago fluviomarinho do planeta, sito ao delta-estuário do maior rio da terra.

Masporém, carece adivinhar a complexa geografia marajoara para além do que se vê, como pessoas de todo mundo vão ao museu do Cairo para saber do tempo dos faraós e por que o historiador grego Heródoto sentenciou ser o Egito uma dádiva do Nilo. Tal qual uma múmia em seu sarcófago de barro, a velha "cachoeira" do rio Arari está morta como os índios enterrados no topo da "ilha" dos Bichos. Na verdade, a cachoeira foi no passado distante um simples salto d'água sobre laje de arenito do fundo do rio que só aparecia ao fim do estio. Hoje a extinta cachoeira está enterrada sob montanhas de barro da erosão acelerada pelo desmatamento da mata ciliar e o pisoteio de manadas de búfalo andejos, mais aquilo que antigamente foi carreado pelas águas grandes do gigante Amazonas para a foz.  De modo que, depois que as arariúnas bateram asas e voaram para longe, assim que muitas aves e bichos selvagens como jacarés e cobras grandes que no passados mítico abriram rios, igarapés e lagos e depois desapareceram das margens plácidas do antigo "rio das araras" da velha língua aruaque, também ela extinta; também o rio e lago Arari vão morrendo inapelavelmente na lenta agonia da ecocivilização pré-colombiana de 1800 anos de idade. 

Sem exagero nenhum, primeira cultura complexa da Amazônia e Arte primeva do Brasil, com simplicidade a ilha dos Bichos manda dizer ao povo brasileiro que o abandono da Cultura Marajoara é uma vergonha cravada na consciência nacional. Pelo menos, a quem vai lá no alto escutar a voz do vento sob sol lavrado o teso é, paresque, que nem uma inconveniente mutuca cabo-verde a fustigar cavalo e cavaleiro que se arriscam a franquear a solidão dos campos-gerais da ilha do Marajó. Sem jamais esquecer dona Heloísa Alberto Torres em sua quixotesca peleja a favor do barro dos primeiros dias do gigante Brasil frente à pedra dura da ignorância brasileira e ditadura do barroco colonial. 

No entanto, quisera eu puder dar o primeiro passo nesta nova caminhada de mil léguas a partir do sítio original da engenharia da necessidade com o acaso que pariu nossa ancestral Cultura Marajoara... Mas, quem saberá dizer com certeza onde está o dito cujo? Talvez simples lombo de terra depositada por acaso pela mão da necessidade de matar a fome, ao pé do poço de costumeira gapuiação aonde a piracema foi plantar novos cardumes de peixe do mato. O teso número um a chuva arrasou, talvez, em pouco tempo. Então, fostes tu junto com a necessidade que me foram traçar a rota desta prosa.

Bem que eu queria, então, ter ido ao Pacoval à ilharga do igarapé do Severino para rememorar o achado de 20 de novembro de 1756, do primeiro teso encontrado por homem branco, no caso, o capitão Florentino da Silveira Frade, dono da fazenda Ananatuba e fundador da freguesia que depois foi a vila da Cachoeira. Me lembrar, mais uma vez, que a data 20 de Novembro é dia nacional da consciência negra e que em janeiro de 1500 Pinzón inaugurou a escravidão sul-americana de "negros da terra" na ilha Marinatambalo... Por acaso Dalcídio Jurandir escreveu o "primeiro romance sociológico brasileiro" segundo Vicente Salles, em Salvaterra com título de "Marinatambalo", depois publicado como "Marajó", não por acaso.

O homem do Pacoval talvez me dissesse a razão da gente chamar o igarapé do teso como tendo sido de um certo Severino. Por que o igarapé não ficou conhecido como do Pacoval ou o teso do Severino? Já me dá cuira em adivinhar o acréscimo da viagem: o porquê do capitão Florentino ter ido, depois de uma dificultosa travessia entre Mosqueiro e Joanes, primeiro à velha aldeia sacaca elevada em vila de Monforte, apresentar quanto antes o índio Severino dos Santos, aliás Iona; no papel de sargento-mor de Ordenança da vila ao naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira e deixar o Arari para o fim da viagem ao Marajó.

Alexandre Ferreira elogiou Severino, dele registrando minuciosamente uma provecta história oral de gerações de guerra entre velhos habitantes Iona (Joanes ou Sacacas) deslocados dos centros da ilha para a costa-fronteira do Pará e os belicosos invasores Aruãs vindos através do Cabo do Norte para a ilha Caviana e Mexiana e, finalmente, dominar Marinatambalo, aliás Analau Yohykaku, em língua aruã. Com o privilégio da internet banda larga e download grátis de sítios da Biblioteca Nacional eu ou qualquer outro viajante do mundo poderíamos acampar na beira do igarapé do Severino, se os donos permitissem, para ler em e-book a "Notícia Histórica" comparando o relato com o caminho das águas e trilhas de verão, mais o tempo que seguiu esta velha guerra interna marajoara do século XVII e o conflito não resolvido, já no século XVIII, entre tupinambás, marajoaras e portugueses de que trata a devassa contra Guamã, cacique dos aruãs e mexianas; que resultou no furto do café de Caiena.

Com tantas histórias emendadas pelas águas do Severino, eu iria querer atravessar a boca do lago direto à vila do Jenipapo e de lá sair com estas mal escritas, pronto a dar a penúltima notícia da Ilha Grande dos Joanes (melhor dizendo, dos Iona). Digo penúltima, como quem fala das horas: todas ferem e a última mata... Mas o fado que, antigamente, levou a esmo os primeiros marajoaras em busca do de comer a criar o camuti original -- quem sabe, na beira do rio dos Camutins, numa paragem perdida -- meteu-me recentemente a bordo de avioneta direto a Cachoeira do Arari a serviço da companhia estadual de turismo; e lá por acaso nós pisar a lama do Dilúvio escalando abas escorregadias do teso dos Bichos em risco de cair feio.

Quando contei a amigo pequisador sobre a aventura, ele me perguntou se estivera preparado para possível ocorrência das tantas cobras venenosas que costumam se refugiar com outros bichos, não por acaso, no teso dos Bichos. Mas eu já sabia, por experiência própria noutras ocasiões parelhas, que a santa ignorância é padroeira dos heróis. Há tempos eu queria visitar um sítio arqueológico, pelo menos desde 1995, quando denúncia de saque e contrabando de peças arqueológicas extraídas ilegalmente nos levaram a pedir providências às autoridades concernente. Basta ler jornais regionais da época que se achará o caso registrado. 

Até aí pouca gente sabia, na verdade, que cerâmica encontrada em sítios arqueológicos tem dono, a União federal. O povo desconhece como se fazem as leis e as salsichas. A ausência de poder público nas periferias das cidades é um fato, calcule você então o que acontece nos desconhecidos extremos da antiga costa-fronteira do Pará. Se esta augusta senhora de nós não cuida como de direito, aí a história é outra. Para pesquisadores é difícil ir lá nos feudos dos Camutins, imagina à gente inxirida e abelhuda pé rapado... Tinha que ser como o padre Giovanni se empregando para "tratar" e salgar peixe em feitoria, lá pras bandas do Anajás Mirim.

Por sorte fui "goiaba" (marreteiro), no ano de 1956, no lago Arari, pena que naquela idade de dezenove anos eu estava ignorante pra burro...Voltei mais duas vezes, nos anos 60, já como repórter da imprensa. Mas ainda assim meu conhecimento era perto de zero. Melhor, quando depois de cinco anos tratando com "refugiados econômicos" na Guiana francesa, donde muitos marajoaras se passando de amapaense; fui convidado a trabalhar na assessoria da companhia estadual de turismo. E, ainda assim, havíamos sido praticamente impedidos de entrar em terras de fazenda para ver sítio arqueológico. 

Claro, ninguém estava pensando em levar turistas para ver tesos que nada mais são que aterros artificiais em sítios isolados e de difícil acesso por estratégia de seus primitivos engenheiros, em nada comparáveis a pirâmides da Guatemala, palácios astecas ou a cidade sagrada dos Incas... Um fotógrafo camarada, entretanto, com artimanha conseguiu enturmar-se com cabocos danados e passar junto desses uns que habitualmente estão na mira de capangas contratados por fazendeiros para combater roubo de gado... O marginal remanescente dos aruãs marginalizados é chamado, na exclusão social da Ilha, "jebrista", refugiado na "jebre", a porção mais agreste e hostil dos centros e da contracosta da Ilha. Esta gente explorada desde a barriga da mãe nasce sabendo que os brancos não sabem o que de fato o Marajó ("homem malvado") é. Rezam eles pela cartilha que diz, ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão... 

Então, em várias fotografias do alastrado saque tiradas em horas mortas no retiro de fazenda, vimos na cidade à luz do dia a soberana razão dos senhores herdeiros dos contemplados do Marquês de Pombal para manter turistas doidivanas e jornalistas abelhudos longe dos sítios arqueológicos. Com paciência e senso de oportunidade visitamos primeiramente o teso dos Bichos e depois um amável convite de um herdeiro da fazenda deu-nos oportunidade também de rápida visita ao teso Guajará. 

Já tínhamos estado próximos ao teso Macacão e vimos algumas peças retiradas dele, em terras da fazenda Tapera, por gentileza da senhora sua dona, por acaso durante filmagem de uma das piores edições do "Globo Repórter", que teve tudo para ser, como dizem, um verdadeiro "show". Não sei dizer o motivo de tanto azar do Marajó com grandes reportagens para televisão. Uma certa telenovela com suposto tema do Marajó não deixou saudade. Falta de material e assunto para TV não é, nem boa vontade dos nativos, nem interesse dos repórteres e de autoridades locais... Será talvez, como a obra de Dalcídio Jurandir e Giovanni Gallo explicam, que a criaturada costuma ir na contramão da civilização dita nacional e mundial. 

Logo, o que o distinto público quer ver não é exatamente o que a gente marajoara é, nem o que a sua verdadeira história e cultura tratam. Mas, os cabocos sabem por instinto que os brancos não sabem (já falaremos de Wallace na ilha Mexiana e inícios da teoria da evolução das espécies descoberta na Amazônia) ... Deste velho conflito dialético entre as Ilhas dos bárbaros Marajós e a cidade grande do Pará nós já deveríamos saber desde o tempo do padre grande Antonio Vieira, entretanto, no que diz respeito aos outrora chamados "nheengaíbas" (falantes da "língua ruim") cujos descendentes são os marajoaras de agora; os doutos declaram do alto de seu castelo que, noves fora os sermões e as cartas do "imperador da língua portuguesa", não há interesse acadêmico que justifique mais nada. Tudo mais retórica sebastianista inverossímil.

Mas quando a gente tanto fala em cerâmica marajoara e não sabe como tudo começou e nem nunca viu um sítio arqueológico de perto pra contar de certo, como é que tanta gente está pronta a discorrer sobre o povo, a cultura e a Ilha? Ilha que, na verdade, são mais de duas mil ilhas grandes e pequenas; mais a parte continental da microrregião Portel maior do que o arquipélago propriamente dito. É um espanto, quando se sabe que a "ilha" do Marajó (uns chamam de Marajó) é maior que um país do tamanho da Holanda, por exemplo, e tem população equivalente a do vizinho Suriname.

Agradeço a oportunidade que a prefeitura de Cachoeira do Arari nos deu ao oferecer à ex-empresa pública paraense de turismo embarcação e guia para ir ao teso dos Bichos, enquanto ainda havia água nos Igarapés dando passagem, mas a efêmera vegetação fluvial ainda estava viva e os verdes campos do Marajó esperavam pelos começos do verão. Para fazer o mesmo trajeto em jipe nós, a exemplo dos campos ainda encharcados; teríamos que aguardar talvez até fins de setembro pelo menos... Mas, como se sabe, há o Marajó da água grande e o Marajó dos campos queimados pela força do verão. O resto é mitologia, e mitologia é a primeira noite do mundo.






1800 anos de arte e cultura marajoara nos contemplam.


"cacos de índio" no teso da Ilha dos Bichos.



trabalho de campo em pesquisa da arqueóloga Denise Shaan sobre cultura marajoara.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Velas e igarités da Ilha do Marajó no mar de Joanes.


bela imagem do vento captada pela vela da igarité na lente sensível do fotógrafo Ronaldo Rosa, magia da travessia do tempo nas recordações da baía do Marajó.


A presente era tecnotrônica das comunicações juntando máquina, homem e biosfera tem arte e poesia também que nem nas eras precedentes desde que bicho virou gente. Além de poder não só conectar a rede neuronal de diferentes gerações humanas à parafernália feita de chips, computadores, satélites artificiais e, sobretudo, fazer arqueologia sentimental comunicando mentes e corações entre passado e presente no invento da história do futuro. 

A inteligência coletiva na internet já tem seus gerentes tecnocratas e reprodutores doutores PhD. O centro moderno da relatividade do espaço curvo, não faz tanto tempo; migrou às periferias da antiga Terra plana e estas ultimas se desenrolaram dentre as últimas partes do mundo planetário e migraram para os centros do mundo doravante multipolar, desperto e disperso no resto do mundo: deste modo pós-apocalíptico el-rei dom Sebastião descoberto no Mar Portuguez numa manhã nebulosa; o cacique Piié Mapuá a mariscar nas eiras e beiras do Tejo; Padre Antonio Vieira pregando a História do Futuro aos peixes na borda dos canais de Amsterdã em companhia de Espinoza a fim de revogar a excomunhão do filósofo heterodoxo e levar de volta judeus expulsos de Portugal; poeta Fernando Pessoa a bordo da jangada de Saramago; seres encantados do Rei Sabá de Pirabas em reunião ecumênica com os Turcos encantados; o filósofo do quinto império Agostinho da Silva em conferência no conselho de segurança das Nações Unidas... Vários e diversos pontos de luz no Caminho do leite grego ou Via Láctea, para povos ibéricos o chamado Caminho de Santiago e para os Tembés do Pará caminho da Anta e sabe-se lá mais o quê; uma galáxia brilhante fazendo parte da memória transatlântica, onde paresque a consciência da humanidade vem à tona desde imensidões existenciais profundas. 

Para uns neomilenaristas esta nova ferramenta eletrônica das sete maravilhas do mundo moderno seria sinal do fim da História propriamente dita (lembrando que átomos, elétrons e mais partículas atômicas existem desde sempre, somos o que podemos ser graças ao barro original de que somos feitos). Isto é, no que tange à última finalidade da dita cuja História... Muito além da risível fantasia monetarista de Fukuyama contra a economia real e orgânica da organização internacional do trabalho. 

A net, um tremendo potencial a operar a esperada revolução do santo espírito. Quando, paresque, a cabo de uma longa volta da espiral evolutiva de vidas e mortes sucessivas todas criaturas deste vasto mundo drummoniano estarão interligadas, face a face, ricas de conhecimento da vida eterna enquanto a divina comédia dura e muda de figura minuto a minuto no rio de Heráclito. 

Ainda que, como sempre, o mal enrabichado ao Homem como sua própria sombra com a qual ele haverá de lutar a vida inteira até a morte, continue a fazer das suas para atrapalhar e desviar o caminho da humanidade filha da animalidade rumo às estrelas ou ao paraíso encantado yby marãey ("terra sem mal"), assim chamado por nossos avoengos tupi-guaranis do Peabiru ancestral. Carece cultivar nossas aldeias, chácaras e quintais: biodiversidade e descolonialidade oblige.

O diabo desta gente é que no Marajó velho de guerra não se sabe que o diabo são os outros. Nem se ouviu falar de Sartre na costa-fronteira do Pará, onde o capeta chamado Berto vai mijar no açaizal de varja no dia 24 de agosto a cada ano desde 1659 para o fruto do açaí pretejar no cacho e dar vinho grosso ao povão; quando outrora o Tinhoso no rio dos Mapuás esteve a pique de infernizar e estragar a missão de paz dos padres da Companhia de Jesus aos bárbaros Nheengaíbas reacendendo a velha rixa entre estes uns e os Tupinambás canibais do Grão-Pará: desde a primeira noite do mundo a brava gente marajoara nunca ouviu falar da noite de São Bartolomeu em Paris, quando o Demo no meio do redemoinho foi responsabilizado da matança entre os bons cristão e, por isto, degredado pelo Papa sem apelação aos baixios da zona tórrida. 

Se, por acaso, alguém ouviu certo dia estas coisas já o povo esqueceu o grande segredo dos pajés devotos do Jurupari noutro lado do "mar de Joanes", na Ilha do Sol ou Ilha dos Tupinambás que ficou sendo Colares; confronte à velha aldeia dos Joanes (Ionas, melhor dizendo) como a velha mátria dos Sacacas virou Salvaterra por força do famigerado Diretório dos Índios (1757-1798). 

Como foi, então, que fiquei sabendo eu destas coisas estúrdias se não adivinhei nem as inventei? Admito minha ignorância e deficiência em disciplinas tradicionais da história oral, usos e costumes do "tempo da vela de jupati" no dizer consuetudinário da avó de minha avó mangabeuara que Deus a tenha na santa paz da Terra sem males, dito e repetido muitas vezes pelo arco do tempo na boca dos seus descendentes cabocos até hoje aqui e agora. Provavelmente, foi por causa dessa falha minha de comunicação intergerações que nenhum caruana me veio diretamente contar os mistérios que habitam as águas, matas e campos deste vasto mundão. Drama ribeirinho da expulsão do paraíso na terra dos Tapuias pela extinção de línguas e culturas indígenas do rio Babel...

Masporém aquela coisa medonha que me dá e será a que chamam Jurupari, cuíra, desassossego, intuição, insight, etecetera e tal pode ser já o tal caruana danado, vódum, orixá, todos os santos? Aquilo outro maluco misturando lucidez que fala e ri pela boca do pajé em transe ou embala sonhos de pescador panema e pesadelos de caboco assombrado de bicho do fundo, dá inspiração a poetas presepeiros e cantadores de chula, siriá, carimbó e lundum: inteligência instintiva e natural ancestral que assiste a todos seres vivos sejam eles planta, animal ou principalmente o bicho-homem. E diz, sai do mato sem cachorro e vai procurar teu caminho no vasto mundo, caboco!

Bom, se o senhor e a senhora a isto tudo resumir dizendo simplesmente foi um caruana que te deu ponta pé pra cair fora do igarapé panema ou um grande professor doutor de faculdade pesquisar e publicar tese sob apelido de resiliência eu não terei a menor saliência em dizer o contrário e lhes contestar nadinha, sobretudo, por que eu não conheço a verdade verdadeira das coisas. Só sei que, lá no fundão, a coisa paresque é o que é. E não é sem assim que a vida se governa a ela mesma e o mundo recria-se a toda hora por moto próprio. Masporém, no fim da história, sua própria consciência é seu maior juiz. 

Só os bárbaros e os estúpidos sem remissão são completamente felizes sem nenhuma ponta de culpa ou remorso. Mas estes sempre foram e serão para sempre destinados ao limbo do Limbo. Ou seja, não pertencem de fato ao reino da História no futuro nem do passado, posto que passaram na vida em brancas nuvens que não eram de algodão.

O fado é que esta gente que vive dentro do mato tem fome de saber e forte necessidade em descobrir o mundo pelo avesso e por fora: daí que já dizia o poeta profeta, navegar é preciso, viver não é preciso... Agonia do tempo é cuira de ter que ir embora sem dizer adeus, ainda mais quando passa a chuva e se vive jururu numa ilha grande ou pequena ilha panema, a ver navios, sem passado nem futuro. Posto que ambos os tempos foram perdidos por qualquer motivo incerto e não sabido: quando a gente vive aperreado por não saber voar com as aves do céu ou nadar em alto mar ou até as cabeceira do rio grande com os cardumes da piracema. Não ter canoa boa e nem vontade suficiente de fazer a grande travessia a novos continentes.

O caso aqui é particular de um certo caboquinho que, desde jitinho, queria saber quem inventou o mundo e terminou ele assim contador de causos a escrever blogues e-books que, paresque, não são de jogar fora sem alguma leitura capaz de separar o que presta do que não presta. Tenho eu grande afeição pelo casamento da necessidade com o acaso donde o fado foi padrinho. Todo mundo sabe que a necessidade é mãe de todas invenções: se não há necessidade, por que inventar moda ociosa? Masporém, depois da mãe das coisas o acaso é pai da fortuna e do azar de achados e perdidos, descobrimentos antigos que velhos navegadores e piratas sabiam, por experiência própria, mais do que ninguém.

Certa manhã, por exemplo, estava eu maçariquinho da beira da praia a ver a maré quando levanta a barra da saia, mariscando na rede, vulgo net nesse inglês aportuguesado de garotos celebrados pelos Engenheiros do Hawai na canção Somos Quem Podemos Ser, quando por acaso a jornalista Franssinete Florenzano chama minha tímida atenção para a supimpa imagem da canoa à vela no mar de Joanes que linhas acima vai no clique encantador do fotógrafo inspirado Ronaldo Rosa. Raro é o dia que a blogueira do Uruá-Tapera não começa cedo a dar bons-dias e imagens alegres para animar seus muitos seguidores e seguidoras de notícias. Foi aí que eu viajei na viagem fotográfica a bordo de igarité até meu passado distante que jazia na memoria do tempo da vela de jupati. Aí de mim, pegado pelo pé por um brabo caruana da maré de sigígia!


primeira travessia

Naquele tempo, o jardim do Éden existia no Fim do Mundo, meus pais não eram Adão e Eva mas simples moradores da beira do rio. Eu estava ainda na barriga de minha santa mãe afilhada de Santo Antônio casamenteiro, encontrava-me que nem o cacique Cucuí no bucho da Boiúna, cobragrande-canoa, mãe lá dele, a fazer a primeira viagem pelo grande rio do mito a caminho da história dos homens na terra dos tapuias. 

Deitada ternamente com o caboco sonso que foi meu pai, em rede esplêndida lavada com banho de cheiro de priprioca pelas tias pretas amorosas, minha mãezinha branca de olhos azuis celeste ficou grávida, paresque, entre cantorias de sapos alegres e som de rabeca de jias e violino de rãs raspa-cuia vindas da lenda da primeira noite do mundo festejar aquela extravagante concepção celtico-marajoara durante espichadas chuvas de lua entre janeiro e fevereiro do ano de 1936, na vila de Itaguari (Ponta de Pedras), sito à margem esquerda do rio Marajó-Açu. 

Meu pai para se casar com a filha do dono do Serrame arrumou emprego de administrador municipal do Curro e Mercado com seus padrinhos de casamento, assim com emprego garantido ele conseguiu um dinheirinho bom pra comprar uma casa pequena coberta de telhas de barro, não longe do Curro e da ilhinha do Quati localizada quase em frente. Até aí o filho da índia morta em seu próprio nascimento estava socialmente elevado à pequena burguesia do município que fora um dia, no passado, simples aldeia de catequese na praia das Mangabeiras, graças ao rábula da vila, meu avô Alfredo, mestre escola da vila onde minha avó e suas duas irmãs minhas tias-avós indígenas aprenderam a ler e escrever. 

Mais abaixo pelo rio da cidade em direção ao igarapé Arapinã, com economia do magro ordenado da prefeitura e investimento de muitos sonhos, seu Rodolpho também adquiriu uma nesga de tijuco na beira da varja muito engraçada que não tinha nada: nem casa, morador, pari, porto ou canoa não tinha ali perto do Itaguari. Só sarará no buraco, umas ralas touças de açaí e muita imaginação de um sítio plantado no terreno do pensamento ao qual ele chamava, com muito acerto e gosto, de sítio 'Ideal'... Desse ideal ribeirinho pequenino colhemos de longe na cidade a paisagem dadivosa, família reunida quase todos dias a bom sonhar a bordo de redes dormideiras armadas na varanda. Muitas safras imaginárias donde ainda hoje em dia por herança esta saudade tamanha.

A ilhinha do Cuati no rio Marajó era deveras encantada, pelo menos desde priscas datas locais até certo tempo quando foi substituída a velha iluminação à gás de carbureto para dar lugar à moderna Uzina de Luz movida a vapor em caldeira de lenha com que a vila foi servida de eletricidade pública nas suas três únicas ruas. Foi aí, paresque, quando a cobragrande bateu em retirada ofendida em seus orgulho natural pelo repelente progresso marajoense. Antigamente, a Boiúna morava debaixo da igreja num sumetume imaterial que varava por baixo da dita ilha para o seio do rio. 

Em certas luas a ilha virava navio encantado e viajava pra fora, era fado da própria ilha-cobra Boiúna descer pela boca do rio em direção ao mar de Joanes, dobrar a ponta do Maguari afora, para ir embora com a vasa lodosa da corrente das Guianas rumo ao velho porto do Pará no distante Caribe dos tempos antigos da vela de jupati que não voltam mais, donde voltava a dita em comboio de barcos de contrabando carregadinhos de ritmos musicais caribenhos em quantidade e variedade: mambo, rumba, salsa, merengue, cumbia, calipso, zouk e não sei mais quê...  Tudo pra passar pelo sarilho da reinvenção da terra em supimpas lambadas, guitarradas etecetera e tal.

Diz-que, mais de um pescador cansado da lida na espera de peixe graúdo no espinhel foi amarrar canoa na beira da tal ilhinha do Cuati famosa e acabou adormecendo sentado no banco. Quando viu, estava a reboque de um paquete todo iluminado em alto mar... Meu tio Cici certa vez saindo do rio Curral Panema pra fora pela boca do rio da Fábrica, perto de meia noite, a caminho de Belém a bordo da igarite Araci, pilotada pelo fiel Amaro, viu sair do ventre da noite escura aquela coisa enorme e brilhosa que, na hora, era o tal de navio encantado. 

Forte coisa de muita extravagância, nunca vista naquelas bandas, dizendo ele. Já o bom preto Amaro emendava e jurava ter visto aquilo outras vezes: havia música, cantar de galo, latido de cachorro, festa à bordo e eram paresque as almas dos afogados da extração da borracha no Amazonas... Sabiam os navegantes que não se tratava de navio de verdade por que o encantado vinha fora do canal de navegação, passando pelo baixio em riba de pedras. Mais tarde, quando a navegação mercante invadiu e tomou conta do Rio Pará, não se ouviu mais falar de navio encantado. Masporém, deu de aparecer disco voador lá nas bandas da Baia do sol e ilha de Colares: a ver que nem o tempo mágico sujeita-se a ficar encalhado no passado.


Pelas diretas contas da gravidez de mamãe andávamos lá pelo nono mês e eu chutava-lhe o vazio já querendo vir a furo, o dia do parto estava próximo. Menino ou menina? Ninguém saberia até a parteira anunciar. Mas não faltavam adivinhações e suposições... Meu pai teria escolhido canoa boa para levar a mulher a Cidade a fim dela descansar na Santa Casa. Ela morria de medo do primeiro parto e ele traumatizado da lembrança da morte de sua mãe e do irmão gêmeo natimorto durante seu nascimento. Teria sido escolhida a viagem do meu nascimento em Belém a igarité Caripirá, de propriedade do senhor Domingos dos Santos, pai do Dico, Joaquim e do Flávio jogadores de bola no Clube do Remo e no Paysandu de Belém? Isto eu não sei dizer. Poderia ter sido a Africana, do seu João Ramos, comerciante português dono da Casa Beira. Ah, a Africana! Bem que poderia ter sido. Tenho tanto pra contar sobre esta canoa das minhas lembranças de outrora.

Era pra sair um barco e tanto, mandado construir a capricho em madeira de lei por meu avô Francisco, no sítio dele no Serrame no tempo das vacas gordas, obra encomendada aos reconhecidos cuidados do mestre carpinteiro seu Maximino Vieira. Assim foi feito conforme a vontade do dono o veleiro de carga San Thiago. Mas, desgraçadamente, o fado do barco saiu caro na história da família e eu tenho que pedir tempo pra contar direito tudo que aconteceu. Por enquanto, basta dizer que o destino não quis que o San Thiago fizesse nenhuma viagem para meu avô. Acabou sendo vendido no estaleiro para a família Fontes, se já não me esqueci do nome do comprador, este trocou o nome do barco rebaixado a canoa depois revendida ao dono da Casa da Beira. Consta que, por fim, a Africana foi comprada por Renato Machado para ser geleira já com nome de São Judas Tadeu sendo encontrada a fazer contrabando para as Guianas como tantas outras embarcações daquelas doidas travessias. Coisas da lida do extremo-norte da Criaturada grande de Dalcídio...

Bem que eu teria gostado de saber que fiz minha primeira travessia da baía -- mare nostrum Marajoara -- a caminho de Belém ainda na barriga de minha mãe a bordo do antigo veleiro San Thiago, barco dos sonhos de meu avô feito com esmero por mestre Maximino Vieira, custando por capricho uma fortuna. De qualquer jeito, fica assim nesta lembrança como sendo a Africana a canoa escolhida por meu pai, no trapiche de Itaguari, para nos levar a Cidade. Finalmente, nasci de parto normal na maternidade da Santa Casa de Misericórdia do Pará, pela manhã do dia 30 de outubro de 1937. E logo estávamos nós três de volta ao Fim do Mundo antes de cair-me o coto do umbigo, não sem antes o batismo do pirralho na igreja da Santíssima Trindade.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

ARQUITETANDO HISTÓRIAS COM NOSSOS ANCESTRAIS MARAJOARAS.




Jenipapo, vila de pescadores do lago Arari (Santa Cruz do Arari, ilha do Marajó - Pará).


homenagem a Neuton Miranda Sobrinho  (Marabá, 1949 - Belterra, 2010) 
aos cinco anos de sua morte no dia 20 de fevereiro de 2010.                                                    



Meu avô camponês galego Chico Varela morreu, subitamente, em seu sítio Serrame, Rio Canal em Ponta de Pedras, no ano de 1945. Eu tinha oito anos de idade e morava com meus pais na sede do município, corpo chegou inesperadamente pelo rio em canoa a remo, cerca das nove ou dez horas da manhã, após seis horas de viagem para ser enterrado no cemitério municipal. 

Não sei precisar o dia, mas presumo que era mês de novembro pois minha mãe estava grávida de minha irmã mais nova, nascida de parto normal no dia 25 de julho de 1946. Por acaso, dia de Santiago, padroeiro da Galiza e santo de devoção de meu avô Francisco.

A história oral da família diz que ele nasceu no município de Soutomaior, província de Pontevedra, na Galícia; e que chegou ao Pará praticamente como desertor fugindo de recrutamento ao exército de Espanha, mais ou menos aos dezoito anos de idade: logo, sabendo eu de certeza certa o ano da sua morte e, aproximadamente, que ele teria morrido com mais de 80 anos de idade, chego à hipótese de que o avô Francisco (aliás, Celestino) Pérez Varela nasceu em 1865, tendo desembarcado em Belém cerca de 1883.

Durante pouco tempo em Belém, quando meu avô materno chegou foi empregado de hotel e condutor de carro puxado a burros do serviço de transporte de passageiros na cidade. Para isto talvez a União Espanhola ou Centro Galaico assistisse imigrantes recém-chegados os recebendo e encaminhando para emprego. Tempo suficiente para descobrir paradeiro de seu primo mais velho Pedro Pérez de Castro, há anos emigrado ao Pará, ao qual Celestino veio recomendado em carta de sua mãe e minha bisavó asturiana Micaela contando as causas da emigração do filho (que trocaria de nome para Francisco por medida de precaução e também por que já havia no Pará um outro espanhol chamado Celestino Peres Varela, segundo dizia). Esta decisão de Micaela Rincón Varela ocorreu depois dela ter perdido marido e filhos a serviço de guerras do império espanhol, com exemplo na época da independência do Chile e descolonização de Santo Domingo (República Dominicana).

Chegou ao Marajó o jovem camponês Celestino já se chamando Francisco com, aproximadamente, vinte anos de idade a fim de morar com seu primo Pedro no sítio Fé em Deus, sito no Baixo Arari, na margem de Ponta de Pedras. A prima Maria Joana, dita Maroca; branca e bela donzela na flor da idade de seus dezesseis anos apaixonou-se pelos olhos azuis e outros atributos do primo recém chegado, inclusive o invencível sotaque galego que não abandonou até o fim da vida. 

Não duvido que as tias pretas e primas mulatas de Fé em Deus tenham incentivado a sinhazinha a cair nos braços do parente campônio como se ele fosse um príncipe de sangue azul montado em cavalo branco, seja lá o que isto signifique abaixo do equador para um colono fugindo de guerra... Reza a lenda que meu bisavô era "bom senhor" para seus não muitos escravos e escravas donde entre outras coisas cultivavam tabaco, criavam algumas cabeças de gado, pescavam e caçavam para sustentar os brancos e a si mesmos. Claro que os "maus" donos de escravos eram os outros... Logo que eu tive noção da realidade das coisas me dei conta que na história de verdade não pode haver diferença entre bons e maus senhores num injusto sistema igualmente perverso para todos.

A futura minha avó àquelas horas era uma moça que não gostava de ficar em casa aprendendo a cozinhar e bordar. Mas, ao contrário, burlando a vigilância dos mais velhos inventava artes para escapar para a lida junto com os pretos. Por isto a lenda diz que a avó Maroca era "muito querida" pelas pretas e pretos, reciprocamente amados na forma sentimental de lhes tratar como tias, tios, primos, afilhados, comadres e compadres... Tenho para mim, nas conhecidas circunstâncias de tais ilhas coloniais, muitas vezes o parentesco afetivo havia qualquer explicação biológica com que se alimentava a mina de tapuios, mulatos, cafuzos, curibocas sem eira nem beira em nossa pérfida sociedade caboca saída do mato a dentes de cachorro e catecismo.

Sem desdouro dos meus velhos, tenho grande admiração por minhas avós apesar de não ter tido chance de as conhecer, noves fora a avó postiça Sophia, na verdade tia, que era naturalmente sábia e foi mestra para mim além de criar e educar meu pai caboco, filho da índia minha avó Antônia Silva. O avô Varela era um velho galego turrão, porém cheio de afeto aos netos e netas. Quando ele chegou ao Marajó a escravidão estava nos últimos dias. Mesmo assim não há registro na memória sobre a maneira como o sítio Fé em Deus recebeu a notícia do 13 de Maio de 1888, ou da proclamação da República no ano seguinte... Quando foi abolida a Escravidão consta que os pretos do Fé em Deus não arredaram pé de perto dos ex-senhores. Mas não posso garantir que seja verdade. O certo é que alguns, como Odorica, Fábia e Amaro; por grande amizade à branca Maroca quiseram acompanha o jovem casal para o Serrame até então tapera de um retiro abandonado, onde existia apenas um único chiqueiro de ovelhas e nada mais.

Às vezes tenho impressão de que mesmo hoje, exceto a elitezinha das sedes municipais; a vasta maioria da Criaturada ainda não sabe que a Escravatura e o Império se acabaram no século XIX. Lembro-me do caixão forrado de tecido roxo como a Igreja na semana santa, meu avô dentro do ataúde tal qual imagem do Senhor Morto sob o altar-mor da Matriz, minha mãe aos prantos, a casa toda em polvorosa, os remadores pretos tristes com seus chapéus de palha abanando-se para espantar o calor, a vizinhança toda a ver o acontecido... 

O avô Chico nunca vinha a cidade nem nas festividades do círio ou do boi-bumbá, quando ele chegou estava morto e pronto para ir a sua última morada... E eu atônito sem um pingo de lágrima. Não era verdade tudo aquilo naquele novembro de 1945, os campos secos pegando fogo para amortalhar o chão. E o menino seco como o verão ardente... Me deixaram ficar em casa quando o corpo saiu para o cemitério, mamãe incapacitada para ver o enterro do pai dela, grávida de dois ou três meses... E eu nada de choro. Seco, seco como um rastro deixado no caminho que o sol bebeu a última gota d'água no fim do verão, vi o caixão se afastar levado pelos homens que o trouxeram do sítio. Mamãe dissera antes, quando eu ainda era bem menor, "beija o pé do santo"... Era semana santa e o santo no caso era a imagem do Senhor Morto em tamanho natural sob o altar-mor da igrejinha de Nossa Senhora da Conceição... Ela repetiu, "beija teu avô e te despede". Já iam fechar o caixão. A testa do velho estava fria como a chuva de madrugada naquela viagem pelo rio para ir ao sítio colher laranjas, correr pelo campo, brincar com os sapos presos sob os destroços do gramofone, tempos das vacas gordas... Mas eu não conseguia verter uma lágrima sequer na despedida.

Para não molestar minha estremecida mãe e a inocência de minha irmã pequena, face àquela secura enorme que vinha de mim com todos os estios, queimadas dos campos-gerais e coivaras da ilha; fiz um teatrinho ridículo a proclamar alto e bom som com fingidas lágrimas a grande dor da separação e saudade que deveras eu já sentia daquele avozinho do Serrame. E quando eu soube, muitos anos depois, que o tio Dal havia falecido no Rio de Janeiro, em 16 de junho 1979, após cruel enfermidade, estava eu em Manaus a serviço da Comissão de Limites vindo da fronteira com a Venezuela. Com profunda tristeza na alma também não chorei. Tampouco chorei grande coisa quando meus velhos pais, fatigados da vida, descansaram.

Estou rememorando estas coisas para dizer, afinal de contas, que rompi minhas duras represas emocionais quando Neuton morreu: chorei, chorei, chorei até sentir dó de mim. Como diz a canção... Neuton Miranda Sobrinho não era meu parente, nem mesmo um velho amigo de muitas datas; sequer tive oportunidade de conviver com ele mais que o tempo suficiente de saber que nós dois éramos do mesmo barro. Camaradas de verdade, sobretudo dois raros dalcidianos sinceros tendo em comum a fiel constância da libertação da Criaturada grande. 

Um comunismo caboco, orgânico, que não vem escrito em manuais nem desce de altas teorias para o terreno baixo de experiências inseguras. Neuton era, para mim, concretude do sonho coletivo do "índio sutil" Dalcídio Jurandir chamado assim por Jorge Amado, num discurso feliz e rico de sabedoria, ocorrido durante a entrega do Prêmio Machado de Assis (1972). Pela última vez fomos juntos ao Marajó, por ironia da história, em Cachoeira do Arari: Neuton estava inspirado e disse ele em discurso de entrega de TAU's (título de autorização de uso de terreno da União) a famílias do projeto NOSSA VÁRZEA de regularização fundiária; ser o Marajó o derradeiro reduto da tradicional cultura paraense. Dissesse ele "marajoara" poderíamos dizer que é pleonasmo...

Para encerrar a missão, lá estávamos nós no MUSEU DO MARAJÓ donde saímos com exemplar da obra "Cultura Marajoara" de Denise Schaan em mãos. Tomamos o táxi aéreo de volta a Belém e o camarada pegou o automóvel no estacionamento, deu-me carona até a porta de casa e demos adeus para nunca mais. Só o vi de novo em câmara ardente, no salão de honra do Palácio Cabanagem, sede da Assembleia Legislativa do Estado do Pará; donde ele seguiu em cortejo fúnebre para o país do além. Agora, Neuton é uma estrela do céu da Amazônia brasileira, ele é comparável à estrela Dalva que desperta os ribeirinhos, todas manhãs, para novas jornadas.


ANCESTRALIDADE PRA QUE TE QUERO?

Numa conversa boa de academia do peixe frito, Neuton contou-me que o pai dele era um caboco vivido, que nasceu na Vigia entre pescadores de gurijuba. Anos de chumbo, o filho estudante estava na clandestinidade e o preocupado pai, por experiência, deu-lhe conselho: "agora você precisa fazer que nem tralhoto"... Poucos acadêmicos festejados sabem que diabo vem a ser o tal de tralhoto. É um peixinho vulgar que vive à beira d'água e com seus quatro olhos previne-se dos perigos vindos pelo ar e do fundo, sem esquecer os que podem vir de fora ou por terra. Maravilha da natureza.

O tralhoto é pequeno e tímido, mas acaba sendo um colosso em sobrevivência. Ninguém menos que o payaçu dos índios, Padre Antônio Vieira, chamado o "imperador da língua portuguesa" pelo poeta Fernando Pessoa; fez o elogio do tralhoto no "Sermão aos Peixes" proferido em São Luis do Maranhão, em 1654. Vieira estava em luta aberta contra a escravidão dos índios do Maranhão e Grão-Pará e estava indo, meio clandestino, a Lisboa para reclamar a el-rei da "cegueira" dos portugueses numa terra onde "um peixinho do mar" tem quatro olhos... 

Voltou da viagem a Lisboa com a lei de 1655 de abolição dos cativeiros dos índios, a qual foi base da iniciativa de paz aos Nheengaíbas (Marajoaras), rebeldes aos portugueses do Pará e amigos dos holandeses; em 1656 em missão do padre João de Souto Maior, sem sucesso; e finalmente aceita em Mapuá, nas pazes de 27 de Agosto de 1659. Numa longa carta à regente de Portugal, dona Luísa de Gusmão, viúva de Dom João IV; Vieira informa que o Pará estava seguro em em paz com a amizade dos Marajós conquistada naquelas pazes, depois de 44 anos de guerra desde a tomada do Maranhão para conquista do rio Babel (Amazonas).


O sucessor, Dom Alfonso VI, reconhecidamente mentecapto e mais cego que os súditos; em vez de honrar a palavra de seu pai dá o dito por não dito para expropriar sem recompensa a antiga Ilha dos Nheengaíbas; dali em diante chamada capitania hereditária da Ilha Grande de Joannes (1665) na origem de uma longa cadeia de expropriações, abusos e injustiças. Que só recentemente com a tímida regularização fundiária ainda por consolidar está por se remediar, depois de mais de 350 anos.

Aqui está que o Sermão aos Peixes e a metáfora do tralhoto pelo pai do Neuton nos abre os olhos, a coisas óbvias que os ilustrados doutores não enxergam. Como, por exemplo, a engenharia dos tesos em campos alagados do Marajó, que a arqueologia demonstra e a arquitetura amazônica não consegue ver. E, no entanto, a cidade de Santa Cruz do Arari outrora semelhante à vila do Jenipapo, por acaso, tornou-se um teso moderno. Com a simples diferença que os índios nossos parentes fizeram suas aldeias suspensas com o barro cavado em transportado com suas próprias mãos e braços; enquanto do aterro de Santa Cruz foi feito com método e máquinas. Dois coelhos com uma cajadada: rejuvenesce o lago moribundo pelo assoreamento e a colmatagem natural, e constrói tesos modernos com inspiração da arqueologia de 1800 anos.

Podemos imaginar a perenização do lago e revitalização do rio Arari, com o potencial de cooperação da Organização dos Estados Americanos (OEA), mediante precedente dos anos 70. Quem sabe, mesmo em Belém, um "teso" de imitação marajoara de multiuso para turismo, cultura e desenvolvimento socioambiental em rede integrada ao Museu do Marajó em extensão aos mais municípios. Onde não pode faltar a restauração do museu do Marajó de Santa Cruz do Arari, sobre um teso especial.

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"Motivos Ornamentais da Cerâmica Marajoara"
Giovanni Gallo, edições do MUSEU DO MARAJÓ
Mas quem vê? Ou, melhor, quem quer saber? Até hoje não achei fonte bibliográfica sobre o lago Arari, na ilha do Marajó, com data anterior a 1756. A mais antiga informação que li de alguém que lá esteve é o relato anônimo constante da obra o "Novo Éden. A fauna da Amazônia brasileira nos relatos de viajantes e cronistas desde a descoberta do rio Amazonas por Pinzón (1500) até o Tratado de Santo Ildefonso (1777)", de Nelson Papavero, Dante Martins Teixeira, William Leslie Overal e José Roberto Pujol-Luz, ao qual se refere trecho da crônica a seguir:   

"Segundo autor anônimo da “Notícia da Ilha Grande de Joannes dos rios e igarapés que tem na sua circumferencia, de alguns lagos que se tem descoberto e de algumas couzas curiozas”, datando dos anos 50 do século XVIII (cf. Nelson Papavero et. al. in “O Novo Éden” - Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 2002, 2ª ed.) descobriu-se o teso do Pacoval do Arari “em 20 de Novembro de 1756, o qual tem o comprimento de 200 braças e 30 de largo;...”. O descobridor admirou-se muito da qualidade da banana (pacova) e da maniva (mandioca) encontrada naquela “ilha”... Todavia, muitas delas (tesos) eram habitadas por “muito Gentio da Nação Aroan, Maruanum e Sacôra [provavelmente, antepassados das atuais populações dos municípios de Chaves, Soure e Salvaterra]. Em muitas das ditas ilhas se tem achado e se acha ainda muitas Pandas, Ingassabas (que é o mesmo que Cantaros ou Potes), tudo muito bem feito, a maior parte dellas que se tem achado é debaixo da terra. Também se tem achado dentro de algumas Pandas grandes ossos de gente e caveiras, d'onde se collige ser costume daquelles índios serem sepultados daquela fórma”. (ob. cit. p. 333).

A ocupação do Marajó por fazendas de gado teve início em 1680 e até o descobrimento do Pacoval passou, aproximadamente, um século de destruição dos sítios arqueológicos. Em 1783, o naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira depois de passar breve temporada, entre novembro e dezembro, guiado pelo inspetor da Ilha e fundador da vila de Cachoeira do rio Arari (1747), Florentino da Silveira Frade; repetiu praticamente as observações do autor anônimo na primeira “notícia” transcritas na “Notícia Histórica da Ilha Grande de Joanes, ou Marajó” (separata da “Viagem Philosophica”, Lisboa, 1783). O que nos leva a pensar que Florentino Frade é, de fato, o autor anônimo. E o Barão do Marajó, ao tratar das escavações que autorizou, em fins do século XIX, para atender ao Museu Nacional e à exposição etnográfica de Chicago (EUA), na qual foi ele membro da comissão do Brasil, segundo o clássico “As regiões amazônicas”, lastima os saques generalizados dos tesos incontroláveis já àquela altura." ( ver José Varellahttp://www.vermelho.org.br/prosapoesia/coluna_print.php?id_coluna_texto=2797&id_coluna=57  )

No entanto, cresci na cidadezinha de Ponta de Pedras à margem do rio Marajó-açu ouvindo causos sobre o Arari e me alimentado de carne bovina, peixe, jacaré, capivara, marreca, etc. trazidos daquelas bandas dos centros distantes da ilha. O então Alto Arari e agora município de Santa Cruz do Arari (1960) era distrito de Ponta de Pedras, como este último foi desmembrado de Cachoeira do Arari, em 1878. Para os mais de 400 mil moradores dos dezesseis municípios da mesorregião do Marajó, além do crasso analfabetismo que aparta metade da população, mais as vítimas de analfabetismo funcional alimentando a ignorância popular, os pobres arremedos de biblioteca municipal são deserto de notícias sobre o passado dos 1800 anos da famosa Cultura Marajoara que anda pelo mundo em algo como dez museus de grande porte.

Minha mãe descendia de uma família de imigrantes da Galícia chegados no Marajó entre outros vindos de Espanha e Portugal, na segunda metade do século XIX, importados pelo governo do Pará a fim de relançar a pecuária abalada entre outros fatores pela guerra-civil amazônica chamada Cabanagem (1835-1840) e o recrutamento de "Voluntários da Pátria" para lutar na Guerra do Paraguai (1864-1870). Provavelmente, minha família materna havia laços de parentesco com velhos casais emigrados através do rio Minho (fronteira de Espanha e Portugal) para povoar as ilhas dos Açores donde alguns vieram, cerca de 1750, no diretório do Marquês de Pombal e reinado de Dom José I (1750-1777) ao Pará. Foi assim que o patriarca foi contemplado com terras, gados e escravos na ilha do Marajó e termina no século seguinte tendo diversos herdeiros em glebas de terra dividida entre o rio Marajó-Açu e o Baixo Arari.

Desta maneira, meus avós entraram na herança do patriarca Domingos Pereira de Moraes com um terço de légua (mais ou menos, 1100 metros) de frente por meia légua de fundos (3300 metros) numa tapera na beira do rio Carapanaóca, depois Rio do Canal), onde levantaram casa de comércio e tiveram cinco filhas e um filho. Quando minha mãe nasceu, em 1914, sendo ela a quarta filha do casal, teve por madrinha dona Adalgisa da Silveira Lobato esposa do rico fazendeiro Antero Augusto Lobado, dona da fazenda Diamantina, no lago Arari; e sítio-sede Porto Santo, no Baixo Rio Arari. O casal Lobato até então não havia filhos, passando a assediar os compadres para adotar a afilhada, que com grande relutância do galego foi consentido somente para "criar e educar" pois era sua lei nunca dar filho seu nem ao rei... Detalhe importante: este meu avô era o camponês supracitado Francisco Pérez Varela.

Então, minha mãe criou-se até os 16 anos de idade com seus padrinhos, vivendo oras na fazenda Diamantina e oras no Porto Santo até que uma violenta briga política entre o oligarca Antonio Lemos e o republicado Lauro Sodré contaminou todo Pará e afetou as relações entre os compadres: de um lado meus dois avós, materno e paterno, conservadores e outro fazendeiros vira-casaca lauristas de última hora... Com a desavença voltou minha mãe para a casa de seus pais verdadeiros e os padrinhos já tinham um herdeiro, que por fim, lhes foi causa de muito desgosto terminando todos personagens desta singela história na pobreza. Para o que muito contribuiu o colapso da Borracha como pano de fundo.

O Porto Santo, não longe do sítio Fé em Deus dos começos desta história; foi vendido em condições dramáticas pelos antigos proprietários num caso digno de estudo e romance e terminou sendo adquirido pela Prelazia de Ponta de Pedras (hoje diocese) onde foram alojados em sistema cooperativo diversos sem-terra, inclusive quilombolas expulsos pelo fazendeiro Liberato Castro que, segundo a imprensa regional; se diz proprietário das terra do Gurupá contestado pela associação de moradores como terra de quilombo situada na margem esquerda do rio Arari fronteiriça ao Porto Santo.

Pelo lado de minha família paterna, há vínculos claros de parentesco antigo com o lado materno. Último filho do primeiro casamento de meu avô Alfredo, meu pai tendo ficado órfão de sua mãe índia foi adotado por sua irmã mais velha, Sophia; que nasceu, viveu e morreu na vila de Ponta de Pedras. Em 1909 meu avô mudou residência com sua segunda esposa para a vila de Cachoeira do Arari e os filhos de ambos casamentos passavam temporadas nas duas vilas vizinhas, porém não tão próximas até hoje com a melhoria dos transportes e comunicações.

Desta maneira, o Arari entrou na minha vida antes mesmo de eu nascer, em 1937, na maternidade da Santa Casa de Misericórdia do Pará, na capital, por necessidade médica da parturiente em primeiro parto. As histórias de minha infância foram povoadas de pássaros, peixes, bois, cavalos, cobras e jacarés entre causos alegres e tristes que hoje só se pode imaginar visitando a literatura de Dalcídio Jurandir ou fazendo visita ao Museu do Marajó.


lago Arari, município de Santa Cruz do Arari, ilha do Marajó - Pará


            praça da Matriz, cidade de Santa Cruz do Arari.



A atual cidade de Santa Cruz do Arari é um "teso" (aterro) feito com material de dragagem do lago. Exemplo de oportunidade de estudo onde, obviamente, a cooperação internacional (em especial com a Holanda) pode contribuir de maneira surpreendente. Não consigo esquecer que o Governo estadual negligencia a candidatura da Reserva da Biosfera Marajó-Amazônia dando condições para vinda da UNESCO e que o Governo federal desde 2007 perde um tempo precioso para dialogar a sério com a gente marajoara e realizar coisas concretas que mudem o quadro de analfabetismo e pobreza que tanto nos envergonham.


Acima de vaidades pessoais e profissionais, longe do mesquinho jogo político que a todos infama; precisamos criar as condições necessárias para obter a cooperação de grandes instituições nacionais e estrangeiras que detém a posse de coleções e peças de cerâmica marajoara com a finalidade de estabelecer intercâmbio técnico, educativo e turístico inclusive para futuras repatriações. Mas, sobretudo, relançamentos de estudos em arqueologia e antropologia aplicadas à ciência e tecnologia do barro.


quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

O Nilo amazônico e sua criaturada: colonialidade e resiliência do bioma Amazônia Marajoara.


urna marajoara no Museu Nacional, Rio de Janeiro, tirada provavelmente do teso Pacoval do Arari (cf. Barão de Marajó, "As Regiões Amazônicas"), dentre escavações sob responsabilidade de Ladislau Neto para a Exposição Universal de Chicago de 1893* (Estados Unidos), inclusive. A fonte primária sobre achado do primeiro sitio arqueológico de Cultura Marajoara -- o dito teso --, data de 20 de Novembro de 1756, atribuído ao fundador da freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Cachoeira do Rio Arari (1747), capitão Florentino da Silveira Frade (cf. Alexandre Rodrigues Ferreira, "Notícia Histórica da Ilha Grande de Joanes ou Marajó, 1783).

Por necessidade e acaso, 216 anos após o ocasional achado do sítio do Pacoval nasceu o MUSEU DO MARAJÓ (1972) na margem ocidental do mesmo lago; feito singelamente de "cacos de índio" (fragmentos de cerâmica recolhidos junto a sítios arqueológicos arrombados) e "coisas que não prestam" (velharias descartadas): tal qual a Fênix mítica renascendo das próprias cinzas... Obra coletiva sob cuidados de parteiro da providência chamado Giovanni Gallo, para crentes da pajelança "cabocla" reencarnação de um grande cacique marajoara na longínqua Itália; em realidade um jesuíta insubmisso contagiado da resistência cultural e da esperança da brava gente marajoara no futuro. Ponto de cultura para espera de repatriação do patrimônio da criaturada grande de Dalcídio Jurandir, que se encontra disperso pelo mundo longe da ilha natal da amazonidade.




Giovanni Gallo (Turim, Itália 27/04/1927 - Belém, Brasil 07/03/2003).






O MAPA DO TESOURO DA AMAZÔNIA AZUL


o maior arquipélago fluviomarinho do planeta, 
no delta-estuário do maior rio do mundo: 
berço da ecocivilização da Amazônia.


A MILENAR ECOCULTURA MARAJOARA 
É UM DOM DO RIO BABEL, DITO DAS AMAZONAS, ALIÁS UENE OU PARANÁ-UAÇU.
  
Conforme Jaime Cortesão ensinou, entre outros, a Corrente Equatorial Marinha foi o mais guardado segrego das antigas navegações no entremeio das célebres "calmarias" na zona tórrida das Antípodas, divisa dos hemisférios Norte e Sul do oceano Atlântico. 

Da teoria do segredo resulta a lendária "ilha do Brazyl" (pigmento mineral vermelho achado nas ilhas Britânicas e vendido a peso de ouro na Europa continental para tinturaria de tecidos da nobreza), procurada no imaginário país de São Brandão e ilhas Afortunadas. Enfim, a tal "ilha" foi achada no Grão-Pará para ser descoberta na Bahia de Todos os Santos, garantindo os direitos de Portugal ao Caminho Marítimo das Índias. 

Quer dizer, nos termos do Tratado de Tordesilhas de 1494 entre Espanha e Portugal, o Brasil foi achado secretamente no Pará pelo cosmógrafo do rei de Portugal Duarte Pacheco Pereira, em 1498, que confirmou mediante observação astronômica in sito o conhecimento geográfico anterior do Caminho pelos nautas portugueses, amealhado desde antes da conquista de Ceuta (1415) e da Guiné (1441) para, finalmente, ser descoberto na Bahia por Pedro Álvares Cabral, em abril de 1500. Mais informações sobre os descobrimentos portugueses:http://pt.wikipedia.org/wiki/Descobrimentos_portugueses#A_costa_oeste_de_.C3.81frica ].

Antes do descobrimento, entretanto, desembarcando do mito das Ilhas Afortunadas o monte Brasil já se encontrava pisando terra ancorado no topo da ilha Terceira, do arquipélago dos Açores. O célebre Cristóvão Colombo (aliás, Salvador Fernandes Zarco) havia descoberto as Índias Ocidentais (Amerik, o "país do Vento"; na civilização Maya). E o piloto e sócio de Colombo, o espanhol Vicente Yañez Pinzón, em janeiro de 1500, já tinha avistado o cabo de Santo Agostinho (Pernambuco), desembarcado no Ceará e atacado a ilha Marinatambalo (Marajó), na foz do grande rio Santa Maria de La Mar Dulce (Amazonas) arrancando dali 36 "negros da terra" (escravos indígenas) -- com certeza, os primeiros escravos de europeus na América do Sul, provavelmente índios Aruã, talvez da velha aldeia (vila de Chaves?, em 1758 na reforma toponímica do Diretório dos Índios, entre 1757 e 1798) situada na "Punta de los Esclaus" (ponta dos Escravos), conforme mapa histórico do século XVI na "Cartografia da Região Amazônica", organizada por Isa Adonias.

Os ditos 36 índios marajoaras capturados juntos com um "animal monstrosum" (uma mocura com filhotes) por Pinzón (cf. relato da viagem de Vicente Pinzón, in Nelson Papavero, "O Novo Éden") foram levados à ilha Hispaniola (hoje a República Dominicana), onde anos mais tarde o governador e cronista espanhol Gonzalo Fernandez Oviedo comentou o descobrimento do "rio de Orellana" (Amazonas) e conjecturou que o ataque sofrido pelos dois bergantins espanhóis, na passagem das ilhas do Marajó, comandados por Francisco de Orellana segundo relato de frei Gaspar de Carvajal, em 1542, seria resultado do ódio que os índios do Baixo Amazonas guardaram da má lembrança de Pinzón até duas gerações passadas: prova de que a história oral, para povos tradicionais iletrados, é mais presente muitas vezes que a escrita entre populações mal alfabetizadas. 

Já desde o início do choque da Conquista entre os índios Tainos e Kalinas das ilhas do Caribe os conquistadores eram odiados e temidos pela crueldade e violência. Na Terra Firme (continente) a destruição das Índias, com testemunho do dominicano Bartolomeu de Las Casas, acentuou-se com o horror de um genocídio em larga escala. Desde a tomada do Maranhão aos franceses, em 1615, os portugueses aliados ao inimigo hereditário Tupinambá foi visto pela multidão aruaca do rio Babel (Amazonas) do mesmo modo que os perversos espanhóis e, genericamente, todos ibéricos receberam apelido de Cariuá ("chefão malvado"), por oposição a Panaquiri ("homem branco") modo como mercadores holandeses e ingleses eram geralmente tratados pelos índios da Amazônia colonial no comércio de escambo praticado, desde fins do século XVI até quase metade do século XVII, entre as colônias da Holanda e Inglaterra nas Guianas e a suposta possessão espanhola no baixo curso do rio Amazonas, nos termos de Tordesilhas.

ANTIGUIDADE AFRICANA NA AMÉRICA

Entre a mãe África e a América há mais coisas que sonha nossa vã geografia... Começa pela geologia, evidentemente, mas o que mais existe entre a "última fronteira da Terra" (Amazônia) e a primeira de todas fronteiras da velha Terra Plana, onde houve início a primitiva diáspora na descoberta do mundo? Quantos elos perdidos do continuum das migrações ancestrais? [Sobre o latinismo continuum, o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa informa que se trata de «série longa de elementos numa determinada sequência, em que cada um difere minimamente do elemento subsequente, daí resultando diferença acentuada entre os elementos iniciais e finais da sequência» e de «conjunto de todos os números reais ou o produto cartesiano de conjuntos de reais»].

O "homem de Lagoa Santa", por exemplo, poderia ser africano? Se assim for, por que não foram numerosos seus descendentes e de sua prima "Luzia" em comparação aos índios? Ou teriam eles se miscigenado às populações indígenas do Brasil até o século XVI, como estas últimas, desde o século XVIII até hoje, se mestiçaram com escravo africanos e colonos europeus que estão à origem da atual população brasileira? [http://pt.wikipedia.org/wiki/Luzia_%28f%C3%B3ssil%29]. 

Já se sabe da rota dos migrantes da África antiga para a Austrália e Nova Zelândia atravessando a Nova Guiné, são eles os chamados Aborígenes e Maoris, respectivamente. A água é fonte da vida e rios e correntes marítimas são estradas líquidas que viajam sem parar. Nas terras baixas da América do Sul, segundo a teoria da passagem do estreito de Bering, vindo da Ásia o Homo sapiens chegou a América há uns bons dez mil anos atrás.

Não é nada, comparado a um milhão de anos dos nossos primeiros antepassados humanos (sabendo que temos também antepassados pré-humanos): humanidade filha da animalidade... O homem amazônico original foi apelidado de paleo-índio por antropólogos europeus e o sábio luso-brasileiro de Coimbra, Alexandre Rodrigues Ferreira, na "Viagem Philosophica", o classifica particularmente como ramo diverso da humanidade achando no Grão-Pará um certo "H. sapiens var. Tapuya", cuja cabeça degolada e devidamente empalhada como troféu de guerra entre nações indígenas em luta na região, ele remeteu escrupulosamente à Universidade de Coimbra na primeira ocasião após sua chegada, em 1783. O que não deixa de ser uma curiosa discriminação "científica" do século das Luzes sob a linha do equador... 

Sabemos quanto são arbitrários nomes científicos ou não e quanto os homens se esmeram por desvendar mistérios e saber a "verdade" das coisas e dos fatos aos quais classificam como lhes parece na fronteira incerta entre a Cultura e a Ciência. O velho mundo que os viajantes e naturalistas criaram guarda preciosas informações à infinita descoberta da vida e do universo onde seres vivos ou imaginários habitam. Porém, o saber adverte aos estudiosos da Babel que carece ostentar aviso no espingarito das ideias, como farol dia e noite aceso; bem no alto da torre alegórica das línguas e culturas: Cuidado, o mapa não é o território. O território nunca termina de ser feito, pelo bom motivo que os habitantes jamais acabam de se reinventar a si mesmos.

Ademais, na última fronteira, carece recuperar a linguagem perdida da alegoria e do sonho, que foi no passado remoto apanágio de velhas sociedades tribais de raiz da Civilização multicultural do presente. Tal qual grandes serpentes míticas há rios de verdade que se movem dentro de mares e terras sem fim: as maiores cobras grandes são rios propriamente ditos, como o Gânges, o Nilo, o Eufrates, o Congo e outros rios sagrados em suas respectivas civilizações ribeirinhas. 

E há "serpentes do Mar" que são correntes marítimas físicas e mitológicas ao mesmo espaçotempo... O "Mar-Oceano" (Atlântico) é habitado de muitas lendas figurando cobras grandes, tritões e sereias que antigos navegadores da Fenícia, Grécia, Cartago e Escandinávia conheciam como a palma de suas mãos. Rodas dentro de rodas, mundos dentro do mundo; ilhas e antilhas; tal é a diversidade cultural tecida pela corda da biodiversidade no diálogo permanente, nem sempre harmonioso, entre homem e biosfera.

Por isto, tais como caminhos terrestres os caminhos marítimos deram azo a muitos segredos e mistérios desde a mais longínqua antiguidade da Oceanografia planetária. Da Contracosta africana atravessando o Atlântico, de leste a oeste, em direção à Contracosta das ilhas do Marajó no Golfão Marajoara; a corrente equatorial marítima é a grande serpente zeladora de arcanos de antigas navegações e acidentais travessias envoltas em fantasia e mistério dispartidas entre populações costeiras ao longo da Corrente Brasileira para sul e da Corrente das Guianas além do Cabo Norte rumo à Corrente do golfo do México para o norte. 

Mas, nós sabemos felizmente que mistérios são, em grande parte, conhecimentos empíricos incompletamente explicados e mantidos pela tradição oral como pistas a novos descobrimentos, conforme a evolução da humanidade filha da animalidade.


A LENDA DA POROROCA REPORTA A PRIMEIRA TRAVESSIA DO OCEANO ATLÂNTICO?
 

"As civilizações pretas foram as primeiras civilizações do mundo. O desenvolvimento da Europa esteve na retaguarda, pela última idade do Gelo, um assunto de uns cem mil anos".
            Cheik Anta Diop

 


Uma antiga lenda na ilha do Marajó dizia que o fenômeno da Pororoca (maré de sizígia durante a maior cheia do Amazonas de encontro à corrente oceânica) tem causas mágicas precisas. Os ribeirinhos que tem intimidade com a Pororoca (do Nheengatu, "grande zoada") sabem perfeitamente a "maré de lua" em que o fenômeno ocorre e os pontos do rio onde fundear canoas sem perigo de ser levadas e destruídas pelas águas em transe.

No misterioso reino da mãe d'água, nossa senhora a Yara; que existe na terceira margem do rio e no fundo das águas grandes, em certa época do ano, levantam-se vagalhões que vencem a correnteza do rio grande e sobem com estrondo que se ouve a quilômetros de distância, levando arrebentação pelas margens e baixios até muito longe terra adentro.

As três primeiras ondas -- cabeça da Pororoca --, diziam antigos cabocos ribeirinhos, são três "pretinhos" da Guiné encantados que aos olhos dos videntes parecem surfar sobre as águas convulsas. Aqui termina a lenda e começa a especulação filosófica da tradição oral dos povos das águas: 

200 anos antes de Colombo o rei do Mali, Abubakari II, teria empreendido viagem de travessia do oceano Atlântico precedida de um destacamento precursor de duzentos remadores em caiaque. O imperador negro cogitava descobrir a outra margem do "grande rio salgado" maior que o Níger e certificar-se da estranha teoria, que ele escutava dizer entre membros de seu conselho em Timbikutu, de que o mundo seria talvez semelhante a uma grandíssima cabaça.

O relato encontrado no Cairo conta que os primeiros expedicionários depois de muitos dias de viagem pelo mar atingiram o extremo ocidente e chegaram à foz de um grande rio de água doce (donde, atualmente, se supõe ser o rio Amazonas). Nesse momento as águas do rio e do mar entraram a lutar umas contra as outras entrando em convulsão, numa formidável batalha de titãs.

Então, assustados com o que viam, os canoístas do imperador mandinga foram tragados pelas ondas furiosas e sumiram, encantados, por suposto. Com exceção de dois deles, que vinham por último e com grandes penas conseguiram se afastar da costa seguindo o curso da corrente ao largo até rodar ao meio do Oceano e tomar direção pelo nascer do sol para ir de volta até o ponto de partida no rio Gâmbia, onde contaram o insucesso da jornada a emissários do rei. 

Abubakari, longe de se abater com a notícia e desistir da aventura transoceânica, decidiu vir ele mesmo em pessoa à frente de 2000 homens embarcados numa flotilha especialmente preparara e equipada para esta incrível missão. De certo modo, podemos nós dizer que o rei do Mali não apenas chegou a América; mais exatamente, que assentou seu novo império junto aos tainos de Hatuey  -- primeiro rebelde das Américas --, no Haiti (donde certos "índios-pretos" armados de lanças com ponta de bronze, dos quais Colombo escreveu em suas memórias do descobrimento do novo continente); duzentos anos antes de Colombo, como também foi ele precursor da Mina espiritual da transmigração do Rei Sabá com a corte dos Turcos encantados, que foi patente com a morte do rei português Dom Sebastião na batalha de Alcácer-Quibir (Marrocos), em 4 de agosto de 1578; para ficar encantado nas águas misteriosas da costa do Maranhão e Grão-Pará. 

Por uma parte, o transfigurado Dom Sebastião-Rei Sabá antecipado pela travessia marítima de Abubakari II, prenuncia avanço da utopia milenarista de Joaquim de Fiori ao Novo Mundo, que o Padre Antônio Vieira mais tarde faria retumbante sucesso com a profecia do Quinto Império do mundo, anunciado em Cametá, Pará, em 19 de abril de 1659. Plantada a semente utópica sebastianista da "História do Futuro" no cenário inverossímil do Rio dos Mapuá, hoje em realidade Reserva Extrativista de Mapuá (Breves-Marajó), lugar de memória e patrimônio natural da Pax Amazonica de 27 de agosto de 1659.  Tal qual as águas do rio e do mar se misturam de maneira incerta, na Amazônia, a única coisa certa é que tudo é incerto (e, portanto, nunca se sabe exatamente onde o mito acaba e a história começa). Tormento cartesiano...

A cabo de quarenta e quatro anos de renhida guerra de conquista do Rio Babel pela união de arcos e remos do Bom Selvagem conquistador da mítica Yvy Marãey ("terra sem mal") e as armas e barões assinalados da Feliz Lusitânia (Belém do Grão-Pará), por necessidade a acaso, a paz dos Nheengaíbas foi feita na mais descaroçada lógica para quem não saiba as razões desta gente do circum-caribe em buscar o país do Cruzeiro do Sul, Arapari dos aruaques.

É certo que muito antes dos navios negreiros, a corrente equatorial marítima transportou plantas, animais e destroços desde o golfo da Guiné para a costa do Brasil, repartida entre a corrente brasileira para sul e a corrente da Guianas ao norte. A possibilidade da aventura marítima do rei do Mali ter sido verdadeira não deve ser descartada. Antigas navegações fenícias e gregas, acidentalmente, poderiam também chegar ao extremo ocidente, embora nada tenha sido comprovado a este respeito, historicamente falando. Todavia, mitos e lendas perduram: são loucos os que levam a Mitologia ao pé da letra e mais loucos os que a desdenham sem nenhum cuidado. 

Quando, efetivamente, índios do Marajó viram o primeiro negro africano nestas paragens? Qual o motivo dos cabocos ribeirinhos descendentes daqueles indígenas de outrora terem associado a magia da Pororoca aos tais "pretinhos" encantados? São indagações dignas de antropólogos culturais criativos.


É certo que pesquisadores africanos navegam estas mesmas águas. Gaossou Diawará, do Mali, é um deles, ele estudou jornalismo e literatura, fez doutorado em dramaturgia. Tornou-se autor premiado, cavaleiro da Ordem Nacional do Mérito da França e de seu país, vencedor do Prêmio UNESCO de poesia e ganhou prêmio drama Cross-Africano.


Diawara diz que africanos “descobriram” a América dois séculos antes de Cristóvão Colombo [cujo nome verdadeiro seria Salvador Fernandes Zarco, judeu português nascido na vila de Cuba, no Alentejo; por este motivo deu ele nome à ilha de Cuba, no Caribe;
para ocultar sua origem judaica diante da perseguição da Inquisição à religião de Moisés. Colombo utilizava sigla cabalística em latim:Fernandus, ensifer copiae Pacis Juliae, illaqueatus cum Isabella Sciarra Camarae, mea soboles Cubae sunt”. Que significa: “Fernando, que detém a espada do poder em Pax Julia, ligado com Isabel Sciarra da Câmara, são a minha geração de Cuba”, ou sejaFernando, duque de Beja e Isabel Sciarra da Câmara são os meus pais de Cuba]. Em suas pesquisas o pesquisador africano, tem explicado o silêncio dos griôs, os maiores historiadores da história oral africana, que se tem quebrado aos poucos a fim de divulgar a história de Abubakari II e sua saga pioneira no oceano Atlântico.

Griots do Mali

A história de Abubakari II permaneceu em silêncio no Mali por motivo dele ter renunciado ao trono. Seu sucessor, Kankan Mansa Musa, o décimo imperador Mansa, ou imperador do Mali durante seu auge no século XIV, entre os anos de 1312-1337, tornou-se famoso por ser um dos grandes mecenas do conhecimento em Timbuktu, capital do antigo império mandinga.

No reinado de Mansa Musa, houve crescimento dos grandes centros do Mali em comparação à Europa ainda pouco desenvolvida. Musa ficou conhecido por sua faraônica peregrinação a Meca, onde levou caravana com mais de seis mil pessoas e mais de cem camelos carregados cada um com 300 quilos de ouro. Esta abundância de metal nobre muito superior à riqueza de mercadorias no país teria causado notável inflação na economia do Egito na época. Foi durante a estada de Mansa no Cairo a caminho de Meca que a história de Abubakari II, em 1311; se tornou conhecida e foi registrada por escribas do Faraó, de maneira que uma cópia chegou ao arquivo nacional da França, em Paris. 

Outra versão, provinda de Caracas através da comissão mista de demarcação da  fronteira Brasil-Venezuela, atribui a Gao o feito da primeira travessia do Atlântico em condições semelhantes à história de Abubakari. Este com uma frota de navios e aquele apenas com uma flotilha de caiaques e remadores a remo cruzando a Corrente Equatorial Marítima, segundo esta segunda versão uma mesquita na cidade de Gao foi erguida em sua memoria. Todavia, a história de Gao, anterior à Abubakari, está ligada ao reino Songhai rival dos Mandingas. [http://afrologia.blogspot.com.br/2008/03/civilizao-dos-songhai-dos-sculos-xii-ao.html ]


Timbikutu

De acordo com Mark Hyman, autor do livro "Blacks Before America", Abubakari II acreditava no "mundo em forma de cabaça, o grande oceano a oeste e o novo mundo para além desse". Hyman afirma que maleses entrevistaram navegadores e construtores do Egito e cidades do Mediterrâneo, decididos a construir seus próprios navios na costa da Senegâmbia. Preparativos para a viagem incluíram carpinteiros, ferreiros, navegadores, mercadores, artesãos, joalheiros, tecelões, mágicos, adivinhos, pensadores e militares. A expedição foi planejada e abastecida de alimentos durante dois anos, com carne seca, grãos, frutas em conserva em potes de cerâmica e ouro para comércio.

Diawara escreveu o livro "Abubakari II, Explorador Mandingo" (tradução livre de "Abubakari II, Explorateur Mandingue"), síntese de mais de vinte anos de pesquisa sobre o imperador que, em 1312, renunciou voluntariamente o poder de um vasto império no Oeste Africano para seguir a seu sonho. Verdade ou imaginação? As pesquisas de Diawara foram baseadas na arqueologia, linguística e na tradição oral dos griôs, para comprovar a presença africana nas Américas antes da chegada dos europeus.


O ESTÚRDIO "H. Sapiens Tapuya" E SUAS INVENÇÕES

Em 2007, quase se realizou grande exposição comparativa entre o Amazonas e o Nilo, adiada sine die em decorrência dos violentos acontecimentos que atingiram o Egito. Uma superexposição com nome de "História de Dois Rios: o Amazonas e o Nilo" reunindo cientistas do Museu Paraense Emilio Goeldi, do Museu do Cairo e outras instituições do Egito, Sudão, Venezuela, Equador e Peru.

Decorridos sete anos ainda sem previsão de nova data para a exposição, o interessante projeto talvez acabe dando oportunidade à participação de novos atores e parceiros, notadamente a UNESCO e países como Estados Unidos, França e Inglaterra que tem museus detendo coleções de cerâmica marajoara (cf. Denise Pahl Shaan, "Cultura Marajoara" e outros estudos sobre arqueologia amazônica).

Seria especialmente desejável seção da amostra a respeito dos mais de 3.000 anos da antiga civilização do Delta do Nilo e a nova civilização amazônica ainda em curso, pela metade de tempo egípcio, iniciada aqui cerca do ano 400 da era cristã no Golfão Marajoara. Talvez isto remediasse o injusto ostracismo do MUSEU DO MARAJÓ, desde seu nascimento até hoje 43 anos depois de sua criação, para entrar em progresso a reboque da supracitada exposição comparativa ou qualquer outra coisa assim. Como, por exemplo, a futura Universidade Federal do Marajó a qual deveria ficar vinculada à exemplo do Museu Nacional integrado à Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Numa nova perspectiva, o Museu Nacional do Rio de Janeiro a par do Museu Paraense Emílio Goeldi deveria participar das tentativas de amparo e institucionalização do modesto ecomuseu marajoara, a fim de dotá-lo de recursos compatíveis para realizar sua elevada missão de revitalizar a antiga Cultura Marajoara de 1800 anos de idade para o desenvolvimento humano da "Criaturada grande de Dalcídio": donde implantação de estrutura destinada a eventual recepção de acervos de cultura marajoara a ser repatriados no futuro, antecedido de intercâmbio com museus nacionais e estrangeiros interessados em cooperar com o projeto e participar da manutenção do futuro museu do Marajó sucessor do atual. 

Evidentemente, não se trata apenas de "salvar" um pequeno museu de comunidade por motivos sentimentais. Mas sim de ajudar em sua decisiva aplicação, com visão de Estado, tal como a diretora do Museu Nacional, Heloísa Alberto Torres; manifestou preocupação a respeito da conservação do patrimônio brasileiro pré-colombiano, em 1937; como peça matriz da identidade nacional -- integrada à Educação, Cultura e Desenvolvimento Socioambiental das populações tradicionais da Amazônia brasileira -- duma verdadeira política federativa (reunindo União, Estado do Pará e Municípios da região) de desenvolvimento territorial sustentável.
Sobre a Exposição Universal de Chicago, ver Jorge Nassar Fleury da Fonseca (*) em "Artes do progresso: Uma história da visualidade da Exposição de Chicago de 1893"
http://www.dezenovevinte.net/arte%20decorativa/expo_1893_chicago.htm


"O Nosso Museu do Marajó Padre Giovanni Gallo", em sua sede em Cachoeira do Arari


Livros A Cultura Marajoara - Denise Pahl Schaan (8574582689)
capa da obra de divulgação da Cultura Marajoara, autoria da arqueóloga Denise Pahl Schaan; contendo relação completa de instituições nacionais e estrangeiras detendo posse de coleções e peças de cerâmica marajoara pré-colombiana e capítulo especial sobre o Museu do Marajó.


postado em Belém, Estado do Pará, Amazônia -- Quarta-feira de Cinzas, 2015.

Somos todos ribeirinhos da margem da Via Láctea.