sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Uma hipótese provável para explicação do nome "Marajó".



A popular Paxiuba (nome científico Socratea exorrhiza), com a qual índios de etnias Aruak nas ilhas do estuário amazônico -- chamados pejorativamente Nheengaíbas, falantes da "língua ruim" por oposição à boa língua Nheengatu -- fabricavam zarabatanas, antigamente, para atirar dardos envenenados e se defender de inimigos canibais na guerra ou na paz caçar na floresta. Estaria neste fato capital, ocorrido muitas vezes em pelejas mortais dentro do mato, a fama de "homem mau" (Marajó) atribuída aos bárbaros guerrilheiros ilhéus em luta contra o "bom selvagem" na conquista do rio da Amazonas?



Esta é uma curiosa palmeira amazônica que "anda" quando há necessidade de sobreviver na lei da selva. Ela está representada na coleção botânica do Parque Zoobotânico do Museu Paraense Emilio Goeldi, em Belém, porém lá mesmo existe uma outra espécie de palmeira que também "anda"... Esta última é a vedete do reino vegetal no parque (a Caiuê, chamada Dendê do Pará, nome ciêntífico Elaeis oleifera) a qual mereceu observação entusiástica do escritor Stefan Zweig, na obra "Brasil, País do Futuro", quando ele esteve em Belém e visitou o museu. 

No que concerne à elegante Paxiuba, segundo pesquisadores, com a adaptação de suas raízes ao ecossistema ela tem possibilidade de mudar-se de áreas alagadas ou sair da sombra de outras árvores emitindo novas raízes em direção mais favorável de iluminação e solo enquanto suas raízes mais velhas apodrecem e se dissolvem ao chão adubando o terreno à semelhança da espetacular Caiuê movida por energia solar (sic), pra frente e para o alto. Ambas espécies são atrativos do turismo científico amazônico na rota de viajantes e naturalistas dos séculos passados. Louvados sejam Darwin e, mais vivamente, Wallace que palmilhou a Amazônia e passou um par de tempo na ilha Mexiana e na contracosta do Marajó.

Da estipe da Paxiúba populações ribeirinhas extraiam largas tábuas, como mantas semelhantes à madeira compensada industrial de hoje, com que forravam assoalhos de juçara em barracas cobertas de palhas de ubussu sobre palafitas. Nesta rústica arquitetura os cabocos costumavam fazer a "mucura" (nome comum de um marsupial amazônico e festa ligeira improvisada na comunidade), contam os antigos que devido ao longo do tempo o assoalho de paxiuba ficava polido, sobretudo com o frequente arrasta pé dos dançantes. Pode ser.

Segundo fontes jesuíticas do século XVII citadas pelo historiador Serafim Leite, em "História da Companhia de Jesus no Brasil", eram feitas de paxiuba as zarabatanas que os Nheengaíbas usavam para lançar dardos envenenados sobres seus inimigos. O uso de técnicas de guerrilha com emboscada e zarabatana com dardos envenenados de curare é uma característica de povos originais do circum Caribe, incluindo Marajó, podendo ser encontrados até o Acre e o Pantanal mato-grossense.  

Estes usos e costumes belicosos fizeram estas diversas etnias aruaques temidas por seus inimigos num enorme espaço territorial, que vai do Rio Negro às Antilhas e volta sobre terra firme, através da ilha da Trinidad e Tobago, para ocupar as Guianas sempre em luta com o inimigo hereditário Kalina ou Galibi passando pelo Marajó ao Salgado, Alto Amazonas e Pantanal. No Marajó, a fama de "mau" selvagem coube mais prontamente aos Aruãs e seus parentes próximos Anajás, cujo preconceito passou a seus descendentes caboquizados durante o famigerado Diretório dos Índios (entre 1757 e 1798), ao termino do qual todos indígenas das ilhas foram declarados "extintos" e considerados "civilizados" para todos efeitos. 

Mesmo a arqueologia ainda é desfavorável aos bárbaros da fase Aruã, vistos na literatura especializada como uma das prováveis causas de ruína da magnífica fase Marajoara (afinal de contas sem que se saiba quem de fato foram estes criadores da Arte primeva brasileira)... Na verdade, os pesquisadores ainda parecem engatinhar na matéria e o povo desconhece quase tudo, malgrado tentativas como a do notável padre Giovanni Gallo, contra vento e maré contando apenas com "cacos de índio", para democratizar o conhecimento do longo passado dos marajoaras (ver Giovanni Gallo, "Motivos Ornamentais da Cerâmica Marajoara", prefácio da arqueóloga Denise Shann, edição do Museu do Marajó). 

Em fragmentos da extinta língua aruã coletados pelo fundador do Museu Paraense Emilio Goeldi, Domingos Soares Ferreira Penna, tivemos a notícia remota de que estes marajoaras "malvados", eles mesmos, chamavam a sua ilha de Analáu Yohynkáku. Segundo o navegador espanhol Pinzón, que esteve em Marajó antes de Cabral na Bahia, os nativos da ilha donde ele arrancou 36 "negros da terra" (escravos indígenas, provavelmente Aruãs) a chamavam "Marinatambalo" (com este nome Dalcídio Jurandir, na vila de pescadores de Salvaterra, em 1939, escreveu o romance "Marajó", que se chamou provisoriamente também "Missunga").


Já as armas preferenciais dos Tupi-Guarani eram arco e flecha e o tacape. O sagrado tacape da antropofagia ritual chamava-se porantim, usado somente em solenidades para sacrifício do guerreiro inimigo capturado em luta entre iguais, o vencedor do combate oferecia a carne e o sangue do herói morto a seus convidados a testemunhar o glorioso feito. Já sabemos que a religião dos tupinambás vedava comer carne de covardes que eram imediatamente soltos e enxotados para longe das aldeias para não as contaminar de fraqueza. 

O vencedor não comia nada durante o banquete antropofágico reservando tão só para si, entretanto, o nome do inimigo invejado: desta maneira mágica as virtudes do guerreiro morto se somavam às do sobrevivente. Havia muitos tupinambás que ostentavam muitos nomes conquistados em luta no terreiro da aldeia. 

Na historiografia amazônica, embora a presença da grande nação Tupinambá aliada aos portugueses seja incontornável, na margem oposta a resistência armada dos invencíveis Marajós à conquista do rio Babel (cf. José Ribamar Bessa Freire) ou das Amazonas permanece quase apagada ou comparece de maneira negativa, exclusivamente como amigos de estrangeiros concorrentes dos colonizadores ibéricos. No caso emblemático de Ajuricaba, acusado de colaborar com os holandeses da Guiana, Joaquim Nabuco lhe fez justiça defendendo a sua memória. Todavia, no caso do cacique aruã Guamá tendo ele comportamento semelhante ao de seu parente manauara; ainda seu nome permanece na sombra dos arquivos coloniais como reles bandoleiro acamaradado a traficantes franceses. No mínimo, a gente deveria saber que para prender o cacique Guamá, vivo ou morto, seguiu a tropa guarda-costa debaixo de comando do sargento-mor Francisco de Mello Palheta até a Guiana francesa voltando sem o índio, mas com o café furtado de Caiena. Prenúnio de que a fronteira do Oiapoque havia mais coisas em comum do que contrabando.

Na verdade, a "gentilidade aruaca", como escreveu o historiador e amazonólogo Arthur Cezar Ferreira Reis; constitui a massagada avoenga chamada Tapuia, duma antiguidade dos primeiros tempos desta região. Donde, segundo a arqueologia marajoara, provém de grupos nômades de há mais de 5 mil anos de perambulação pelas margens dos rios e beira-mar até invenção da Cultura Marajoara, cerca do ano 400 da era cristã, na ilha do "homem malvado" chamado Marajó: primeira civilização da Amazônia pelos próprios amazônidas.

guerreiro aruaque lançando dardos com zarabatana: imitação da natureza mortal de cobras e vespas venenosas
(o nome do cacique dos Manaus, o célebre Ajuricaba, por exemplo, significava "mutirão de cabas", vespas).

A paxiubeira pode crescer até 25 metros de altura e, sem dúvida, ela é uma bela palmeira da hileia amazônica na paisagem cultural marajoara. Podia ser declarada em nosso patrimônio como árvore símbolo da resistência da brava gente marajoara contra a invasão do território ancestral dos Nheengaíbas, finalmente doado graciosamente pelo rei de Portugal Afonso VI a seu ministro de estado, Antônio de Sousa de Macedo, como capitania hereditária da Ilha Grande de Joanes (1665-1757), mãe de todas sesmarias do Marajó. 

 o nome Marajó em questão
 
Em meu primeiro ensaio "Novíssima Viagem Filosófica" (ver Revista Iberiana: Secult, Belém, 1999) comentei a conhecida tradução do tupi Mbarayo para "Marajó" colocando em dúvida se este topônimo significasse, verdadeiramente, "barreira do mar". Já sabemos que a desinência "" passando a "" em português, provém do tupi antigo "yu", na acepção de gente, família e povo. Então, onde entra a tal "barreira" se "marã" se refere àquilo que é ou causa mal? Todos estudiosos da cultura Tupinambá (não há dúvida de que foram tupinambás que deram o nome histórico da maior ilha fluviomarinha do planeta) são praticamente unânimes em reconhecer o apurado conhecimento geográfico dos tupinambás sobre a extensa área que eles percorreram, de sul a norte, em busca da utopia selvagem conhecida por "Yby Marãey" (terra sem mal, "marã", mal; e "ey" negativo da coisa dita). 

Logo, num arquipélago tão vasto, do tamanho de Portugal, a "barreira" em causa estaria bem longe da Contracosta para o mar aberto: ela, evidentemente, era uma barreira à marcha guerreira dos Tupinambás e não à entrada das marés oceânicas... E o "mar" dos tupinambás era o rio Pará ("pará-Uaçu", "grande mar" traduzido corretamente à língua portuguesa como "Grão-Pará" e que hoje resta na língua popular paraense sendo o rio Parauaú (rio de Breves, ou Furus de Breves, o mesmo que rio Pará-Açu, grande). A avançada conquistadora dos tupinambás na terra Tapuia ("Tapuya tetama"), chamada Maranhão e Grão-Pará pelos portugueses; deu-se em pinça: pela costa do Salgado e sertão adentro varando as barrancas do Tocantins abaixo.

Se da ponta da Tijioca pelo Pará acima, o porto do sol (Araquiçau / arakixawa, lugar onde o sol ata rede para dormir) atiçava a imaginação dos pajés-açu ou caraíbas ("senhor ruim", capaz de causar a morte com um simples mau olhado) lhes prometendo o achado da ambicionada "terra sem mal" seguindo o poente para o Cabo Norte (Amapá). Pelo lado do Baixo Tocantins, o Abaeté ("homem verdadeiro", ou seja o Tupinambá) via o sol sentar para as bandas do Amazonas além Xingu. Mas, aí por dentro das ilhas, o conquistador topava pela frente o índio matador, de língua e costumes estranhos; guerrilheiro nato que atacava de emboscada e dava morte súbita com mais precisão e terror que a temida Jararaca escondida entre árvores. Eis, sim, a verdadeira "barreira", o "malvado" armado de zarabatana de paxiuba e  dardos de talo de patauá embedido de curare.

Este terror antigo retardou a conquista do Amazonas até a chegada dos portugueses, visto que a amizade entre franceses e tupinambás no Maranhão durou pouco.  As respeitadas fontes jesuíticas, ademais, informam: o rio "MarajoGuassu" [Marajó-Açu] deram nome a toda ilha. Nascendo nos campos da grande ilha do estuário, o rio Marajó banha o município de Ponta de Pedras e vem desaguar na baía do mesmo nome. Não se trata nem de mar nem de barreira. Se, como me parece, "marãyu" é o malvado que barrava a entrada do "bom selvagem" àquele rio por onde saiam os guerreiros Aruãs, vindos de muito longe, para atacar aldeias dos tupinambás na margem oposta, os velhos marajoaras tem muito a contar sobre os usos da Paxiuba e o Patauás na história desta ilha filha da Cobragrande.