terça-feira, 31 de dezembro de 2013

CARTA À PRESIDENTA

pintura moderna sobre arquétipo da grande mãe:
teoria Gaia, a mãe Terra, Pachamama.



BREVE INICIAÇÃO AO CONHECIMENTO DO ETERNO FEMININO:
O ESSENCIAL DA CULTURA MARAJOARA.


"Mulheres curadoras" por Mani Alvarez. " Erveiras, raizeiras, benzedeiras, mulheres sábias que por muito tempo andaram sumidas, ou até mesmo escondidas. Hoje retornam com um diploma de pós-graduação nas mãos e um sorriso maroto nos lábios. Seu saber mudou de nome. Chamam de terapia alternativa, medicina vibracional, fitoterapia, práticas complementares…são reconhecidas e respeitadas, tem seus consultórios e fazem palestras. As mulheres curadoras fazem parte de um antigo arquétipo da humanidade. Em todas as lendas e mitos, quando há alguém doente ou com dores, sempre aparece uma mulher idosa para oferecer um chazinho, fazer uma compressa, dar um conselho sábio. Na verdade, a mulher idosa é um arquétipo da ‘curadora’, também chamada nos mitos de Grande Mãe. Não tem nada a ver com a idade cronológica, porque esse é um arquétipo comum a todas as mulheres que sentem o chamado para a criatividade, que se interessam por novos conhecimentos e estão sempre a procura de mais crescimento interno. Sua sabedoria é saber que somos “obras em andamento’, apesar do cansaço, dos tombos, das perdas que sofremos… a alma dessas mulheres é mais velha que o tempo, e seu espírito é eternamente jovem. Talvez seja por isso que, como disse Clarissa Pinkola, toda mulher parece com uma árvore. Nas camadas mais profundas de sua alma ela abriga raízes vitais que puxam a energia das profundezas para cima, para nutrir suas folhas, flores e frutos. Ninguém compreende de onde uma mulher retira tanta força, tanta esperança, tanta vida. Mesmo quando são cortadas, tolhidas, retalhadas, de suas raízes ainda nascem brotos que vão trazer tudo de volta à vida outra vez. Por isso entendem as mulheres de plantas que curam, dos ciclos da lua, das estações que vão e vem ao longo da roda do sol pelo céu. Elas tem um pacto com essa fonte sábia e misteriosa que é a natureza,. Prova disso é que sempre se encontra mulheres nos bancos das salas de aula, prontas para aprender, para recomeçar, para ampliar sua visão interior. Elas não param de voltar a crescer… Nunca escrevem tratados sobre o que sabem, mas como sabem coisas! Hoje os cientistas descobrem o que nossas avós já diziam: as plantas têm consciência! Elas são capazes de entender e corresponder ao ambiente à sua volta. Converse com o “dente-de-leão” para ver… comunique-se com as plantas de seu jardim, com seus vasos, com suas ervas e raízes, o segredo é sempre o amor. Minha mãe dizia que as árvores são passagens para os mundos místicos, e que suas raízes são como antenas que dão acesso aos mundos subterrâneos. Por isso ela mantinha em nossa casa algumas árvores que tinham tratamento especial. Uma delas era chamada de “árvore protetora da família”, e era vista como fonte de cura, de força e energia. Qualquer problema, corríamos para abraçá-la e pedir proteção. O arquétipo de ‘curadora’ faz parte da essência do feminino, mesmo que seja vivenciado por um homem. Isso está aquém dos rótulos e definições de gênero. Faz parte de conhecimentos ancestrais que foram conservados em nosso inconsciente coletivo. Perdemos a capacidade de olhar o mundo com encantamento, mas podemos reaprender isso prestando atenção nas lendas e nos mitos que ainda falam de realidades invisíveis que nos rodeiam. Um exemplo? Procure saber mais sobre os seres elementais que povoam os nossos jardins e as fontes de águas… fadas, gnomos, elfos, sílfides, ondinas, salamandras… As “curadoras’ afirmam que podemos atrair seres encantados para nossos jardins! Como? Plantando flores e plantas que atraiam abelhas e borboletas, gaiolas abertas para passarinhos e bebedouros para beija-flores. Algumas plantas ‘convidam’ lindas borboletas para seu jardim, como milefólio, lavanda, hortelã silvestre, alecrim, tomilho, verbena, petúnia e outras. Deixe em seu jardim uma área levemente selvagem, sem grama, os seres elementais gostam disso. Convide fadas e elfos para viverem lá. Este artigo foi publicado pelo Jornal 100% Vida de maio/2012 por Mani Alvarez * Coordenadora do curso de pós-graduação em Práticas Complementares em Saúde — com Gailesh Bruna e outras 4 pessoas.

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POST SCRIPTUM

Excelentíssima Senhora Dilma Vana Rousseff,
Presidenta da República Federativa do Brasil.
 
Com a liberdade oferecida pela rede mundial de computadores e garantia da Constituição-Cidadã a todos brasileiros e brasileiras, dirijo-me à Presidenta da Nação por este meio, revolucionário segundo diz o filósofo Pierre Levy em sua teoria da consciência coletiva.
 
Significa dizer que eu não falo por mim enquanto indivíduo. Nada tenho a dizer nem esperaria que uma mensagem estúrdia como esta, a exemplo de tantas outras tais como garrafa de náufrago nunca chegaram a boa praia e tiveram resposta. Todavia, desta vez, talvez a mensagem da ilha dos marajós tenha 0,01% de chance de aportar no Palácio do Planalto e sensibilizar alguém do terceiro ou quatro escalão burocrático. Alguém, por acaso, que a curiosidade acenda uma luz de consciência e conecte alguns de seus neurônios a milhões e milhões de outros neurônios da Noosfera (*), particularmente a Criaturada grande de Dalcídio Jurandir (populações tradicionais amazônicas)
 
Pessoalmente, dou graças à vida que me tem dado tanto. Entretanto, sinto o angustioso dever de interpretar os sentimentos de tantos parentes ilhados na maior "ilha" fluviomarinha do planeta. Esta gente devia estar agradecida aos senhores e senhoras da república federativa. Sobretudo pela regularização fundiária de terrenos de marinha pela qual servos da gleba, descendentes das tribos extintas do Diretório dos Índios, tiveram expectativa do reconhecimento de seus direitos derivados da espoliação dos antigos Nheengaíbas pelo estado colonial do Maranhão e Grão-Pará. 
 
Mas, o diabo é que esta gente à margem da História espancada pela Pobreza pelas beiras de rios e igarapés vive insegura e cheia de medo que tudo isto seja um sonho e vá acordar um dia pra morrer na praia. Ou acabar desterrada, por ordem dos "donos", a uma invasão de subúrbio em Belém ou Macapá. O cruel problema desta gente que o mundo esqueceu é o fato de que Brasília é longe das regiões amazônicas e Belém do Pará não quer saber da outra margem do rio...
 
A gente agradece ao Lula por ter vindo nos ver em Breves, brevemente, e lançar o "Plano Marajó" em 2007 e tudo mais que se seguiu. A esperança venceu o medo. Porém não é segredo que o Plano não zarpou como era esperado e até hoje está parado no que diz respeito a mais de 500 comunidades locais ilhadas. E a gente acreditava que com a Dilma por madrinha do Marajó os 120 Territórios da Cidadania entrariam na ordem do dia do desenvolvimento socioambiental brasileiro, sendo o Território da Cidadania - Marajó uma vitrine do programa nacional. A gente imagina que segundo relatórios oficiais na Esplanada dos Ministérios tudo vai nos conformes... Só que na beira dos igarapés a história é outra e o réveillon ainda é a poronga à espera da maré onde canta a saracura. Banda larga é espingarda de dois canos em busca das últimas caças no mato, o Mais Médicos está certo. Mas não se pode dispensar o pajé e o Bolsa Família é a tábua de salvação, todavia só a EDUCAÇÃO será a solução se a dita cuja ensinar caboco, além de pescar, a "plantar" o peixe nosso com açaí de cada dia.
 
É claro que onde a lenda faz morada, não custa nada crer que a Dilma fosse ser nossa madrinha. Pois, não foi o tal "Plano Marajó" concebido e nascido na Casa Civil da Presidência, filho do GEI-MARAJÓ, tendo Dilma Roussef como parteira desta antiga esperança da gente marajoara?
 
Na verdade, a brava gente marajoara já disse tudo que tinha a dizer desde 1500 anos passados. Pensem bem! O "descobrimento" do Brasil nem havia acontecido... Rios de tinta e montanhas de papel foram gastos por muitos para dar o recado da amazonidade ribeirinha. Só falta o Gigante acordar e escutar nosso grito aflito. 
 
E aí, Presidenta, vai tocar pra valer o "Plano Marajó" pra frente tal qual rebocador possante do desenvolvimento humano sustentável da Criaturada grande de Dalcídio?
 
(*) A Noosfera pode ser vista como a "esfera do pensamento humano", sendo uma definição derivada da palavra grega νους (nous, "mente") em um sentido semelhante à atmosfera e biosfera.
Na teoria original de Vernadsky, a noosfera seria a terceira etapa no desenvolvimento da Terra, depois da geosfera (matéria inanimada) e da biosfera (vida biológica). Assim como o surgimento da vida transformou significativamente a geosfera, o surgimento da conhecimento humano, e os conseqüentes efeitos das ciências aplicadas sobre a natureza, alterou igualmente a biosfera.
No Conceito da Noosfera do filósofo francês Teilhard de Chardin, assim como há a atmosfera, existe também o mundo das idéias, formado por produtos culturais, pelo espírito, linguagens, teorias e conhecimentos. Seguindo esse pensamento, alimentamos a Noosfera quando pensamos e nos comunicamos. A partir de então, o conceito de Noosfera foi revisto e consequentemente sendo previsto como o próximo degrau evolutivo de nosso mundo, após sua passagem pelas posteriores transformações de "Geosfera", "Biosfera", "Tecnosfera" (temporária e em andamento) e então Noosfera. A transição da biosfera de uma ordem inconsciente de instinto para a ordem superconsciente de telepatia é uma função da Lei do Tempo e é denominada transição biosfera–noosfera. A transição biosfera-noosfera é o resultado direto do aumento exponencial de complexidade biogeoquímica e a conseqüente liberação de “energia livre” devido à aceleração da transformação termo-químico-nuclear dos elementos.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

ANIVERSÁRIO DO GDM

Farol Itaguari, na foz do rio Marajó-Açu, em Ponta de Pedras.

Criou-se o GRUPO EM DEFESA DO MARAJÓ (GDM) no campus Guamá da Universidade Federal do Pará, em parceria entre a Pro-Reitoria de Extensão da UFPA e a Sociedade de Recursos Culturais e Naturais da Amazônia (SOPREN), no dia 20 de dezembro de 1994, há 19 anos, para suceder em caráter permanente os denominados Encontros em Defesa do Marajó que se realizaram ao encerramento de cada ano, partir de 1986 até 1995. 

Não obstante o GDM não ter conseguido despertar nos diversos níveis da sociedade e das instituições o apoio que precisava, inclusive da própria UFPA donde emergiu; assim mesmo este voluntariado deu prosseguimento prático ao processo de Extensão em educação ambiental e investiu pelos demais setores da vida da gente marajoara. Extensão essa que foi iniciada nos anos 60 com o CRUTAC coordenado pelo médico ambientalista Camilo Martins Viana e a pedagoga Ana Rosa Bittencourt na ilha do Marajó; continuada posteriormente com os campi da UFPA em Soure e Breves através do programa de interiorização universitária. 

A partir da criação do GDM (1994) e realização do 9º Encontro em Defesa do Marajó (1995) que encerrou a séria de encontros anuais, o dito voluntariado continuador do trabalho anterior já no seio da própria comunidade pautou sua atuação de acordo com a carta-manifesto que vai abaixo. 

Após a militância do GDM e com sua participação em conjunto com terceiros registraram-se ações tais como: campanha deflagrada com a SECULT-PA contra o contrabando de peças arqueológicas de cerâmica marajoara, identificação e registro de particulares como fiéis depositários de bens culturais da União (1995); participação de trabalho preliminar junto à "Associação dos Caranguejeiros de Soure (ACS)" para criação da Reserva Extrativista Marinha de Soure (Resex de Soure); apresentação de documento social dos Bispos do Marajó sobre a Pobreza e baixo IDH da gente marajoara (1999); organização da carta aberta ao Presidente da República denominada S.O.S Lago Arari (07/0/2003) em defesa do patrimônio cultural arqueológico; participação e assinatura em conjunto com terceiros da Carta de Muaná (08/10/2003) para candidatura do Marajó como Reserva da Biosfera; em consequência da denúncia do IDH marajoara pelos Bispos do Marajó de 1999, adesão à demanda dos mesmos, em 2006, à Presidência da República que resultou na criação do Grupo Executivo Interministerial (GEI-Marajó), na Casa Cívil, e posterior elaboração e lançamento do Plano de Desenvolvimento Territorial Sustentável do Arquipélago do Marajó (PLANO MARAJÓ), em 2007.

Além destes acontecimentos o GMD marcou presença em diversos momentos do despertar da consciência do Povo Marajoara. Conforme se pode observar, as principais reivindicações do GDM, ao longo destes quase vinte anos, foram assumidas por novos atores do movimento social marajoara, notadamente o parceiro Movimento Marajó Forte que atualmente luta pela criação da Universidade Federal do Marajó (UnM) a ser desmembrada da UFPA. De maneira que este breve registro tem por objetivo compartilhar, sobretudo com estudantes secundaristas e universitários, uma notícia que se insere no longo processo histórico da Extensão universitária na região do Marajó em parceria com a comunidade.


CARTA DO MARAJÓ-AÇU

Nós abaixo-assinados, reunidos no 9º Encontro em Defesa do Marajó, realizado entre os dias 28 e 30 de abril de 1995, iniciado na Capital do Estado e concluído na cidade de Ponta de Pedras.

Animados do espírito de cooperação que deve reunir os cidadãos na busca de soluções aos problemas que afligem a Sociedade; e no firme propósito de promover a referida conjugação de esforços em favor de todo povo Marajoara;

Conscientes das responsabilidades que incumbem mutuamente às autoridades e aos particulares na defesa do bem comum; especialmente no que se refere ao enfrentamento do problema da fome, da educação pública, da saúde das comunidades carentes, da preservação da Cultura Marajoara, da falta de empregos condignos, da proteção ao meio ambiente, da implantação de infraestruturas sócio-econômicas para um desenvolvimento humamente justo e ecologicamente correto;

Inspirados nos ideais da Democracia Participativa e da Promoção Social como um processo seguro para a abolição das injustiças sociais, de modo a realizarem-se as necessárias mudanças de estrutura sócio-econômica numa base mais equitativa e produtiva, levando ao advento de uma sociedade solidária e moderna auto-sustentável;

Confiantes de que o arquipélago do Marajó, em harmonia com as demais regiões do estuário amazônico, tem importante papel geoestratégico a desempenhar na integração do Norte do Brasil à Federação Brasileira e da Amazônia em geral;

Acordamos e manifestamos as seguintes conclusões:

  1. Em cada sede municipal é conveniente a criação de “Conselho Municipal de Integração e Participação Social” com a finalidade especial de articular junto aos Poderes Excutivo, Legislativo e Judiciário a colaboração da sociedade civil organizada dentro da esfera local.
  2. Tal Conselho deve ser ouvido especialmente em matéria da Lei Orgânica do Município e do Plano-Diretor Municipal, de modo que, entre as sucessivas administrações eleitas, seja assegurada continuidade nos programas municipais de investimento e obras públicas, sem interrupções por motivação político-partidária ou de opinião pessoal unilateral manifestadas pelos respectivos gestores.
  3. Tendo necessariamente assento nesse Conselho membro da Defensoria Pública, todos os demais cargos terão duração anual, sem reeleição, assegurado o desempenho gratuito do cargo. Aos membros do Conselho deverão ser prestadas obrigatoriamente as informações requeridas, de modo a garantir transparência e moralidade nos atos públicos municipais.
  4. Qualquer cidadão domiciliado no Município poderá requerer ao Conselho para representá-lo, em juízo e fora dele, a fim de remediar dano ao patrimônio público ou obstar ação lesiva iminente ao mesmo.
  5. O Governo Estadual, dando cumprimento ao dispositivo constitucional sobre a criação da Área de Proteção Ambiental de Marajó (APA-Marajó), procure, desde já, dialogar com as lideranças marajoaras para ouvir suas preocupações e anseios a respeito do assunto. Que a referida APA seja projetada integralmente, prefigurando todo o Arquipélago afim com um conceito de ecologia antrocêntrica. Levando em conta a necessária harmonização recíproca que deve existir entre a mesma e a Área Metropolitana da Grande Belém, o Distrito Industrial e Portuário de Barcarena e a Zona Franca Santana-Macapá, de maneira a ser alcançado o desenvolvimento auto-sustentável do Estuário Amazônico como um todo.
  6. Tendo em vista as especificidades etnossociais das populações ribeirinhas e dos campos do Marajó, seja, doravante, considerada a possibilidade da execução de uma pedagogia aplicada a essa realidade social pelas autoridades educacionais estaduais e muncipais; dentre outros elementos a compatibilização do calendário escolar com as atividades econômicas sazonais, assim que a preparação profissional para o mercado de trabalho local, numa base de promoção e integração social efetivas.
  7. No elenco de medidas educativas destinadas ao atendimento das necessidades das populações rurais do arquipélago do Marajó seja estudada a possibilidade de execução de um programa de teleducação especializado, levando em conta aspectos antropológicos e etno-históricos dessas populações.
  8. Tanto as autoridades quanto os proprietários rurais devem dar urgente atenção à destruição dos últimos sítios arqueológicos denominados “Tesos de Camutins”, devendo , para isso, requererem assistência do Governo Federal, nos termos da Constituição da República, que considera os mesmos patrimônio nacional; e, se for o caso, devendo as autoridades motivar pedido à UNESCO para prestação de ajuda internacional , a fim de preservar esse importante patrimônio cultural da humanidade, inventariando e catalogando, tanto quanto possível, coleções de cerâmica marajoara pré-histórica que se acham em poder de instituições públicas e de particulares, no País e no exterior.
  9. Que as propriedades rurais na ilha do Marajó onde se localizam ainda ou tenham havido outrora “Tesos de Camutins” sejam cadastradas pelo Poder Público para efeito de assistência e orientação a respeito da preservação do referido patrimônio cultural do Povo Brasileiro; devendo ser prevista a implantação de um Programa Nacional de Proteção ao Patrimônio Cultural Marajoara” , inclusive de interesse para o ecoturismo na Amazônia; concedendo-se incentivos fiscais e creditícios aos proprietários rurais que se interessarem em colaborar no referido programa, a fim de que sejam constituídas, nas fazendas onde existam sítios arqueológicos e outros atrativos históricos, paisagísticos ou turísticos, estruturas simples de recepção e hospedagem temporária para visitantes e pesquisadores.
  10. Na avaliação de projetos referidos no item precedente, deverá ser observada também o nível de integração e participação social da comunidade rural adjacente. Seja por meio de emprego direto de mão-de-obra ou através de associação com cooperativas de moradores ou ainda formas assemelhadas. Contrato de comodato entre grandes proprietários rurais e associações comunitárias de moradores devem ser estimuladas, assistidas e incentivadas pelo Poder Público; para fins de proteção ambiental e preservação cultural, devendo, para isso, ser concedida aos interessados isenção parcial ou total de impostos em conformidade com a legislação específica.
  11. Que o Museu do Marajó, em Cachoeira do Arari, receba assistência técnica e financeira permanente do Estado, integrado integrado ao sistema estadual de museus oficiais; devendo constituir polo museológico para a ilha do Marajó tendo em cada município desta área, setor do referido museu. Para tanto, o Estado deverá também ajudar a construir, na cidade de Ponta de Pedras, o Memorial Dalcídio Jurandir tendo a Fundação do mesmo nome responsabilidade pelo dito espaço cultural, em associação com o museu do Marajó, assim como pela constituição da Casa de Dalcídio Jurandir, em Cachoeira do Arari, anexa ao dito Museu.
  12. No tocante à Saúde Pública seja estudada, com urgência, uma maneira de adotar tecnologia eletrônica para pré-diagnósticos à distância, de modo a se estabelecer entre a SESPA e as Secretarias e Unidades de Saúde Municipais uma cooperação efetiva em matéria de pronto socorro, racionalizando e economizando o atendimento de remoção de urgência e municipalizando-se mais a medicina preventiva e o tratamento de emergência.
  13. Nas comunidades rurais seja resgatada a medicina tradicional, com a valorização e orientação paramédica de parteiras, benzendedeiras e “curadores” incorporando-os ao sistema como agentes de saúde comunitária, treinados e assistidos devidamente pelas Secretarias Municipais de Saúde. Para isso, um convênio entre a UFPA e a SESP se faz necessário, a fim de constituir equipe interdisciplinar reunindo profissionais médicos, bioquímicos, antropólogos e engenheiros sanitaristas, destinada a prestar orientação à formação e treinamento dos citados agentes de saúde para atuação junto às comunidades rurais.
  14. Nos aspectos práticos de combate ao roubo de gado, à pesca e caça predatórias e devastação dos açaizais nativos; sejam, ao lado de medidas repressivas legais necessárias, consideradas também as seguintes providências:
    a) A SECTAM deve estimular e orientar a implantação, nos municííos, de Secretarias Municipais de Meio Ambiente e Promoção Social, assim como de Conselhos Municipais de Meio Ambiente e Promoção Social, a fim de enfocar a questão ambiental sob ponto de vista sócio-econômico centrado no homem da região, em harmonia com o desenvolvimento regional auto-sustentado;
    b) As comunidades rurais devem ser envolvidas em ações de parceria com o Poder Público, em especial na formação e treinamento de agentes de proteção ao meio ambiente, recrutados dentre os próprios moradores das áreas afetadas; 
     
    c) O Governo Estadual deve ser solicitado a estudar, com a possível rapidez, a criação de Batalhões Ambientais da Polícia Militar, para atuação no Arquipélago do Marajó, notadamente no que diz respeito à implantação da APA-MARAJÓ, dando aos ditos Batalhões funções de extensão voltadas para assistência às comunidades rurais em matéria de socorro de urgência e educação ambiental.
  15. Neste assunto, a experiência já obtida pelos campos comunitários assistidos pela POEX/SOPREN ou pelo POEMA, da Universidade Federal do Pará, deve ser dinamizada ao máximo em todos municípios. As Associações de Moradores Rurais devem ser sensibilizadas para estabelecer parcerias para o desenvolvimento sustentável, através das “Secretarias Municipais de Meio Ambiente e Promoção Social” que, por sua vez, devem assinar convênios com os órgãos estaduais e federais competentes, consolidando-se, desse modo, uma política de meio ambiente centrada no equilíbrio entre o Homem e a Natureza, que deve presidir a todo o processo de desenvolvimento durável.
  16. Recomenda-se ao Estado que, mesmo não havendo ainda recursos financeiros assegurados para execução de projetos, sejam iniciados procedimentos técnicos para estabelecimento do Plano-Diretor do Arquipélago do Marajó, tanto quanto possível; notadamente no que diz respeito aos respectivos Relatórios de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) da Hidrovia Transmarajoara (ligação hidroviária Belém-Macapá através do rio Anajás) e a Perenização do Lago Arari
     
  17. Por fim, um resumo das explanações, debates e principais comunicações apresentadas pelas autoridades, técnicos e lideranças durante o 9º Encontro em Defesa do Marajó sejam sejam publicadas sob a forma de um “Livro Verde” a ser divulgado no País e no exterior a fim de despertar a solidariedade nacional e internacional a respeito dos problemas de desenvolvimento sustentável no estuário da Bacia Amazônica.

Celebrado às margens do rio Marajó-Açu, na cidade de Ponta de Pedras, aos 30 (trinta) dias do mês de abril de 1995; 117º aniversário da autonomia municipal da Vila nova de Ponta de Pedras, elevada da freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Ponta de Pedras, oriunda da aldeia das Mangabeiras, antigamente aldeia dos Guaianá ou Lugar de Vilar.

(traslado do texto original resumido e corrigido, em 20/12/2013).




segunda-feira, 25 de novembro de 2013

A CABO DE REMO EM MONTARIA A FIM DE CONHECER O LAGO (8).

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... "Quanto, antão, o camarado se acordou ele não prestou atenção que a gente tinha mudado de direção no escuro e continuou a remar: a Favorita, canoa safada, talvez com saudade do Bacurituba queria voltar rio abaixo... Pai d'égua! Haja a gente, quase no bagaço, ter que recomeçar a viagem". Daí em diante carecia ter mais respeito por aqueles abaeteuaras e goiabas danados que iam e vinham pelo curso do rio com suas canoas a vela ou a remo trabucar e buscar o de comer no lago Arari pra abastecer de peixe seco casas de comércio e mercados das cidades da redondeza, assim que a população ribeirinha das varjas de baixo. Acumulação primitiva no país da Criaturada grande, via dolorosa por onde se fizeram grandes fortunas: cada casa de comércio da terra um manda chuva, cada fazenda um reizado mais alienado que outro. Que nem as origens das sesmarias dos Barões de Joanes: elas cá metidas no barro da barbaridade da Ilha Grande e eles lá residentes da civilização da pedra polida de Portugal... O regime de morgadio das ilha da Madeira, Açores e Cabo Verde transplantado à grande ilha do Marajó não podia mesmo dar certo neste rio incerto, não é verdade Vadico?



MORTOS DE SONO OU MUNDIADOS PELA BOIÚNA


Cada estirão do rio Arari a caminho do Lago é uma coisa de dia e outra coisa muito diferente de noite. Acima do igarapé São José trazendo águas do Lavrado, por exemplo, há dois cursos diferentes de paisagem: um é curso vespertino e outro noturno... Quando o sol aparece no parto da manhã o camarada vê de perto pra contar de certo todo verde das margens e das ilhas campestres espalhadas no lavrado misturar-se ao azul do céu infinito salpicado de grossas nuvens de algodão no tecido de águas emendadas, de alto a abaixo, pelo cordão das chuvas. Sorte nossa que, na ocasião, a gente estava na força do verão... 

O sono vai-se embora e a gente segue remando confiado na hora da chegada e com mais satisfação escuta urros de gado do vento e ouve recordações... velhas estórias contadas à margem de outras viagens a remo, tais quais idas e voltas de tio Cidoca ao Alto Arari. Compreende, antão, que a vida é que nem um rio comprido e cheio de voltas onde a gente passa, de bobuia, a bordo duma barca de sonhos em busca duma quimera...  

Olhar de longe distintas malhadas imaginárias e reais na lonjura do pastoreio, lotes de éguas correndo em liberdade de lés a lés e o relincho do garanhão que emprenha a imensidão do espaço vazio; revoada de marrecas pretejando o cimo dos balcedos, a graça das garças em quantidade e a revoada geral da passarada denunciando cardumes numa boca de igarapé ou furo de laguinho que vaza pro rio. Quem vai perder o espetáculo desses depois de uma noite daquelas? 

Claro, o  sumano pescador e o trabucador da lida presos desde o cordão umbilical à cadeia da murrada debaixo da ditadura da água, quase não acha nadinha daquilo bonito, pr'esta gente até paresque é um castigo, sem outra coisa pra fazer da própria vida... Masporém pra marinheiro de primeira viagem, que nem eu e meo camarado Vadico; uma tal viagem de descoberta do Alto Arari, como esta, era lindeza pura que nunca se pode esquecer na vida.

Aí, quando o sol se deita em riba do campo lavrado e desaparece atrás da linha do horizonte, o clarão do fim da tarde resta ainda por um bom par de tempo e bandos de curicas e papagaios atrasados na volta pro ninhal povoam a boca da noite com seus gritos agudos. Antão, os campos vão escurecendo devarinho ao contrário da mata fechada que anoitece de repente. Masporém, antes do cair da tarde meo camarado Vadico havia se alembrado, paresque, que tio Cidoca dizia ser naquelas paragens de ribanceiras limpas bom pra levar a canoa na sirga e adiantar viagem...

Eu nunca tinha visto nem ouvido falar de tal coisa. A sirga é maneira expedita de rebocar embarcação puxada de terra, principalmente ao longo das margens de canais. Antão, era chegada a hora e a vez da sirga quando a Favorita chegou num bonito estirão descampado, onde paresque a vista não alcançava o fim. O gado espalhado no campo era coisa muito linda de ver... Vadico começou a emendar corda com corda, que a gente trazia na canoa pra qualquer precisão. Com isto ele fez um cabo comprido, o qual cuidou de enrolar na mão pra levar à terra. "Encosta a montaria na beira, que eu vou saltar e puxar a canoa de terra" - disse-me ele. 

O camarado amarrou o cabo bem amarrado no bico de proa da canoa e saltou com a ponta passada por riba do ombro lá dele e, antão, o caboco foi andando por terra e levando a montaria com beira... Eu, na canoa sentado no banco de popa só carecia, com o cabo do remo passado debaixo duma perna pra dar firmeza, fazer o leme e jogar tudo pra fora, como se acaso a gente quisesse atravessar o rio. De terra, o sumano puxava ao contrário e destarte a Favorita ia pra frente com mais rapidez que dois remos a bordo não podiam andar. Quando a gente não tem lancha-vapor de reboque e o remo vai devagar, a sirga é quebra-galho se o estirão tá livre e desimpedido de chavascal pela ribanceira. Morrendo e aprendendo: bem que meo pai dizia, a necessidade é a mãe da invenção...

Assim, antão, graças à sirga maneira a gente fomos descontando, naquela tarde calma, parte do prejuízo do tempo perdido ao voltar pra trás na noite passada. Culpa do cansaço e o desconforme sono. Ou a mundiação da cobragrande mãe do rio: aquela monstra que, diz-que, mora debaixo da capela de Nossa Senhora das Mercês da fazenda Arari. Que foi, no passado distante sesmaria dos frades Mercedários e depois propriedade da matriarca dos fazendeiros do Arari, Dona Leopoldina Lobato. Todo mundo sabe que pra sossegar a Boiúna carece a Madre de Deus pisar a cabeça daquela maria caninana: por isto, paresque, os frades fizeram o altar da santa em riba do sumetume da cobragrande. Sumetume, pra quem não sabe, é buraco servindo de suspiro pra bicho que mora no fundo da terra com varadouro pra dentro d'água. A paca e a capivara, por exemplo... Tio Cidoca conta - dizendo Vadico -  que, certa vez, o antigo feitor da fazenda Arari experimentou tirar a santa imagem da capela, tendo cuidado antes de rezar ladaínha a fim de acalmara a besta fera. Por que, devido ao tempo, carecia mandar encarnar a santa imagem por santeiro oficial do arcebispado em Belém. Ah, pordeus!... Nem bem a lancha desatracou com a santa a bordo, a cobragrande se acordou lá no fundo do sumetume, paresque, e a terra toda da capela tremeu e as telhas voaram longe...

Um vaqueiro, diz-que, saiu a todo galope pra atalhar caminho e chegou na curva do rio antes da lancha passar. Ele se pôs a fazer sinal com o chapéu: Pára, pára... Que foi que aconteceu? A cobra se mexeu e a terra tremeu, paresque a fazenda vai pro fundo... Eita, confusão seo patrão! Aí, foi só colocar a imagem de volta no altar e acabou a assombração.



CIDADE FANTASMA FOGE PELOS CAMPOS


Contra correnteza três dias e três noite pegado a cabo de remo, comendo mal e mal dormindo em riba de japá no chão de terra dura. Remar e remar, sem jamais chegar ao Lago ambicionado no fim do rio, retorcido que nem uma cobragrande. Noite fechada, uma lua apagada por nuvens escuras paresque um borrão esbranquiçado sobre fundo preto sem estrela. A umidade latejava no ar e a gente numa entalada dessas sem saber mais onde estava: já o mapa falado do tio Cidoca não valia nada... Onde, paresque, os dois goiabas do Curral Panela foram se meteram naquela noite escura?

O sumano Vadico estava, de vera, por demais embatucado... A gente tinha desembocado num largo a cabo da derradeira curva do rio. Seria ali o tal Lago falado? "Mas, bom...", disse eu meio decepcionado: em meu pensamento o lago Arari sempre foi que nem o vasto mar... Foi aí, antão, q'eu vi paresque a vila do Jenipapo na beira do lado esquerdo da canoa. A vila dormia em silêncio profundo, será? Haja a gente a remar direto ao porto: masporém não se via nenhum bico de luz, nenhum candeeiro ou uma zinha lamparina que fosse... 

A coisa tava ficando estúrdia. E a gente querendo apressar a chegada metemos força nos remos fazendo a escuridão recuar e estrondar lá na beira. Na sombra já se podia divisar um casario rasteiro, paresque, casas caiadas a modo. Foi, antão, que o espanto sucedeu: com a canoa chegando perto as casas se levantaram e saírem de carreira pro campo mergulhando no escuro. Égua!... Nunca eu tinha visto assombração. Que sucedia? A vila do Jenipapo, sumiu do mapa com a chegada daqueles goiabas sonâmbulos? Na verdade, não era vila nem casa nenhuma, mas o sono; tresmalhado sono que fez duma malhada de gado nelore, por acaso, uma cidade assombrosa.

E agora? Fosse numa hora boa o camarado rebatia: "caga na mão e joga fora"... Mas não; desta vez a coisa tava feia: "Meo Deus do céu!" - Vadico gemeu toda nossa desorientação naquela triste situação, mortos de sono e fadiga depois de três dias e três noites a subir o rio a cabo de remo. Embarcamos os remos da desolação. A Favorita ficou como cavalo sem rédea podendo escolher caminho pra ver aonde, dali em diante, a gente ia parar.  Aquele rio negro em sua súbita largueza era, paresque, uma baia lisa como um espelho onde não soprava nenhuma brisa. 

A malhada sumiu engolida pela noite dos campos e os goiabas cegos, ceguinhos no furo escuro... Vadico relutava com o sono mas ainda buscava se alembrar das últimas recomendações de tio Cidoca... "Hum, hum... paresque a gente estamos é na boca do Anajás", disse ele como que, finalmente, saindo do labirinto. Pra mim àquela hora estúrdia, estar ou não estar na boca do Anajás-Mirim ou em outro lugar não adiantava. Morrendo de sono eu já nem sentia medo de onça ou de assombração, a gente podia encostar a canoa e dormir na beira até o outro dia.

Foi aí que a canoa foi "andando" sozinha e apareceu, distante, uma luzinha pelo lado direito. Podia ser uma geleira na espera de pescador com peixe, disse o meo camarado. De qualquer maneira, era uma luz na escuridão e melhor seria ir remando naquele rumo a fim de perguntar qual era o caminho para o Lago. De novo, metemos remos n'água e fomos indo em direção àquela luz: aí, o sumano Vadico já se lembrava do que tio Cidoca dizia, que a parte mais estreita do rio pela margem direita de quem vai era, sim, a Boca do Lago. Na esquerda ficava a dita boca do Anajás-Mirim que vinha dos centros... Que a gente prestasse atenção, meo ermão.

Haja a remar e nada de chegar à tal geleira. Puta merda!... Ora, mais perto não era mais a tal geleira que parecia ser à distância, agora já era um barco desses uns de carregar boi pro curro. Devia vir baixando com sua brilhante luz elétrica acesa na ponta do mastaréu, já se podia ouvir a zoada do motor possante. Antão, desse instante em diante eu, no piloto, carecia ter muita atenção ao banzeiro quando o barco passasse pela ilharga da montaria chapada de carga, pois nessa hora podia alagar. 

Era preciso encostar bem pra beira e deixar o barco passar, em seguida aproar a canoa de tal maneira pra pegar a onda pela frente. Tudo isto se passava em meus pensamento enquanto a gente remava entre as curvas do rio rumo à boca do lago, onde, enfim se encontraria a vila do Jenipapo. Masporém, nada do tal barco cruzar com a canoa. Oras o mastaréu brilhante por riba do mato da beira aparecia do lado direito e, de repente, surgia da banda esquerda, na demonstração de quantas curvas o rio tem até o estirão final. 

O sono era tanto qu'eu começava a ficar tonto. Agora a zoada do barco-motor parecia perto a pouco metros de distância, tinha eu que me preparar com todo cuidado e enfrentar o banzeiro a qualquer instante. Opa! Eis o barco frente à frente da montaria!... Mas, coisa estranha: na verdade, a embarcação embora com motor ligado para manter as luzes acesas estava atracada ao trapiche do Jenipapo: pela primeira vez eu vi o grande Lago Arari falado em todas redondezas do Marajó. Venerável mar negro megulhado na escuridão donde vinha um rumor do fundo das águas e o vento galopava no dorso da grande noite prestes a passar. De surpresa, veio de terra o cantar em coro de mil e um galos, paresque, anunciando a alvorada com a notícia da chegada da Favorita. E, do alto de seus poleiros sobre a terra encharcada, inventaram outra manhã.

sábado, 23 de novembro de 2013

A CABO DE REMO EM MONTARIA A FIM DE CONHECER O LAGO (7).


... "Quando, desta vez, os donos do pedaço piores que feitor de fazenda ranzinza e onça faminta, apareceram num átimo de dentro do mato e caíram em riba dos goiabas de primeira viagem... Eram, paresque, milhões e milhões de carapanãs e muriçocas. Aí a gente saiu de carreira da beira pra dentro da canoa empurrando pra fora e se coçando, "vumbora, sumano, vumbora..."... "Égua, porra!". Se eu disser que nunca corri de praga, estarei faltando com a verdade". Aí, a escuridão caiu sobre os remadores como se fosse o manto da lenda da primeira noite do mundo. Vozes noturnas tomaram conta do rio com a sua polifonia: jacurutus, bacuraus, mil e um coaxos, urutaí mãe da lua... E ainda vieram os búfalos caír n'água a pouco metros da canoa.



O labirinto na noite do rio

Deixa estar que a gente da parte baixa do Arari até as beiras do Marajó-Açu, passando pelo Canal e o Curral Panema, não conhecia o tal de búfalo falado. O pessoal que subia o Arari quando baixava vinha com estória cabeluda, diz-que o bicho era um terror. Quando eu era pirralho tinha até pesadelo com a figura do búfalo imaginado, animal estranho no Marajó até boa parte do tempo.  

A gente ia remando durante a noite inteira e quando o sono pegava um tirava cochilo na proa e o outro passava à popa pra pilotar e continuava remando até se cansar. E assim a Favorita ia navegando devagar até o dia raiar... Pelo meio dia, mais ou menos, a gente encostava na beira pra preparar a boia, dormia um pouquinho em riba da coberta de palha estendida no chão e mais adiante continuava a viagem.

Antão, altas horas da noite, era mea vez de pilotar a montaria e a gente ia calmamente passando paresque em frente à fazenda Pindobal, conforme disse meo camarado Vadico, mais ou menos seguindo as informações do tio dele, chamado Cidoca; o qual diz-que havia recomendado muito cuidado aos búfalos que existiam em quantidade na tal fazenda... A gente tinha as piores notícias dos búfalos no alto Arari: bichão brabo, paresque o Minotauro da estória; que virava canoa no rio e atacava o pessoal em terra. Muitos relatos chegavam nas bandas de baixo sobre ataques, sobretudo dos rosilhos: a pior das piores raças de búfalo segundo esta gente dizia.

Foi aí qu'eu vi aquilo no meio do campo, pintado de carvão, uns certos vultos parrudos, como se fossem ilhas escuras que vinham vindo no rumo da beira. Ouvi Vadico murmurar, "búfalo"... Ah, pordeus! Fiquei todo arrepiado e de cabelo em pé. Os bichos caíam n'água fazendo estrondo que nem barranco quando despenda da ribanceira fazendo tibum... Aquela zoada surda ecoava no medo da gente, de margem a margem. Ainda mais que o rio Arari do seu médio curso pra cima é estreito e cheio de curvas formando um labirinto danado.

Búfalos nadam como o diabo e são ótimos mergulhadores: quando reparei, o rio estava coalhado de búfalos e a canoa estava cercada por muitos deles. Botavam focinho fora d'água soltando bufos de ar e eu tive impressão de que um grandão veio boiar de propósito bem do lado da borda direita pra espiar de perto que bicho ia passando. O'zolhos do animal paresque brilhavam à fraca luz do rio na superfície... Ouvi dizer que os bichos em geral sentem o cheiro do medo da gente e o medo vinha do fundo querendo paralisar as remadas. Calados que nem um baú fechado!... Masporém, algo dizia pra gente não dar parte de fraco e não parar de remar nem remar de com força. Antão a gente fomos passando, devagar, sem fazer barulho... E quando vimos que já era boa a distância: força na remada, quero ver meo mano, vir nos pegar!...

O rio fazia mil e uma curvas que nem o rasto da Cobragrande e alongava as distâncias. Me alembrei do meu avô Alfredo contando como foi que os búfalos vieram parar no Marajó, comecei a conversar pra espantar o sono e o sumano Vadico ia perguntando. Aquela conversa paresque servia para as vozes da noite se calarem e as curujas prestar atenção. Diz-que, antigamente, uns condenados de Caiena fugiram num barco com carregamento de algumas cabeças de búfalo e acabaram naufragando na Contracosta da ilha do Marajó onde os animais se soltaram e chegaram em terra a nado. O certo, dizia meu avô que foi secretário do coronel Bento na intendência da vila de Cachoeira; o irmão do dito coronel, chamado doutor Bertino Lobato de Miranda; trouxe um lote de búfalos para a fazenda São Joaquim donde os animais se espalharam. Depois dessa levada de búfalos para a São Joaquim, o doutor Vicente Chermont de Miranda trouxe mais búfalos de fora e mandou para as fazendas dele, Dunas e Ribanceira; masporém aí os bichos se amoitaram e ficaram brabos... Eram da raça Rosilho, dito Carabao. Ai "sô home" é que começou a estória de búfalo brabo fazendo o diabo quando topava com gente pela frente. Conversa estava boa, mas era hora d'eu passar pra proa da canoa e tirar mea soneca...

A viagem voltou pra trás...

Com efeito! A gente já tinha adiantado bastante o caminho quando, ao cair da tarde do terceiro dia de viagem, a Favorita passava mansamente em frente duma bonita casa grande de fazenda... "Que lugar é este?" - eu perguntei. "Paresque, a fazenda São José"- respondeu Vadico. O burro perguntando ao que não sabia. Uma viagem como está o que, zinho, livra da ignorância é a suposição... E ainda tem ignorante que não sabe o valor duma boa suposição. O camarado guia da viagem nunca havia feito o curso superior do Arari, masporém ele tinha tio Cidoca por valia de mestre e muita gente conhece geografia por ouvir dizer, por que a tal ilha do Marajó são ilhas do labirinto maior do que o reino de Portugal, paresque. 

A gente fala aqueles nomes de fazenda como as contas do rosário: Matinada, Diamantina, Cueiras, Espirito Santo, Oriente, Santa Bárbara, Santa Quitéria, Por Enquanto, Mãe Maria, Montenegro, Santa Catarina, Tapera... E quanto acaba ninguém foi lá, masporém estórias desta e daquela fazenda vem à roda de conversas de compadres pelas vilas e pelas anedotas de tripulação de barcos e mais embarcações na espera de maré. Literatura escrita tão só na cabeça dos contadores de causos. Quem é destas bandas, falou no nome da fazenda já sabe que se trata da família tal e qual, lembra quem foi a baronesa dona Leopoldina ou o rei do gado coronel Antero. De toda maneira, bom saber, como diz o outro: os cabocos sabem que os brancos não sabem...

Mais uma vez caiu a noite fechada e a gente no meio do rio sem nenhum lume que não fosse estrela do céu e olho de jacaré pela beira do aturiá. Lutando contra o sono e a lonjura. Coube ao Vadico pilotar a montaria no último estirão da madrugada. Ai amanheceu e o sumano remando, remando... Quanto, antão, me acordei e vi que a canoa tinha "andado" pra trás... "Eh, sô home, olha lá... aquela não é a tal fazenda São José que a gente passemos ontem de tardinha?". Vadico soltou um grito: "Puta que pariu! Ela mesma."... O mano reconheceu, segundo a instrução falada de navegação a remo por tio Ciloca, que a gente estava voltando por vontade própria da canoa. 

Como assim? É que da vila da Cachoeira pra cima a subida do rio é sempre contra a correnteza que desce do Lago serpenteando entre voltas e contravoltas: eu dormindo na proa e o piloto na popa, com certeza, vencido pelo sono ou a mundiação da Boiúna, sem afrouxar o remo da mão; deu um baita cochilo e a montaria indo de bubuia rodopiou na correnteza... Quanto, antão, o camarado se acordou ele não prestou atenção que a gente tinha mudado de direção no escuro e continuou a remar: a Favorita, canoa safada, talvez com saudade do Bacurituba queria voltar rio abaixo... Pai d'égua! Haja a gente, quase no bagaço, ter que recomeçar a viagem.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

A CABO DE REMO EM MONTARIA A FIM DE CONHECER O LAGO (6).


... "A primeira contradição do Marajó é a ditadura da água, como o padre Gallo falou. A segunda e imediata contradição é o engano da vista da gente vendo tanta amplidão de terra neste mundão e, quando acaba; vai saber, é tudo quinhão de poucos. Retiros de gado e feitorias de pesca se batem num combate surdo e feroz, ai de nós; dois goiabas chegando que nem cego em meio ao tiroteio..."


ÁGUAS ARDENTES E BOAS CONVERSAS

Aí a gente se levantamos sem pressa pra tirar os troços do chão e levar tudo de volta pra canoa. E o vaqueiro lá, zombando da cara da gente montando guarda do alto da sela esperando os goiabas cair fora. Vadico foi a bordo remancheando e voltou da canoa com uma garrafa de cachaça dizendo ao rapaz, "pega aí camarado...". O cara se curvou de cima do cavalo estendendo a mão pra pegar a branquinha. Aí ele mudou de conversa... O caso não era mais por que o patrão, lá dele; diz-que não deixa pescador ou goiaba encostar em terras da fazenda. Já era, paresque, por causa do diabo duma onça que andava rondando curral naquelas bandas...

Adeus cansaço. Na voz de que tinha onça por perto não carecia mais explicar porra nenhuma. De volta ao rio, demos c'os remos n'água... A Favorita avançava lentamente rumo ao Lago ainda bastante distante sem que, na verdade, a gente fizesse ideia do que nos esperava dali em diante. Quando a gente faz uma viagem dessas não adianta ter pressa. Cada um do seu lado vai remando calado, sobretudo se o sol vai sentando na boca da noite... Aí bate uma saudade do que ninguém sabe dizer o quê. Talvez o cair da tarde escutando pássaros de volta ao ninhal, toda paisagem começando a trocar suas cores pelo lençol da noite bordado de estrelas, seja que nem uma reza antiga murmurada à ilharga da mãe da gente.

Carecia, entretanto, mudar de tática. Em vez de se ariscar a dormir em terra ao deus dará, melhor era cada um por turno tirar uma soneca se agasalhando conforme desse, entre a carga; enquanto o outro ia remando e levando a montaria - na manha -,  até raiar o dia. O que calhava estar dormindo na proa ao despertar cuidava de fazer café no fogão improvisado. O que vinha na popa, antão passava pra frente e ia tomar café. Aí os dois remadores, descansados, amiudavam as remadas para agilizar a viagem. Haja estirão após estirão...

Naquela tardinha, porém, ainda demos uma encostada numa ponta de mato na beira pra pegar lenha, fazer janta e aproveitar pra ticar ituí e traíra que se ganhou na feitoria da Jutairana, peixe bom de comer mas que tem espinha por demais entremeada na carne e que vinha guardado salmourado dentro de um balde de cuia de bom tamanho. Se não for ticado, quer dizer riscado miudinho com faca afiada; não há quem se astreva engolir, sem ficar com espinha de peixe atravessada na garganta. Por falta de experiência, a gente cozinhamos o peixe pro almoço com toda espinha. Ah, pordeus! Só deu pra comer, malmente, catando a parte da barriga e aproveitar o caldo pra fazer pirão com farinha. 

Agora, sim, numa boa. A gente haja a saborear a caldeirada perfeita antes da noite fechar... Quando, desta vez, os donos do pedaço piores que feitor de fazenda ranzinza e onça faminta, apareceram num átimo de dentro do mato e caíram em riba dos goiabas de primeira viagem... Eram, paresque, milhões e milhões de carapanãs e muriçocas. Aí a gente saiu de carreira da beira pra dentro da canoa empurrando pra fora e se coçando, "vumbora, sumano, vumbora..."... "Égua, porra!". Se eu disser que nunca corri de praga, estarei faltando com a verdade.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

A CABO DE REMO EM MONTARIA A FIM DE CONHECER O LAGO (5).


... "Masporém, a viagem estava só no comecinho. Era dia 4 de outubro, segunda-feira, talvez, pouco mais ou menos cerca das oito horas da manhã". A gente largou da feitoria na Jutairana e, rio acima, passando do meio-dia encostamos a Favorita numa beira da margem esquerda onde amarramos a canoa num tronco. Desembarcamos a ver se o lugar em terra era bom pra passar o tempo até o sol sentar. Procurar lenha, armar o fogão, estender a coberta de palha ao chão, tratar o peixe ganho pra boia, salgar o resto, acender fogo, cozinhar, encher o bucho e descontar o sono perdido no cabo do remo em riba do chão debaixo da sombra duma ramagem na borda do campo. Daí há pouco tempo, acordamos ouvindo tropel dum cavalo bufando quase na cara da gente... Quando eu abri um zolho tinha um vaqueiro montado no animal, dizendo ele pra gente se levantar e cair fora. Pensei que era bandalheira pra meter medo, mas o cara falava sério.


A PARTE QUE ME TOCA NESTE LATIFÚNDIO


Cedo a gente aprendemos, quem vem de baixo pelo rio não pode chegar ao Alto Arari e meter a cara sem consentimento em terra de fazenda. Apesar da grandeza de tantas terras, no Marajó tudo tem dono: o mundo em geral é de Deus nosso senhor, mas Ele tem ilustres representantes na terra e grandes proprietários contemplados, o resto é posseiro e forasteiro... 

Se o fazendeiro de costume mora na cidade, tem feitor em seu lugar e se o feitor mora longe no corpo da fazenda, antão tem vaqueiro no retiro que é, a modo, vigilante do campo que nem Quiriru; pássaro a tudo atento ao que se passa ao redor e que dá alarme ao menor sinal de animal ou gente estranha, com seu grito estridente que diz "quero, quero"... É certo que o passarinho defende o ninho, enquanto o sumano vaqueiro, com sua pobreza galopante, tem medo de perder lugar de sustento da sua gente e não encontrar mais outro lugar no mundo. Noutra viagem ao Lago, conheci um homem chamado Pedrão, afilhado de São Pedro Pescador; era um cabocão fiel ao taberneiro que lhe aviava a pescaria. Se ele desse um tapa num mamote era capaz de quebrar o cangote do animal: masporém, se ele encontrasse um capanga de fazenda, carecia depressa tomar um gole de cachaça pra passar o nervoso... 

Certo dia alguém lhe perguntou, "Pedrão, se tu por acaso encontrasse com Deus nosso senhor e ele te dissesse, Pedrão, meo filho pede arguma coisa e eu te ajudarei... Que tu pedias?". Pedrão, arrespondeu: "Ah, sô home; se eu topasse por aí com Deus nosso senhor, pedia um pução, com um trilhão de jacaré dentro". O pobre Pedrão na vida só sabia arpoar jacaré e imaginava "um trilhão" como quantidade infinita. Assim se repete esta desinfeliz história, desde o tal diretório dos índios e os Contemplados, por toda eternidade...

Na verdade, a viagem da canoa Favorita se passou em 1955 e hoje é 20 de novembro de 2013: dia da Consciência Negra. E a gente não sabe ainda que os primeiros negros da terra do Brasil foram tirados, no pisão, da ilha do Marajó pelo espanhol Pizón, no ano de 1500, antes de Pedro Álvares Cabral. A gente também não sabe que no dia 20 de novembro de 1756, foi achado no igarapé do Severino o teso do Pacoval do rio Arari, pelo capitão Florentino da Silveira Frade, dono da fazenda Ananatuba e fundador da freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Cachoeira do rio Arari. O Pacoval é o primeiro sítio que se teve notícia da milenar cultura marajoara. Primeiro cacicado das regiões amazônicas: portanto, por acaso, esta simplória viagem ao passado acaba sendo, de alguma maneira, uma incursão do presente à história do futuro casamento da Consciência Negra com a resiliência da antiga Cultura Marajoara. Quem viver verá...

O HOMEM DA JEBRE É UM SOBREVIVENTE

Hoje aquela estúrdia excursão da canoa Favorita vem em busca do tempo perdido, tropicando pelo incerto caminho da memória à luz do crepúsculo. Muita coisa se apagou e outras tantas agora se misturam numa pálida lembrança. Masporém, os cacos da história refazem a viagem e por esta causa fui saber, tempo depois, que na repartição do vasto mundo marajoara ainda faltava contar com a incrível, inimaginável e incomunicável Jebre... A Jebre é terra de febre nos bravos mondongos e Contracosta, terra dos negros da terra capturados por Pinzón. 

A Jebre assustadora é chavascal geral onde bichos, gente perigosa, encantados e fantasmas sobreviventes do interminável passado das malocas e mocambos, antigamente, se refugiaram à margem da história. Dizem as más línguas, que a Jebre é quartel-general de ladrões de gado: todavia, como podem dizer isto aqueles que, muitas vezes, roubaram a história dos cabocos, se nenhum civilizado jamais conheceu a Jebre e muito menos sabe da crua existência do jebrista explorado pelos verdadeiros gatunos? 

Tenho pra mim, que voltei a Santa Cruz, e fui repórter do fim do mundo cerca dos primeiros anos da criação do município desmembrado do distrito do Alto Arari de Ponta de Pedras, que o homem da Jebre é, sobretudo, um sobrevivente da conquista do Marajó e da ditadura da água. Mestre Giovanni Gallo chegou com os ventos da renovação da igreja romana, cerca de dez anos depois desta citada passagem, confirmando ele em memoráveis reportagens transformadas em livro o que Dalcídio escreveu em romance, desde 1939, na vila de pescadores de Salvaterra, distrito de Soure

Pra quem não sabe, meu bisavô materno era camponês da Galiza (Espanha) veio ele para o Marajó, com uma mão à frente e outra atrás, que nem outros imigrantes que, após a Cabanagem, ganharam terra, gado e escravos para refazenda da então decadente pecuária no Pará velho de guerra. Camponês da pobre Galiza, teve ele sua chance no Baixo Arari, onde viveu e morreu trabalhando, com seu quinhão de terra no Fé em Deus, por obra e graça do império brasileiro no Rio de Janeiro. Sem o que não estaria eu contando estória...

Por que então, agora, não consentir uma lasca de terra à criaturada na beira do rio e algumas linhas de memória a esta gente despossuída de história decente? Não acho justo ver fazer uma coisa dessas com caboco e enfiar viola no saco... Mais ainda concordar com a inconsciência de descendentes de índio, preto e imigrante que são contra as tais "afirmações positivas", vulgo inclusão social e redistribuição de renda. Dói na lembrança recordar um vaqueiro tonto a tirar do sono e enxotar dois goiabas cansados de remar a fim de conhecer o Lago Arari, na inconsciência da condição humana negreira para dar satisfação ao feitor da fazenda.

O tuxáua Plasmódio toma conta da porteira da Jebre: acho que a malária que eu peguei no Lago Arari foi um batismo de fogo a 40 graus de febre... Último reduto da resistância marajoara à conquista do rio das Amazonas... Lugar além da imaginação civilizadora, onde branco não anda e vaqueiro que tem juízo não mete a cara sozinho. O caboco da jebre - mais bicho do que gente, que nem seu extinto parente índio aruã - não conhece cidade, em compensação ele sabe tudo que se passa no reino das fazendas, mas as fazendas não sabem o que se passa na jebre. Como me disse, mais tarde, um morador de Santa Cruz: "Os cabocos sabem que os brancos não sabem"...

A primeira contradição do Marajó é a ditadura da água, como o padre Gallo falou. A segunda e imediata contradição é o engano da vista da gente vendo tanta amplidão de terra neste mundão e, quando acaba; vai saber, é tudo quinhão de poucos. Retiros de gado e feitorias de pesca se batem num combate surdo e feroz, ai de nós; dois goiabas chegando que nem cego em meio ao tiroteio...

terça-feira, 19 de novembro de 2013

A CABO DE REMO EM MONTARIA A FIM DE CONHECER O LAGO (4).


... depois de breve parada no trapiche de Cachoeira recomeçamos a subir o rio: "Vadico desceu de terra e passou para a proa. Prosseguimos a viagem. O dia ainda estava longe mas a gente não queria perder tempo por nada deste mundo."


AMANHECEU NA FEITORIA À BEIRA DO RIO

Passado um dia e uma noite, quando o segundo dia de viagem clareou a gente viu, de verdade, que já estava dentro do Arari falado: feliz da vida... O tempo estava apenas começando e passava devagar sem pressa de acabar como a saborear uma boa caneca de café. A Favorita fazia boa viagem e começava com pé direito, graças a Deus... Naquelas paragens do Marajó velho, sem Deus pai, Santa Maria mãe do Menino Jesus, o Divino Espírito Santo, todos os santos e os caruanas nada andava pra frente nem que o caboco quisesse andar direito. Sem acreditar nessas crenças todas, paresque, dava uma pissica danada e o sujeito não levantava cabeça...

Era um mundinho ribeirinho onde São Pedro Safadinho reinava com pescador, a ver paresque se o cara tinha merecendência para herdar o antigo paraíso perdido. Masporém ninguém gostaria de ir embora do Marajó sem mais nem menos, mesmo aguentando às vezes as piores injustiças e necessidades. Meu pai dizia que quando chegava em Cachoeira e os olhos dele davam em riba dos verdes campos lavrados a perder de vista, o peito se abria com a respiração farta e seu coração se alegrava tanto: antão eu vi que era verdadeiro o que meu pai me dizia. E eu que sentia saudades de alguma coisa que só conhecia por ouvir dizer... Pena que já não fosse mais o velho e bom Arari do tempo do gado do vento crescendo amoitado que nem capivara ao deus dará e das vacas gordas da malhada vivendo fora de laço e curral, como mea mãe contava de quando ela era mocinha na Diamantina e no Porto Santo, lá pelos idos mais ou menos de 1920. O rio da memória também é rio dos outros, que a gente se empodera pela história contada ou escrita por muitos.

Agora imagina a fartura d'outras eras e a primitiva antiguidade do Marajó antes das escassas sesmarias dos barões, que desde longe desta terra com a sua ávida inconsciência inventaram a pobreza da despossuída gente! O que eu e o sumano Vadico Ferreira, bancando goiaba sem eira nem beira; íamos ver no Arari era, paresque, a última liquidação do antigo tempo bão... Por acaso, duzentos anos depois que o governador irmão do Marquês de Pombal mandou o capital Florentino Frade, fundador da freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Cachoeira do rio Arari, levantar o inventário das fazendas dos padres. Pra você ver com quantos paus se faz uma canoa... Mas, àquela hora da primeira manhã rio acima, a gente não sabia nadinha do passado ainda escuro nem do futuro que ainda iria vir.

O desmemoriado pescador das tribos perdidas e pobre descendente de índio desafortunado, lutando por uma nesga de terra a fim de armar barraca de pesca junto d'água onde ele e seus camarados pudessem jogar tarrafa e estender a rede de pesca pra arrumar o de comer. Enquanto fazendeirão de pés no seco dentro de sapato no bembom da cidade, mandado feitor meter a porrada, expulsar da beira e tratar a gentinha ribeirinha a coices. 

A gente era analfabeta de pai e mãe e os ricos diziam que Deus nosso senhor fez o mundo assim, desigual e sem jeito, desde os princípios. Nisto porém a gente não podia acreditar, porque Deus é pai, não é padrasto... Portanto, era a luta manhosa do pobre sempre acusado de ser ladrão de gado contra fazendeiro malino que roubou a terra que Deus pai havia dado aos índios e contra a polícia de fazendeiro escroto que não deixa a gente sossegar num canto.

Prova da castigada inocência da gente, é que no dia da Favorita zarpar do igarapé Bacurituba rumo ao Alto Arari, 3 de outubro de 1955, foi dia de eleição para o cargo de governador do estado e a gente não sabia nadinha, dado o ilhamento a que se havia chegado depois de certo tempo após a quebra da Borracha (logo no Serrame, que foi um dia no passado distante comércio e estaleiro!). Compadre Manduquinha, metido a pajé; até o Vadico sempre tão esperto, a comadre Didi que tudo sabia por ali, papai tão ligado à política de Ponta de Pedras através do jornalzinho falado chamado tia Lodica; mamãe que era uma águia e a memória viva da família, ninguém sonhou... Se não, não tinham nos deixado sair do porto... 

Lá pelo Curral Panema adentro todo mundo era Barata desde criancinha, mas ninguém perdia tempo pra falar em política nem em time de bola. Se havia algum eleitor ali iria votar no Itaguari. Tanto que os dois goiabas, que eu e meu camarado Vadico éramos, nem nos demos conta que dia da semana a gente estava e, muito menos, que o dia da viagem ia calhar com a eleição. Égua da ignorância, sumano!... 

Qu'eu me lembre bem, a única pessoa lá pelas bandas do Serrame que falou na tal eleição que ia ter naquele ano, mas não disse o dia, foi o seu Benedito Santiago Frangalho, um senhor de meia idade, mulato, dono do sítio Meia Noite e da igarité Oliveirazinha. Ele era do contra sem barulho, aliás o único contrário ao Barata naquelas bandas, que eu saiba. Dizendo ele que iria votar no doutor Epílogo de Campos, cujo nome eu nunca tinha ouvido falar e ele não se atrevia a dizer direito, chamando-o curiosamente de Doutor Pilogo de Campos... Bom vizinho e homem viajado porém de origem humilde, não sei dizer por que motivo seu Benedito Frangalho ficou do contra ao baratismo, se o baratismo era do lado dos pobres. Talvez por influência do Doutor Romeu Santos, chefe dos contra em Ponta de Pedras, ou do deputado João Viana, de Arariúna, aliás Cachoeira... Este um, diz-que, ficou inimigo do Interventor uma vez que este tendo tirado a Comarca de Cachoeira para levar a Ponta de Pedras; fez um ardido discurso de protesto e acabou preso por desacato à autoridade. Era a revolução de 1930 abrindo o verão na ilha...


Quanto custa uma arroba de peixe? 

Devo confessar que eu estava deveras muito cru naquele negócio metido no papel de goiaba com meu sócio Vadico. Também ele já não me parecia o bambambã da marretagem da hora da partida, lá no Bacurituba. Passando de Cachoeira pra cima éramos dois abestados por igual incompetência. O tio Cidoca era o guia mental daquela estúrdia viagem, ele lá no Itaguari, constantemente lembrado por nós meio na casa do sem jeito e no mato sem cachorro. 

O bom leitor já pescou que a palavra camarada é feminina no vocabulário caboco; portanto, o Vadico era capaz de se ofender e até puxar briga se alguém desconsiderasse que ele era macho até debaixo d'água... Em compensação, uma caboca batizada como Maria do Socorro, no Curral Panema acabava sendo chamada de dona Socorra, posto que socorro é masculino. Paresque, meu camarado levava um mapa traçado na cabeça, lá dele; com aqueles nomes de fama pelas beiras remontando o rio Arari: Laranjeiras, ilha do Setúbal, Itacoã, Porto Santo, Fé em Deus, Gurupá, Curral de Meias, Mãe Maria, São José, Jutairana, Manjerona, Pindobal, Mercês... Eu nem pra perguntar a quem sabia de fato! Vadico dizia conforme lhe parecia de acordo com o relato verbal do tio Cidoca, pronto já eu dava por certo... Mas, agora no fim da estória, como refazer o mapa da memória que já vai esmaecendo? Se o mapa não é o território, devo saber...

De fato, onde localizar aquela primeira feitoria a qual nós fomos parar pra tomar café e fazer o primeiro negócio, vendo aquela gente tratar e salgar o peixe? Terras da Jutairana? Não sei... O certo é que aproei a canoa rumo à beira, fomos folgando remadas e nos aproximando. Um cachorro magro se levantou do seu canto, latiu como era de obrigação e voltou a deitar em riba da juçara pra coçar suas pulgas... O pessoal estava avexado, cedo a pesca acontecia antes do sol se levantar. Uma feitoria de pesca é mundo na beira do rio: gente, mulher e criança tudo misturado... Todo mundo pitiú tratando peixe em quantidade, ao mais que depressa, para não deixar estragar... Não há tempo a perder: quem escama escama, quem tica tica; quem destripa destripa e quem salga salga... De tarde, barriga cheia e folga na rede de dormir até madrugada quando o galo canta pra pegar a outra rede e batalhar n'água com arraia, cobra, piranha, jacaré a fim de trazer o peixe. Aquela gente vivia de rede em rede: da conceição ao parto, vivia a bem dizer de rede em rede da hora do descanso e do trabalho, até na morte a sorte do caboco era ir da barraca ao cemitério dentro de rede.

O patrão dono de geleira ficou na cidade ou no balcão da taberna num sítio remediado, aviou tudo que o pescador e sua família carece pra montar feitoria. Agora esta gente tem que dar conta do recado, direitinho, se não o crédito acaba. Antão, também acaba o sal, querosene, açúcar, café, cachaça, tabaco... O jeito só Deus sabe, quando o panema perde crédito do patrão e o Diabo da fome manda procurar rês atolada roubando-a primeiramente aos urubus.

"Bom dia", disse Vadico na proa da montaria ao se aproximar. "Pode vir", respondeu o dono da feitoria se levantando e caminhando em direção aos recém-chegados. "Cadê a cachaça?" O homem perguntou e Vadico respondeu, "taqui, sô home"... Na feitoria tudo é improviso, barraca de palha, jirau de taboca, crianças, cachorros, papagaio, periquito, mulheres pegadas ao serviço, rede de pesca, linha, tarrafa largada ao chão, tudo meio misturado à lama em confusão, rede atada com o jitinho de peito dentro todo mijado e cagado, moscas... Sacas de sal em riba dum estrado perto do fogão ao chão sobre o qual a panela pendurada numa forquilha inventa a trempe que não há e a lenha acesa embaixo faz o que faz. 

Ali ninguém estava a fim de maiores gentilezas, dizendo por exemplo sou fulano de tal, como é a sua graça? beltrano, muito prazer, etecetera e tal... A mulher cara de índia pura passava um café e entregou ao homem duas canecas de esmalte fumegantes que ele serviu aos supostos fregueses recém-chegados... Vadico cortou fora quatro dedos de tabaco num mole que parecia ter uma braça de comprimento e deu de agrado ao dono da feitoria. Este um tinha um tope maranhense aclimatado ao interior do Pará há uns quantos tempos; passando a ele também uma garrafa de cachaça. Era de praxe tais trocas pra ficar freguês. 

Aí eu já me entremeti no assunto sem ser chamado e perguntei, "o senhor pode nos vender peixe?"... Hoje me dei conta que eu disse uma besteira e tanto: era como se eu fosse na padaria da esquina perguntar se podiam me vender pão. Eita, porra!... O homem me olhou com cara de riso e perguntou: "quantas arrobas o amigo quer?... Disse-lhe, "não senhor, é pouca coisa só pro almoço"... Antão o homem viu logo que o goiaba era marinheiro de primeira viagem, deu uma risada safada e emendou. "Tu quer a boia, não se vende boia pra ninguém. Me veja um paneiro". Peguei na canoa o único paneiro que estava vazio, era um de meio alqueire. O homem encheu o paneiro de ituí-cavalo, jeju e traíra até a boca... Coisa como quinze quilos, pra dois cabocos tirar o bucho da miséria estava muito bom. O Arari dava lição de comunidade que era uma beleza. "Adeus, mea gente", disse Vadico soltando o cabo da montaria. "Vão com Deus", disse o dono da feitoria. O nome do Todo Poderoso, ali paresque, era a modo passaporte ou salvo-conduto pra gente chegar e voltar do Lago, são e salvo. Masporém, a viagem estava só no comecinha. Era dia 4 de outubro, segunda-feira, talvez, pouco mais ou menos cerda das oito horas da manhã.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

A CABO DE REMO EM MONTARIA A FIM DE CONHECER O LAGO (3).

Trapiche de Cachoeira do Arari, rio Arari
... e a lancha de costume não veio naquela vez rebocar ninguém rio acima, pois era dia de eleição. A gente não sabia nadinha: "Que fazer agora parado na beira à espera do reboque que não vinha mais? Voltar pra trás ou seguir adiante se fosse capaz?". Sem pestanejar, desamarramos a montaria e metemos remos n'água e só fomos parar no velho trapiche municipal de Cachoeira do Arari, todo feito de grossos esteios e pranchas de madeira de lei. Não era exatamente assim, em concreto armado, como se vê na foto. Nem existiam embarcações a motor como essas, exceto raros barcos-motor de transporte de gado, como o imponente "Perge", do coronel Antero Lobato, por exemplo.



A FAMOSA CACHOEIRA À PRIMEIRA VISTA

Naquele tempo, se eu soubesse e meu entendimento desse, teria imaginado que o sol foi sentar no Araquiçaua que nem um rico pajé-açu em toda sua glória, um pouco acima do furo das Laranjeiras e do Porto Santo, para atar sua rede vermelha, dormir e sonhar com a Terra sem males até o cantar do galo mágico fazendo raiar o dia. 

Antigamente, numa hora daquelas, o pouso do sol desfeito em rubros clarões era azo perfeito pra alguma tapuia sonsa, tendo seu bem querer distante, ir lavar o xiri, lá dela; com água de cheiro e fazer a reza brava (dita oração do Sol) a fim de amarrar o companheiro dela a seus pés, chamando o amado em pensamento pra sua ilharga. Ninguém já não sabia mais destas coisas tamanhas do passado e poucos sabem hoje em dia que este lugar foi baliza da saga do tremendão Tupinambá na conquista da utopia selvagem, dita a "terra sem mal" no Grão-Pará. Uma civilização solar no rio das Amazonas. Isto tudo que habita o fundão da alma da Criaturada grande de Dalcídio, masporém esta gente não sabe que sabe... 

O rio ficou de repente escuro que nem breu, tal qual a lenda da primeira noite do mundo... Grave foi a decisão, naquela hora à boca da noite, de empurrar a "Favorita" ao encontro do destino na reponta da maré rio acima. Sem uma luz, zinha que fosse, pra guiar a gente naquela estúrdia viagem ao Lago. Vadico segurava o jacumã na popa da canoa e eu remando na proa não dizíamos uma única palavra. A canoa paresque crescia nas trevas e pesava demais da conta aos dois remos, como se fosse um feio batelão, com seu carregamento de mercadoria e medo fugindo da senzala e tortura no Viramundo nos tempos da escravidão. 

A bonita "Favorita" perdia suas cores ainda cheirando à tinta nova, roubava dos dois remadores seus quatro ouvidos e quatro olhos arregalados querendo divisar alguma paisagem debuxada a carvão no muro da escuridão pelas margens do rio. Um frio vinha do fundo das águas engelhando a pele da gente e ia congelar a espinha. De forma que, cada remada com sustância, era fonte de energia e calor que vinha do interior da gente passando pelos braços para se aconchegar ao coração. 

Pelas veias do remador - rios de sangue no seio do rio-vida - navegavam cardumes devorados em caldo, pirão de farinha e pimenta malagueta no molho de tucupi: que nem a lancha-vapor de reboque consumia florestas transformadas em acha de lenha para consumar cada viagem... Cada viagem era só uma viagem no curso da única e verdadeira viagem. Talvez, já não me lembro muito bem, naquele transe fluvial arariuara antepassados canoeiros do camarado Vadico assumiram o comando da montaria chamada "Favorita". Certo como um fuso a gente iria chegar, na vez e na hora, no porto da Cachoeira. Até aquele ponto, malmente, o piloto conhecia a navegação. Dali em diante, rio acima, paresque tudo seria novidade e descobrimento...

Por favor, não esperem deste tímido remador do rio da memória um relato lá muito exato com a realidade, como num diário de bordo ou carta de navegação. Agora, paresque por mágica, o remo de pitaíca se transformou em teclado de computador. O rio e a canoa se tornaram a mesma coisa numa estória fluvial que a fadiga e o sono também contam e levam a um lago de subjetividade.

O Rio Arari: rio das araras
 
Para os brancos, na verdade, a Ilha Grande de Joanes, ou Marajó não começou a ser ocupada antes de 1680. Porta aberta da conquista da ilha grande, todavia, o Arari foi palco da cobiça dos guerreiros Tupinambás e cenário de guerra entre as mais velhas etnias Marajoaras e invasores Aruãs, cerca de 1300. O nome "arari", provavelmente aruaque, significa "rio das araras" (do Aruak, 'ara', arara por onomatopeia; e 'ari', rio). Prova de conflito hereditário entre povos indígenas que habitaram a região antes da ocupação e colonização portuguesa. Toda viagem ao Arari deve ser, doravante, uma iniciação ao pensamento descolonial com paragem obrigatória no trapiche de Cachoeira e visita ao museu do Gallo, casa de João Viana e ao chalé de Dalcídio Jurandir tombado ao chão e levantado pela memória por obra e graça do ciclo Extremo-Norte...


No fundo de suas águas barrentas jaze a velha "cachoeira", simples salto no fim do estio; enterrado pelo assoreamento. Já não existem araras no rio, a árvore Folha-Miúda que poderia ser árvore símbolo da paisagem cultural daquele rio histórico; também foi derrubada com a devastação da mata ciliar fazendo acelerar a erosão... O velho Arari tem nascente no lago do Arari pela ponta sul e desce serpenteando através dos campos. Segundo a teoria do índio arariuara, na "Notícia Histórica" (1783), existiam antigamente muitas cobras grandes e medianas no Lago e veio o maior verão que já houve nesta ilha. Quando o sol lambeu a última gota d'água e a lama quente começou a secar, as cobras todas meteram força procurando o mar e foram abrindo a terra em frente, rebolando e se contorcendo... Foi assim, que as cobras grandes abriram o Arari com tantas voltas, e as menores abriram os igarapés.

O Lago resiste em todos os sentidos, masporém está morrendo lentamente, já faz tempo: a bem dizer, desde o tempo do Barão de Marajó, no governo da província do Pará, em fins do século XIX. Quando ele contratou engenheiro português pra apresenta projeto de esgotamento das águas da chuva, como os canais das Tartarugas e dos Mocoões. Talvez tivesse sido melhor chamar engenheiros holandeses, que longe de querer dissecar o que o assoreamento de igarapés e a colmatagem dos lagos já estavam a produzir na lenta e inexorável morte da natureza anfíbia; poderia trazer a experiência dos verdes prados da Holanda, com seus diques, moinhos de vento e canais...

Ainda hoje não se viu o caminho natural da engenharia dos índios, com seus tesos e aldeias suspensas sobre campos alagados... O Alto Arari se reparte entre Santa Cruz do Arari, Cachoeira do Arari e Ponta de Pedras. A vila do Jenipapo e a fazenda Menino Jesus no município de Santa Cruz do Arari ficam à margem direita e na esquerda as fazendas Tuiuiú, Arari, Santa Maria e outras do município de Cachoeira do Arari, baixando o rio ele se divide entre este último município e Ponta de Pedras estreitando-se e se tornando sombrio e lodoso para se alargar novamente no Baixo Arari, onde corre dentre margens altas de pedras e desemboca na baia do Marajó, deixando à direita a ilha de Sant'Ana e à esquerda a boca do Caracará.

O Arari conta com um curso de 120 quilômetros de extensão. Era isto e mais alguma coisa do tamanho de uma maré, do furo das Laranjeiras até o igarapé Bacurituda; que os remadores da "Favorita" tinham que enfrentar, ida e volta. Ou seja, qualquer coisa, perto de 200 e tantos quilômetros a cabo de remo. Nada mal pra dois "goiabas" novatos. Se aquele rio falasse, como de fato ele fala a quem tem ouvidos de escutar e olhos pra ver direito; como o O Nosso Museu do Marajó ensina; a gente saberia quanta riqueza e quanto fortuna amealhada a cabo de remo, por ali, passou a cada remada... E quanta estória sonegada, daquelas tantas que viajavam a bordo de barco, canoa ou igarité.


Eu não podia acreditar! Chegamos em Cachoeira alta hora da madrugada. Muito cansados. O frio vinha do fundo do rio. Vadico encostou a canoa ao pé da escada do trapiche e foi verter água em terra, paresque, aproveitando pra se informar melhor sobre o que vinha pela proa... Passei para a popa, puxando uma manta sobre os ombros e arriei a aba do chapéu de palha sobre o rosto a fim de chochilar um pouco. Até hoje sou mole pra aguentar sono... Ouvi um caboco chegar dizendo ele, assim: "hê, meu tio, me atravesse pra'quela geleira lá fora...". Fiquei deveras admirado, nunca um adulto me tinha chamado de tio. O tratamento de "tio" é respeitoso entre a gente ribeirinha. Prontamente, o caboco desatou a canoa e deu uma empurrada com um pé enquanto com poucas remadas já o deixei a bordo da geleira ancorada no rio. Havia umas tantas quantas geleiras subindo ou talvez já de baixada com carregamento de peixe. Embora eu contasse dezoito anos de idade incompletos, meu sentimento ainda era de um curiminzão de pouco mais de quinze ou dezesseis anos de idade... Quando voltei a encostar a canoa no trapiche, estava pronto para ir na popa. Vadico desceu de terra e passou para a proa. Prosseguimos a viagem. O dia ainda estava longe mas a gente não queria perder tempo por nada deste mundo.