sábado, 24 de agosto de 2013

POR QUE O BRASIL PRECISA SABER DA PAX DE MAPUÁ?


ilustração (via Facebook por Giovanni Salera Jr.) do encontro dos sete caciques Nheengaíbas das ilhas do Marajó com delegação de paz, em nome da coroa de Portugal nos termos da Lei de abolição do cativeiro dos índios, de 1655; negociada pelo Padre Antônio Vieira, superior da Companhia de Jesus no Maranhão e Grão-Pará (1653-1661); em Mapuá (Breves-PA), entre os dias 22/08 e 04/09/1659.



AOS 400 ANOS DE BELÉM DO PARÁ, 
LEMBRAI-VOS DE MAPUÁ.

 Segundo o historiador José Honório Rodrigues, em "Teoria da História do Brasil", a História não é para os mortos. Quantas vezes, no passado, já foi dito que o relato do chamado "payaçu dos índios" é um caso inverossímil e que o tal acordo de paz entre caciques do Marajó e portugueses do Pará não tem interesse acadêmico?

No entanto, a historiografia das gerações passadas ou as esperanças do porvir, só tem significado no presente. A geografia esconde as consequências históricas.  Se a academia ainda não despertou para o fato, pior para os acadêmicos do período colonial. Para os excluídos da História só o futuro interessa. Para isto a leitura a respeito de que somos, de verdade, donde vieram nossos antepassados e aonde podem ir nossos filhos e netos; é de todo nosso interesse. 

A Criaturada grande de Dalcídio Jurandir (comunidades tradicionais ribeirinhas), em especial a associação de usuários da Reserva Extrativista Florestal de Mapuá, têm direito de saber o que rolou por ali há mais de três séculos e meio. 

Porque sem Gurupá, em 1623, Mapuá, Aricará (Melgaço) e Aracaru (Portel), em 1659, certamente não poderia acontecer a adesão do Pará em Muaná, em 28 de Maio de 1823. A peça de teatro estampada tem, evidentemente, intenção se superestimar o papel dos padres e impressionar a corte. Mas, o fato é que o Pará dependente de índios para tudo, no século XVII, não havia como evitar a expansão das Guianas holandesa, inglesa ou francesa, caso não tivessem recebido a adesão dos chamados rebeldes "nheengaíbas" (nuaruaques) e seus parentes além Cabo do Norte (Amapá). Como Vieira frisou, na carta abaixo, enviada à regente de Portugal, Dona Luisa de Gusmão; viúva de Dom João IV, durante a menoridade de Dom Afonso VI, espécie de prestação de contas e preparação para regressar definitivamente a Europa.

É das atuais consequências da Lei de abolição dos cativeiros, de 1655, e da pax dos Nheengaíbas, fraudada pelos colonos do Pará para doação da ilha dos "Nheengaíbas" ou "Aruans" como capitania hereditária da Ilha Grande de Joanes (1665); que os marajoaras de hoje, com o mísero IDH dos municípios, devem se interessar a fim de saber mais sobre a invenção da Amazônia Brasileira no passado, a partir do Maranhão (1615). 

Cujo empoderamento em curso por descendentes daqueles índios bravios e seus camaradas desertores degredados e negros escravos, todos eles refugiados em mocambos (quilombos) pelos centros da ilha; é garantia efetiva da soberania do Brasil democrático na região.
JMVP / Belém, 24/08/2013


LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Cópia de uma carta para El-Rei Nosso Senhor, do Padre Antônio Vieira

Edição referência:

Sermões, Padre Antônio Vieira. Vol. XII. Erechim: Edelbra, 1998

 

CÓPIA DE UMA CARTA PARA EL-REI NOSSO SENHOR


sobre as missões do Ceará, do Maranhão, do Pará e do grande Rio das Amazonas.

ESCRITA PELO PADRE ANTÔNIO VIEIRA da Companhia de Jesus, Pregador de Sua Majestade, e Superior dos religiosos da mesma Companhia naquela conquista. No ano de 1660.


SENHOR


Obedecendo à ordem geral e última de V. Majestade, dou conta a V. Majestade do estado em que ficam estas missões, e dos progressos com que por meio delas se vai adiantando a fé e cristandade destas conquistas, em que também se verá quão universal é a prudência com que Deus assista ao feliz reinado de Vossa Majestade em toda a Monarquia, pois no mesmo tempo em que do Reino se estão escrevendo vitórias milagrosas às conquistas, escrevemos das conquistas ao Reino também vitórias, que com igual e maior razão se podem chamar milagres. Lá vence Deus com sangue, com ruínas, com lágrimas e com dor da cristandade; cá vence sem sangue, sem ruínas, sem guerra; e ainda, sem despesas; e em lugar da dor e lágrimas dos vencidos - que em parte também toca aos vencedores - com alegria, com aplauso, e com triunfo de todos, e da mesma Igreja, que, quanto se sente diminuir e atenuar no sangue que derrama em Europa, tanto vai engrossando e crescendo nos povos, nações e províncias que ganha e adquire na América.

Trabalharam este ano nas missões desta conquista vinte e quatro religiosos da Companhia de Jesus, os quinze deles sacerdotes, divididos em quatro colônias principais do Ceará, do Maranhão, do Pará e do Rio das Amazonas. Nestas quatro colônias, que se estendem por mais de quatrocentas léguas de costa, tem a Companhia dez residências, que são como cabeças de diferentes cristandades a elas anexas, a que acodem os missionários de cada uma em contínua roda, segundo a necessidade e disposição que se lhes tem dado. O trabalho, sem encarecimento, é maior que as forças humanas, e, se não fora ajudado de particular assistência divina, já a missão estivera sepultada com os que nela por esta mercê do céu conservam e continuam as vidas.

O fruto corresponde abundantemente ao trabalho, porque é grande o número de almas de inocentes e adultos que dentre as mãos dos missionários, por meio do batismo, estão cotidianamente voando ao céu sendo muito maior a quantidade dos que, recebidos os outros sacramentos, nos deixam também certas esperanças de que se salvam. Porque, ainda que há outras nações de melhor entendimento para perceberem os mistérios da fé, e passar da necessidade dos preceitos à perfeição dos conselhos da lei de Cristo, não há porém nação alguma no mundo que ainda naturalmente esteja mais disposta para a salvação, e mais livre de todos os impedimentos dela, ou seja dos que traz consigo a natureza, ou dos que acrescenta a malícia. Estes são os frutos ordinários que se colhem e vão continuando nestas missões, em que há casos de circunstâncias mui notáveis, cuja narração e história se oferecerá a V. Majestade quando Deus e V. Majestade for servido de que tenhamos mãos para a seara e para a pena.

Vindo às coisas particulares, fizeram-se este ano três missões ou entradas pelos rios e terras adentro, e foram a ela três padres com seus companheiros, professos todos de quatro votos, e os mais antigos, e de maior autoridade em toda a missão por serem estas as empresas de maior trabalho, dificuldade e importância, toda por mercê de Deus, sucederam felizmente.

O padre Francisco Gonçalves, provincial que acabou de ser da Província do Brasil, foi em missão ao Rio das Amazonas e Rio Negro, que de ida e volta é viagem de mais de mil léguas, toda por baixo da linha equinocial, no mais ardente da Zona Tórrida. Partiu do Maranhão esta missão em quinze de agosto do ano passado de mil seiscentos cinqüenta e oito, e, atravessando por todas as capitanias do Estado, foi levando em sua companhia canoas, e procuradores de todas para o resgate dos escravos; e foi esta a primeira vez que o resgate se fez por esta ordem, para que os interesses dele coubessem a todos, e particularmente aos pobres, que sempre, como é costume, eram os menos lembrados.

Haverá catorze meses que continua a missão pelo corpo e braços daqueles rios, donde se tem trazido mais de seiscentos escravos, todos examinados primeiro pelo mesmo missionário, na forma das leis de V. Majestade. E já o ano passado se fez outra missão deste gênero aos mesmos rios, pelo padre Francisco Veloso, em que se resgataram e desceram outras tantas peças, em grande benefício e aumento do Estado, posto que não é esta a maior utilidade e fruto desta missão. Excede esta missão do resgate a todas as outras em uma diferença de grande importância, e é que nas outras missões vão-se somente salvar as almas dos índios, e nestas vão-se salvar as dos índios e as dos portugueses, porque o maior laço das consciências dos portugueses neste Estado, de que nem na morte se livravam, era o cativeiro dos índios, que sem exame, nem forma alguma de justiça, debaixo do nome de resgate, iam comprar ou roubar por aqueles rios. E a este grande dano foi V. Majestade servido acudir por meio dos missionários da Companhia, ordenando V. Majestade que os resgates se fizessem somente quando fossem missões ao sertão, e que só os missionários pudessem examinar e aprovar os escravos em suas próprias terras, como hoje se faz, e, depois de examinados e julgados por legitimamente cativos, os recebem, e pagam os compradores, conseguindo os povos por esta via o que se tinha por impossível neste Estado que era haver nele serviço e consciência. Assim que, Senhor, por mercê de Deus, e benefício da lei de V Majestade, se têm impedido as grandes injustiças, que na confusão e liberdade do antigo resgate se cometiam, que foi a ruína espiritual e temporal de toda esta conquista, sendo certo que, se o fruto deste gênero de missões se computar e medir, não só pelos bens que se conseguem, senão pelos males que se impedem e se atalham, se deve estimar cada uma delas por uma das grandes empresas e obras de maior serviço de Deus que tem toda a Cristandade. Além destes bens espirituais e temporais, se conseguem muitos outros, por meio da mesma missão, em todas as terras por onde passa, porque se batizam muitos inocentes e adultos, que estão no extremo perigo da vida, que logo sobem ao céu; e se descobrem novos  temas, novos rios e novas gentes, como agora se descobriram algumas nações onde nunca tinham chegado os portugueses, nem ainda agora chegaram mais que os padres. E assim como nas nossas primeiras conquistas se levantaram padrões das armas de Portugal em toda a parte onde chegavam os nossos descobridores, assim aqui se vão levantando os padrões da sagrada cruz, com que se vai tomando posse destas terras por Cristo e para Cristo.

Foi companheiro nesta missão o padre Manoel Pires, bem conhecido nesse Reino com o nome de clérigo de Paredes, o qual, depois da ermida e fonte milagrosa que o deu a conhecer naquele sítio, estando retirado em um ermo de Roma fazendo vida solitária, por particular instinto do céu, veio a pé a Portugal, e pediu ser admitido na Companhia, para servir a Deus nas missões do Maranhão; e já o tem feito nesta, e na do ano passado pelo mesmo Rio das Amazonas, com grande zelo das almas.

A segunda entrada se fez pelo grande Rio dos Tocantins, que é na grandeza o segundo de todo o Estado, e povoado de muitas nações, a que ainda se não sabe o nascimento. Foi a esta missão o padre Manoel Nunes, lente de prima de Teologia em Portugal, e no Brasil superior da casa e missões do Pará, mui prático e eloqüente na lingua geral da terra. Levou quatrocentos e cinqüenta índios de arco e remo, e quarenta e cinco soldados portugueses de escolta, com um capitão de infantaria. A primeira facção em que se empregou este poder foi em dar guerra, ou castigar certos índios rebelados de nação inheiguaras, que o ano passado, com morte de alguns cristãos, tinham impedido a outros índios da sua vizinhança que se descessem para a Igreja e vassalagem de V. Majestade. São os inheiguaras gente de grande resolução e valor, e totalmente impaciente de sujeição; e, tendo-se retirado com suas armas aos lugares mais ocultos e defensáveis das suas brenhas, em distância de mais de cinqüenta léguas, já foram buscados, achados, cercados, rendidos e tomados quase todos, sem dano mais que de dois índios nossos levemente feridos. Ficaram prisioneiros duzentos e quarenta, os quais, conforme as leis de V. Majestade, a título de haverem impedido a pregação do Evangelho, foram julgados por escravos, e repartidos aos soldados. Tirado este impedimento, entenderam os padres na conversão e condução dos outros índios, que se chamam poquiguarás, em que padeceram grandes trabalhos, e venceram dificuldades que pareciam invencíveis. Estava esta gente distante do rio um mês de caminho, oude não caminho, porque tudo são bosques cerrados, atalhados de grandes lagos e serras, e eram dez aldeias as que se haviam de descer, com mulheres, meninos, crianças, enfermos, e todos os outros impedimentos que se acham na transmigração de povos inteiros. Enfim, depois de dois meses de contínuo e excessivo trabalho e vigilância-que também era mui necessária chegaram os padres com esta gente ao rio, onde os embarcaram por ele abaixo para as aldeias do Pará, em número por todos até mil almas. Não se acabou aqui a missão, mas, continuando pelo rio acima, chegaram os padres ao sítio dos tupinambás, donde haverá três anos tínhamos trazido mil e duzentos índios, que todos se batizaram logo; e por ser a mais guerreira nação de todas, são hoje gadelha destas entradas. Os tupinambás que ficaram em suas terras seriam outros tantos como os que tinham vindo, e eram os que agora iam buscar os padres, mas acharam que estavam divididos em dois braços do mesmo rio, um dos quais, por ser na força do verão, se não podia navegar. Avistaram-se comestes por terra, e, deixando assentado com eles que se desceriam para o inverno, tanto que as primeiras águas fizessem o rio navegável, com os outros, que eram quatrocentos, se recolheram ao Pará, tendo gastado oito meses em toda a viagem, que passou de quinhentas léguas. Deixaram também arrumado o rio com suas alturas, diligência que até agora se não havia feito, e acharam pelo sol que tinham chegado a mais de seis graus da banda do sul, que é pouco mais ou menos a altura da Paraíba. Os índios, assim tupinambás como poquiguarás, se puseram todos nas aldeias mais vizinhas à cidade, para melhor serviço da República, a qual ficou este ano aumentada com mais de dois mil índios escravos e livres: mas nem por isso ficaram nem ficarão jamais satisfeitos seus moradores, porque, sendo os rios desta terra os maiores do mundo, a sede é maior que os rios.

Demais destas duas missões se fez outra à ilha dos nheengabas, de menos tempo e aparato, mas de muito maior importância e felicidade. Na grande boca do Rio das Amazonas está atravessada uma ilha de maior comprimento e largueza que todo o Reino de Portugal, e habitada de muitas nações de índios, que, por serem de línguas diferentes e dificultosas, são chamados geralmente nheengaíbas. Ao princípio receberam estas nações aos nossos conquistadores em boa amizade; mas depois que a larga experiência lhes foi mostrando que o nome de falsa paz, com que entravam, se convertia em declarado cativeiro, tomaram as armas em defensa da liberdade, e começaram a fazer guerra aos portugueses em toda à parte. Usa esta gente canoas ligeiras e bem armadas, com as quais não só impediam e infestavam as entradas, que nesta terra são todas por água, em que roubaram e mataram muitos portugueses, mas chegavam a assaltar os índios cristãos em suas aldeias, ainda naquelas que estavam mais vizinhas às nossas fortalezas, matando e cativando; e até os mesmos portugueses não estavam seguros dos nheengaíbas dentro de suas próprias casas e fazendas, de que se vêem ainda hoje muitas despovoadas e desertas, vivendo os moradores destas capitanias dentro em certos limites, como sitiados sem lograr as comodidades do mar, da terra e dos rios, nem ainda a passagem deles, senão debaixo das armas. Por muitas vezes quiseram os governadores passados, e ultimamente André Vidal de Negreiros, tirar este embaraço tão custoso ao Estado, empenhando na empresa todas as forças dele, assim de índios como de portugueses, com os cabos mais antigos e experimentados; mas nunca desta guerra se trouxe outro efeito mais que o repetido desengano de que as nações nheengaíbas eram inconquistáveis, pela ousadia, pela cautela, pela astúcia e pela constância de gente, e, mais que tudo, pelo sítio inexpugnável com que os defendeu e fortificou a mesma natureza É a ilha toda composta de um confuso e intrincado labirinto de rios e bosques espessos, aqueles com infinitas entradas e saídas, estes sem entrada nem saída alguma, onde não é possível cercar, nem achar, nem seguir, nem ainda ver ao inimigo, estando ele no mesmo tempo debaixo da trincheira das árvores, apontando e empregando as suas flechas. E por que este modo de guerra volante e invisível não tivesse o estorvo natural da casa, mulheres e filhos, a primeira coisa que fizeram os nheengabas, tanto que se resolveram à guerra com os portugueses, foi desfazer e como desatar as povoações em que viviam, dividindo as casas pela terra dentro a grandes distâncias, para que em qualquer perigo pudesse uma avisar às outras, e nunca ser acometidos juntos. Desta sorte ficaram habitando toda a ilha sem habitarem nenhuma parte dela, servindo-lhes porém em todas os bosques de muro, os rios de fosso, as casas de atalaia, e cada nheengaíbade sentinela, e as suas trombetas de rebate. Tudo isto referimos por relação de vista do padre João de Sotomaior, o qual, como o padre Salvador do Vale, no ano de seiscentos cinqüenta e cinco, navegou e pisou todos estes sertões dos nheengabas, entre os quais lhes ficou uma imagem de Cristo crucificado, que trazia no peito, a qual mandou a um príncipe gentio, em fé da verdade e da paz com que esperava por ele, o que o bárbaro não fez, nem restituiu a sagrada imagem. Foi este caso então mal interpretado de muitos, e mui sentido de toda a gente de guerra daquela entrada, de que era cabo e sargento-mor Agostinho Correia, que depois foi governador do Estado, o qual refere hoje que lhe disse então o padre Sotomaior que aquele Senhor, que se deixara ficar entre os nheengaíbas, havia de ser o missionário e apóstolo deles, e o que os havia de converter à sua fé.

Chegou, finalmente, o ano passado de mil seiscentos cinqüenta e oito o governador Dom Pedro de Melo com as novas da guerra apregoada com os holandeses, com os quais alguma das nações dos nheengabas há muito tempo tinham comércio, pela vizinhança dos seus portos com os do Cabo do Norte, em que todos os anos carregam de peixe-boi mais de vinte navios de Holanda. E entendendo as pessoas do governo do Pará que, unindo-se os holandeses com os nheengaíbas seriam uns e outros senhores destas capitanias, sem haver forças no Estado-ainda que se ajuntassem todas -para lhes resistir, mandaram uma pessoa particular ao governador, em que lhe pediam socorro e licença, para logo, com o maior poder que fosse possível, entrarem pelas terras dos nheengaíbas, antes que, com a união dos holandeses, não tivesse remédio esta prevenção, e com ela se perdesse de todo o Estado. Resoluta a necessidade e justificação da guerra, por voto de todas as pessoas eclesiásticas e seculares, com quem Vossa Majestade a manda consultar, foi de parecer o padre Antônio Vieira que enquanto a guerra se ficava prevenindo em todo o segredo, para maior justificação, e ainda justiça dela, se oferecesse primeiro a paz aos nheengaíbas, sem soldados nem estrondo de armas, que a fizessem suspeitosa, como em tempo de André Vidal tinha sucedido. E porque os meios desta proposição da paz pareciam igualmente arriscados, pelo conceito que se tinha da fereza da gente, tomou à sua conta o mesmo padre ser o mediador dela, supondo porém todos que não só a não haviam de admitir os nheengaíbas, mas que haviam de responder com as flechas aos que lhes levassem semelhante prática, como sempre tinham feito por espaço de vinte anos, que tantos tinham passado desde o rompimento desta guerra.

Em dia de Natal do mesmo ano de mil seiscentos cinqüenta e oito despachou o padre dois índios principais, com uma carta patente sua a todas as nações dos nheengaíbas, na qual lhes segurava que por benefício da nova lei de V. Majestade, que ele fora procurar ao Reino, se tinham já acabado para sempre os cativeiros injustos, e todos os outros agravos que lhes faziam os portugueses; e que, em confiança desta sua palavra e promessa, ficava esperando por eles, ou por recado seu, para ir às suas terras; e que em tudo o mais dessem crédito ao que em seu nome lhes diriam os portadores daquele papel. Partiram os embaixadores, que também eram de nação nheengaíba, e partiram como quem ia ao sacrifício-tanto era o horror que tinham concebido da fereza daquelas nações até os de seu próprio sangue, assim, se despediram, dizendo que se até o fim da lua seguinte não tomassem, os tivéssemos por mortos ou cativos. Cresceu e minguou a lua aprazada, e entrou outra de novo, e já antes deste termo tinham profetizado o mau sucesso todos os homens antigos e experimentados desta conquista, que nunca prometeram bom efeito a esta embaixada; mas provou Deus que valem pouco os discursos humanos onde a obra é de sua Providência. Em dia de Cinza, quando já se não esperava, entraram pelo colégio da Companhia os dois embaixadores vivos e mui contentes, trazendo consigo sete principais nheengaíbas, acompanhados de muitos outros índios das mesmas nações. Foram recebidos com as demonstrações de alegria e aplauso que se devia a tais hóspedes, os quais, depois de um comprido arrazoado, em que desculpavam a continuação da guerra passada, lançando toda a culpa, como era verdade, à pouca fé e razão que lhes tinham guardado os portugueses, concluíram dizendo assim: Mas depois que vimos em nossas terras o papel do padre grande, de que já nos tinha chegado fama de que, por amor de nós, e da outra gente da nossa pele, se tinha arriscado às ondas do mar alto, e alcançado de el-rei para todos nós as coisas boas, posto que não entendemos o que dizia o dito papel mais que pela relação destes nossos parentes, logo no mesmo ponto, lhes demos tão inteiro crédito que esquecidos totalmente de todos os agravos dos portugueses, nos vimos aqui meter entre suas mãos, e nas bocas das suas peças de artilharia, sabendo de certo que debaixo da mão dos padres, de quem já de hoje adiante nos chamamos filhos, não haverá quem nos faça mal. - Com estas razões tão pouco bárbaras desmentiram os nheengaíbas a opinião que se tinha da sua fereza e barbaria, e se estava vendo nas palavras, nos gestos, nas ações e afetos com que falavam, o coração e a verdade do que diziam. Queria o padre logo partir com eles às suas terras, mas responderam, com cortesia não esperada, que eles até aquele tempo viviam como animais do mato, debaixo das árvores; que lhes déssemos licença para que logo fossem descer uma aldeia para abeirado rio, e que depois que tivessem edificado a casa e igreja, em que receber ao padre, então, o viriam buscar muitos mais em número, para que fosse acompanhado, como convinha, sinalando nomeadamente que seria para o São João, nome conhecido entre estes gentios, pelo qual distinguem o inverno da primavera. Assim o prometeram, ainda mal cridos, os nheengaíbas, e assim o cumpriram pontualmente, porque chegaram às aldeias do Pará cinco dias antes da festa de São João, com dezessete canoas, que, com treze da nação dos combocas, que também são da mesma ilha, faziam número de trinta; e nelas outros tantos principais, acompanhados de tanta e boa gente, que a fortaleza e cidade se pôs secretamente em armas.

Não pôde ir o padre nesta ocasião, por estar mortalmente enfermo; mas foi Deus servido que o pudesse fazer em dezesseis de agosto, em que partiu das aldeias do Comutá em doze grandes canoas, acompanhado dos principais de todas as nações cristãs, e de somente seis portugueses, com o sargento-mor da praça, por mostrar maior confiança. Ao quinto dia de viagem entraram pelo rio dos mapuaeses, que é a nação dos nheengaíbas que tinha prometido fazer a povoação fora dos matos, em que receber aos padres; e duas léguas antes do porto saíram os principais a encontrar as nossas canoas em uma sua grande e bem equipada, empavesada de penas de várias cores, tocando buzinas, e levantando pocemas, que são vozes de alegria e aplauso, com que gritam todos juntos a espaços; e é a maior demonstração de festa entre eles, com que também de todas as nossas se lhes respondia. Conhecida a canoa dos padres, entraram logo nela os principais, e a primeira coisa que fizeram foi presentar ao padre Antônio Vieira a imagem do santo Cristo do padre João de Sotomaior, que havia quatro anos tinham em seu poder, e de que se tinha publicado que os gentios a tinham feito em pedaços, e que, por ser de metal, a tinham aplicado a usos profanos, sendo que a tiveram sempre guardada, e com grande decência, e respeitada com tanta veneração e temor, que nem a tocá-la, nem ainda a vê-la se atreviam. Receberam os padres aquele sagrado penhor com os afetos que pedia a ocasião, reconhecendo eles, os portugueses, e ainda os mesmos índios, que a este divino Missionário se deviam os efeitos maravilhosos da conversão e mudança tão notável dos nheengabas, cujas causas se ignoravam. Logo disseram que desde o princípio daquela lua estiveram os principais de todas as nações esperando pelos padres naquele lugar, mas que, vendo que não chegavam ao tempo prometido, nem muitos dias depois, resolveram que o padre grande devia de ser morto, e que com esta resolução se tinham despedido, deixando porém assentado antes que dali a catorze dias se ajuntariam outra vez todos em suas canoas, para irem ao Pará saber o que passava, e, se fosse morto o padre, chorarem sobre a sua sepultura, pois já todos o reconheciam por pai. Chegados, enfim, à povoação, desembarcaram os padres, com os portugueses e principais cristãos, e os nheengarbas naturais os levaram à igreja que tinham feito de palma, ao uso da terra, mas muito limpa e concertada, à qual logo se dedicou a sagrada imagem, com o nome da igreja do Santo Cristo, e se disse o Te Deum laudamus em ação de graças. Da igreja a poucos passos trouxeram os padres para a casa que lhes tinham preparado, a qual estava muito bem traçada, com seu corredor e cubículos, e fechada toda em roda com uma só porta, enfim, com toda a clausura que costumam guardar os missionários entre os índios. Mandou-se logo recado às nações, que tardaram a vir mais ou menos tempo, conforme a distância; mas enquanto não chegaram as mais vizinhas, que foram cinco dias, não esteve o demônio ocioso introduzindo nos ânimos dos índios, e ainda dos portugueses, ao princípio por meio de certos agouros, e depois pela consideração do perigo em que estavam, se os nheengaíbas faltassem à fé prometida, tais desconfianças, suspeitas e temores, que faltou pouco para não largarem a empresa, e ficar perdida e desesperada para sempre. A resolução foi dizer o padre Antônio Vieira aos cabos que lhe pareciam bem as suas razões, e que conforme a elas se fossem embora todos, que ele só ficaria com seu companheiro, pois só a eles esperavam os nheengaíbas, e só com eles haviam de tratar. Mas no dia seguinte começou a entrar pelo rio, em suas canoas, a nação dos mamaianases, de quem havia maior receio, por sua fereza, e foram tais as demonstrações de festa, de confianças, e de verdadeira paz que nesta gente se viram, que as suspeitas e temores dos nossos se foram desfazendo, e logo os rostos e os ânimos e as mesmas razões e discursos, se vestiram de diferentes cores.

Tanto que houve bastante número de principais, depois de se lhes ter praticado largamente o novo estado das coisas, assim pelos padres como pelos índios, das suas doutrinas, deu-se ordem ao juramento de obediência e fidelidade; e para que se fizesse com toda a solenidade de cerimônias exteriores-que valem muito com gente que se governa pelos sentidos - se dispôs e fez na forma seguinte: ao lado direito da igreja estavam os principais das nações cristãs, com os melhores vestidos que tinham, mas sem mais armas que as suas espadas; da outra parte estavam os principais gentios, despidos e empenados ao uso bárbaro, com seus arcos e flechas na mão, e entre uns e outros os portugueses. Logo disse Missa o padre Antônio Vieira, em um altar ricamente ornado, que era da Adoração dos Reis, à qual Missa assistiam os gentios de joelhos, sendo grandíssima consolação para os circunstantes vê-los bater nos peitos, e adorar a Hóstia e o Cálix, com tão vivos efeitos daquele preciosíssimo sangue, que, sendo derramado por todos, nestes, mais que em seus avós, teve sua eficácia. Depois da Missa assim revestido nos ornamentos sacerdotais, fez o padre uma prática a todos, em que lhes declarou, pelos intérpretes, a dignidade do lugar em que estavam; e a obrigação que tinham de responder com limpo coração, e sem engano, a tudo o que lhes fosse perguntado, e de o guardar inviolavelmente depois de prometido. E logo fez perguntar a cada um dos principais se queriam receber a fé do verdadeiro Deus, e ser vassalos de el-rei de Portugal, assim como o são os portugueses, e os outros índios das nações cristãs e avassaladas, cujos principais estavam presentes, declarando-lhes juntamente que a obrigação de vassalos era haverem de obedecer em tudo às ordens de Sua Majestade, e ser sujeitos a suas leis, e ter paz perpétua e inviolável com todos os vassalos do mesmo senhor, sendo amigos de todos seus amigos, e inimigos de todos seus inimigos; para que nesta forma gozassem livre e seguramente de todos os bens, comodidades e privilégios, que pela última lei, do ano de mil seiscentos cinqüenta e cinco, eram concedidos por Sua Majestade aos índios deste Estado. A tudo responderam todos conformemente que sim, e um principal, chamado Piié, o mais entendido de todos, disse que não queria prometer aquilo. E como ficassem os circunstantes suspensos na diferença não esperada desta resposta, continuou dizendo que as perguntas e as práticas que o padre lhes fazia que as fizesse aos portugueses, e não a eles, porque eles sempre foram fiéis a el-rei, e sempre o reconheceram por seu senhor desde o princípio desta conquista, e sempre foram amigos e servidores dos portugueses; e que, se esta amizade e obediência se quebrou e interrompeu, fora por parte dos portugueses, e não pela sua; assim, que os portugueses eram os que agora haviam de fazer ou refazer as suas promessas, pois as tinham quebrado tantas vezes, e não ele e os seus, que sempre as guardaram, Foi festejada a razão do bárbaro, e agradecido o termo com que qualificava sua fidelidade; e logo o principal que tinha o primeiro lugar se chegou ao altar onde estava o padre, e lançando o arco e flechas a seus pés, posto de joelhos, e com as mãos levantadas, e metidas entre as mãos do padre, jurou desta maneira: Eu, fulano, principal de tal nação, em meu nome, e de todos meus súditos e descendentes, prometo a Deus e a el-rei de Portugal a fé de nosso Senhor, JESUS Cristo, e de ser - como já sou de hoje em diante - vassalo de Sua Majestade, e de ter perpétua paz com os portugueses, sendo amigo de todos seus amigos, e inimigo de todos seus inimigos; em obrigo de assim o guardar e cumprir inteiramente para sempre. -Dito isto, beijou a mão do padre, de quem recebeu a bênção, e foram continuando os demais principais por sua ordem na mesma forma. Acabado o juramento, vieram todos pela mesma ordem abraçar aos padres, depois aos portugueses, e ultimamente aos principais das nações cristãs, com os quais também tinham até então a mesma guerra que com os portugueses; e era coisa muito para dar graças a Deus ver os extremos de alegria e verdadeira amizade com que davam e recebiam estes abraços, e as coisas que a seu modo diziam entre eles. Por fim, postos todos de joelhos, disseram os padres o Te Deum laudamus, e saindo da igreja para uma praça larga, tomaram os principais cristãos os seus arcos e flechas, que tinham deixado fora, e, para demonstração pública do que dentro da igreja se tinha feito, os portugueses tiravam as balas dos arcabuzes, e as lançavam no rio, e disparavam sem bala; e logo uns e outros principais quebravam as flechas e tiravam com os pedaços ao mesmo rio,cumprindo-se aqui a letra: Arcum conteres, et confringet arma. - Tudo isto se fazia ao som de trombetas, buzinas, tambores, e outros instrumentos, acompanhado de um grito contínuo de infinitas vozes, com que toda aquela multidão de gentes declarava sua alegria, entendendo-se este geral conceito em todas, posto que eram de mui diferentes línguas. Desta praça foram juntos todos os principais com os portugueses, que assistiram ao ato, à casa dos padres, e ali se fez termo jurídico e autêntico de tudo o que na igreja se tinha prometido e jurado, que assinaram os mesmos principais, estimando muito, como se lhes declarou, que os seus nomes houvessem de chegar à presença de V. Majestade, em cujo nome se lhes passaram logo cartas, para em qualquer parte e tempo serem conhecidos por vassalos. Na tarde do mesmo dia deu o padre seu presente a cada um dos principais, como eles o tinham trazido, conforme o costume destas terras, que a nós é sempre mais custoso que a eles. Os atos desta solenidade que se fizeram foram três, por não ser possível ajuntarem-se todos no mesmo dia; e os dias que ali se detiveram os padres, que foram catorze, se passaram todos, de dia, em receber e ouvir os hóspedes, e de noite em contínuos bailes, assim das nossas nações como das suas, que, como diferentes nas vozes, nos modos, nos instrumentos e harmonia, tinham muito que ver e que ouvir. Rematou-se este triunfo da fé com se arvorar no mesmo lugar o estandarte dela, uma formosíssima cruz, na qual não quiseram os padres que tocasse índio algum de menor qualidade, e assim foram cinqüenta e três principais os que a tomaram aos ombros, e a levantaram com grande festa e alegria, assim dos cristãos como dos gentios, e de todos foi adorada. As nações de diferentes línguas, que aqui se introduziram, foram os mamaianás, os aroãs e os anaiás, debaixo dos quais se compreendem mapuás, paucacás, guajarás, pixipixis, e outros. O número de almas não se pode dizer com certeza; os que menos o sabem dizem que serão quarenta mil, entre os quais também entrou um principal dos tricujus, que é província à parte na terra firme do Rio das Amazonas, defronte da ilha dos nheengaíbas; e é fama que os excedem muito em número, e que uns e outros fazem mais de cem mil almas. Deixou o padre assentado com estes índios que no inverno se saíssem dos matos, e fizessem suas casas sobre os rios, para que no verão seguinte os pudesse ir ver todos as suas terras, e deixar alguns padres entre eles, que os comecem a doutrinar; e com estas esperanças se despediu, deixando-os todos contentes e saudosos. Pareceu aos padres trazerem consigo, até tomarem, a imagem do Santo Cristo, a qual, por comum aplauso e devoção do clero, das religiões e da República, foi recebida na cidade do Pará em soleníssimo triunfo, dando todos a glória de tamanha empresa a este Senhor, e confessando que só era e podia ser sua.

Este é, senhor, por maior-e sem casos particulares e de muita edificação, por brevidade-o fruto que colheram este ano na inculta seara do Maranhão os missionários de V Majestade, e estes os aumentos da fé e da Igreja, que conseguiram com seus trabalhos, não sendo de menor consideração e conseqüência as utilidades temporais e políticas que por este meio acresceram à coroa e Estados de V Majestade, porque, os que consideram a felicidade desta empresa, não só com os olhos no céu, senão também na terra, têm por certo que neste dia se acabou de conquistar o Estado do Maranhão, porque com os nheengaíbas por inimigos, seria o Pará de qualquer nação estrangeira que se confederasse com eles; e com os nheengaíbas por vassalos e por amigos, fica o Pará seguro, e impenetrável a todo o poder estranho. O mesmo entenderam a respeito dos índios tobajarás, da Serra de Ibiapaba, todos os capitães mais antigos e experimentados desta conquista, os quais o ano passado, sendo chamados a conselho pelo governador, sobre as prevenções que se deviam fazer para a guerra que se temia dos holandeses, responderam todos uniformemente que não havia outra prevenção mais que procurar por amigos os índios tobajarás da serra, porque quem os tivesse da sua parte, seria senhor do Maranhão. Estes índios de Ibiapaba, como já dei conta a V. Majestade, por espaço de vinte e quatro anos, em que esteve tomado Pernambuco, foram não só aliados, mas vassalos dos holandeses, e ainda cúmplices das suas heresias; mas depois que foram em missão a esta gente dois religiosos da Companhia, que residem sempre com eles, sobre estarem convertidos à fé os que eram gentios, e reconciliados coma Igreja os que eram cristãos, assim eles, como todos os outros índios daquela costa, estão reduzidos à obediência de V. Majestade, e ao comércio e amizade dos portugueses, e ainda a viver nas mesmas terras do Maranhão, aonde muitos se têm passado. Assim que, Senhor, o Estado do Maranhão até agora estava sitiado de dois poderosos inimigos, que o tinham cercado e fechado entre os braços de um e outro lado, porque, pela parte do Ceará o tinham cercado os tobajarás da serra, e pela parte do Cabo do Norte - que são os dois extremos do Estado - os nheengaíbas, E como estas nações ambas tinham comunicação com os holandeses, e viviam de seus comércios, já se vê os danos que desta união se podiam temer, que, ajuízo de todos os práticos do Estado, não era menos que a total ruína Mas de todo este perigo e temor foi Deus servido livrar aos vassalos de V. Majestade, por meio de dois missionários da Companhia, e com despesa de duas folhas de papel, que foram as que de uma e outra parte abriram caminho à paz e à obediência, com que V Majestade tem hoje estas formidáveis nações, não só conquistadas e avassaladas para si, senão inimigas declaradas e juradas dos holandeses, conseguindo Deus por tão poucos homens desarmados, em tão poucos dias, o que tantos governadores em mais de vinte anos, com soldados, com fortalezas, com presídios e com grandes despesas, sempre deixaram em pior estado, para que acabe de entender Portugal, e se persuadam os reais ministros de V. Majestade, que os primeiros e maiores instrumentos da conservação e aumento desta Monarquia são os ministros da pregação e propagação da fé, para que Deus a instituiu e levantou no mundo.

O que agora representamos, senhor, prostrados todos os religiosos destas missões aos reais pés de V. Majestade, é que seja V. Majestade servido de mandar acudir-nos, e acudir estas almas com o socorro pronto que é necessário, para que se conserve o que se tem adquirido. Toda a conservação destes índios, e a perseverança na fé e lealdade que têm prometido, consiste em assistirem com eles alguns religiosos da Companhia, que os vão sustentando e confirmando nela, e desfazendo qualquer ocasião ou motivo que se ofereça em contrário; e, sobretudo, que sejam sua rodela, como eles dizem, contra o mau trato dos portugueses, de que só se pode desconfiar e de que só dão por seguros debaixo do amparo e patrocínio dos padres. Podem vir padres do Brasil, podem vir padres de nações estrangeiras, mas os mais prontos e efetivos são os que podem vir de Portugal em menos de quarenta dias de viagem. A matéria é tão importante, e de tão perigoso regresso, que não sofre dilação; e, assim, esperamos sem falta, até a monção de março, o socorro que pedimos. Sirva-se V. Majestade, senhor, de mandar vir para esta missão um numeroso socorro destes soldados de Cristo e de V. Majestade, e por cada um prometemos a V. Majestade muitos milhares de vassalos, não só que nós iremos buscar aos matos, senão que eles mesmos venham a buscar-nos, de que cada dia temos novos embaixadores. Tanto tem importado à fé a fama das novas leis de V. Majestade, e dos missionários que a pregam e as defendem. A muito alta e muito poderosa pessoa de V. Majestade guarde Deus, como a Cristandade, e os vassalos de V. Majestade havemos mister. Maranhão, 11 de fevereiro de 1660.


P. Antônio Vieira


sexta-feira, 23 de agosto de 2013

A árvore de Dalcídio achada por acaso no arboreto do Gallo


pé de Folha-Miúda plantada no Arboreto do Museu do Marajó, em Cachoeira do Arari, ilha do Marajó, Pará.


Quinta-feira, 22 de agosto, no cair da tarde Marli Braga Dias me fez uma bela surpresa. Pela internet ela me mandou notícia do achado da árvore procurada e duas fotografias digitais como prova, que vão aqui reproduzidas. O acontecimento merece comentário detalhado. Como os espanhóis, eu não acredito em bruxos ou pajés, mas eles existem... 

Já disseram que a obra de Dalcídio Jurandir, em seu contexto sócio-biográfico, é um milagre. Ruínas idílicas que resgatam a Criaturada grande descendente do famigerado Diretório dos Índios e da escravidão... E que dizer, por exemplo, da invenção do Museu do Marajó e da odisseia do padre Giovanni Gallo na alquimia de cacos de índio que se transformam na ressurreição duma cultura pré-colonial extinta? 

Aliás, tudo em Marajó parece rebento do prodigioso casamento da necessidade com o acaso: inclusive, em fins do século XIX, a inesperada viagem do naturalista Alfred Wallace à ilha Mexiana e Soure, donde saíram sizudas observações a respeito da teoria da evolução das espécies em troca de cartas com o célebre Darwin.

Muitos acreditam em predestinação e que, portanto, não existem coincidências. Eu, porém, como agnóstico pé de chinelo não acho nem deixo de achar coisa nenhuma... O certo é que, se meu pai fosse vivo, hoje ele completaria 109 anos de idade e o achado da árvore Folha-Miúda que eu procurava acaba sendo, por acaso, um presentão para mim numa data que jamais esquecerei. E o dia 22 de agosto também é Dia do Folclore...

Cachoeira do Arari é um incontornável lugar de memória a quem se mete a atravessar a baía do Marajó para o Norte. Meu pai e seus irmãos Otaviano, Flaviano e Dalcídio nasceram em Ponta de Pedras, mas para desagrado de seus conterrâneos, o romancista de "Chove nos campos de Cachoeira" e seus dois irmãos referidos tomaram a cidade vizinha como terra adotiva e meu velho pai, Rodolpho; não esquecia Cachoeira dentre suas melhores lembranças de juventude. 

O caso de amor da família pontapedrense pela antiga Vila de Cachoeira começou com a morte de minha avó Antônia, índia catecúmena da aldeia da Mangabeira; e o segundo casamento de meu avô Alfredo Nascimento Pereira com dona Margarida Ramos, mulher negra e batalhadora (paradigma de dona Amélia no romance), cujos parentes ainda hoje se repartem em Ponta de Pedras e Cachoeira, como o Lino Ramos, por exemplo. 

Como sabem, o romanceiro dalcidiano é uma longa narrativa do alter-ego Alfredo, a partir do chalé de Cachoeira até as ruínas da época da borracha, em Gurupá, onde o ciclo se encerra com o romance "Ribanceira". 

No espaço virtual personagens de carne e osso se transformam em povoadores do romance: há uma tensão entre a teoria literária e a leitura pé no chão dos contemporâneos do escritor em Cachoeira e Ponta de Pedras. No chão de Dalcídio a Criaturada grande da vida real se confunde com a invenção: tudo é mentira para revelar a mais profunda verdade.

No meu caso particular de velho pontapedrense de quatro costados, há muito tempo, resolvi o complicado problema de vizinhança entre municípios "elevados", por decreto, de antigas aldeias indígenas rivais. Na geografia das minhas memórias Marajó não tem fronteiras e além de ser a minha pátria, também é para mim o melhor lugar do mundo. Claro que estou falando de um Marajó encantado, semelhante àquele que Dalcídio levou na bagagem para o Rio de Janeiro e transformou em literatura.  Ai de mim! O que faço é um arremedo bisonho, o resto é sonho duma história do futuro.


uma carta do escritor enquanto jovem

Do exílio carioca de Dalcídio veio-me a primeira notícia da árvore Folha-Miúda.  A pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa, Soraia Reolan Pereira, esposa de meu primo Ruy; achou no acervo do escritor marajoara ali depositado, uma nota do autor no tempo da juventude, dizendo: mais ou menos (cito de memória) Quando eu morrer me enterrem debaixo da árvore Folha-Miúda em frente ao chalé na beira do rio... Aquela árvore fora companheira de sua infância, o castelo se seus sonhos onde estrelas e pássaros se entrelaçavam nas ramagens subindo ao céu. Quando Dalcídio morreu, em 1979, no Rio de Janeiro ninguém sabia da existência daquelas anotações, licença poética da mocidade. Ele foi sepultado na cripta da Academia Brasileira de Letras no cemitério São João Batista. Tempos depois, Bernardino Ribeiro foi eleito prefeito de Ponta de Pedras e quis de boa intenção prestar homenagem ao filho da terra construindo mausoléu para receber os restos mortais do escritor. Felizmente a família reunida no Rio de Janeiro agradeceu a homenagem, mas não aceitou a proposta de remoção dos restos mortais de Dalcídio Jurandir para Ponta de Pedras, inclusive por ter em mente apego do autor de "Chove" por Cachoeira.

Então, quando li aquelas anotações que Soraia me enviou foi como uma bomba e logo saí a procura da tal árvore da memória de infância do nosso escritor. Eu pensava conhecer muitas coisas do Marajó, mas nunca tinha visto um pé de Folha-Miúda. Lembro-me vagamente, certa vez em setembro de 2003, estar descendo pelo rio Arari desde Santa Cruz do Arari e ao avistar um árvore frondosa de intenso verde sob os raios do sol na beira do rio em meio à paisagem seca e amarelada do verão, perguntei que árvore era aquela e me disseram, acredito ter escutado, "folha miúda"... Não me pareceu haver nada de especial além do fato de se conservar alta e verdejante enquanto a mata ciliar definhava no estio.

Até aí eu não sabia daquela precoce manifestação de vontade de Dalcídio. Primeiro acreditei que se tratava de qualquer árvore de folhas folhas miúdas. Eu também tive minha folha miúda de infância, um parrudo pé de tamarindo ao lado de casa; onde sob suas sombras e no alto dos galhos inventei muitas bravatas. Então pedi ajuda para achar a tal Folha-Miúda e, se possível, identificar-lhe o nome científico. Em João Viana, romance "Fazenda Aparecida", aprendi que não se tratava de qualquer árvore de folhas pequenas, mas exatamente uma espécie de nome popular Folha-Miúda. É só uma passagem, creio agora pela página 40, que relata a subida das geleiras e um tripulante amarra o cabo da embarcação no tronco de uma Folha-Miúda... Pedi ajuda à Ima Vieira, botânica do Museu Goeldi, mas ela não tinha informação sobre a tal árvore pelo nome vulgar. Pediu para coletar flores, frutos e folhas a fim de identificar a planta. Mas, poucos puderam ajudar até agora. 

O prestimoso primo Lino Ramos foi lá no bairro de Petrópolis, onde se achavam os restos mortais do Chalé à procura da velha Folha-Miúda e já não a encontrou mais. Ao que parece a erosão do rio desbarrancou a margem e a correnteza engoliu a árvore de infância do escritor, tal qual a "cachoeira" (salto d'água, no fim do verão), formada pela laje que o assoreamento sepultou. Havia apenas a tronqueira no fundo das águas, daquele monumento vegetal e imaginário de outrora.

resiliência
Resiliência é a saliência da vida enquanto dura. A jura inocente da gente pela fé da mucura (jura pela "fé de Deus" é ou deveria ser coisa muito séria)... Mucura esta que é o Animal Monstrosum da ignorância biogeográfica de Vicente Pinzón, capturado com filhotes e os 36 primeiros "negros da terra" (índios escravos) da América do Sul, na memória da chamada ilha Marinatambalo [Marajó]; é festa de improviso pelas barracas de palafita na beira do rio e dança popular chamada gambá. Por acaso, tudo isto lembrado hoje, aqui e agora, no Dia do Folclore. 

Assim é se lhe parece. Paresque, a Folha-Miúda às margens plácidas do rio das araras e da gente Arari, que não existem mais; é metáfora que se renova no Arboreto do museu à ilharga da campa d'O homem que implodiu, seus ossos enterrados no chão de Dalcídio dão frutos novos. Por acaso, o chalé com a árvore da infância de Alfredo se perderam na voragem do rio do tempo. Todavia, hoje revivem na lembrança pela graça da matéria eletrônica, que reside na rede mundial de computadores e satélites artificiais de comunicação, vulgo internet; que faz uso do recurso natural planetário e cósmico que aí está desde a primeira noite do mundo. 

Mas, -- por acaso ou milagre -- no Marajó as pessoas, os bichos e as plantas da paisagem cultural extinta renascem na primeira manhã duma nova história. Não muito longe, no Xingu, os mortos visitam os vivos na festa do Kuarup mágico, revividos no tronco da árvore sagrada e o reflorestamento das matas devastadas. A lição dos povos originais serve também a seus descendentes amazônidas. Por que não? Por aí vem o tratamento e cura da leseira amazônica que deixou caboco desterrado de suas próprias raízes.

Não será chegada a hora de se declarar a Folha-Miúda como árvore símbolo da mata ciliar do Arari? Isto seria senha para ampla revitalização...

Momento de atacar a erosão do rio, refazer as "três casas" do romance-fluvial dalcidiano e perenizar o Lago, revitalizar a Cultura Marajoara, transformar em fundação o Museu do Marajó, como Giovanni Gallo deixou escrito no livro "Motivos Ornamentais da Cerâmica Marajoara". Tendo, se Deus quiser, a nova Universidade Federal do Marajó (UnM) implantada, a exemplo do Museu Nacional que foi incorporado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); o Museu do Marajó poderá ser campus da universidade marajoara multicampi em Cachoeira do Arari, a ser devidamente estruturado para receber repatriamento peças e coleções de cerâmica pré-colombiana. 

Se, de fato, todo mundo está de acordo em promover o IDH do povo marajoara, por que desqualificar a obra do Gallo e deixar entregue às calendas gregas a moção de Muaná de 08/10/2003 (no ano da morte do criador do Museu do Marajó) que pede (com base na área de proteção ambiental prevista na Constituição do Estado do Pará) a reserva da biosfera do Marajó, no programa O Homem e a Biofesta (Mab), da UNESCO? O búfalo não nos representa! Quem nos representa é o Homem marajoara, de mais de mil anos de idade.

Que nem a reconstrução ritual do esqueleto com caveira, no camoti sagrado enterrado no teso é esperança, no passado longínquo; de ressurreição no futuro da Cultura Marajoara morta com seus antigos cacicados. E assim simples cacos de índio encontrados a esmo pelos campos do saque e contrabando de sítios arqueológicos se transformam em novos tempos pela resistência e luta da brava gente descendente dos índios bravios, desertores e escravos fugidos, que existiram nos mocambos (quilombos) nos centros da ilha.


terça-feira, 13 de agosto de 2013

TERRA GURUPÁ: UMA HISTÓRIA DE LUTA DE NEGROS DA TERRA E DA GUINÉ


Gurupá, Cachoeira do Arari - comunidade
quilombola do Marajó velho de guerra.

NOTA de aditamento ao post para registro fúnebre.
 
LUTO!

Teodoro Lalor de Lima, ou simplesmente 'seu' Lalor, presidente da Associação de Descendentes de Quilombolas do Gurupá, município de Cachoeira do Arari, foi assassinado momentos depois de desembarcar em Belém e entrar em casa de parentes no bairro CABANAGEM (ironia da história), na segunda-feira, 19/08/20, vindo do Marajó a fim de participar de encontro nacional de Quilombolas, na sede da CNBB Norte... Seu matador, desconhecido e foragido após o crime, o esfaqueou com golpe mortal no lado esquerdo do peito. A polícia não informou até agora a motivação do crime nem localizou o criminoso. As aparências, contudo, indicam mais uma morte anunciada na longa crônica do latifúndio no Estado do Pará.

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Mas a luta continua! Precisamos conhecer mais e melhor a história da brava gente Marajoara. Saber, principalmente, que a Pax de Mapuá (27/08/1659) baseada na Lei de Abolição dos Cativeiros, de 1655, delegando a tutela dos índios à Companhia de Jesus, depois de 44 anos de guerra desde o Maranhão (1615) para expulsão dos estrangeiros; foi fraudada miseravelmente pelos colonos do Pará ávidos de escravos, que expulsaram os Padres com violência; e deu azo à criação da capitania hereditária de Joanes (1665-1757), mãe das sesmarias e do latifúndio dos chamados Contemplados do Marquês de Pombal, aquinhoados com as fazendas dos Jesuítas expulsos do Pará pela segunda vez (1758)... 
Os primeiros negros da terra (escravos indígenas) foram arrancados do Marajó por Pinzón, em 1500, antes do descobrimento do Brasil... Mas, a resistência marajoara retardou até 1860 o primeiro curral de gado [às ilhargas da Terra quilombola Gurupá, por acaso] no rio Arari diante do "perigo dos índios bravios, desertores e escravos fugidos que existiam pelos centros da ilha" (cf. "Notícia Histórica da Ilha Grande de Joanes, ou Marajó", Lisboa, 1783; de Alexandre Rodrigues Ferreira): ou seja MOCAMBOS ou quilombos!!!
JMVP / Belém-PA, 20/08/2003



CHOVE NOS CAMPOS DE CACHOEIRA: 
A NEGRITUDE ALÉM DA MELANINA

                          |>|>|> http://anpuh.org/anais/wp-content/uploads/mp/pdf/ANPUH.S25.1138.pdf

O link acima conduz o leitor à comunicação da pesquisadora Rosa Acevedo sobre quilombos na ilha do Marajó, com ênfase em Terra Gurupá, no município de Cachoeira do Arari. A história da região insular do delta-estuário do Amazonas -- melhor dizendo, Amazônia Marajoara -- constitui um capítulo à parte na conquista e ocupação do rio Babel ou rio das amazonas. 

Mocambos ou quilombos são, na geografia humana marajoara, a contraparte do latifúndio das sesmarias e fazendas dos Contemplados em geral, herdeiros históricos do sistema medieval de morgados da Ilha da Madeira e mais ilhas do Atlântico transplantado mais tarde ao mundo colonial português. 

Na Amazônia Marajoara, este território marginalizado e invisível, quase mágico com seus pajés e encantarias; onde a história oral se mantém viva e resistente ficou conhecido no falar popular dos campos com nome peculiar de "jebre" e seu habitante, chamado "jebrista", como sinônimo de ladrão de gado (cf. Giovanni Gallo, em "Marajó, a ditadura da água"). Todavia a longa história de conflito entre índios e brancos, há mais de trezentos e cinquenta anos; coloca em causa saber quem, de fato, é o ladrão: o despossuído jebrista ou o rico herdeiro das sesmarias da Capitania hereditária da Ilha Grande de Joanes (1665-1757)? 

A cadeia sucessória das sesmarias aponta à farsa e violação da lei de liberdade dos índios (1655), obtida pelo Padre Antônio Vieira junto ao rei Dom João IV em defesa dos direitos humanos dos povos indígenas originais da Amazônia. 

Sobre tal base legal foi fundada a pax de Mapuá (27 de Agosto de 1659). Sem a pacificação das Ilhas não se poderia ocupar sem resistência o rio Amazonas e seus tributários até os confins (construindo o território português além das fronteiras de Tordesilhas (1494-1750), com o respectivo uti possidetis real reconhecido no tratado de Madri, em 1750). 

Sem a paz com os chamados Nheengaíbas (povos nuaruaques ancestrais dos marajoaras na atualidade), invencíveis na guerra e aliados inicialmente aos estrangeiros) não se poderia contar jamais com esta brava gente na construção do território marajoara, como prova inegavelmente a fundação das aldeias históricas de Aricará e de Aracaru, no mesmo ano da paz de Mapuá (1659). 

Mas, desgraçadamente, a vilania, ingratidão e pouca inteligência dos colonos do Pará (vide o "Sermão aos Peixes" (1654), Padre Antônio Vieira) que viviam de explorar a bravura dos Tupinambás, na vil ambição em caçar e escravizar "negros da terra", inicialmente na Costa-Fronteira do Pará (margem esquerda da baía do Marajó) e finalmente o distante Rio Negro; levou à expulsão dos Jesuítas (em 1661, peça primeira vez; e em 1759, a segunda vez). Sem Padres que os protegessem, o primeiro roubo da terra indígena dos Nheengaíbas aconteceu em 1665 com a doação pelo rei mentecapto Dom Afonso VI ao seu secretário de estado, Antônio de Sousa de Macedo, o patriarca dos barões de Joanes. Que nunca botaram o pé no Pará nem meteram um prego na capitania do Marajó... 

E, no entanto, não por acaso, a "leseira amazônica" (apud Marcio de Sousa) na súbita "elevação" da aldeia Aricará (1758) no rescaldo da expulsão dos Jesuítas do Pará, transformada em vila de Melgaço [o pior IDHM do Brasil dentre 5556 municípios, em 2013, faltando apenas dois anos para o fim do prazo das Metas do Milênio da ONU]. Antes que digam que sou coroinha, devo esclarecer logo que a meu juízo os índios, prensados entre o mar (Portugal) e o rochedo (escravismo congênito dos "brancos" do Pará); foram obrigados pela lei da parcimônia a escolher o mal menor. Ou seja, perder a memória, mas não perder a vida sob proteção das aldeias das missões.

 A leseira amazônica

Com a pax de Mapuá foi dado termo a 44 anos de guerra para expulsão dos estrangeiros desde a tomada do Maranhão (1615), há 400 anos. Porém, a universidade ocupada pela elite paraense não se interessa em pesquisar a pacidificação da até então "Ilha dos Nheengaíbas" ou dos "ferozes" Aruans... Para se apegar com unhas e dentes à cláusula "pétrea" das sesmarias dos barões de Joanes e Contemplados dos Marquês de Pombal (cf. José Varella Pereira, "Novíssima Viagem Filosófica" em REVISTA IBERIANA: Secult, Belém, 1999).

A história particular de 'Terra Gurupá' configura substrato socioambiental do romanceiro de Dalcidio Jurandir (ver www.dalcidiojurandir.com.br) e sua criaturada tão bem representada no Museu do Marajó (ver www.museudomarajo.com.br ). A famigerada "data magna" do Pará é a ponta do iceberg fundiário dependente de trabalho escravo. Assim, seu augusto feriado deveria dar oportunidade ao Povo Paraense para estudar a história propriamente dita da Adesão do Pará à Independência do Brasil.

Claro está que o 15 de agosto foi um golpe contra o movimento patriótico de 14 de Abril em contradição à proclamação de 28 de Maio em Muaná, tendo os heróis paraenses encarcerados na fortaleza de São Julião da Barra (Portugal) ou mortos com surto de varíola a bordo da charrua "Andorinha do Tejo", a caminho de prisão perpétua após escaparem da pena capital em Belém a rogos do bispo Dom Romualdo Coelho. 

Que data infame foi aquela do cambalacho neocolonial no palácio do governo, cujo trágico desfecho foi a violenta repressão ao povo paraense pela tropa mercenária do comando inglês às ordens do tenente John Pascoe Greenfell, assassino de 252 nacionalistas na chamada Tragédia do brigue Palhaço em rota batida para eclosão da Cabanagem. 

Ora, a Cabanagem é filha da revolução abolicionista e republicana desde o Haiti. O contágio libertário chegou ao Pará ao fim da ocupação de Caiena (1809-1817) com o regresso das tropas paraenses recrutadas entre mestiços de índios e negros libertos. Criaturada afeita às lides da pesca ao largo do Cabo Norte e do Salgado, assim que às grandes jornadas de viagem ao Alto Amazonas e ao Rio Negro. 

A repressão imperial aos cabanos recrutou a escória das cadeias do Nordeste a soldo contra entrega de rosário de orelhas secas cortadas aos rebeldes mortos, na soma aproximada de 40 mil mortos numa população de 100 almas. O que, sem nenhuma dúvida, configura um genocídio amazônico cujo fim não parece chegar até os nossos dias.


Os primeiros negros da terra na América do Sul

Pouca gente sabe, a Negritude aportou na ilha do Marajó antes do "descobrimento" do Brasil. Portando, avant la lettre do invento rebelde de estudantes africanos e afrodescendentes, em Paris, insultados pelo racismo na pátria imortal da Revolução de 1789.

A notícia do sequestro de homens livres da foz do maior rio do mundo para servir de escravos aos Conquistadores manteve-se em segredo durante séculos: que nem a lenda da Primeira Noite do mundo (metáfora do triunfo da preguiça sobre o império do trabalho escravo). Até que estudos históricos sobre antigas navegações do Atlântico favorecidas pela corrente equatorial que atravessa o Oceano entre a contracosta da África Ocidental e a costa norte-nordestina do Brasil, meteram em evidência o relato lendário da viagem do rei mandinga Abubakari II, imperador do Mali, e seus dois mil canoeiros desaparecidos nos rumos das Guianas e Antilhas. 

Por acaso, na mitologia marajoara, a Pororoca é causada ao tempo das águas vivas por três pretinhos encantados que aparecem sobre as vagas que vem do mar pelo canal da Caviana subindo o rio grande com estrondo inigualável. O tal relato mandinga fala pela primeira vez de um grande rio de água doce na margem oposta do Oceano (supondo-se o Amazonas), em cuja foz o mar revolto engoliu a primeira expedição com 200 caiaques, exceto dois que a duras penas seus remadores retornaram ao rio Gâmbia, no golfo da Guiné, donde teriam partido para aventura de além mar.

Este relato misturando lenda e história oral coletada no Cairo (Egito), quando da passagem de seu sucessor Kankou Moussa em peregrinação a Meca. Abubakari II teria abdicado no ano de 1311 e iniciado sua grande viagem marítima à frente de 2000 caiaques. Na mesma época, segundo o esquema mais aceito da arqueologia marajoara, os belicosos Aruãs vindos das ilhas do Caribe através das Guianas, começavam a invadir as ilhas Caviana e Mexiana para ocupar "Marinatambalo" (a ilha grande do Marajó) empurrando para a Costa-Fronteira do Pará velhas etnias que até então se achavam pelos centros da ilha, entre o rio Anajás e o Alto Arari tendo os famosos tesos (sítios arqueológicos) nas cercanias dos lagos Arari até próximo ao Guajará como centro de uma verdadeira civilização neotropical. 

Além da suposta travessia oceânica do imperador mandinga e sua passagem pela foz do Amazonas, é coisa certa a viagem do navegador espanhol Vicente Pinzón (piloto e sócio cristão-velho do cristão-novo Cristóvão Colombo), em 1500, mantida em sigilo durante tanto tempo e não deixa dúvidas sobre a influência da dita corrente equatorial marítima nas antigas navegações do Mar-Oceano. Nem quanto ao fato dos primeiros 36 "negros da terra" (escravos indígenas) da América do Sul ter sido arrancados, sob assalto a mão armada, da ilha "Marinatambalo" (Marajó), o nome da ilha conforme Pinzón deixou escrito, dizendo ele ter ouvido da boca dos próprios índios insulanos.

Mercadores holandeses foram os primeiros europeus a se instalar com suas famílias e escravos africanos entre as Guianas e o Baixo Amazonas. Fazendo comércio de escambo com os índios eles levantaram fortins e iniciaram plantação de cana de açúcar. Durante a guerra de expulsão (1623-1647) não há informação, mas não se pode deixar de aventar a hipótese de alguns escravos ter se refugiado pelas matas acamaradados com índios conhecidos desde a costa do Amapá. É certo, todavia, que os primeiros mocambos (quilombos) surgiram através da fronteira do Oiapoque até as ilhas do Marajó. Por exemplo, o nome da cidade de Afuá é de origem africana, em geral nome de mulher.

O romancista Dalcidio Jurandir (Ponta de Pedras-PA, 10/01/1909 - Rio de Janeiro-RJ, 16/06/1079), começa em Gurupá-PA a esboçar o romance seminal "Chove nos campos de Cachoeira" e vai refazê-lo completamente na vila de pescadores de Salvaterra (então distrito do município de Soure), em 1939 onde também escreveu o romance "Marinatambalo" publicado com título de "Marajó". 

O Chove ganha o prêmio Dom Casmurro e "Marajó" foi recebido pela crítica como primeiro romance sociológico brasileiro. Segundo Vicente Salles, o escritor marajoara chamado "índio sutil" por Jorge Amado, toma para elaboração deste último o romance tradicional ibérico Dona Silvana e o reinventa abaixo do equador: um tema de incesto, onde o pai e senhor atormentando pelo desejo escraviza sua própria filha

A inventiva do romance marajoara transforma o isolamento da ilha num latifúndio único, onde a corte do reino é a fazenda "Marinatambalo" (nome indígena inventado ou mal compreendido da língua do índio escravizado por Pinzón). Na ficção dalcidiana, o coronel Coutinho é reizulo contemplado das sesmarias dos barões de Joanes (1665-1757), ele deseja ardentemente sua filha bastarda, mestiça tentadora; Orminda. Ela foge ao incesto, mas se entrega a outros homens levando o pai-coronel à beira do desespero. Enquanto rola o drama do fazendeiro com sua filha Orminda, Missunga o filho legítimo vive amasiado com a caboca Alaide no rio Paricatuba. O herdeiro de Marinatambalo idealiza um simulacro de "reforma agrária", onde faz assentamento de cabocos ribeirinhos como se fosse um divertimento de rapaz rico... 

Começa o romance iberiano com a voz em quibundo Missunga (senhorzinho, senhorito; Nhorito no falar marajoara).  "Missunga, ó Missunga...". É um longo chamado de uma criada invisível, como se fosse a mãe África ou talvez uma ama de leite angolana, adentrando à trilha escura da floresta amazônica em busca de sua cria. A deflorestação da mata virgem equivaleria a uma relação incestuosa entre o homem filho da animalidade e sua mãe natureza? Sim, com certeza. A devastação resta sendo um desequilíbrio entre a natureza e a humanidade, um "pecado" em suma; que leva às ruínas idílicas ou o paraíso perdido.

A verdadeira história do Marajó resta a ser escrita e melhor ainda, compreendida. Tudo que se tem são periclitantes historiografias segundo a visão dos colonizadores e uma pletora de lendas maravilhosas ao gosto dos colonizados conforme suas utopias. Todavia, o romance dalcidiano é aquela voz que vem do interior e mistura muitos sons e histórias diferentes, vem de casas de Mina com a antropologia de Nunes Pereira nas entrelinhas; resgata o drama do índio catecúmeno promovido a civilizado no Diretório dos Índios (1757-1798) na figura desajustada de Eutanazio; testemunha, com infinita paciência, a decadência da civilização europeia às margens da baía do Guajará no naufrágio da belle époque da Borracha. Aí está: a geografia escondendo as consequências. E onde a história não consegue avançar, a imaginação literária reinventa rios, rumos, estradas e mares...

Pela data e circunstâncias do local da "Marinatambalo" pinzoniana, inclusive tendo registro na cartografia histórica amazônica de origem hispânica da época, uma certa "punta de los esclaus" [ponta dos escravo] faz suspeitar que o acidente geográfico em questão tem algo a ver com a captura daqueles primeiros 36 "negros da terra". A ser verdade, então, se pode dizer que o fato histórico indocumentado ocorreu, provavelmente, na Contracosta da ilha do Marajó, na aldeia dos Aruãs, onde hoje talvez se ache o município de Chaves. Trata-se de uma arqueologia das ideias ou talvez psicanálise da história...

Viajar é preciso nas águas profundas da Viagem Philosophica e nos prístinos caminhos da Viagem a Portugal a fim de descobrir o antigo país amazônico que se chama Pará e seu porto Caribe.

Na revista iberiana, este caboco que vos fala escreveu o ensaio "Novíssima Viagem Filosófica" seguindo a reboque do sábio de Coimbra e a trilha de Saramago, em 1999,  Por acaso, um relato anônimo sob título de "Notícia da Ilha Grande de Joanes", datado de 1754, encontrado na Real Biblioteca do Porto (Portugal) [apud Nelson Papavero] abre pistas importantes sobre a biogeografia do arquipélago do Marajó e a memória mais antiga da Criaturada grande de Dalcídio Jurandir, a partir da ocupação do rio Arari, em 1680, com a construção do primeiro curral de gado em confronto com os índios bravios, desertores e escravos fugidos que existiam nos centros da ilha...  Numa palavra, Quilombos! (para adotar o termo oficial na Constituição-Cidadã, de 1988, refúgio que a gente paraense chama mocambos).

Já em 11/01/1660 o Padre Antônio Vieira, preparando-se a regressar definitivamente a Portugal, prestando contas das missões do Pará em carta à dona Luísa de Gusmão, viúva do rei Dom João IV e regente do reino na menoridade de Dom Afonso VI; informa sobre a rebeldia invencível dos "nheengaíbas" (confederação de diversas etnias nuaruaques nas ilhas do Marajó). Dentre as quais os mais temidos eram, precisamente, os Aruãs e Anajás: aqueles chamados "índios bravios" que mais retardaram a ocupação da ilha pelos portugueses até cerca de 1680... 

Depois de muitas peripécias dos portugueses do Pará e seus aliados Tupinambás, indo de ataques armados de surpresa a tentativas de paz, no dia 27 de agosto de 1659, logrou o dito "payaçu dos índios" estabelecer a paz com a então "ilha dos Nheengaíbas". Para isto Vieira contou com a prestimosa ajuda de dois "embaixadores" do convento de Santo Alexadre (índios cativos, certamente, falantes da "língua ruim" dos marajoaras) e do aliado inesperado, cacique Piié dos Mapuás, "o mais ladino de todos" dentre os sete caciques dos Aruãs, Anajás, Pixi-Pixi, Cambocas, Mamainás e Guianases [Guaianá], parente dos tais "embaixadores".  

Estes personagens, por suposto, haviam aprendido a falar a língua do inimigo tupi e dos brancos durante o cativeiro, podendo-se imaginar que pelo costume eles também soubessem das manhas com que os catequistas se aproximavam dos índios e as crueldades dos colonos. Se de fato, tais embaixadores não existiram em muito menos a tal "carta-patente" enviada aos bárbaros, seria preciso inventá-los... Pois é evidente, com apoio no índio Severino dos Santos, sargento-mor de Monforte (aldeia dos Iona, hoje vila de Joanes), que índios tomados como escravos pelos tupinambás na ilha do Marajó foram intérpretes e mensageiros entre as duas margens do Pará velho de guerra, laborando as pazes. Como foi o caso de um certo João Sapatu, da aldeia Iona, nas tratativas entre seus parentes e portugueses, para dar fim à guerra dos Aruãs.

Não carece dizer, que estas e outras mais nações habitantes do Marajó foram grandes fornecedoras de "negros da terra", caçados pelos bravos Tupinambás aliados aos portugueses. Estimavam-se em, aproximadamente, 50 mil índios a população das ilhas do Marajó, mais os seus parentes Tucujus, da costa de Macapá. De modo que não era de desdenhar o esforço dos jesuítas em fazer as pazes, quando os tupinambás -- repentinamente desanimados com o sucesso da entrada de Pedro Teixeira com seus 1200 índios de arco e remo, em viagem de Belém a Quito (Equador), ida e volta, em 1637/39; pareciam ostensivamente esgotados pelas correrias a serviço das "tropas de resgate" (eufemismo para caça de escravos) e canoas de "drogas do sertão", além de epidemias de sarampo, varíola e gripe.

Em 1783, o naturalista da Universidade de Coimbra, Alexandre Rodrigues Ferreira começa no Marajó sua monumental "Viagem Filosófica" da qual publicou como separata a "Notícia Histórica da Ilha Grande de Joanes, ou Marajó". A incrível semelhança do texto com o relato anônimo de 1754, supracitado; sabendo-se que o inspetor da Ilha, capitão Florentino da Silveira Frade, foi guia da viagem do naturalista; aponta fortemente em sua direção como sendo o autor anônimo. Diz Alexandre Ferreira, que o capitão descobriu o teso Pacoval no dia 20 de novembro de 1756. E que o rio Anajás era a "menino dos olhos" do dito inspetor. Sabe-se ademais que em torno da demarcação do Tratado de Limites de Madri, de 1750, estalou o conflito entre o governo português e a Companhia de Jesus levando a expulsão desta e desapropriação de seus bens. Florentino Frade foi comissionado a fazer o inventário das fazendas dos jesuítas na ilha do Marajó. Eis um bom motivo para elaborar relatório confidencial. Cujos trechos de interesse geral para a geografia, provavelmente, foram copilados com autoria anônima. Neste, fala-se do uso de azeite de tucumã como sucedâneo do azeite de dendê. Acresce que o tucumã era "comida da pobreza". Daí virá talvez a canhapira elogiada no romanceiro de Dalcídio Jurandir e já se sabe quem usava azeite de dendê na comida.

Gurupá do Arari se torna símbolo da resistência marajoara

A superintendência do INCRA no Pará começou a regularizar territórios quilombolas a partir do Decreto 4.887/2003 e a Secretaria do Patrimônio da União (SPU), pelo mesmo ano de 2003, com a eleição do primeiro operário na Presidência da República Federativa do Brasil dando uma guinada de cento e oitenta graus, deixava de ser um simples órgão de arrecadação imobiliária para passar atuar na regularização fundiária de terras de marinha existentes desde a fundação e independência do Império do Brasil... já o IBAMA, sucedido pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), havia criado a Floresta Nacional de Caxiuanã (Flona Caxiuanã) em 28/11/1961, através do Decreto nº 239/61 ainda sob a filosofia preservacionista na qual o Homem é exilado do jardim do Éden pelo "pecado original", condenado a sobreviver comendo o pão com o suor do próprio rosto, quando não com desgosto amassado pelo Diabo.  


Aí a Estação Científica Ferreira Penna, vinculada ao Museu Paraense Emilio Goeldi; possui base edificada em 33.000 hectares da Floresta Nacional de Caxiuanã, no município de Melgaço, a 350 km a oeste de Belém. Esta estação doi inaugurada em 1993, após a Rio-92, com a finalidade de apoiar programas de pesquisa de curto, médio e longo prazos, do Museu Goeldi e da comunidade científica nacional e internacional.


Até fins de 2012 tramitavam no órgão 29 processos de regularização para emissão do documento regulatório Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID). Dentre as comunidades identificadas àquela altura figuram Gurupá, em Cachoeira do Arari; Narcisa, em Capitão Poço; e Bacabal, em Salvaterra. 

Treze anos depois do início do processo do INCRA em meio a luta permanente inclusive em parceria com a Secretaria do Patrimônio da União (SPU), com obtenção de Termo de Autorização de Uso (TAU); verificou-se momento histórico em audiência pública em Cachoeira do Arari promovida pelo Ministério Público Federal para tratar dos impactos de plantio mecanizado de arroz, com a comunidade de Gurupá recebendo oficialmente do INCRA o esperado documento de RTID. 

Todavia, nem mesmo assim com a presença federal -- depois de séculos de ausência e abandono --, os remanescentes de mocambo (quilombo) marajoaras em Gurupá cessram de ser discriminados e ameaçados por antigos latifundiários aos quais vieram se somar novos para plantio de arroz mecanizado e construção de porto arrozeiro. Como se recorda por notícia da imprensa, produtores do agronegócio em Roraima, onde promoviam invasão da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol, foram atraídos pela Federação da Agricultura do Estado do Pará (FAEPA) para a ilha do Marajó sob alegação de vir contribuir no combate à pobreza mediante criação de empregos e geração de renda local. Além disto tudo a comunidade de Gurupá denuncia diversas vezes ocorrência arbitrária de prisões de membros da comunidade por coletar açaí em seu próprio território, contestado por fazendeiro antes considerado como proprietário daquelas antigas terras.


Em 1961 estive em Gurupá como por acaso. Na verdade a viagem se destinava à comunidade de Crairu, igarapé da margem direita do rio Arari, no município de Ponta de Pedras. Ainda tenho lembrança de uma aldeia africana como a gente vê alguma vez em filme. Muitas crianças e jovens acompanhavam com atenção a conversa dos mais velhos e particularmente a presença da matriarca se destaca entre todos. Semelhante a Gurupá só me recordo de Tartarugueiro, na ilha Sant'Ana, no lado de Ponta de Pedras, onde estive diversas vezes.

A presença afrodescendente no rio Arari começou com os frades das Mercês, em 1689, com doação da sesmaria da ilha de Santa'Ana onde foi constuído o primeiro engenho de açúcar. Como se sabe, os índios catequizados pelos padres jesuítas não sabiam trabalhar nos engenhos, pelo que onde havia canavial e alambique a presença do escravo africano, dito "negro da Guiné" era infalível. Assim como o "negro da terra" (escravo indígena) era indispensável para o trabalho das canoas, caça e pesca, pastoreio de gado nas fazendas das missões. O Pará foi um grande cativeiro onde colonos e missionários disputavam mão de obra sem a qual as semarias não valeriam nada.