segunda-feira, 25 de novembro de 2013

A CABO DE REMO EM MONTARIA A FIM DE CONHECER O LAGO (8).

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... "Quanto, antão, o camarado se acordou ele não prestou atenção que a gente tinha mudado de direção no escuro e continuou a remar: a Favorita, canoa safada, talvez com saudade do Bacurituba queria voltar rio abaixo... Pai d'égua! Haja a gente, quase no bagaço, ter que recomeçar a viagem". Daí em diante carecia ter mais respeito por aqueles abaeteuaras e goiabas danados que iam e vinham pelo curso do rio com suas canoas a vela ou a remo trabucar e buscar o de comer no lago Arari pra abastecer de peixe seco casas de comércio e mercados das cidades da redondeza, assim que a população ribeirinha das varjas de baixo. Acumulação primitiva no país da Criaturada grande, via dolorosa por onde se fizeram grandes fortunas: cada casa de comércio da terra um manda chuva, cada fazenda um reizado mais alienado que outro. Que nem as origens das sesmarias dos Barões de Joanes: elas cá metidas no barro da barbaridade da Ilha Grande e eles lá residentes da civilização da pedra polida de Portugal... O regime de morgadio das ilha da Madeira, Açores e Cabo Verde transplantado à grande ilha do Marajó não podia mesmo dar certo neste rio incerto, não é verdade Vadico?



MORTOS DE SONO OU MUNDIADOS PELA BOIÚNA


Cada estirão do rio Arari a caminho do Lago é uma coisa de dia e outra coisa muito diferente de noite. Acima do igarapé São José trazendo águas do Lavrado, por exemplo, há dois cursos diferentes de paisagem: um é curso vespertino e outro noturno... Quando o sol aparece no parto da manhã o camarada vê de perto pra contar de certo todo verde das margens e das ilhas campestres espalhadas no lavrado misturar-se ao azul do céu infinito salpicado de grossas nuvens de algodão no tecido de águas emendadas, de alto a abaixo, pelo cordão das chuvas. Sorte nossa que, na ocasião, a gente estava na força do verão... 

O sono vai-se embora e a gente segue remando confiado na hora da chegada e com mais satisfação escuta urros de gado do vento e ouve recordações... velhas estórias contadas à margem de outras viagens a remo, tais quais idas e voltas de tio Cidoca ao Alto Arari. Compreende, antão, que a vida é que nem um rio comprido e cheio de voltas onde a gente passa, de bobuia, a bordo duma barca de sonhos em busca duma quimera...  

Olhar de longe distintas malhadas imaginárias e reais na lonjura do pastoreio, lotes de éguas correndo em liberdade de lés a lés e o relincho do garanhão que emprenha a imensidão do espaço vazio; revoada de marrecas pretejando o cimo dos balcedos, a graça das garças em quantidade e a revoada geral da passarada denunciando cardumes numa boca de igarapé ou furo de laguinho que vaza pro rio. Quem vai perder o espetáculo desses depois de uma noite daquelas? 

Claro, o  sumano pescador e o trabucador da lida presos desde o cordão umbilical à cadeia da murrada debaixo da ditadura da água, quase não acha nadinha daquilo bonito, pr'esta gente até paresque é um castigo, sem outra coisa pra fazer da própria vida... Masporém pra marinheiro de primeira viagem, que nem eu e meo camarado Vadico; uma tal viagem de descoberta do Alto Arari, como esta, era lindeza pura que nunca se pode esquecer na vida.

Aí, quando o sol se deita em riba do campo lavrado e desaparece atrás da linha do horizonte, o clarão do fim da tarde resta ainda por um bom par de tempo e bandos de curicas e papagaios atrasados na volta pro ninhal povoam a boca da noite com seus gritos agudos. Antão, os campos vão escurecendo devarinho ao contrário da mata fechada que anoitece de repente. Masporém, antes do cair da tarde meo camarado Vadico havia se alembrado, paresque, que tio Cidoca dizia ser naquelas paragens de ribanceiras limpas bom pra levar a canoa na sirga e adiantar viagem...

Eu nunca tinha visto nem ouvido falar de tal coisa. A sirga é maneira expedita de rebocar embarcação puxada de terra, principalmente ao longo das margens de canais. Antão, era chegada a hora e a vez da sirga quando a Favorita chegou num bonito estirão descampado, onde paresque a vista não alcançava o fim. O gado espalhado no campo era coisa muito linda de ver... Vadico começou a emendar corda com corda, que a gente trazia na canoa pra qualquer precisão. Com isto ele fez um cabo comprido, o qual cuidou de enrolar na mão pra levar à terra. "Encosta a montaria na beira, que eu vou saltar e puxar a canoa de terra" - disse-me ele. 

O camarado amarrou o cabo bem amarrado no bico de proa da canoa e saltou com a ponta passada por riba do ombro lá dele e, antão, o caboco foi andando por terra e levando a montaria com beira... Eu, na canoa sentado no banco de popa só carecia, com o cabo do remo passado debaixo duma perna pra dar firmeza, fazer o leme e jogar tudo pra fora, como se acaso a gente quisesse atravessar o rio. De terra, o sumano puxava ao contrário e destarte a Favorita ia pra frente com mais rapidez que dois remos a bordo não podiam andar. Quando a gente não tem lancha-vapor de reboque e o remo vai devagar, a sirga é quebra-galho se o estirão tá livre e desimpedido de chavascal pela ribanceira. Morrendo e aprendendo: bem que meo pai dizia, a necessidade é a mãe da invenção...

Assim, antão, graças à sirga maneira a gente fomos descontando, naquela tarde calma, parte do prejuízo do tempo perdido ao voltar pra trás na noite passada. Culpa do cansaço e o desconforme sono. Ou a mundiação da cobragrande mãe do rio: aquela monstra que, diz-que, mora debaixo da capela de Nossa Senhora das Mercês da fazenda Arari. Que foi, no passado distante sesmaria dos frades Mercedários e depois propriedade da matriarca dos fazendeiros do Arari, Dona Leopoldina Lobato. Todo mundo sabe que pra sossegar a Boiúna carece a Madre de Deus pisar a cabeça daquela maria caninana: por isto, paresque, os frades fizeram o altar da santa em riba do sumetume da cobragrande. Sumetume, pra quem não sabe, é buraco servindo de suspiro pra bicho que mora no fundo da terra com varadouro pra dentro d'água. A paca e a capivara, por exemplo... Tio Cidoca conta - dizendo Vadico -  que, certa vez, o antigo feitor da fazenda Arari experimentou tirar a santa imagem da capela, tendo cuidado antes de rezar ladaínha a fim de acalmara a besta fera. Por que, devido ao tempo, carecia mandar encarnar a santa imagem por santeiro oficial do arcebispado em Belém. Ah, pordeus!... Nem bem a lancha desatracou com a santa a bordo, a cobragrande se acordou lá no fundo do sumetume, paresque, e a terra toda da capela tremeu e as telhas voaram longe...

Um vaqueiro, diz-que, saiu a todo galope pra atalhar caminho e chegou na curva do rio antes da lancha passar. Ele se pôs a fazer sinal com o chapéu: Pára, pára... Que foi que aconteceu? A cobra se mexeu e a terra tremeu, paresque a fazenda vai pro fundo... Eita, confusão seo patrão! Aí, foi só colocar a imagem de volta no altar e acabou a assombração.



CIDADE FANTASMA FOGE PELOS CAMPOS


Contra correnteza três dias e três noite pegado a cabo de remo, comendo mal e mal dormindo em riba de japá no chão de terra dura. Remar e remar, sem jamais chegar ao Lago ambicionado no fim do rio, retorcido que nem uma cobragrande. Noite fechada, uma lua apagada por nuvens escuras paresque um borrão esbranquiçado sobre fundo preto sem estrela. A umidade latejava no ar e a gente numa entalada dessas sem saber mais onde estava: já o mapa falado do tio Cidoca não valia nada... Onde, paresque, os dois goiabas do Curral Panela foram se meteram naquela noite escura?

O sumano Vadico estava, de vera, por demais embatucado... A gente tinha desembocado num largo a cabo da derradeira curva do rio. Seria ali o tal Lago falado? "Mas, bom...", disse eu meio decepcionado: em meu pensamento o lago Arari sempre foi que nem o vasto mar... Foi aí, antão, q'eu vi paresque a vila do Jenipapo na beira do lado esquerdo da canoa. A vila dormia em silêncio profundo, será? Haja a gente a remar direto ao porto: masporém não se via nenhum bico de luz, nenhum candeeiro ou uma zinha lamparina que fosse... 

A coisa tava ficando estúrdia. E a gente querendo apressar a chegada metemos força nos remos fazendo a escuridão recuar e estrondar lá na beira. Na sombra já se podia divisar um casario rasteiro, paresque, casas caiadas a modo. Foi, antão, que o espanto sucedeu: com a canoa chegando perto as casas se levantaram e saírem de carreira pro campo mergulhando no escuro. Égua!... Nunca eu tinha visto assombração. Que sucedia? A vila do Jenipapo, sumiu do mapa com a chegada daqueles goiabas sonâmbulos? Na verdade, não era vila nem casa nenhuma, mas o sono; tresmalhado sono que fez duma malhada de gado nelore, por acaso, uma cidade assombrosa.

E agora? Fosse numa hora boa o camarado rebatia: "caga na mão e joga fora"... Mas não; desta vez a coisa tava feia: "Meo Deus do céu!" - Vadico gemeu toda nossa desorientação naquela triste situação, mortos de sono e fadiga depois de três dias e três noites a subir o rio a cabo de remo. Embarcamos os remos da desolação. A Favorita ficou como cavalo sem rédea podendo escolher caminho pra ver aonde, dali em diante, a gente ia parar.  Aquele rio negro em sua súbita largueza era, paresque, uma baia lisa como um espelho onde não soprava nenhuma brisa. 

A malhada sumiu engolida pela noite dos campos e os goiabas cegos, ceguinhos no furo escuro... Vadico relutava com o sono mas ainda buscava se alembrar das últimas recomendações de tio Cidoca... "Hum, hum... paresque a gente estamos é na boca do Anajás", disse ele como que, finalmente, saindo do labirinto. Pra mim àquela hora estúrdia, estar ou não estar na boca do Anajás-Mirim ou em outro lugar não adiantava. Morrendo de sono eu já nem sentia medo de onça ou de assombração, a gente podia encostar a canoa e dormir na beira até o outro dia.

Foi aí que a canoa foi "andando" sozinha e apareceu, distante, uma luzinha pelo lado direito. Podia ser uma geleira na espera de pescador com peixe, disse o meo camarado. De qualquer maneira, era uma luz na escuridão e melhor seria ir remando naquele rumo a fim de perguntar qual era o caminho para o Lago. De novo, metemos remos n'água e fomos indo em direção àquela luz: aí, o sumano Vadico já se lembrava do que tio Cidoca dizia, que a parte mais estreita do rio pela margem direita de quem vai era, sim, a Boca do Lago. Na esquerda ficava a dita boca do Anajás-Mirim que vinha dos centros... Que a gente prestasse atenção, meo ermão.

Haja a remar e nada de chegar à tal geleira. Puta merda!... Ora, mais perto não era mais a tal geleira que parecia ser à distância, agora já era um barco desses uns de carregar boi pro curro. Devia vir baixando com sua brilhante luz elétrica acesa na ponta do mastaréu, já se podia ouvir a zoada do motor possante. Antão, desse instante em diante eu, no piloto, carecia ter muita atenção ao banzeiro quando o barco passasse pela ilharga da montaria chapada de carga, pois nessa hora podia alagar. 

Era preciso encostar bem pra beira e deixar o barco passar, em seguida aproar a canoa de tal maneira pra pegar a onda pela frente. Tudo isto se passava em meus pensamento enquanto a gente remava entre as curvas do rio rumo à boca do lago, onde, enfim se encontraria a vila do Jenipapo. Masporém, nada do tal barco cruzar com a canoa. Oras o mastaréu brilhante por riba do mato da beira aparecia do lado direito e, de repente, surgia da banda esquerda, na demonstração de quantas curvas o rio tem até o estirão final. 

O sono era tanto qu'eu começava a ficar tonto. Agora a zoada do barco-motor parecia perto a pouco metros de distância, tinha eu que me preparar com todo cuidado e enfrentar o banzeiro a qualquer instante. Opa! Eis o barco frente à frente da montaria!... Mas, coisa estranha: na verdade, a embarcação embora com motor ligado para manter as luzes acesas estava atracada ao trapiche do Jenipapo: pela primeira vez eu vi o grande Lago Arari falado em todas redondezas do Marajó. Venerável mar negro megulhado na escuridão donde vinha um rumor do fundo das águas e o vento galopava no dorso da grande noite prestes a passar. De surpresa, veio de terra o cantar em coro de mil e um galos, paresque, anunciando a alvorada com a notícia da chegada da Favorita. E, do alto de seus poleiros sobre a terra encharcada, inventaram outra manhã.

sábado, 23 de novembro de 2013

A CABO DE REMO EM MONTARIA A FIM DE CONHECER O LAGO (7).


... "Quando, desta vez, os donos do pedaço piores que feitor de fazenda ranzinza e onça faminta, apareceram num átimo de dentro do mato e caíram em riba dos goiabas de primeira viagem... Eram, paresque, milhões e milhões de carapanãs e muriçocas. Aí a gente saiu de carreira da beira pra dentro da canoa empurrando pra fora e se coçando, "vumbora, sumano, vumbora..."... "Égua, porra!". Se eu disser que nunca corri de praga, estarei faltando com a verdade". Aí, a escuridão caiu sobre os remadores como se fosse o manto da lenda da primeira noite do mundo. Vozes noturnas tomaram conta do rio com a sua polifonia: jacurutus, bacuraus, mil e um coaxos, urutaí mãe da lua... E ainda vieram os búfalos caír n'água a pouco metros da canoa.



O labirinto na noite do rio

Deixa estar que a gente da parte baixa do Arari até as beiras do Marajó-Açu, passando pelo Canal e o Curral Panema, não conhecia o tal de búfalo falado. O pessoal que subia o Arari quando baixava vinha com estória cabeluda, diz-que o bicho era um terror. Quando eu era pirralho tinha até pesadelo com a figura do búfalo imaginado, animal estranho no Marajó até boa parte do tempo.  

A gente ia remando durante a noite inteira e quando o sono pegava um tirava cochilo na proa e o outro passava à popa pra pilotar e continuava remando até se cansar. E assim a Favorita ia navegando devagar até o dia raiar... Pelo meio dia, mais ou menos, a gente encostava na beira pra preparar a boia, dormia um pouquinho em riba da coberta de palha estendida no chão e mais adiante continuava a viagem.

Antão, altas horas da noite, era mea vez de pilotar a montaria e a gente ia calmamente passando paresque em frente à fazenda Pindobal, conforme disse meo camarado Vadico, mais ou menos seguindo as informações do tio dele, chamado Cidoca; o qual diz-que havia recomendado muito cuidado aos búfalos que existiam em quantidade na tal fazenda... A gente tinha as piores notícias dos búfalos no alto Arari: bichão brabo, paresque o Minotauro da estória; que virava canoa no rio e atacava o pessoal em terra. Muitos relatos chegavam nas bandas de baixo sobre ataques, sobretudo dos rosilhos: a pior das piores raças de búfalo segundo esta gente dizia.

Foi aí qu'eu vi aquilo no meio do campo, pintado de carvão, uns certos vultos parrudos, como se fossem ilhas escuras que vinham vindo no rumo da beira. Ouvi Vadico murmurar, "búfalo"... Ah, pordeus! Fiquei todo arrepiado e de cabelo em pé. Os bichos caíam n'água fazendo estrondo que nem barranco quando despenda da ribanceira fazendo tibum... Aquela zoada surda ecoava no medo da gente, de margem a margem. Ainda mais que o rio Arari do seu médio curso pra cima é estreito e cheio de curvas formando um labirinto danado.

Búfalos nadam como o diabo e são ótimos mergulhadores: quando reparei, o rio estava coalhado de búfalos e a canoa estava cercada por muitos deles. Botavam focinho fora d'água soltando bufos de ar e eu tive impressão de que um grandão veio boiar de propósito bem do lado da borda direita pra espiar de perto que bicho ia passando. O'zolhos do animal paresque brilhavam à fraca luz do rio na superfície... Ouvi dizer que os bichos em geral sentem o cheiro do medo da gente e o medo vinha do fundo querendo paralisar as remadas. Calados que nem um baú fechado!... Masporém, algo dizia pra gente não dar parte de fraco e não parar de remar nem remar de com força. Antão a gente fomos passando, devagar, sem fazer barulho... E quando vimos que já era boa a distância: força na remada, quero ver meo mano, vir nos pegar!...

O rio fazia mil e uma curvas que nem o rasto da Cobragrande e alongava as distâncias. Me alembrei do meu avô Alfredo contando como foi que os búfalos vieram parar no Marajó, comecei a conversar pra espantar o sono e o sumano Vadico ia perguntando. Aquela conversa paresque servia para as vozes da noite se calarem e as curujas prestar atenção. Diz-que, antigamente, uns condenados de Caiena fugiram num barco com carregamento de algumas cabeças de búfalo e acabaram naufragando na Contracosta da ilha do Marajó onde os animais se soltaram e chegaram em terra a nado. O certo, dizia meu avô que foi secretário do coronel Bento na intendência da vila de Cachoeira; o irmão do dito coronel, chamado doutor Bertino Lobato de Miranda; trouxe um lote de búfalos para a fazenda São Joaquim donde os animais se espalharam. Depois dessa levada de búfalos para a São Joaquim, o doutor Vicente Chermont de Miranda trouxe mais búfalos de fora e mandou para as fazendas dele, Dunas e Ribanceira; masporém aí os bichos se amoitaram e ficaram brabos... Eram da raça Rosilho, dito Carabao. Ai "sô home" é que começou a estória de búfalo brabo fazendo o diabo quando topava com gente pela frente. Conversa estava boa, mas era hora d'eu passar pra proa da canoa e tirar mea soneca...

A viagem voltou pra trás...

Com efeito! A gente já tinha adiantado bastante o caminho quando, ao cair da tarde do terceiro dia de viagem, a Favorita passava mansamente em frente duma bonita casa grande de fazenda... "Que lugar é este?" - eu perguntei. "Paresque, a fazenda São José"- respondeu Vadico. O burro perguntando ao que não sabia. Uma viagem como está o que, zinho, livra da ignorância é a suposição... E ainda tem ignorante que não sabe o valor duma boa suposição. O camarado guia da viagem nunca havia feito o curso superior do Arari, masporém ele tinha tio Cidoca por valia de mestre e muita gente conhece geografia por ouvir dizer, por que a tal ilha do Marajó são ilhas do labirinto maior do que o reino de Portugal, paresque. 

A gente fala aqueles nomes de fazenda como as contas do rosário: Matinada, Diamantina, Cueiras, Espirito Santo, Oriente, Santa Bárbara, Santa Quitéria, Por Enquanto, Mãe Maria, Montenegro, Santa Catarina, Tapera... E quanto acaba ninguém foi lá, masporém estórias desta e daquela fazenda vem à roda de conversas de compadres pelas vilas e pelas anedotas de tripulação de barcos e mais embarcações na espera de maré. Literatura escrita tão só na cabeça dos contadores de causos. Quem é destas bandas, falou no nome da fazenda já sabe que se trata da família tal e qual, lembra quem foi a baronesa dona Leopoldina ou o rei do gado coronel Antero. De toda maneira, bom saber, como diz o outro: os cabocos sabem que os brancos não sabem...

Mais uma vez caiu a noite fechada e a gente no meio do rio sem nenhum lume que não fosse estrela do céu e olho de jacaré pela beira do aturiá. Lutando contra o sono e a lonjura. Coube ao Vadico pilotar a montaria no último estirão da madrugada. Ai amanheceu e o sumano remando, remando... Quanto, antão, me acordei e vi que a canoa tinha "andado" pra trás... "Eh, sô home, olha lá... aquela não é a tal fazenda São José que a gente passemos ontem de tardinha?". Vadico soltou um grito: "Puta que pariu! Ela mesma."... O mano reconheceu, segundo a instrução falada de navegação a remo por tio Ciloca, que a gente estava voltando por vontade própria da canoa. 

Como assim? É que da vila da Cachoeira pra cima a subida do rio é sempre contra a correnteza que desce do Lago serpenteando entre voltas e contravoltas: eu dormindo na proa e o piloto na popa, com certeza, vencido pelo sono ou a mundiação da Boiúna, sem afrouxar o remo da mão; deu um baita cochilo e a montaria indo de bubuia rodopiou na correnteza... Quanto, antão, o camarado se acordou ele não prestou atenção que a gente tinha mudado de direção no escuro e continuou a remar: a Favorita, canoa safada, talvez com saudade do Bacurituba queria voltar rio abaixo... Pai d'égua! Haja a gente, quase no bagaço, ter que recomeçar a viagem.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

A CABO DE REMO EM MONTARIA A FIM DE CONHECER O LAGO (6).


... "A primeira contradição do Marajó é a ditadura da água, como o padre Gallo falou. A segunda e imediata contradição é o engano da vista da gente vendo tanta amplidão de terra neste mundão e, quando acaba; vai saber, é tudo quinhão de poucos. Retiros de gado e feitorias de pesca se batem num combate surdo e feroz, ai de nós; dois goiabas chegando que nem cego em meio ao tiroteio..."


ÁGUAS ARDENTES E BOAS CONVERSAS

Aí a gente se levantamos sem pressa pra tirar os troços do chão e levar tudo de volta pra canoa. E o vaqueiro lá, zombando da cara da gente montando guarda do alto da sela esperando os goiabas cair fora. Vadico foi a bordo remancheando e voltou da canoa com uma garrafa de cachaça dizendo ao rapaz, "pega aí camarado...". O cara se curvou de cima do cavalo estendendo a mão pra pegar a branquinha. Aí ele mudou de conversa... O caso não era mais por que o patrão, lá dele; diz-que não deixa pescador ou goiaba encostar em terras da fazenda. Já era, paresque, por causa do diabo duma onça que andava rondando curral naquelas bandas...

Adeus cansaço. Na voz de que tinha onça por perto não carecia mais explicar porra nenhuma. De volta ao rio, demos c'os remos n'água... A Favorita avançava lentamente rumo ao Lago ainda bastante distante sem que, na verdade, a gente fizesse ideia do que nos esperava dali em diante. Quando a gente faz uma viagem dessas não adianta ter pressa. Cada um do seu lado vai remando calado, sobretudo se o sol vai sentando na boca da noite... Aí bate uma saudade do que ninguém sabe dizer o quê. Talvez o cair da tarde escutando pássaros de volta ao ninhal, toda paisagem começando a trocar suas cores pelo lençol da noite bordado de estrelas, seja que nem uma reza antiga murmurada à ilharga da mãe da gente.

Carecia, entretanto, mudar de tática. Em vez de se ariscar a dormir em terra ao deus dará, melhor era cada um por turno tirar uma soneca se agasalhando conforme desse, entre a carga; enquanto o outro ia remando e levando a montaria - na manha -,  até raiar o dia. O que calhava estar dormindo na proa ao despertar cuidava de fazer café no fogão improvisado. O que vinha na popa, antão passava pra frente e ia tomar café. Aí os dois remadores, descansados, amiudavam as remadas para agilizar a viagem. Haja estirão após estirão...

Naquela tardinha, porém, ainda demos uma encostada numa ponta de mato na beira pra pegar lenha, fazer janta e aproveitar pra ticar ituí e traíra que se ganhou na feitoria da Jutairana, peixe bom de comer mas que tem espinha por demais entremeada na carne e que vinha guardado salmourado dentro de um balde de cuia de bom tamanho. Se não for ticado, quer dizer riscado miudinho com faca afiada; não há quem se astreva engolir, sem ficar com espinha de peixe atravessada na garganta. Por falta de experiência, a gente cozinhamos o peixe pro almoço com toda espinha. Ah, pordeus! Só deu pra comer, malmente, catando a parte da barriga e aproveitar o caldo pra fazer pirão com farinha. 

Agora, sim, numa boa. A gente haja a saborear a caldeirada perfeita antes da noite fechar... Quando, desta vez, os donos do pedaço piores que feitor de fazenda ranzinza e onça faminta, apareceram num átimo de dentro do mato e caíram em riba dos goiabas de primeira viagem... Eram, paresque, milhões e milhões de carapanãs e muriçocas. Aí a gente saiu de carreira da beira pra dentro da canoa empurrando pra fora e se coçando, "vumbora, sumano, vumbora..."... "Égua, porra!". Se eu disser que nunca corri de praga, estarei faltando com a verdade.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

A CABO DE REMO EM MONTARIA A FIM DE CONHECER O LAGO (5).


... "Masporém, a viagem estava só no comecinho. Era dia 4 de outubro, segunda-feira, talvez, pouco mais ou menos cerca das oito horas da manhã". A gente largou da feitoria na Jutairana e, rio acima, passando do meio-dia encostamos a Favorita numa beira da margem esquerda onde amarramos a canoa num tronco. Desembarcamos a ver se o lugar em terra era bom pra passar o tempo até o sol sentar. Procurar lenha, armar o fogão, estender a coberta de palha ao chão, tratar o peixe ganho pra boia, salgar o resto, acender fogo, cozinhar, encher o bucho e descontar o sono perdido no cabo do remo em riba do chão debaixo da sombra duma ramagem na borda do campo. Daí há pouco tempo, acordamos ouvindo tropel dum cavalo bufando quase na cara da gente... Quando eu abri um zolho tinha um vaqueiro montado no animal, dizendo ele pra gente se levantar e cair fora. Pensei que era bandalheira pra meter medo, mas o cara falava sério.


A PARTE QUE ME TOCA NESTE LATIFÚNDIO


Cedo a gente aprendemos, quem vem de baixo pelo rio não pode chegar ao Alto Arari e meter a cara sem consentimento em terra de fazenda. Apesar da grandeza de tantas terras, no Marajó tudo tem dono: o mundo em geral é de Deus nosso senhor, mas Ele tem ilustres representantes na terra e grandes proprietários contemplados, o resto é posseiro e forasteiro... 

Se o fazendeiro de costume mora na cidade, tem feitor em seu lugar e se o feitor mora longe no corpo da fazenda, antão tem vaqueiro no retiro que é, a modo, vigilante do campo que nem Quiriru; pássaro a tudo atento ao que se passa ao redor e que dá alarme ao menor sinal de animal ou gente estranha, com seu grito estridente que diz "quero, quero"... É certo que o passarinho defende o ninho, enquanto o sumano vaqueiro, com sua pobreza galopante, tem medo de perder lugar de sustento da sua gente e não encontrar mais outro lugar no mundo. Noutra viagem ao Lago, conheci um homem chamado Pedrão, afilhado de São Pedro Pescador; era um cabocão fiel ao taberneiro que lhe aviava a pescaria. Se ele desse um tapa num mamote era capaz de quebrar o cangote do animal: masporém, se ele encontrasse um capanga de fazenda, carecia depressa tomar um gole de cachaça pra passar o nervoso... 

Certo dia alguém lhe perguntou, "Pedrão, se tu por acaso encontrasse com Deus nosso senhor e ele te dissesse, Pedrão, meo filho pede arguma coisa e eu te ajudarei... Que tu pedias?". Pedrão, arrespondeu: "Ah, sô home; se eu topasse por aí com Deus nosso senhor, pedia um pução, com um trilhão de jacaré dentro". O pobre Pedrão na vida só sabia arpoar jacaré e imaginava "um trilhão" como quantidade infinita. Assim se repete esta desinfeliz história, desde o tal diretório dos índios e os Contemplados, por toda eternidade...

Na verdade, a viagem da canoa Favorita se passou em 1955 e hoje é 20 de novembro de 2013: dia da Consciência Negra. E a gente não sabe ainda que os primeiros negros da terra do Brasil foram tirados, no pisão, da ilha do Marajó pelo espanhol Pizón, no ano de 1500, antes de Pedro Álvares Cabral. A gente também não sabe que no dia 20 de novembro de 1756, foi achado no igarapé do Severino o teso do Pacoval do rio Arari, pelo capitão Florentino da Silveira Frade, dono da fazenda Ananatuba e fundador da freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Cachoeira do rio Arari. O Pacoval é o primeiro sítio que se teve notícia da milenar cultura marajoara. Primeiro cacicado das regiões amazônicas: portanto, por acaso, esta simplória viagem ao passado acaba sendo, de alguma maneira, uma incursão do presente à história do futuro casamento da Consciência Negra com a resiliência da antiga Cultura Marajoara. Quem viver verá...

O HOMEM DA JEBRE É UM SOBREVIVENTE

Hoje aquela estúrdia excursão da canoa Favorita vem em busca do tempo perdido, tropicando pelo incerto caminho da memória à luz do crepúsculo. Muita coisa se apagou e outras tantas agora se misturam numa pálida lembrança. Masporém, os cacos da história refazem a viagem e por esta causa fui saber, tempo depois, que na repartição do vasto mundo marajoara ainda faltava contar com a incrível, inimaginável e incomunicável Jebre... A Jebre é terra de febre nos bravos mondongos e Contracosta, terra dos negros da terra capturados por Pinzón. 

A Jebre assustadora é chavascal geral onde bichos, gente perigosa, encantados e fantasmas sobreviventes do interminável passado das malocas e mocambos, antigamente, se refugiaram à margem da história. Dizem as más línguas, que a Jebre é quartel-general de ladrões de gado: todavia, como podem dizer isto aqueles que, muitas vezes, roubaram a história dos cabocos, se nenhum civilizado jamais conheceu a Jebre e muito menos sabe da crua existência do jebrista explorado pelos verdadeiros gatunos? 

Tenho pra mim, que voltei a Santa Cruz, e fui repórter do fim do mundo cerca dos primeiros anos da criação do município desmembrado do distrito do Alto Arari de Ponta de Pedras, que o homem da Jebre é, sobretudo, um sobrevivente da conquista do Marajó e da ditadura da água. Mestre Giovanni Gallo chegou com os ventos da renovação da igreja romana, cerca de dez anos depois desta citada passagem, confirmando ele em memoráveis reportagens transformadas em livro o que Dalcídio escreveu em romance, desde 1939, na vila de pescadores de Salvaterra, distrito de Soure

Pra quem não sabe, meu bisavô materno era camponês da Galiza (Espanha) veio ele para o Marajó, com uma mão à frente e outra atrás, que nem outros imigrantes que, após a Cabanagem, ganharam terra, gado e escravos para refazenda da então decadente pecuária no Pará velho de guerra. Camponês da pobre Galiza, teve ele sua chance no Baixo Arari, onde viveu e morreu trabalhando, com seu quinhão de terra no Fé em Deus, por obra e graça do império brasileiro no Rio de Janeiro. Sem o que não estaria eu contando estória...

Por que então, agora, não consentir uma lasca de terra à criaturada na beira do rio e algumas linhas de memória a esta gente despossuída de história decente? Não acho justo ver fazer uma coisa dessas com caboco e enfiar viola no saco... Mais ainda concordar com a inconsciência de descendentes de índio, preto e imigrante que são contra as tais "afirmações positivas", vulgo inclusão social e redistribuição de renda. Dói na lembrança recordar um vaqueiro tonto a tirar do sono e enxotar dois goiabas cansados de remar a fim de conhecer o Lago Arari, na inconsciência da condição humana negreira para dar satisfação ao feitor da fazenda.

O tuxáua Plasmódio toma conta da porteira da Jebre: acho que a malária que eu peguei no Lago Arari foi um batismo de fogo a 40 graus de febre... Último reduto da resistância marajoara à conquista do rio das Amazonas... Lugar além da imaginação civilizadora, onde branco não anda e vaqueiro que tem juízo não mete a cara sozinho. O caboco da jebre - mais bicho do que gente, que nem seu extinto parente índio aruã - não conhece cidade, em compensação ele sabe tudo que se passa no reino das fazendas, mas as fazendas não sabem o que se passa na jebre. Como me disse, mais tarde, um morador de Santa Cruz: "Os cabocos sabem que os brancos não sabem"...

A primeira contradição do Marajó é a ditadura da água, como o padre Gallo falou. A segunda e imediata contradição é o engano da vista da gente vendo tanta amplidão de terra neste mundão e, quando acaba; vai saber, é tudo quinhão de poucos. Retiros de gado e feitorias de pesca se batem num combate surdo e feroz, ai de nós; dois goiabas chegando que nem cego em meio ao tiroteio...

terça-feira, 19 de novembro de 2013

A CABO DE REMO EM MONTARIA A FIM DE CONHECER O LAGO (4).


... depois de breve parada no trapiche de Cachoeira recomeçamos a subir o rio: "Vadico desceu de terra e passou para a proa. Prosseguimos a viagem. O dia ainda estava longe mas a gente não queria perder tempo por nada deste mundo."


AMANHECEU NA FEITORIA À BEIRA DO RIO

Passado um dia e uma noite, quando o segundo dia de viagem clareou a gente viu, de verdade, que já estava dentro do Arari falado: feliz da vida... O tempo estava apenas começando e passava devagar sem pressa de acabar como a saborear uma boa caneca de café. A Favorita fazia boa viagem e começava com pé direito, graças a Deus... Naquelas paragens do Marajó velho, sem Deus pai, Santa Maria mãe do Menino Jesus, o Divino Espírito Santo, todos os santos e os caruanas nada andava pra frente nem que o caboco quisesse andar direito. Sem acreditar nessas crenças todas, paresque, dava uma pissica danada e o sujeito não levantava cabeça...

Era um mundinho ribeirinho onde São Pedro Safadinho reinava com pescador, a ver paresque se o cara tinha merecendência para herdar o antigo paraíso perdido. Masporém ninguém gostaria de ir embora do Marajó sem mais nem menos, mesmo aguentando às vezes as piores injustiças e necessidades. Meu pai dizia que quando chegava em Cachoeira e os olhos dele davam em riba dos verdes campos lavrados a perder de vista, o peito se abria com a respiração farta e seu coração se alegrava tanto: antão eu vi que era verdadeiro o que meu pai me dizia. E eu que sentia saudades de alguma coisa que só conhecia por ouvir dizer... Pena que já não fosse mais o velho e bom Arari do tempo do gado do vento crescendo amoitado que nem capivara ao deus dará e das vacas gordas da malhada vivendo fora de laço e curral, como mea mãe contava de quando ela era mocinha na Diamantina e no Porto Santo, lá pelos idos mais ou menos de 1920. O rio da memória também é rio dos outros, que a gente se empodera pela história contada ou escrita por muitos.

Agora imagina a fartura d'outras eras e a primitiva antiguidade do Marajó antes das escassas sesmarias dos barões, que desde longe desta terra com a sua ávida inconsciência inventaram a pobreza da despossuída gente! O que eu e o sumano Vadico Ferreira, bancando goiaba sem eira nem beira; íamos ver no Arari era, paresque, a última liquidação do antigo tempo bão... Por acaso, duzentos anos depois que o governador irmão do Marquês de Pombal mandou o capital Florentino Frade, fundador da freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Cachoeira do rio Arari, levantar o inventário das fazendas dos padres. Pra você ver com quantos paus se faz uma canoa... Mas, àquela hora da primeira manhã rio acima, a gente não sabia nadinha do passado ainda escuro nem do futuro que ainda iria vir.

O desmemoriado pescador das tribos perdidas e pobre descendente de índio desafortunado, lutando por uma nesga de terra a fim de armar barraca de pesca junto d'água onde ele e seus camarados pudessem jogar tarrafa e estender a rede de pesca pra arrumar o de comer. Enquanto fazendeirão de pés no seco dentro de sapato no bembom da cidade, mandado feitor meter a porrada, expulsar da beira e tratar a gentinha ribeirinha a coices. 

A gente era analfabeta de pai e mãe e os ricos diziam que Deus nosso senhor fez o mundo assim, desigual e sem jeito, desde os princípios. Nisto porém a gente não podia acreditar, porque Deus é pai, não é padrasto... Portanto, era a luta manhosa do pobre sempre acusado de ser ladrão de gado contra fazendeiro malino que roubou a terra que Deus pai havia dado aos índios e contra a polícia de fazendeiro escroto que não deixa a gente sossegar num canto.

Prova da castigada inocência da gente, é que no dia da Favorita zarpar do igarapé Bacurituba rumo ao Alto Arari, 3 de outubro de 1955, foi dia de eleição para o cargo de governador do estado e a gente não sabia nadinha, dado o ilhamento a que se havia chegado depois de certo tempo após a quebra da Borracha (logo no Serrame, que foi um dia no passado distante comércio e estaleiro!). Compadre Manduquinha, metido a pajé; até o Vadico sempre tão esperto, a comadre Didi que tudo sabia por ali, papai tão ligado à política de Ponta de Pedras através do jornalzinho falado chamado tia Lodica; mamãe que era uma águia e a memória viva da família, ninguém sonhou... Se não, não tinham nos deixado sair do porto... 

Lá pelo Curral Panema adentro todo mundo era Barata desde criancinha, mas ninguém perdia tempo pra falar em política nem em time de bola. Se havia algum eleitor ali iria votar no Itaguari. Tanto que os dois goiabas, que eu e meu camarado Vadico éramos, nem nos demos conta que dia da semana a gente estava e, muito menos, que o dia da viagem ia calhar com a eleição. Égua da ignorância, sumano!... 

Qu'eu me lembre bem, a única pessoa lá pelas bandas do Serrame que falou na tal eleição que ia ter naquele ano, mas não disse o dia, foi o seu Benedito Santiago Frangalho, um senhor de meia idade, mulato, dono do sítio Meia Noite e da igarité Oliveirazinha. Ele era do contra sem barulho, aliás o único contrário ao Barata naquelas bandas, que eu saiba. Dizendo ele que iria votar no doutor Epílogo de Campos, cujo nome eu nunca tinha ouvido falar e ele não se atrevia a dizer direito, chamando-o curiosamente de Doutor Pilogo de Campos... Bom vizinho e homem viajado porém de origem humilde, não sei dizer por que motivo seu Benedito Frangalho ficou do contra ao baratismo, se o baratismo era do lado dos pobres. Talvez por influência do Doutor Romeu Santos, chefe dos contra em Ponta de Pedras, ou do deputado João Viana, de Arariúna, aliás Cachoeira... Este um, diz-que, ficou inimigo do Interventor uma vez que este tendo tirado a Comarca de Cachoeira para levar a Ponta de Pedras; fez um ardido discurso de protesto e acabou preso por desacato à autoridade. Era a revolução de 1930 abrindo o verão na ilha...


Quanto custa uma arroba de peixe? 

Devo confessar que eu estava deveras muito cru naquele negócio metido no papel de goiaba com meu sócio Vadico. Também ele já não me parecia o bambambã da marretagem da hora da partida, lá no Bacurituba. Passando de Cachoeira pra cima éramos dois abestados por igual incompetência. O tio Cidoca era o guia mental daquela estúrdia viagem, ele lá no Itaguari, constantemente lembrado por nós meio na casa do sem jeito e no mato sem cachorro. 

O bom leitor já pescou que a palavra camarada é feminina no vocabulário caboco; portanto, o Vadico era capaz de se ofender e até puxar briga se alguém desconsiderasse que ele era macho até debaixo d'água... Em compensação, uma caboca batizada como Maria do Socorro, no Curral Panema acabava sendo chamada de dona Socorra, posto que socorro é masculino. Paresque, meu camarado levava um mapa traçado na cabeça, lá dele; com aqueles nomes de fama pelas beiras remontando o rio Arari: Laranjeiras, ilha do Setúbal, Itacoã, Porto Santo, Fé em Deus, Gurupá, Curral de Meias, Mãe Maria, São José, Jutairana, Manjerona, Pindobal, Mercês... Eu nem pra perguntar a quem sabia de fato! Vadico dizia conforme lhe parecia de acordo com o relato verbal do tio Cidoca, pronto já eu dava por certo... Mas, agora no fim da estória, como refazer o mapa da memória que já vai esmaecendo? Se o mapa não é o território, devo saber...

De fato, onde localizar aquela primeira feitoria a qual nós fomos parar pra tomar café e fazer o primeiro negócio, vendo aquela gente tratar e salgar o peixe? Terras da Jutairana? Não sei... O certo é que aproei a canoa rumo à beira, fomos folgando remadas e nos aproximando. Um cachorro magro se levantou do seu canto, latiu como era de obrigação e voltou a deitar em riba da juçara pra coçar suas pulgas... O pessoal estava avexado, cedo a pesca acontecia antes do sol se levantar. Uma feitoria de pesca é mundo na beira do rio: gente, mulher e criança tudo misturado... Todo mundo pitiú tratando peixe em quantidade, ao mais que depressa, para não deixar estragar... Não há tempo a perder: quem escama escama, quem tica tica; quem destripa destripa e quem salga salga... De tarde, barriga cheia e folga na rede de dormir até madrugada quando o galo canta pra pegar a outra rede e batalhar n'água com arraia, cobra, piranha, jacaré a fim de trazer o peixe. Aquela gente vivia de rede em rede: da conceição ao parto, vivia a bem dizer de rede em rede da hora do descanso e do trabalho, até na morte a sorte do caboco era ir da barraca ao cemitério dentro de rede.

O patrão dono de geleira ficou na cidade ou no balcão da taberna num sítio remediado, aviou tudo que o pescador e sua família carece pra montar feitoria. Agora esta gente tem que dar conta do recado, direitinho, se não o crédito acaba. Antão, também acaba o sal, querosene, açúcar, café, cachaça, tabaco... O jeito só Deus sabe, quando o panema perde crédito do patrão e o Diabo da fome manda procurar rês atolada roubando-a primeiramente aos urubus.

"Bom dia", disse Vadico na proa da montaria ao se aproximar. "Pode vir", respondeu o dono da feitoria se levantando e caminhando em direção aos recém-chegados. "Cadê a cachaça?" O homem perguntou e Vadico respondeu, "taqui, sô home"... Na feitoria tudo é improviso, barraca de palha, jirau de taboca, crianças, cachorros, papagaio, periquito, mulheres pegadas ao serviço, rede de pesca, linha, tarrafa largada ao chão, tudo meio misturado à lama em confusão, rede atada com o jitinho de peito dentro todo mijado e cagado, moscas... Sacas de sal em riba dum estrado perto do fogão ao chão sobre o qual a panela pendurada numa forquilha inventa a trempe que não há e a lenha acesa embaixo faz o que faz. 

Ali ninguém estava a fim de maiores gentilezas, dizendo por exemplo sou fulano de tal, como é a sua graça? beltrano, muito prazer, etecetera e tal... A mulher cara de índia pura passava um café e entregou ao homem duas canecas de esmalte fumegantes que ele serviu aos supostos fregueses recém-chegados... Vadico cortou fora quatro dedos de tabaco num mole que parecia ter uma braça de comprimento e deu de agrado ao dono da feitoria. Este um tinha um tope maranhense aclimatado ao interior do Pará há uns quantos tempos; passando a ele também uma garrafa de cachaça. Era de praxe tais trocas pra ficar freguês. 

Aí eu já me entremeti no assunto sem ser chamado e perguntei, "o senhor pode nos vender peixe?"... Hoje me dei conta que eu disse uma besteira e tanto: era como se eu fosse na padaria da esquina perguntar se podiam me vender pão. Eita, porra!... O homem me olhou com cara de riso e perguntou: "quantas arrobas o amigo quer?... Disse-lhe, "não senhor, é pouca coisa só pro almoço"... Antão o homem viu logo que o goiaba era marinheiro de primeira viagem, deu uma risada safada e emendou. "Tu quer a boia, não se vende boia pra ninguém. Me veja um paneiro". Peguei na canoa o único paneiro que estava vazio, era um de meio alqueire. O homem encheu o paneiro de ituí-cavalo, jeju e traíra até a boca... Coisa como quinze quilos, pra dois cabocos tirar o bucho da miséria estava muito bom. O Arari dava lição de comunidade que era uma beleza. "Adeus, mea gente", disse Vadico soltando o cabo da montaria. "Vão com Deus", disse o dono da feitoria. O nome do Todo Poderoso, ali paresque, era a modo passaporte ou salvo-conduto pra gente chegar e voltar do Lago, são e salvo. Masporém, a viagem estava só no comecinha. Era dia 4 de outubro, segunda-feira, talvez, pouco mais ou menos cerda das oito horas da manhã.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

A CABO DE REMO EM MONTARIA A FIM DE CONHECER O LAGO (3).

Trapiche de Cachoeira do Arari, rio Arari
... e a lancha de costume não veio naquela vez rebocar ninguém rio acima, pois era dia de eleição. A gente não sabia nadinha: "Que fazer agora parado na beira à espera do reboque que não vinha mais? Voltar pra trás ou seguir adiante se fosse capaz?". Sem pestanejar, desamarramos a montaria e metemos remos n'água e só fomos parar no velho trapiche municipal de Cachoeira do Arari, todo feito de grossos esteios e pranchas de madeira de lei. Não era exatamente assim, em concreto armado, como se vê na foto. Nem existiam embarcações a motor como essas, exceto raros barcos-motor de transporte de gado, como o imponente "Perge", do coronel Antero Lobato, por exemplo.



A FAMOSA CACHOEIRA À PRIMEIRA VISTA

Naquele tempo, se eu soubesse e meu entendimento desse, teria imaginado que o sol foi sentar no Araquiçaua que nem um rico pajé-açu em toda sua glória, um pouco acima do furo das Laranjeiras e do Porto Santo, para atar sua rede vermelha, dormir e sonhar com a Terra sem males até o cantar do galo mágico fazendo raiar o dia. 

Antigamente, numa hora daquelas, o pouso do sol desfeito em rubros clarões era azo perfeito pra alguma tapuia sonsa, tendo seu bem querer distante, ir lavar o xiri, lá dela; com água de cheiro e fazer a reza brava (dita oração do Sol) a fim de amarrar o companheiro dela a seus pés, chamando o amado em pensamento pra sua ilharga. Ninguém já não sabia mais destas coisas tamanhas do passado e poucos sabem hoje em dia que este lugar foi baliza da saga do tremendão Tupinambá na conquista da utopia selvagem, dita a "terra sem mal" no Grão-Pará. Uma civilização solar no rio das Amazonas. Isto tudo que habita o fundão da alma da Criaturada grande de Dalcídio, masporém esta gente não sabe que sabe... 

O rio ficou de repente escuro que nem breu, tal qual a lenda da primeira noite do mundo... Grave foi a decisão, naquela hora à boca da noite, de empurrar a "Favorita" ao encontro do destino na reponta da maré rio acima. Sem uma luz, zinha que fosse, pra guiar a gente naquela estúrdia viagem ao Lago. Vadico segurava o jacumã na popa da canoa e eu remando na proa não dizíamos uma única palavra. A canoa paresque crescia nas trevas e pesava demais da conta aos dois remos, como se fosse um feio batelão, com seu carregamento de mercadoria e medo fugindo da senzala e tortura no Viramundo nos tempos da escravidão. 

A bonita "Favorita" perdia suas cores ainda cheirando à tinta nova, roubava dos dois remadores seus quatro ouvidos e quatro olhos arregalados querendo divisar alguma paisagem debuxada a carvão no muro da escuridão pelas margens do rio. Um frio vinha do fundo das águas engelhando a pele da gente e ia congelar a espinha. De forma que, cada remada com sustância, era fonte de energia e calor que vinha do interior da gente passando pelos braços para se aconchegar ao coração. 

Pelas veias do remador - rios de sangue no seio do rio-vida - navegavam cardumes devorados em caldo, pirão de farinha e pimenta malagueta no molho de tucupi: que nem a lancha-vapor de reboque consumia florestas transformadas em acha de lenha para consumar cada viagem... Cada viagem era só uma viagem no curso da única e verdadeira viagem. Talvez, já não me lembro muito bem, naquele transe fluvial arariuara antepassados canoeiros do camarado Vadico assumiram o comando da montaria chamada "Favorita". Certo como um fuso a gente iria chegar, na vez e na hora, no porto da Cachoeira. Até aquele ponto, malmente, o piloto conhecia a navegação. Dali em diante, rio acima, paresque tudo seria novidade e descobrimento...

Por favor, não esperem deste tímido remador do rio da memória um relato lá muito exato com a realidade, como num diário de bordo ou carta de navegação. Agora, paresque por mágica, o remo de pitaíca se transformou em teclado de computador. O rio e a canoa se tornaram a mesma coisa numa estória fluvial que a fadiga e o sono também contam e levam a um lago de subjetividade.

O Rio Arari: rio das araras
 
Para os brancos, na verdade, a Ilha Grande de Joanes, ou Marajó não começou a ser ocupada antes de 1680. Porta aberta da conquista da ilha grande, todavia, o Arari foi palco da cobiça dos guerreiros Tupinambás e cenário de guerra entre as mais velhas etnias Marajoaras e invasores Aruãs, cerca de 1300. O nome "arari", provavelmente aruaque, significa "rio das araras" (do Aruak, 'ara', arara por onomatopeia; e 'ari', rio). Prova de conflito hereditário entre povos indígenas que habitaram a região antes da ocupação e colonização portuguesa. Toda viagem ao Arari deve ser, doravante, uma iniciação ao pensamento descolonial com paragem obrigatória no trapiche de Cachoeira e visita ao museu do Gallo, casa de João Viana e ao chalé de Dalcídio Jurandir tombado ao chão e levantado pela memória por obra e graça do ciclo Extremo-Norte...


No fundo de suas águas barrentas jaze a velha "cachoeira", simples salto no fim do estio; enterrado pelo assoreamento. Já não existem araras no rio, a árvore Folha-Miúda que poderia ser árvore símbolo da paisagem cultural daquele rio histórico; também foi derrubada com a devastação da mata ciliar fazendo acelerar a erosão... O velho Arari tem nascente no lago do Arari pela ponta sul e desce serpenteando através dos campos. Segundo a teoria do índio arariuara, na "Notícia Histórica" (1783), existiam antigamente muitas cobras grandes e medianas no Lago e veio o maior verão que já houve nesta ilha. Quando o sol lambeu a última gota d'água e a lama quente começou a secar, as cobras todas meteram força procurando o mar e foram abrindo a terra em frente, rebolando e se contorcendo... Foi assim, que as cobras grandes abriram o Arari com tantas voltas, e as menores abriram os igarapés.

O Lago resiste em todos os sentidos, masporém está morrendo lentamente, já faz tempo: a bem dizer, desde o tempo do Barão de Marajó, no governo da província do Pará, em fins do século XIX. Quando ele contratou engenheiro português pra apresenta projeto de esgotamento das águas da chuva, como os canais das Tartarugas e dos Mocoões. Talvez tivesse sido melhor chamar engenheiros holandeses, que longe de querer dissecar o que o assoreamento de igarapés e a colmatagem dos lagos já estavam a produzir na lenta e inexorável morte da natureza anfíbia; poderia trazer a experiência dos verdes prados da Holanda, com seus diques, moinhos de vento e canais...

Ainda hoje não se viu o caminho natural da engenharia dos índios, com seus tesos e aldeias suspensas sobre campos alagados... O Alto Arari se reparte entre Santa Cruz do Arari, Cachoeira do Arari e Ponta de Pedras. A vila do Jenipapo e a fazenda Menino Jesus no município de Santa Cruz do Arari ficam à margem direita e na esquerda as fazendas Tuiuiú, Arari, Santa Maria e outras do município de Cachoeira do Arari, baixando o rio ele se divide entre este último município e Ponta de Pedras estreitando-se e se tornando sombrio e lodoso para se alargar novamente no Baixo Arari, onde corre dentre margens altas de pedras e desemboca na baia do Marajó, deixando à direita a ilha de Sant'Ana e à esquerda a boca do Caracará.

O Arari conta com um curso de 120 quilômetros de extensão. Era isto e mais alguma coisa do tamanho de uma maré, do furo das Laranjeiras até o igarapé Bacurituda; que os remadores da "Favorita" tinham que enfrentar, ida e volta. Ou seja, qualquer coisa, perto de 200 e tantos quilômetros a cabo de remo. Nada mal pra dois "goiabas" novatos. Se aquele rio falasse, como de fato ele fala a quem tem ouvidos de escutar e olhos pra ver direito; como o O Nosso Museu do Marajó ensina; a gente saberia quanta riqueza e quanto fortuna amealhada a cabo de remo, por ali, passou a cada remada... E quanta estória sonegada, daquelas tantas que viajavam a bordo de barco, canoa ou igarité.


Eu não podia acreditar! Chegamos em Cachoeira alta hora da madrugada. Muito cansados. O frio vinha do fundo do rio. Vadico encostou a canoa ao pé da escada do trapiche e foi verter água em terra, paresque, aproveitando pra se informar melhor sobre o que vinha pela proa... Passei para a popa, puxando uma manta sobre os ombros e arriei a aba do chapéu de palha sobre o rosto a fim de chochilar um pouco. Até hoje sou mole pra aguentar sono... Ouvi um caboco chegar dizendo ele, assim: "hê, meu tio, me atravesse pra'quela geleira lá fora...". Fiquei deveras admirado, nunca um adulto me tinha chamado de tio. O tratamento de "tio" é respeitoso entre a gente ribeirinha. Prontamente, o caboco desatou a canoa e deu uma empurrada com um pé enquanto com poucas remadas já o deixei a bordo da geleira ancorada no rio. Havia umas tantas quantas geleiras subindo ou talvez já de baixada com carregamento de peixe. Embora eu contasse dezoito anos de idade incompletos, meu sentimento ainda era de um curiminzão de pouco mais de quinze ou dezesseis anos de idade... Quando voltei a encostar a canoa no trapiche, estava pronto para ir na popa. Vadico desceu de terra e passou para a proa. Prosseguimos a viagem. O dia ainda estava longe mas a gente não queria perder tempo por nada deste mundo.

domingo, 17 de novembro de 2013

A CABO DE REMO EM MONTARIA A FIM DE CONHECER O LAGO (2).


... dissemos na primeira parte desta viagem: "Fomos e voltamos com a "Favorita" até o lago Arari a cabo de remo. Meu camarada Vadico tinha um ou dois anos de idade a mais que eu, era o mais entendido e já conhecia o caminho do rio até Cachoeira. Eu ainda não havia passado da ilha de Sant'Ana nem uma remada rio acima. Meu negócio, na verdade, era conhecer o lago falado por meus velhos. Na volta pela parte que me toca, uma malária a mais no currículo. Como diz o outro, tudo vale a pena se a alma não é panema...". Na foto em riba, imagem de montaria em hora de folga na faina, que nem a dita "Favorita" do compadre Manduquinha do Bacurituba. Com diferença de que a canoa de meu compadre era nova em folha, toda pintada, nos trinques. Enquanto essa está tuíra pelo serviço e o dono dela, paresque, não teve tempo, dinheiro ou esmero. Talvez até carecia os três elementos duma boa conservação pra dar uma demão de tinta na canoa. É a regra geral na lida nessa nossa vida ribeirinha, cuja economia duma embarcação se reparte em três do apurado no fim da viagem: uma parte pro dono, uma pra canoa e, por último, a parte do pescador ou trabucador (vulgo, marreteiro).


Subindo a remo o rio da memória


Esta história canoeira é dedicada aos amigos da Marenteza com certeza de que a canoagem e a navegação à vela no Pará ainda há de ter lugar destacado no nosso Brasil sem desprezar jamais a tradicional construção naval e a pesca artesanal como patrimônio histórico de relevante interesse sócio-econômico associado aos esportes e ao turismo. Por isto, a gente d'academia do peixefrito tem especial consideração pela turma de canoistas tida e havida em alta conta como nossos confrades natos. 

Neste pensamento viajante nos acode até a memória da primeira travessia oceânica a remo da África a América, paresque cem anos antes de Colombo, pela grande flotilha do rei mandinga Abu Bakari II que, segundo a tradição da cidade do Cairo (Egito) espalhada ao resto do mundo, o imperador do Mali aproveitando a correnteza marítima equatorial passou pela boca do Amazonas rumo às Guianas e Antilhas indo parar, diz-que, no Haiti. Na descoberta do mundo "viajar é preciso, viver não é preciso" (Fernando Pessoa).

Juntos e misturados por diferentes modos de parentesco e afeto fazemos história à beira do prato e da cuia de açaí. Ou remando pelas margens dos rios: isto é o genuíno clube do remo, onde Remistas "doentes" e torcedores fanáticos do Papão se dão as mãos... Quem dera a sociedade em geral aprendesse com a gente ribeirinha a arte de se aviar em terra e remar pela beira contra maré e trovoada até estar pronto a atravessar o mar bravio e o infinito desconhecido... 

Masporém não estou aqui pra filosofar e sim pra contar um pouco como foi que eu e meu 'camarado" Vadico - no verão de 1955 -, gastamos três dias e três noites mais ou menos, a cabo de remo, pra ir e voltar do Bacurituda, no Curral Panema, até à vila do Jenipapo, no lago Arari como se esta aventura estúrdia fosse a coisa mais importante do mundo achado ou por achar. Dois caboquinhos do Curral Panema a remar pelo vasto rio Arari contentes da vida pelos caminhos de dentro da grande ilha do Marajó. A gente era muito ignorante, masporém não era burro: o contato direto com a natureza numa viagem qualquer, mesmo de casa para a feira, já é coisa bastante pra dar o parto das ideias adormecidas em cada um pelo curso das gerações.
  
Se o Lago está morto, viva o Lago!

O Marajó é mundo à parte no planeta Amazônia. Dentro deste, no Arari e Anajás, mora o tempo com uma idade de mais de mil e tantos anos desde a supimpa invenção da primeira aldeia em riba do primeiro teso levantado do barro dos começos do mundo. Aterro este cavado com as próprias mãos do índio ancestral saído do bucho da cobragrande Boiúna no parto da primeira noite do mundo. 

Expedita invenção durante a gapuiação coletiva primordial pra pegar o peixe nosso de cada dia e matar a fome do vir a ser... É claro que eu não sabia nadinha destas coisas e nem desconfiava até a idade de meus vinte e poucos anos. Na mocidade era eu um perfeito caboco, mais tapado que caroço de tucumã da lenda da primeira noite do mundo, por onde a luz do dia não passa nem tiquinho por um buraquinho. 

Noves fora dia santo de guarda, a gente crescia naqueles sítios como Deus criou a mandioca e o açaizeiro; não se sabia o que era domingo, feriado ou horário certo de trabalho. A gente dependia da maré pra tudo e o relógio despertador era o galo no poleiro da madrugada e saracura cantando na varja quando a maré quebrava, inclusive na tapagem e despesca de igarapé; lanciação pra pegar camarão com rede de cambito, o de comer só chegava em casa quando a maré dava... 

Na voz dos mais velhos o lago Arari era pra nós que nem a Meca, um lugar sagrado onde a gente carecia ir uma vez na vida, pelo menos, ver de perto pra contar de certo como era que lenda e realidade se misturavam. Hoje em dia, infelizmente, o antigo e venerado Lago já se acabou... Se o Lago está morto, viva o Lago! Por isto esta refazenda estravagante e a viagem da memória na vã tentativa, paresque, de salvar as últimas recordações de uma vida.

Durante ladainhas era costume ouvir contadores de estória enquanto esperava-se chegar todos os convidados da reza com tiração de esmola pra festa ou pagamento de promessa: ali era ocasião pra rememorar todos aqueles causos. A vida das fazendas e a pesca imemorial agitavam a imaginação dos pequenos ouvindo os causos à distância nas vilas e sítios afastados. Lugares onde chegava carne de capivara salgada ou de boi orelhudo roubado, pirarucu, jacaré, marreca, variada abundância de peixe acará, aracu, mandubé, tamuatá, traíra, jeju, cachorrinho do padre, tucunaré... 

Minha mãe havia sido criada numa grande fazenda do padrinho dela rei do gado, na beira do lago, coisa de novela tipo a espetacular Pantanal da televisão... Tudo que ela me contava eu pintava em minha mente num mural invisível com as tintas da imaginação. Espantava-me a enorme quantidade e variedade de aves: tuiuiús, guarás, garças, marrecas, jacurutus, arapapás... Quando eu cresci e me desemburrei mais foi maior meu espanto ao ler relatos tais como do sábio Alexandre Rodrigues Ferreira e de Emilio Goeldi que excediam, em realidade, tudo quanto eu tinha escutado ou pensado a respeito do famosíssimo Lago com suas árvores de folhagens transformadas em pássaros. 

Meu pai morava na vila de Ponta de Pedras, mas o pai dele, meu avô Alfredo, morou durante muitos anos na vila de Cachoeira, ele contava das tantas viagens que a família fazia duma vila a outra: sempre em canoas a remo com longos preparativos, contratação de remadores, aviamentos, providência para armar panacarica onde mulheres e crianças iam abrigadas da inclemência do sol ou das chuvas; pernoitar no Serrame e no Araquiçaua até chegar ao destino...  Cada pernoite desses era motivo para serões e atualizar as novidades de parte a parte.

O tempo das canoas a remo e da vela era lento. Pouca novidade de uma ou outra lancha-vapor vindo de Belém, como no caso da "Aida", a qual mais adiante entra na história de uma maneira interessante. Naquele tempo o abastecimento de peixe nas cidades de Belém, Abaeté, Cachoeira do Arari e Ponta de Pedras dependia, em grande parte, do famoso lago Arari. A pesca lacustre era tão importante para abastecimento de Belém que o próprio governador Magalhães Barata, em pessoa, ia todos os anos à vila do Jenipapo abrir a temporada oficial da pesca, mais ou menos no mês de junho, conforme a ditadura das chuvas. 

Nós estamos falando duma estúrdia viagem de dois "goiabas" novatos (nativos de Ponta de Pedras que faziam marretagem no Arari, a modo do antigo escambo, ou seja troca de mercadorias em espécie), isto cinco anos antes da criação do município de Santa Cruz do Arari em 1960. Quanto a canoa "Favorita", enfim, chegou ao porto da vila do Jenipapo esta ainda pertencia ao distrito do Alto Arari do município de Ponta de Pedras e o Arari era, então, o mais importante centro de pesca artesanal do Pará. Hoje em dia as coisas estão muito mudadas ali, inclusive na ausência do museu que o padre Gallo inventou 17 anos depois da viagem da "Favorita".

Notícia histórica da vila do Jenipapo



À margem duma reunião de diretoria do Instituto Histórico e Geografico do Pará (IHGP), o ex-presidente Guaraciaba Gama, falecido recentemente, em conversa informal nos contou da origem da vila do Jenipapo, em Santa Cruz do Arari. Posteriormente, numa memorável degustação de canhapira em sua residência, no bairro de Nazaré em Belém, ele acrescentou como foi que as primeiras canoas geleiras com carregamento de peixe para o mercado do Ver O Peso inicialmente recebiam peixe do rio Arari até seu curso médio, donde regressavam com carregamento a Belém. 

Até aí os pescadores saiam de sua moradias com toda família, cachorros e mais xerimbabos pra montar feitoria de pesca, desde começos do verão até início das chuvas, em geral de junho a dezembro. Tais feitorias eram motivo de encrenca com fazendeiros, enquanto as comunidades da pesca alegavam estar com feitoria em terra de marinha, os proprietários de terra diziam que o que valia ali era sesmaria da época dos barões de Joanes, que não contemplavam tal situação. 

Na verdade, o que azedava a relação entre as partes conflitantes era já naquele tempo o alastrado costume do roubo de gado. Não raro acabando a corda por arrebentar do lado mais fraco, com violência, prisão na famosa Cadeia de São José e morte. As histórias dessas travancas e malquerenças varavam noites de espera da maré e viajavam na memoria de canoeiros e tripulantes de igarités, barcos de gado e geleiras. Andando de boca em boca até aos confins dos sítios mais distantes, inclusive na doca do Ver O Peso e subúrbios de Belém à espera do apurado na travessia pra voltar à ilha.

O doutor Guaraciaba Gama, respeitável médico obstetra e grande contador de causos, era filho ilustre de Cachoeira do Arari, contemporâneo do autor de "Chove nos campos de Cachoeira", onde ele se identificava num dos personagens do romance retratado como um certo "Tales de Mileto"... Disse ele que a pesca no lago Arari tradicionalmente atendia ao comércio interno da ilha e que, pouco a pouco, igarités abaeteuaras (comércio de regatão proveniente de Abaetetuda) começaram a trocar mercadorias por peixe seco e salgado, às vezes carne de capivara, uma ou duas reses atoladas que levavam salgada e misturada com carne de capivara ou junto com mantas de pirarucu; dois ou três jacarés peiados, pencas de muçuã... O velho escambo do tempo dos índios, sem dúvida, sobrevivendo até metade do século XX. Quando fábricas de gelo fizeram aparecimento na Capital transformando igarités veleiras em geleiras motorizadas como hoje se vê.

Tomando pé na estória

Tudo isto é importante para o amigo leitor entender a jornada da montaria "Favorita" ao lago Arari. Dizendo eu ainda o que ouvi, mais ou menos, o doutor Guaraciaba contar: que na medida que os cardumes dos rios escasseavam, as geleiras remontaram, pouco a pouco, até chegar finalmente ao lago. Foi então, quando um migrante paraibano de nome João Barros, conhecido como Juquinha; montou casa de aviamento na Boca do Lago para fazer freguesia com pescadores do lugar e contratar venda do peixe às geleiras, assim chamadas por resfriar e conservar o peixe em gelo até o mercado de Belém. Isto foi sim uma revolução. Pois até então tudo carecia de sal em poucas horas após a pesca e  secar ao sol, sob pena de estragar e botar a perder todo o trabalho de muitos em um dia. Pode-se imaginar.

Com a fome do povo de Belém e a carne não dando para quem queria, o chamado peixe do mato vindo do Marajó, mais o vinho de açaí era o socorro da pobreza. Então, a casa de comércio do sr. Juquinha na Boca do Lago prosperou do dia pra noite. E como existisse às proximidades dela um pé solteiro de jenipapo, o lugar passou a ser assim chamado, dando nome à vila do Jenipapo até hoje. Notável pela salinidade do solo na beira do Lago raro é o arbusto nativo que cresce ali e se destaca com o rigor do clima. Razão pela qual, no Jenipapo havia comércio de frutas e víveres vindos do baixo rio. A vila de Santa Cruz concentrava famílias de criadores de gado, boa parte oriunda de antigos imigrantes da Espanha; enquanto os pescadores nativos moravam no Jenipapo. 

As duas comunidades mantiveram, até recentemente, relacionamento bastante hostil entre si cujas raízes históricas se perdem nos idos da capitania hereditária da Ilha Grande de Joanes, certamente. Sendo criadores de gado aliados naturais dos fazendeiros. Estes são os chamados grandes proprietários, raramente presentes nas suas fazendas, moram em Belém com suas famílias e administram a propriedade através de feitores, os quais por sua vez cuidam dos vaqueiros e do gado. Antigamente, cada fazenda era autossuficiente como um feudo. Criadores moram principalmente na sede em Santa Cruz e são minifundiários, criam animais soltos no pasto em geral sem cercas e praticam um tipo de pecuária familiar. 

Comerciantes e políticos, todavia, pendiam por interesse econômico ao lado dos pescadores. Embora o poder econômico dos grandes fazendeiros predominasse junto ao poder em Belém, localmente o número de pescadores apesar da exploração do trabalho e da pobreza, não passava desapercebido aos olhos dos políticos. O populismo baratista, então, montou arraial nos municípios do interior e com o Jenipapo não foi diferente.

O próprio Juquinha Barros teria tido a ideia de convidar o governador Magalhães Barata para abrir oficialmente a temporada de pesca no lago Arari a cada ano, dando ali uma festança. Conta-se anedota, segundo a qual numa das idas de Barata ao Jenipapo, alguns pescadores o procuraram para se queixar da exploração que o Juquinha fazia contra eles vendendo-lhes caro o material de pesca e as mercadorias de consumo e pagando barato pelo peixe em contrapartida. 

Na hora do discurso, Barata se saiu com uma de Salomão. Agradecendo a hospitalidade do amigo dele, senhor João Barros; homem honrado e trabalhador que promovia a pesca no Jenipapo. Porém, naquele dia, fora informado de que um sujeito chamado Juquinha andava a explorar aquela pobre gente. Pedia, então, ao caro amigo Barros que verificasse o caso e, caso as queixas continuassem, no próximo ano ele, governador, voltaria para levar preso o tal Juquinha para o temível São José... Claro, de uma maneira ou outra, as queixas sumiram por encanto.

O lago Arari além de ter sido o clímax da milenar Cultura Marajoara, desde a doação das fazendas dos jesuítas, na segunda metade do século XVIII, passou a despertar grande interesse. Diversos cientistas o visitaram e historiadores escreveram sobre o Marajó em geral e o lago Arari em particular. Eis um trecho de autoria do naturalista Alexandre Ferreira a respeito dos chamados "Contemplados" (pessoas que receberam por doação do governo fazendas expropriadas da Companhia de Jesus), onde a fazenda Santo Inácio da boca do lago veio a ser hoje o município de Santa Cruz do Arari:

"Sete foram as fazendas de gado que na ilha tiveram os jesuítas: quatro no Arari e três no Marajó-guaçu. Das sete fazendas, considerarei as que tinham no Arari, em primeiro lugar, a saber: a primeira, rio acima, é a fazenda de Nossa Senhora dos Remédios, em que foi contemplado o mestre-de-campo José Miguel Aires, hoje de seu filho Antônio Miguel Aires. A segunda, no igarapé São José, em que foi contemplado o defunto José Correia de Lacerda;
a terceira, a do Menino Jesus, a do rio Mari, à esquerda, em que foi contemplado o sargento-mor da praça, João Batista de Oliveira, hoje de seu genro o alferes Antônio José Lima; quarta, a fazenda da boca do lago Santo Inácio (grifei), em que foi contemplado o sargento-mor da cidade, Manoel José Henriques de Lima, hoje de seu genro, sargento-mor de auxiliares, Carlos Gemaque. Além destas quatro, farei menção dos dous retiros, como chamavam, isto é, duas fazendas de beneficiar gado: um nas cabeceiras do lago Nanatuba, em que foi contemplado o coronel Miguel Joaquim Pereira de Souza Feio, e outra nas cabeceiras do rio Anajás, que deságua no Arari, na contemplação do sargento-mor José Pedro da Costa Souto Maior. Quanto às três de Marajó-guaçu, na São Brás, contemplou-se João Falcato da Silva; na de São Francisco, o sargento-mor Domingos Pereira de Morais, na do Rosário, o alferes Francisco da Costa Almeida da Silva, hoje de sua mulher, Dona Ana Felícia de Queirós, que já acima disse que casou segunda vez. (Alexandre Rodrigues Ferreira, "Notícia Histórica da Ilha Grande de Joanes, ou Marajó", separata da "Viagem Filosófica", 1783).


Eis que as circunstâncias da viagem foram expostas nestas mal traçadas linhas. Agora é hora de carregar a "Favorita" com feixes de casca de muruci, que Vadico e eu mesmo fomos tirar no campo, com machado e cuidado de não matar as árvores. Já se vê que ainda não se usava linha de náilon, velas, redes de pesca e linha precisavam de tinta extraída de casca de muruci para conservar. Eu estava então com 18 anos de idade e tudo isto era para mim um aprendizado. Vadico era um ano mais velho e seu pai e tios lhe ensinaram como fazer a viagem. Ele, paresque, tinha um portulano na cabeça e falava com piloto veterano duma nau. 

O problema é que nenhum dos dois "goiabas" novatos havia jamais ido ao Lago. O tal piloto se vangloriava de ter ido uma vez à festa de São Sebastião da Cachoeira: masporém, a Cachoeira fica rio abaixo a menos da metade da viagem... No igarapé Bacurituba de maré cheia pela mata adentro a gente ainda esperando maré virar, completamos a carga com cachos de banana inajá e paneiros de manga. Saracura deu o sinal na varja. "Até mais mea gente"... A comadre e o compadre na beira do igarapé disseram as palavras de praxe, "Vão com Deus e voltem em paz"...  "Se Deus quiser", Vadico completou: a gente levava tudo isto muito a sério, acreditando que as palavras tem força. Minha avó dizia que, antigamente, quando um parente premeditava viajar pra Cidade, carecia rezar novena e ir de casa em casa se despedir dos parentes. Quando regressava, são e salvo, deixava uma vela de cera amarrada num pedaço de miriti que ia cair, direitinho, no remanso e bater aos pés de Nossa Senhora do Tempo em sua ermida na beira do rio Barcarena onde o zelador ou zeladora recolhia para as rezas...

Demos aos remos com força estrondando dentro da varja, a maré começava a vazar e a Favorita entrou na correnteza pronta a fazer a sua estreia. Na boca do Bacurituba pés de aninga se agitavam na correnteza, pelo espingarito dos mangues ciganas voavam como quê pra ver aonde iam aqueles doidos àquela hora... No rio a vazante pegava sustância, Vadico ia no piloto e eu na proa forcejando pra canoa pegar força. Logo a gente passava do sítio Meia Noite com seus barrancos pela margem direita do rio e na esquerda o velho Serrame com sua história naufragada no fundo do rio comido pela erosão... Um olhar e um pensamento de até logo... Ninguém na beira àquela hora. Umas vaquinhas no pasto, o laranjal amofinava com a ausência do meu finado avô Chico...

Próxima parada, o síto Tainhas pra comerciar com "seu" Prego Tavares vinte sacas de sal, três grades de cachaça, café em grão e moído, açúcar, meio alqueire de farinha d'água e quatro rolos de tabaco. Noves fora a farinha, café moído e açúcar do gasto, tudo mais era capital a ser aplicado à compra de peixe-seco. Com este na volta, enfim, a viagem redonda teria o seu lucro. Como de fato, pouco, masporém ainda rende até hoje nestas maltraçadas linhas.

Olha, pra começar, até que a gente não se saiu mal: das sete da manhã no Bacurituba chegamos no Baixo Arari pouco acima do furo das Laranjeiras com o finzinho da maré e do dia. Havia um silêncio profundo e o calor do dia se despedia do corpo dos remadores, Mais acima ficava o Araquiaçau, eu ainda não sabia o aquele sítio representou na história desta gente... "Espera sumano - disse Vadico - tem coisa errada aqui...". Segundo cálculos do piloto, baseado em informações de seu experiente tio Cidoca, aquele ponto era pra estar cheinho de canoas à espera da lancha-vapor Aida que iria nos rebocar a todos até o Alto Arari. Já começava escurecer e nada de lancha nem de companheiros... Algo estava fora do eixo da estória. Foi aí então que se ouviu a inconfundível zoada de remos n'água. Só podia ser uma montaria esquipada que se aproximava, então a gente poderia saber o que estava acontecendo. Uma voz das sombras saudava os panemas... E perguntava o que a gente fazia. "A gente vamos subir o rio e estamos na espera da Aida..." - disse o sumano Vadico. "Mas, quando, parente?! - exclamou a voz passante e os remos estrondaram se afastando - Amanhã é dia de eleição e a lancha foi buscar eleitor em Belém pra votar na Cachoeira... Eu gritei, "puta merda!"... Só faltava essa.

A gente vivia tão por fora, ou melhor tão dentro da ilha que até perdia a noção da história. Foi aquela a última eleição que Magalhães Barata concorreu e foi eleito pra depois morrer no cargo. E olha lá que eu sabia ler e escrever, graças ao populismo do Coronel Barata que obrigou professora normalista ir pro interior antes de lecionar na Capital. Que fazer agora parado na beira à espera do reboque que não vinha mais? Voltar pra trás ou seguir adiante se fosse capaz?

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

A CABO DE REMO EM MONTARIA A FIM DE CONHECER O LAGO.


o caboco velho que vos fala já foi gente: quando moço ele teve um casco igual ao desse parente aí na foto encontrada na internet. A imagem em tela está de cabeça pra baixo, é claro: isto quer dizer talvez alguma coisa... O casco meu era maneiro, todo talhado numa peça inteira de piquiá e foi encontrado por acaso na maré, de bubuia, ao meio da baía. O casquinho, paresque, havia fugido ou caiu n'água de bordo de alguma embarcação de pesca, talvez à noite em meio ao banzeiro. Minha mãe o comprou de um afilhado dela por apelido Satuca, que o havia achado e ela deu-me de presente. Eu no meu casquinho maneiro, com um bom remo de pitaíca à mão, "sozinho e Deus", fiz muita navegação por rios e igarapés das redondezas do Curral Panema até Ponta de Pedras. No limite, com duas polegadas de altura fora d'água, cabia no casquinho mais uma pessoa, contanto que  fosse magra, e um paneiro de meio alqueire de farinha. E nada mais... Dia de Finados, por descuido meu, o casquinho "fugiu" da ponte da Casa da Beira. Ou foi levado do porto da cidade do Itaguari (Ponta de Pedras) por um caboco mais precisado que eu: na vida ribeirinha é assim, as coisas vêm e vão na maré conforme a precisão... Lá se foi o meu casquinho de piquiá! Masporém, a lembrança dele ficou pra sempre e ainda hoje nós fazemos boas viagens pelo rio das recordações. Vejo na paisagem da memória todas aquelas matas das paragens percorridas a remo, os igapós atalhando caminho de maré cheia varando as matas de um rio a outro. Eu ainda sinto o aroma de flores silvestres pela imaginação. Ouço cantos de pássaros no alto das ramagens e ruídos sutis de peixes que, de repente, boiam à flor d'água. Assim refaço as minhas viagens. Ou invento outras. Como esta aqui e agora antes que eu me vá embora. Naquele tempo, fui menino ribeirinho num sítio de nome "Serrame", que foi comércio na era da Borracha e ficou de herança de meu avô galego Chico Varela para a família constituída de cinco filhas e um filho homem caçula, no rio Curral Panema, município de Ponta de Pedras, na ilha do Marajó. No fim da história, todo mundo foi embora pra cidade, e o "Serrame" ficou, pouco a pouco, devorado pela erosão do rio que lhes come os barrancos pelas beiras.


Os começos da viagem


Quando eu não tinha nada pra fazer, lá ia eu e meu casquinho no sítio do compadre Manquinha e da comadre Didi, lá no igarapé Bacurituda à meia maré de distância, jogar conversa fora... Deixa estar que se hoje sou quase "antropólogo" e quase pajé devo muito aos meus compadres do Bacurituba. Muita sabença diretamente da mãe natureza, com certeza, sob orientação dos mestres Manduquinha e Didi. Ela uma negra da Guiné da cabeça aos pés e ele um cafuso onde, estava na cara, se misturavam sangue de índio e de preto. Ali na varja não havia segredo entre o neto do branco galego e seus compadres mestiços. Deixa estar que minha avó postiça já me havia dito que a mãe de meu pai era uma tapuia, nascida lá na beira da baía, na Mangabeira.

Esta herança facilitava as coisas para o meu lado, lá no Bacurituba. O melhor café torrado, pilado e passado na hora; açaí tirado do cacho à minha vista, amassado à mão e coada na peneira; camarão frito e assado na brasa acabado de pegar de lanciação... Mas o melhor de tudo era a conversa na barraca do compadre à beira do igarapé cheia de encantaria. Pra encurtar a conversa, antes de falar de boto que vira gente, das misteriosas candeias que luzem que nem iluminação pela beira do campo e não queimam capim; caçada de alguma onça que ainda rondava por ali dando em cima da criação, curupira e cobra grande; digo logo que o compadre havia encomendado, no Itaguari, uma grande montaria de falca. Uma canoa que dava até pra meter nela quatro remadores por banda, mais o de pôpa, que ia no jacumã. 

O banco do meio da montaria tinha buraco de costume pra enfiar mastro de vela de pesca, caso preciso fosse sair lá fora na baía a fim de estender espinhel com anzol de tenda pra piraíba ou botar a malhadeira. Com isto quero dizer que a montaria do compadre Manduquinha se não era a maior, pelo menos seria, uma das maiores montarias do Curral Panema. Quando a canoa chegou no Bacurituba, o compadre e a comadre estavam orgulhosos de sua posse. Aquilo era fruto de muito trabalho, oras com a colheita de açaí e oras com bacuri que dava nome o igarapé Bacurituba, significando "bacurizal". Acima de tudo, com a proteção do glorioso São Sebastião, a criação de porcos soltos na varja, masporém acostumados dormir no chiqueiro feito de toras de açaizeiro. Tudo entregue a marreteiro para levar à feira do Ver O Peso na igarité de fretes chamada "Fé em Deus", propriedade do senhor Dário Cabral, dono do comércio local, no sítio Ourém, localizado no Rio Canal.

O compadre trouxe tinta do comércio do 'seu' Dário Cabral para dar acabamento à montaria. Pintou-a com capricho nas cores vermelho e azul com traços brancos vistosos. Todavia, aconteceu um problema. Foi na hora de batizar a canoa. Manduquinha queria que ela se chamasse "FAVORITA", em letras graúdas, escritas na proa sobre a falca. Até aí, tudo bem... Masporém, nem o compadre nem a comadre sabiam ler e escrever, tampouco os pirralhos ainda pequenos, o mais velho era macho e o resto quatro meninas, uma ainda jitinha mamando no peito. Foi assim que coube a mim abrir as letras com o nome da montaria.

Ora, a "Favorita" foi a tal montaria desta estória que se conta agora. Levando eu e meu camarada Vadico, pouco mais ou menos, três dias e três noites desde o Bacurituda até o Jenipapo com a canoa chapada de mercadoria, casca de muruci e banana; pra fazer escambo com peixe seco. O Vadico no caso é nome postiço. Pois, me aconteceu depois, quando eu já era da cidade grande e virei repórter de polícia de contar o caso como o caso foi e o meu camarada meteu-se numa encrenca dos diabos com mulher alheia terminando em briga feia, na feira, acabando no Pronto Socorro. O besta publicou o nome verdadeiro do tal "Vadico". E por castigo perdeu o amigo. Em compensação, o camarada se endireitou, melhorou de vida e finalmente virou pastor. Olha lá, quando a gente se mete numa canoa a fazer marretagem pelas ilhas. 

Fomos e voltamos com a "Favorita" até o lago Arari a cabo de remo. Meu camarada Vadico tinha um ou dois anos de idade a mais que eu, era o mais entendido e já conhecia o caminho do rio até Cachoeira. Eu ainda não havia passado da ilha de Sant'Ana nem uma remada rio acima. Meu negócio, na verdade, era conhecer o lago falado por meus velhos. Na volta pela parte que me toca, uma malária a mais no currículo. Como diz o outro, tudo vale a pena se a alma não é panema... 

Agradeço à vida por me haver dado tanto. Na próxima postagem a gente conta como se passou esta viagem de começo ao fim. Aqui vai um abraço grande aos canoístas amigos da Marenteza, com os votos de que continuem, cada vez mais, remando e descobrindo a paisagem da Criaturada grande de Dalcídio pelos nossos rios. Até logo.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

CABOCO NA CASA DO BARÃO (4)





BELÉM DO PARÁ CELEBRA FRONTEIRA NORTE

Conforme comentário na primeira postagem desta série, realizou-se no dia 05/11/2013 a cerimônia de entrega da medalha "Euclides da Cunha" comemorativa dos 80 anos da Primeira Comissão Demarcadora de Limites (PCDL), agência técnica do Ministério das Relações Exteriores (MRE). O evento aconteceu na sede da mesma à Avenida Governador José Malcher, número 349, Belém do Pará, e se tornou uma significativa confraternização entre dirigentes, funcionários, pessoal aposentado fazendo parte da homenagem, amigos e familiares dos mesmos que há muito tempo não se viam.

Vindo especialmente de Brasília, presidiu a solenidade o Ministro da carreira de Diplomata Márcio Fagundes, Coordenador-Geral das Comissões Demarcadoras de Limites; que inclusive representou no referido ato o Embaixador Antonio Simões, Subchefe-Geral da América do Sul, Central e Caribe. O Ministro Márcio Fagundes abriu a sessão e leu mensagem especial do Embaixador Antonio Simões dirigida aos antigos servidores da PCDL discorrendo a respeito do significado da medalha e da sua importância para todos que, ao longo da história da Amazônia Brasileira, contribuíram à formação, identificação, delimitação e demarcação da Fronteira Norte do Brasil continuando ainda a colaborar para sua consolidação e manutenção nos dias de hoje em relação ao futuro da integração dos países amazônicos no âmbito da UNASUL.

De maneira historicamente conexa, o supracitado ato de Belém do Pará converteu-se numa celebração da antiga Cidade do Pará, sede das demarcações de fronteiras da Amazônia Brasileira desde a primeira tentativa demarcatória do Tratado de Madrí de 1750, concomitante à transferência de capital da Amazônia portuguesa da cidade de São Luís do Maranhão para Belém do Grão-Pará - esta última cada vez mais Belém da Amazônia, em marcha aos 400 anos da metrópole regional -, fundada em 12 de janeiro de 1616, pela união de armas portuguesas e tupinambás na ereção do forte do Presépio, sob pavilhão da União Ibérica. Pela qual a Fronteira Norte, irradiada desde a Nova Lusitânia (Olinda, Pernambuco) estacionou, temporariamente, junto a Feliz Lusitânia (Belém do Pará) na chamada Costa-Fronteira do Pará (margem ocidental da baía do Marajó), conforme determinações do Tratado de Tordesilhas (1494).

Este blogueiro caboco - doravante orgulhoso marajoara portador da medalha "Euclides da Cunha" - é fã do maravilhoso acaso, conforme anteriormente declarado. Considera ele a presença de representante do Prefeito de Belém, Senhor Zenaldo Coutinho, à solenidade em apreço como oportunidade de diálogo entre a dita Fronteira e a Cidade sede das demarcações de limites da Amazônia. Um diálogo acima de particularidades para a velha metrópole se empoderar de sua histórica conquista do rio das Amazonas, notadamente no que tange às comemorações dos 400 anos de fundação, em 2016, quando então poderá encerrar solenemente o mandato do atual gestor. 

Não é que se ignore dificuldades existentes para superar clivagens locais e regionais fracassantes. Mas, por isto mesmo, aproveitar a monumental história da Fronteira Norte para dar uma chance ao diálogo suprapartidário contemplando horizonte maior da expressão geográfica da Cidade de Belém do Grão-Pará, como Eidorfe Moreira mostrou. Portanto, praticar a cultura de fronteiras no chamado mundo "sem fronteiras", configura oportunidade histórica para cidadãos de Belém e seus representantes políticos democraticamente eleitos elegerem patamar político superior. Onde todos possam participar do desenvolvimento da região e do Brasil, no quadro geral da cooperação amazônica. Na verdade, nos últimos tempos, Belém não tem lembrado suas origens nativas e ultramarinas com a importância e profundidade que deveria.

Ora, de repente, o carioca Euclides da Cunha - 110 anos após a missão do Alto Purus - se credencia como um extraordinário pilar da ponte Rio - Belém, por onde transita a integração nacional de Sul a Norte e Norte a Sul. Ou, como se diz popularmente, do Oiapoque ao Chuí, com todas suas potencialidades, contradições e realizações de sucesso.

Euclides Rodrigues da Cunha nasceu em Cantagalo-RJ, a 20 de janeiro de 1866 e faleceu no Rio de Janeiro, em 15 de agosto de 1909. Foi engenheiro militar, físico, naturalista, professor, jornalista, romancista, ensaísta, filósofo, geólogo, geógrafo, hidrógrafo, historiador e sociólogo. O gênio de Euclides revela-se na obra "Os Sertões - campanha de Canudos" (1902), tornando o autor famoso. A obra divide-se em três partes: A terra, O Homem e A luta. Nela as características ecológicas, botânicas, zoológicas e hidrográficas do Nordeste ressaltam com a vida, os costumes e a religiosidade sertaneja no contexto das quatro expedições repressivas enviadas ao arraial contra os insurgentes liderados pelo carismático Antônio Conselheiro. A obra-prima euclidiana valeu-lhe eleição à Academia Brasileira de Letras (ABL) e vaga no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). 

Com a Fronteira Norte Euclides imortalizou-se ao ser nomeado, em agosto de 1904, para chefiar a Comissão Mista Brasileiro-Peruana de reconhecimento do Alto Purus. O objetivo da missão foi o de subsidiar a demarcação de limites da fronteira entre o Brasil e Peru. A extraordinária experiência de Euclides da Cunha com a profunda natureza da Amazônia produziu a obra póstuma do escritor "À Margem da História", na qual ele denunciou a servidão dos seringueiros da floresta amazônica, oitenta anos antes de Chico Mendes (Francisco Alves Mendes Filho, Xapuri-AC, 15/12/1944 - Xapuri-AC, 22/12/1988). 

Euclides partiu de Manaus para o Purus onde a Comissão chegou às nascentes do rio em agosto de 1905, quando Euclides adoeceu. Ele com seus camaradas prosseguiram os trabalhos de reconhecimento dos limites entre o Brasil e o Peru suportando grandes dificuldades, comuns a toda zona de fronteiras. O ensaio "Peru versus Bolívia", publicado em 1905, é resultado da supracitada viagem, bem como a obra filosófica "Judas-Ahsverus" que se poderia talvez afirmar "antropoética" (cf. Edgar Morin) avant la lettre. Inteligência multifacetada, Euclides retornou da Amazônia para o Rio de Janeiro onde proferiu a conferência Castro Alves e seu tempo, prefaciou a obra Inferno verde, de Alberto Rangel, e Poemas e canções, de Vicente de Carvalho.



NOTÍCIA DA COSTA-FRONTEIRA DO PARÁ

Ainda o Brasil não fora descoberto e já a fronteira luso-espanhola se achava delimitada por um meridiano a 370 léguas a oeste de Cabo Verde, segundo o Tratado de Tordesilhas de 1494. Em princípio, tal linha de partição do mundo achado e por achar, entre as duas coroas ibéricas, passaria sobre as atuais cidades de Belém do Pará, ao Norte, e Laguna-SC, ao Sul.

Em 1498, o cartógrafo oficial do rei de Portugal Duarte Pacheco Pereira teria vindo em viagem secreta ao Pará a fim de fazer observações astronômicas e cartografar os limites setentrionais de Portugal com a Espanha na América do Sul permitindo assim descobrir (revelar) o Brasil, que os navegadores portugueses já conheciam reservadamente na busca do caminho oriental marítimo das Índias. 

Em 1500, a poucos meses antes de Pedro Álvares Cabral desembarcar em Porto Seguro, o navegador espanhol Vicente Yañez Pinzón esteve no Nordeste brasileiro, achou a foz do rio Amazonas, capturou 36 índios na ilha Marinatambalo [Marajó], que foram os primeiros "negros da terra" da América do Sul. Porém, o relato desta viagem foi mantido em segredo pelos espanhóis devido à falta de certeza cartográfica sobre os direitos entre as duas monarquias rivais.

No entanto, segundo a linha de Tordesilhas a Fronteira Norte pairava sobre o grande mar de água doce (Pará-Uaçu, dos povos Tupi; Grão-Pará na tradução ao português), da margem direita do Rio Pará para leste a posse de Portugal, pela margem esquerda a oeste a Espanha amazônica ou Nueva Andaluzia, desde a beira mar do Amapá e contracosta do Marajo rio acima; conforme o título de terras concedido ao descobridor do rio das Amazonas, Francisco de Orellana. Já em fins do século XVIII, o naturalista de Coimbra Alexandre Rodrigues Ferreira mencionava ainda a "Costa-Fronteira do Pará" localizada no litoral da ilha do Marajó entre a ponta do Maguari (Soure) e o Itaguari ("ponta de pedras", no município de Ponta de Pedras), na separata da "Viagem Philosophica" (1783-1792), denominada "Notícia Histórica da Ilha Grande de Joanes, ou Marajó", publicada em Lisboa em 1783.

A pulsão conquistadora da terra dos Tapuias, transmitida de Pernambuco, do Nordeste ao Norte guarda, evidentemente, a saga Tupinambá em busca daquela utopia selvagem que, por acaso e determinismo heliocêntrico, levou os índios buscadores da Terra sem males até os contrafortes dos Andes (cf. relato do mameluco Diogo Nunes (1538), apud Nelson Papavero et. al. em "O Novo Éden"). 

Todavia, pela parte contrária vindo de norte para o sul, aquela antiga Fronteira Norte conforme a linha de Tordesilhas coincidia, de fato, com a Costa-Fronteira do Pará entre povos indígenas migrantes do circum-Caribe, vindos através do Cabo Norte (Amapá) e mais antigos ocupantes da região. Enquanto os guerreiros Tupinambá chegaram depois pela costa do Nordeste através do Maranhão e o sertão até as barrancas do rio dos Tocantins, donde fizeram os tapuias recuar para as ilhas do Pará. Por acaso, o "front" do Grão-Pará estava estabelecido muito antes de Tordesilhas...

E a "ruptura" da linha tordesilhana começou com a expulsão dos holandeses e ingleses no Xingu, Baixo Amazonas e Amapá (1623-1647), pela aliança de arcos e remos da nação Tupinambá e as armas portuguesas. Então, a Fronteira Norte subiu o Amazonas a bordo da flotilha do capitão Pedro Teixeira e seus 1200 índios de arco e remo até o Napo, na viagem de entrada (1637-1639) de Belém a Quito (Equador), ida e volta... 

Mas, foi preciso esperar pelo fim da União Ibérica e restauração da independência do reino de Portugal (1640) para promoter a abolição do cativeiro dos índios e conquistar a paz dos Nheengaíbas (povos marajoaras insubmissos jamais vencidos em guerra), em 1659, dando termo a 44 anos de guerra desde o Maranhão, em 1615, para iniciar no terreno com a simples edificação das aldeias de Aricará (Melgaço) e Aracaru (Portel) o uti possidetis defendido com sucesso por Alexandre de Gusmão nas difíceis negociações diplomáticas do Tratado de Madri de 1750.

Foi assim, ao longo de muitas luas, sois e inúmeras gerações que o pedrão da Fronteira Norte arrancado do solo da velha Lusitânia fez sua travessia do Mar-Oceano e naufragou no Rio Negro durante a primeira tentativa de demarcação de limites na Amazônia. O pedrão português, alicerce do uti possidetis brasílico de um novo país de língua portuguesa sob a constelação do Cruzeiro do Sul. Mas, a gente não sabia que da fundura do Rio Negro em todas direções da rosa-dos-ventos os Tapuias, na idade da pedra, começaram a aventura pela volta grande do Caribe para retornar à terra firma em busca do Arapari? O país do futuro sob o Cruzeiro do Sul...

Duzendo anos no fundo do rio, o marco de 1750 amazonizou-se no seio das águas no rio de Ajuricaba, na intimidade dos cardumes, mitos e lendas indígenas do Rio Negro. Foi resgatado e, finalmente, implantado em Barcelos (Estado do Amazonas) para chegar em Brasília e ficar à entrada do palácio Itamaraty. Marco histórico (quatro marcos em verdade) que também ficou plantado em Belém do Pará: um exemplar na praça D. Pedro II em frente ao Museu de História do Estado do Pará, Palácio Cabanagem e Solar do Barão de Guajará; outro no pátio do casarão da PCDL. Lugar de memória da Fronteira Norte.


À MARGEM DA HISTÓRIA: PENSAMENTO DESCOLONIAL NA ACADEMIA DO PEIXE FRITO .

Euclides da Cunha foi vidente do país do futuro. E agora o Brasil é o maior país amazônico do mundo: "O Amazonas tanto embarrigou, que acabou parindo o Acre". A frase, não tenho certeza, é de Abguar Bastos ou Raul Bopp. Um e outro foram confrades de Bruno de Menezes na Academia do Peixe Frito. Seja como for, a frase acaba calhando como luva à missão de Euclides da Cunha no Alto Purus. Lá o geógrafo de Cantagalo-RJ acharia o homem amazônida, filho da Cobragrande Boiúna; senhor dos caminhos de água; marginalizado pela História. Pior ainda, exilado do jardim do Éden pela historiografia luso-brasileira como Ferreira de Castro poderia atestar melhor...

As fronteiras são naturais, geodésicas, mortas ou vivas, secas ou molhadas... Além disto há fronteiras outras, invisíveis, onde tanto a geografia quanto a história se escondem da luz do dia. Então, já estamos falando da cultura e literatura das fronteiras. E, aí ainda, não será estranho falar de Fronteira Norte no Ver O Peso, sobretudo se a gente estiver na feira do Açaí ao pé do Forte do Castelo onde, a 07/01/1619, o cacique Guamiaba, dito Cabelo de Velha, morreu lutando contra a humilhação e escravidão de seu povo ao pular a muralha durante revolta dos índios Tupinambás contra a perfídia dos colonizadores que antecedeu a revolução Cabana de 07/01/1835... 

A Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo, cavando trincheiras entre modernistas e conservadores, se alastrou das margens do riacho Ipiranga com o grito de independência das letras nacionais e mais artes do Brasil pelo país inteiro. Deu filhotes nas províncias da cultura brasileira. Abguar Bastos e Mário de Andrade criaram contraponto entre si ao mesmo tempo que confrontaram juntos cânones externos da conjuntura sociocultural e aspectos internos colonizadores. 

 Seus heróis demonstram necessidade de considerar fatores externos inovadores e aspectos internos das obras. Com isto, levaram a uma reflexão sobre o posicionamento e adesão política nas artes e cultura. Portanto, se não existe neutralidade da ficção, a neutralidade política é uma ficção... Desta maneira questões de nacionalidade e regionalismo aparecem como alinhamento do diálogo e contraposições do escritor paraense e do paulistano.
  
Abguar Bastos é visto como um inovador escritor "regionalista" amazônico. Ou seja, um intelectual orgânico que expressa visão "interna" da Amazônia; todavia sem romper influências e vínculos das correntes modernistas que marcaram o período na cidade de Belém do Pará. No cenário regional, Abguar Bastos e outros intelectuais amazônicos foram divulgadores das novidades estéticas propaladas de São Paulo. Mas sem mimetismo.  De maneira que Abguar está próximo de Oswald de Andrade e se não foi ele "antropófago", pelo menos terá sido um ictiófago radicalmente amazônida.

Nos idos imediatamente após a Semana de 22, formou-se rede de ideias modernistas por várias regiões brasileiras. Mesmo um escritor nordestino como Joaquim Inojosa, por exemplo, tendo assumido no Norte e no Nordeste papel de porta-voz e divulgador das novas ideias estéticas da Paulicéia, salienta que na Amazônia tais ideias já se faziam presentes em pequenos círculos artísticos e intelectuais, com discurso regional e lideranças locais, tais como os "Vândalos do Apocalipse" e "Grupo do Peixe Frito". 

O poeta Bruno de Menezes, considerado o principal organizador da Academia do Peixe Frito, é outro nome de relevância na Amazônia modernista no bojo das inovações estéticas por sua origem social e militância anarquista, mas também por uma poesia livre de amarras do parnasianismo, apesar do simbolismo no primeiro momento. Como também, apesar da distância e da língua, se aparenta ele do poeta Aimé Cesaire, da ilha da Martinica, um dos chamados pais da Negritude. 

Vários círculos literários regionais atingiram organização e consistência com a criação de revistas literárias, que tinham por finalidade divulgar as novas ideias abrindo confronto com representantes do passadismo reinante. Embora o ambiente intelectual de Belém tenha, muitas vezes, se generalizado para a Amazônia como um todo, também identifica-se naquela época em Manaus a mesma efervescência duma intelectualidade "local" em busca duma fisionomia estética própria, em torno do Clube da Madrugada, por exemplo. Nomes associados ao evento modernista paulistano como Menotti del Picchia e Raul Bopp faziam-se presentes em publicações de Belém e Manaus, criadas não só como difusão do novo ideário, mas também como instrumento de identidade cultural entre "novos" e "antigos". 

Revistas como Redenção e Equador, ambas de Manaus, e Belém Nova, da capital paraense, surgidas no meado e final da década de 1920, foram exemplos de trabalho intelectual coletivo e de acirrada disputa pela genuína definição da realidade amazônica, que no início do século Euclides da Cunha mostrou pela primeira vez. 

Aí estão, dentro da Fronteira Norte, várias fronteiras do arquipélago cultural das regiões amazônicas. Ainda hoje, a visão hegemônica do Sudeste sobre os diversos Brasis, em especial a Amazônia Brasileira, sobrepõe a Biodiversidade aos aspectos socioeconômicos e à diversidade cultural. 

Ademais, por circunstâncias internas, nas quais pesou a Ditadura militar de 1964, entre a morte de Bruno de Menezes, em 1963, ocorrida na cidade de Manaus, e as comemorações do Centenário de nascimento do romancista Dalcídio Jurandir, em 2009 na cidade de Belém, quando a confraria dos amigos da Academia do Peixe Frito promoveu o retorno daquela confraria cultural do Ver O Peso, verificou-se um enorme hiato com importante perda de memória.

Hoje poucos sabem do que se trata realmente a reduzindo tão somente à degustação de açaí com peixe frito... Entretanto, para ser fiel às suas raízes, agora certamente a Academia veropesina terá mais a ver com o pensamento pós-colonial ou desmodernizante em curso, do que apenas o resgate de figuras do fim da belle époque da Borracha amazônica.

Com o desdobramento do movimento modernista da sua fase estética hegemônica para outra mais ideológica, o tema do regionalismo não só ganhou realce e se transformou em acirrada concorrência entre intelectuais de regiões diversas do país, como no caso de Gilberto Freyre ao contestar, ainda em meados da década de 1920, o monopólio paulista acerca dos usos do termo "moderno". Além disto, fez surgir diferenças e disputas internas a cada uma das regiões culturais do Brasil. No caso do círculo de intelectuais e artistas em torno da revista Belém Nova, por exemplo, isso ficou evidente em diferentes momentos.

O regionalismo de Bruno de Menezes contrasta com o de Abguar Bastos, embora ambos se encontrem engajados no combate ao passadismo filiados a movimentos vanguardistas da época. A ideia regional ganhou diversas conotações em um e outro. Para Bruno o regionalismo amazônico deveria ser pensado conforme se passava nas mais regiões brasileiras, notadamente no Sul. Para Abguar um "regionalismo amazônico" deveria ter feição própria, completamente dissociado de outras influências regionais e nacionais.

As diferentes abordagens de Bruno de Menezes e Abguar Bastos demonstram que se achava em questão o modo de representar a Amazônia e elevar a criação artística amazônica a um outro nível revestido de legitimidade por novos agentes sociais. Neste sentido, não é por acaso que a literatura de Dalcídio Jurandir, particularmente afeiçoado ao poeta de "Batuque", chama atenção dos críticos. A incorporação de novos elementos estéticos traduzidos das vanguardas europeias, mesmo em parte filtrados pelos modernistas paulistas, associou-se a elementos próprios da Amazônia paraense conhecidos pelos intelectuais locais. A negritude na poesia de Bruno e no romance de Dalcídio, entretanto, guardam parentesco fundo com o indianismo de Abguar.

Para o poeta João de Jesus Paes Loureiro, da fase pós 1950, a Amazônia é a pátria natural do realismo-mágico. O primitivismo, por exemplo, tema recorrente de várias vanguardas, casava-se perfeitamente ao cenário selvagem da paisagem cultural amazônica. A fim de identificar os meandros percorridos por Abguar Bastos na representação regional, se faz necessário tomar contato com seus escritos iniciais como o manifesto "Flaminaçu", de 1927, e o romance de estreia "Terra de icamiaba", de 1931. Além disto, reunir à produção intelectual do autor o contexto de acirramento intelectual e político que permeou a criação destas obras no plano regional e nacional.

Quando sua posição como "autor regional" reconhecido consolidou-se, seu "manifesto aos intelectuais paraenses" converteu-se num ato de afirmação de liderança e a publicação do seu primeiro romance, "Terra de icamiaba", pretendia contrapor-se ao recém-publicado Macunaíma, de Mário de Andrade. Revelando aproximações e rupturas no modo de perceber a relação dialética regional-nacional e reforçar uma oposição entre um autor e outro, no cipoal de estratégias para dinamizar o campo literário do período. 

Quanto à posição de Abguar a outros "autores regionais", também obedecia a uma estratégia de aproximação e afastamento com escritores considerados líderes do modernismo paulista, Oswald de Andrade e Mário de Andrade. Abguar Bastos nasceu em Belém no dia 22 de novembro de 1902. Seus estudos primário e secundário foram realizados na cidade natal até 1921, quando ingressou na Faculdade de Direito de Manaus, bacharelando-se em 1925.  Foi bancário em Belém e depois secretário da prefeitura de Coari, no estado do Amazonas; onde assumiu interinamente o cargo de prefeito. De 1926 a 1928 exerceu ofício de tabelião tornando-se, em 1929, redator de debates da Assembleia Legislativa do estado do Amazonas. A atividade jornalística, por sua vez, marcou seu ingresso no "mundo das letras" com sua inserção nos círculos intelectuais de Manaus e Belém.

A inquietação intelectual do começo do século XX, na Amazônia, associada à ascensão e queda do extrativismo da Hevea brasiliensis. Dependente de bancos estrangeiros e da indústria na Europa e Estado Unidos, em meio à crise de 1929 que afetava os centros intelectuais europeus e do Brasil, que se refletia na Amazônia abalando as elites locais interessadas na civilização Paris n'América, como se lê em "Belém do Grão Pará", de Dalcídio Jurandir, por exemplo.  

Um estado de espírito que transformava a poesia simbolista em demonstração de desagrado por parte de jovens literatos com tudo o que estava estabelecido como cânone. Mas, a necessidade de agir diante das calamidades sociais e econômicas, prevaleceu na atitude de reformar e remodelar tudo. Prova desse clima de rebeliões, comum ao movimento tenentista no campo político; Abguar Bastos reproduz em seu depoimento a Edgard Cavalheiro, numa carta de Raul Bopp a ele endereçada, onde o sentimento de estar à beira do rio e na margem da História, advindas de Euclides da Cunha, perpassa os espíritos:
[...] Nós precisamos, é como eu escrevi há tempos, recrutar os fatores postos à margem, forças escondidas e mal aplicadas. Demolir a velha sensibilidade (do bacharel, do literato fofo e palavroso). Tomar o pulso da terra. Consultar a floresta. Você aí agite essa Amazônia em combinação com o pessoal do Pará. Hostilmente. Intolerantemente. Não se pode fazer uma cruzada amena. Derrubada grande. Enforque o pessoal a cipó [...].
A carta de Raul Bopp não deixa dúvida quanto às angústias que acometiam os jovens da Amazônia da década de 1920. Os tais "fatores postos à margem", recordava Euclides da Cunha com seu libelo em "À margem da História"...  Uma conjuntura predeterminada por uma "sensibilidade envelhecida". Daí a convocação de uma literatura nova que retomasse os elementos nativos da Amazônia, como motivos principais de criação passou a ser um mote a guiar os novos. Afinidade e aproximação, portanto, entre grupos de jovens intelectuais amazônicos e figuras tais como Oswald e Mário de Andrade eram inevitáveis. Mas os próprios Andrades do modernismo divergiam entre eles, para concordar no principal. O próprio Abguar Bastos reconhecia isto no momento que elencou as influências mais marcantes naquele período.

Se Mário de Andrade merecia louvor isso ocorria de maneira tímida em função da novidade de "Paulicéia desvairada". Já a influência de Oswald de Andrade na obra de Abguar Bastos deve ser destacada pelo impacto causado no autor paraense através do "programa" reformador da arte e literatura nacional no Manifesto pau-brasil, de 1924. Foi Oswald a figura que mais impressão causou a Abguar sendo motivo de divergências com Bruno de Menezes.

Sob impacto do Manifesto pau-brasil foi que Abguar Bastos, em 1927, publicou na revista Belém Nova uma espécie de "versão amazônica" do "programa oswaldiano": o Flaminaçu, que em tupi (flami-n'-assú, pela grafia original) significa "grande chama". Sua pretensão era não só combater o passadismo literário da região, mas também convocar os intelectuais paraenses para o movimento renovador iniciado em São Paulo e que na Amazônia deveria ganhar feições próprias. Ouvi:
"Primeiramente vós, poetas e prosadores divinos da minha geração; depois de vós, prosadores e poetas, apajelados à sombra das vossas tabas primitivas e que estais a ver, espetados em paus sagrados, os despojos, as glórias, as caveiras - das vossas escaladas às cordilheiras da ilusão. Àqueles a minha voz vai confinada. A estes ela se intimida. Àqueles ela se recolhe como um zangão à sua colméia. A estes ela recalcitra. Não que os receie no choque, mas, de fato, porque eles não procurarão, sem esforços dolorosos, metê-las em suas sacolas de Arte.
Assunto-vos agora o meu propósito de uma corrente de pensamento, cara a cara à que se inicia no sul com esta pele genuína: "Pau-brasil" (Bastos, apud Jornal da União Brasileira de Escritores, 2002, p. 9)
A partir desse manifesto, endereçado não só aos jovens literatos interessados em encampar novos princípios estéticos e políticos abertos pelo movimento modernista, mas também destinado a combater todos representantes duma literatura passadista, que o próprio Abguar Bastos se viu forçado a produzir um romance em conformidade com o programa então esboçado.

Mas, então, a retomada da universidade da maré, doravante, precisaria contemplar o "dedo cortado" do monumento de Niemeyer à Cabanagem. Consolidar a fratura regional sem anular a diversidade cultural da Fronteira Norte: as fronteiras da História visitadas pelas artes dos próprios amazônidas. O congresso das cidades amazônicas pelo diálogo e amizade  do ajuricabano, não exige redução das expressões regionais, nem a rendição do pensamento descolonizador. Muito pelo contrário, é na diversidade cultura da descolonização que a Amazônia se resguarda e o nosso Brasil se agiganta perante o mundo "sem fronteiras", pra inglês ver.