terça-feira, 30 de julho de 2013

A POBREZA HUMANA NO MARAJÓ: DE QUEM É A CULPA?





IDH E A CRIATURADA GRANDE DE DALCÍDIO


Esta gente já foi se queixar ao bispo (aliás aos bispos, que são dois: da Diocese de Ponta de Pedras e Prelazia do Marajó). Os bispos do Marajó gritaram contra o mísero IDH do povo marajoara, em 1999; e foram reclamar, em 2006, ao Presidente da República. Este um determinou à Casa Civil socorro de emergência e um plano de desenvolvimento de longo prazo.  No ano de 2007, pela primeira vez na história deste país que se chama Pará; a criaturada viu de perto o Presidente Lula que, ao lado da governadora do Pará Ana Júlia; foi ao município de Breves lançar o "Plano de Desenvolvimento Territorial Sustentável do Arquipélago do Marajó" (vulgo PLANO MARAJÓ). 

Por felicidade, a solenidade histórica de Breves 2007 foi marcada pela entrega do primeiro título de regularização fundiária de terras de marinha, de mãos do Presidente da República a uma mulher marajoara, moradora do Alto Anajás. Bingo! Deus escrevendo certo por linhas tortas: a necessidade e o acaso fazendo brilhar a teoria do milagre onde ainda faz escuro e o conhecimento histórico nos escapa que nem índio brabo em fuga pra dentro do mato...  Deixa estar que amanhã será um novo dia, a gente se promete sempre desde que o mundo é mundo.

Pena que, até hoje, as ilustres assessorias dos mandatários da República Federativa não atinaram ainda com a história do Povo Marajoara, a importância da Cultura Marajora de 1500 anos de idade e a Paz do Nheengaíbas, de 27 de Agosto de 1659 e outros fatos capazes de dar um norte ao Desenvolvimento Humano na Amazônia.

Só falta agora, que Francisco sucedeu a Bento no trono do Pescador, a gente ir se queixar ao Papa para o lembrar do ecumenismo do Padre Antonio Vieira ensaiado pelas margens dos rios e ilhas da Amazônia contra o império do Santo Ofício e abandonado por seus sucessores jesuítas cheios de soberba (cf. João Lucio de Azevedo) e finalmente expulsos do Grão-Pará para dar lugar ao tirânico iluminismo do Diretório dos Índios (1757-1798), patriarca caduco de nosso degenerado municipalismo patrocinado pelo "déspota esclarecido" Marquês de Pombal.

Deu no que deu. A crônica marajoara, entre chuvas e esquecimento à margem do "testamento de Adão", sem surpresa retumbante, sem choro nem vela informa urbe et orbi: o pior IDH municipal do Brasil fica em Melgaço (0,418), antiga aldeia Aricará (1659) na microrregião Portel, da mesorregião do Marajó; bem distante da capital do estado, Belém do Pará, apontada em primeiro lugar da região Norte com IDH de 0,806. Por que será uma tal disparidade?

As relações humanas entre a região metropolitana de Belém e a mesorregião do Marajó é uma antiga história de amor e ódio envolvendo populações indígenas bem antes da conquista européia entre os séculos XVI e XVII. 

A fundação do forte do Presépio, berço da cidade de Belém do Pará, em 12 de janeiro de 1616, por soldados portugueses vindos da tomada de São Luís do Maranhão (1615) e guerreiros tupinambás constitui ato de guerra para expulsão dos estrangeiros (holandeses e britânicos) que, através de relações de comércio de escambo e amizade, já tinham instalado feitorias no Amapá, Marajó (Mariocai, depois Gurupá), Xingu e Baixo Amazonas.

O estudo antropológico da conquista e invenção da Amazônia brasileira (outrora estado-colônia do Maranhão e Grão-Pará português, de 1621 a 1751) mostra o antecedente pré-colonial que mergulha no tempo milenar da Cultura Marajoara (entre o ano 400 até cerca de 1300), arruinada aparentemente pela invasão dos belicosos Aruãs, através das Guianas (Amapá e ilhas de fora, Caviana e Mexiana inclusive) e dos antropófagos Tupinambás, vindos em cunha pelo Tocantins e pelo Salgado em busca da mítica "yby marãey" (terra sem mal) - utopia selvagem - idealizando sítio onde não há Fome, trabalho escravo, doença, velhice e morte.

A sociologia brasileira com Florestan Fernandes demonstra que a religião dos tupinambás é o motor da construção territorial do Brasil, cuja saga abriu a trilha sangrenta por onde bandeirantes, missionários e sertanistas passaram delimitando o espaço e demarcando terras até a consolidação final das fronteiras brasileiras, já na República.

O contraste entre o desenvolvimento territorial e o desenvolvimento humano espelha, no estuário amazônico, o resultado tardio daquela velha guerra antropofágica na qual as populações "nheengaídas" (aruaques) resistiram a pressão do Caribe primeiramente com os Kalinas forçando a migração dos Arawak para a terra-firme (continente) das Guianas; e depois dos conquistadores espanhóis, franceses, ingleses e holandeses. 

Pela banda meridional, inicialmente foi a marcha avassaladora Tupinambá para oeste e norte a partir da Bahia e Pernambuco. Para, finalmente, a conquista e vassalagem dos índios em geral pelos portugueses depois da fundação de Belém, a completar 400 anos em 2016. No fim da história, tapuias e tupis todos confundidos na mesma massa de "negros da terra" (índios escravos) a par de "negros da Guiné" (escravos africanos) e descendentes mestiços de colonos açorianos se tornaram cabocos (tirados do mato), mediante casamentos forçados (para não dizer coisa pior...) das índias e pretas com portugueses deportados para "ocupar" o que desocupado não estava. 

A história só se repete como farsa. Portanto, os anos do "milagre" da Ditadura repetiram o milagre original da conquista das ilhas do Pará e Amazonas na tomada de Gurupá (1623) e agora mesmo a recolonização vai de vento em popa na ocupação do Xingu... Outrora uma guerra suja durante mais de quarenta anos merecia o milagre de uma limpeza dos olhos da História com tratamento e cura da cegueira colonial em geral. Foi isto que aconteceu, um milagre e tanto (noves fora a ressurreição do sebastianismo do poeta popular Bandarra...), no enredo genial do Padre Antonio Vieira e seu cacique preferido, um certo Piié Mapuá de carne e osso ou apenas inventado. Não importa. Se a história não é verdade verdadeira, bem provável há de ser muitas vezes melhor do que uma telenovela ou romance de ficção científica.

O célebre Bom Selvagem tupinambá, que encantou a Montaigne e Rousseau, segundo estes filósofos com a ideia da Revolução Francesa (1789); também foi capaz - sem o devido registro ainda na História do Brasil - , segundo antigos documentos coloniais guardados a sete chaves; de migrar de Pernambuco até o Peru através do rio Amazonas (relato do mameluco Diogo Nunes, em 1538, antes portanto do "descobrimento" do rio grande de Orellana, apud Nelson Papavero et al.)... É preciso, todavia, fazer o cruzamento da encardida historiografia viciada de preconceitos e segredos coloniais, com as descobertas tardias que os etnólogos e arqueólogos vem fazendo nas últimas décadas do século XX, a fim de clarear o horizonte dos estudos amazônicos.

Mais do que a inclusão da arqueologia e antropologia no estudo da História, com sua dialética suscitada em sucessivas contradições; a verruma psicológica do romance pode ir além fronteiras visíveis para visitar o país oculto no fundo do Mar-Oceano e do rio de Heráclito (o tal no qual não se mergulha duas vezes, e no entanto esta ele sempre presente na vida da gente).

Apesar de tudo Marajó está no mundo. A brava gente marajoara tem alma de muita antiguidade, como se prova pelo caso fora de séria do padre Giovanni Gallo, não carece enterrar o próprio umbigo no chão encharcado de Dalcídio Jurandir para adquirir naturalidade marajoara. Gallo não teve seu umbigo enterrado em Santa Cruz: em compensação, depois de se auto implodir e morrer, ele enterrou os próprios ossos em Cachoeira do Arari à ilharga do incrível Museu do Marajó que inventou com "cacos de índio"...

Já o chamado "índio sutil", exilado no Rio de Janeiro; queria que o enterrassem após a morte sob a sombra da árvore Folha Miúda, na beira do rio, perto do chalé retratado no romance "Chove nos campos de Cachoeira": debaixo das ramagens daquela árvore que a erosão levou na correnteza do Arari e ficou a infância do escritor marajoara com a paisagem de seu tempo, povoado de gentes a mais simples da ilha do Marajó, Baixo Amazonas e subúrbios de Belém... Aquela gente tão sem história, despossuída de tudo, sem IHD nenhum. Mas, apesar de tudo, sua criaturada grande; orgulho da Amazônia imemorial, chão do caboco marajoara cidadão do mundo...

O derradeiro romance do Extremo-Norte, "Ribanceira", encerra o ciclo dalcidiano: lá a Criaturada grande resiste e sobrevive a todas as desgraças dos marginalizados da História... Graças ao amigo, irmão e camarada Jorge Amado da Bahia; o primeiro Prêmio Machado de Assis para autor amazônida (1972). A teoria do milagre mora em Gurupá: "Ribanceira" termina a longa obra dalcidiana no mesmo lugar onde ela começou... O derradeiro livro do ciclo começa com a chegada de Alfredo (alter ego de Dalcídio) avistando o Fortim de Gurupá... E que fortim! E o Brasil brasileiro que não vai ali saber como o bandeirante Raposo Tavares lá chegou depois de atravessar o Pantanal, pegar as cabeceiras do Guaporé, subir o Amazonas até o Solimões sempre em busca de ouro e descer até o Marajó em petição de miséria. Não é isto uma lição aos Bandeirantes de todos os tempos? Sem guias indígenas Entradas e Bandeiras jamais teriam devassado os sertões e rompido a famosa "linha" de Tordesilhas... E até hoje o Brasil do desenvolvimento custe o que custar, ainda não viu a placa armorial do forte de Gurupá - junto a IDH de miséria - dedicada à brava Nação Tupinambá conquistadora da Amazônia brasileira, extinta entre bichos e plantas...

Um milagre sim, Deus é brasileiro; e os frades de Santo Antônio com a sua inocência agradecendo o prodígio às armas dos portugueses sob orago do santo casamenteiro: era o caso de comemorar o enlace das índias tapuias com guerreiros canibais e mamelucos endiabrados... Mas o santo da conquista de Gurupá está mais para o excomungado Jurupari, o espírito tupi que fala e ri pela boca do pajé.


Por acaso, Raynero Maroja, intendente municipal de Gurupá, nomeou o jovem Dalcídio José Ramos Pereira com vinte anos de idade, ao cargo de secretário-tesoureiro, chegado em outubro de 1929 em Gurupá. A memória desta estada resulta no último romance da carreira, escrito no Rio de Janeiro e ali o futuro romancista escreveu a primeira versão de "Chove nos Campos de Cachoeira". Dez anos depois, refeita totalmente em Salvaterra, donde também saiu o primeiro romance sociológico brasileiro, segundo Vicente Salles, "Marinatambalo" publicado depois com título de "Marajó".

A revolução de 1930 foi, por necessidade e acaso, encontrar o escritor de Marajó no rio Baquiá como professor de alfabetização dos filhos de um dono de seringal... Hoje a Criaturada grande de Dalcidio é servida da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Itatupã-Baquiá (RDS Itatupã-Baquiá); além desta unidade de conservação o município conta ainda com a Reserva Extrativista Gurupá-Melgaço (Resex Gurupá-Melgaço). A criaturada não sabe sua própria história, mas vai levando a vida como Deus ou o Diabo gosta...

O pior IDH do Brasil (Melgaço), por exemplo, está localizado ao lado da antiga aldeia de Mariocai onde os holandeses em parceria com os índios do Marajó fizeram feitoria, arrasada para dar lugar ao forte do milagre de Santo Antônio de Gurupá (1623), citado no romance dalcidiano. A pobre Melgaço, cidade-floresta na obra do historiador Agenor Sarraf sob padroado do Arcanjo São Miguel; tem parte de seu território na Floresta Nacional de Caxiuanã, compartilhada com o vizinho município de Portel, cabeça da microrregião junto com Gurupá, Melgaço e Bagre na faixa continental marajoara: todos de pobreza igual. Na dita floresta nacional está a Estação Científica Ferreira Penna, do Museu Paraense Emílio Goeldi; cujo nome homenageia o fundador da mais antiga instituição de pesquisa amazônica, notável sobretudo por ter sido precursor do estudo da arqueologia marajoara e da antropologia dos Aruã. 
A CONTROVÉRSIA DA PACIFICAÇÃO DO MARAJÓ

Rio de Janeiro e São Paulo, além de ostentar o melhor IDH do país tropical abençoado por Deus e bonito por natureza; tornou-se teatro de grandes protestos de rua, por uma parte, e da Jornada Mundial da Juventude que trouxe o Papa Francisco em sua primeira viagem fora da Europa. Ora, nesses opostos movimentos de conflito e paz a Bandeira do Brasil tremulou junto às de mais nações soberanas enchendo de orgulho o povo que diz que Deus é brasileiro...

Claro está que o pendão verde e amarelo move a fé do país do Futuro. Entretanto, o Mapa do Brasil este sim deveria ser mostrado à farta como prova final de que, de fato, Deus ou Natureza (na fórmula de Espinoza, como prefiro) é brasileiro. 

Por linhas tortas, assim foi que a mão da Providência escreveu a ressurreição de Dom Sebastião nas terras do Maranhão e Grão-Pará (vide "História do Futuro" e o "Sermão aos Peixes" do "paiaçu dos índios" Antonio Vieira). 

O "imperador da língua portuguesa" contou o milagre, mas não disse o santo... Neste caso, pode ser que ele não soubesse ou sabendo não quisesse dizer nada mais além do escândalo da carta de Cametá ("As esperanças de Portugal" declarando que Bandarra é verdadeiro profeta... O que o levou às barras do tribunal da Inquisição e condenação por esposar "heresia judaizante", a qual o Papa Francisco declara hoje, mansamente, com nome pacífico e sublime de Ecumenismo).

Para a Câmara de Belém, na metade do século XVII, o diabo era Aruã e morava nas ilhas do Marajó empatando a conquista do Amazonas pelos bons cristãos do reino de Portugal: urgia, custasse o que custasse, dar a "guerra justa" aos Aruãs e Anajás sob capa forjada de "Nheengaíbas" (confederação de guerra defensiva destes índios temidos aliados aos Mapuás, Pixi-Pixi, Cambocas, Guianás, Mamaianás e outras etnias nuaruaques rebeldes, em número estimado de 50 mil arcos), acusados injustamente de canibalismo mas, com certeza, useiros e vezeiros de praticar pirataria contra canoas de "drogas do sertão" e "tropa de resgate" (eufemismo para caçadores de escravos, guiados e armados de remadores e guerreiros Tupinambás). 

Uma guerra impossível de vencer, argumentava o superior das missões da Companhia de Jesus, o dito Padre grande; advogado da paz dos portugueses com os indígenas senhores das ilhas invencíveis. Hoje, quem se der o trabalho de pesquisar pelas margens da historiografia colonial, poderá comprovar que os Jesuítas (entre 1655 até 1757) foram, legalmente, delegados da Coroa de Portugal e exerceram a tutela dos índios tal qual o extinto SPI e agora FUNAI... Logo, o Brasil sucessor de Portugal na Amazônia tem deveres sucessórios em relação aos atuais descendentes daquela gente. 

Cuja adesão em 1659 foi confirmada em Muaná em 1823. Pois, o forte do Presépio não se manteria de pé nem chegaria a ser a fortaleza do Castelo, dos séculos XVIII e XIX; caso a partida do século XVII fosse perdida naquela ocasião, enquanto durava a guerra entre Holanda e Portugal, certamente Gurupá poderia ser retomada pelos holandeses e ingleses recentemente expulsos sob a aliança luso-tupinambá sob a União Ibérica (1580-1640). Então, a "teoria do milagre", pode ter explicação outra sobretudo pela antropologia dos povos chamados "nheengaíbas", que o preconceito tupi encampado pelos missionários, forjou. Então, o Grão-Pará poderia ter sido uma grande Guiana inglesa ou Suriname... 

Na verdade verdadeira, os ferozes e invencíveis "nheengaíbas" das ilhas do "malvado" Marajó atenderam tão rápido o chamado de paz dos Jesuítas, como os tupinambás atendiam convocação de guerra dos frades de Santo Antônio para subir o Amazonas; pela simples razão de já ter ocupado a terra-firme (continente) donde foram desalojados diante da avançada antropofágica dos caraíbas Tupinambá. Vai saber de uma coisa destas àquela hora!...

Devemos estar sempre lembrados de que, na Amazônia, a história é outra: aruaques e tupis eram inimigos hereditários e disputaram palmo a palmo o território chamado "Tapuya tetama" (terra Tapuia) ou Pará-Uaçu (o Grão-Pará dos portugueses) desde muito tempo antes dos europeus.

Antes mesmo do primeiro europeu botar os pés na Amazônia, já o mapa estava riscado no "testamento de Adão" (Tratado de Tordesilhas de 1494, entre Espanha e Portugal) e contestado pela França. Historiadores acham o relato do Padre Antonio Vieira sobre a pacificação do Marajó inverossímil, todavia o fato geográfico atesta o papel dos índios de margem a margem do Amazonas. Cada potencia colonial pegando carona do respectivo movimento guerreiro indígena que lhe convinha para se apossar do "Rio Babel"; durante, pelo menos, 44 anos de conflito a partir da tomada do Maranhão (1615).

400 anos de invenção da Amazônia aguardam mais um capítulo da farsa ou talvez uma virada histórica. Quem sabe!

quarta-feira, 17 de julho de 2013

O PAPEL DOS IDOSOS NAS TRADIÇÕES POPULARES

Garantido fez sorteios de camisas e DVDs e homenagens (Foto: Divulgação)
              em Parintins (Amazonas), boi Garantido reverenciando a terceira idade.

Car@s suman@s,

A nossa velha cultura marajoara carece, mais que nunca, que a velha guarda abra o olho e se levante, antes que seja tarde, pra dar um norte à mocidade dependente de perigosas inglesias e novidades mortais. A gente não é xenófobo (ódio a estrangeiros), muito pelo contrário. Mas porém, a gente não é besta... Um tio velho sacaca, uma avó passada pela casca do alho de longe sabe se o forasteiro que vem chegando é gente boa ou se é lobo coberto com pele de ovelha. Que o caboco marajoara sabe separar o joio do trigo ficou provado na histórica naturalização do marajoara que nasceu na Itália, padre Giovanni Gallo, criador do Museu do Marajó.

O Gallo implodiu-se pra dar testemunho da Criaturada grande de Dalcídio, mesmo que o padre nunca tenha lido nenhum romance do autor de "Chove nos campos de Cachoeira", este um exilado no Rio de Janeiro leu todos artigos de Giovanni Gallo na imprensa e o incentivou a publicar o clássico "Marajó, a ditadura da água". 

A antiga vila da Cachoeira do rio Arari - "rio de araras" extintas na paisagem do Marajó, cachoeira essa sumida no sumetume da lenda da primeira noite do mundo -, foi asilo de "O homem que implodiu". Todavia, a obra "Motivos Ornamentais da Cerâmica Marajoara" o testamento do Gallo deixado às futuras gerações marajoaras. Pena que metade do povo do Marajó não sabe ler nem escrever... 

Raros os cabocos retóricos, que somos nós, alfabetizados e letrados na escola da vida. Sobretudo, os poucos alfabetizados politicamente; tendo como redobrado dever de consciência falar em nome dos muitos conterrâneos que não tem vez nem voz na História. Por isto, hoje este caboco blogueiro que vos fala quer homenagear e falar de um genuíno caboco marajoara, retórico supimpa e cultivador de chula, que se chama Agostinho Batista, filho de Muaná. O tal seringueiro idoso, que um dia foi companheiro de Chico Mendes e para não implodir mato adentro, sem vez e voz nas funduras das matas do rio Atuá; meteu sua velha montaria a reboque da Cobragrande transformada em Navio Encantado, e subiu o Tocantins até onde deu porto mais perto pra rumar a pé até a capital, Palmas. E lá, enfim, mestre Agostinho houve reconhecimento, provando assim que ninguém é profeta em sua aldeia...

E nós com isto? Ora, essa! Se acaso o mulatinho Dalcídio José, filho de dona Margarida e do capitão Alfredo; não tivesse pegado o Ita acha que ele chegaria a ser Dalcídio Jurandir sem o Rio de Janeiro? Marajó é uma mina que jaze ao léu entre chuvas e esquecimento. Padece dum dos piores índices de desenvolvimento humano (o tal IDH). No Marajó a teoria é outra, aqui de fato só temos dois partidos políticos, não importa a piracema de legendas e o troca-troca eleitoral: o partido dos que estão por cima e o dos que ficam por baixo na peleja... E já se sabe qual dos dois nunca saiu de baixo.  

Por ora basta de falação. A gente não deve esquecer que, depois de 190 anos que Muaná proclamou a Adesão do Pará à Independência do Brasil, só dois presidentes da República vieram ao Marajó: o general Geisel convidado pelo partido dos que sempre estão por cima... E o sindicalista Lula a convite do partido dos que sempre ficam por debaixo.

 Já falamos de outra feita a respeito de Mestre Agostinho, herdeiro da tribo dos Muaná. Agora é pra dizer que ele vem aí para falar da Universidade Aberta à Terceira Idade. A Academia do Peixe Frito se prepara para recepcionar a delegação da Universidade Federal do Tocantins e já convidou a Irmandade do Glorioso São Sebastião para lhe fazer companhia. Abaixo, uma crônica (pode ser encontrada na internet) na qual a gente conta como foi que se descobriu esse um. Bom proveito.



Flauta e Uirapuru no encanto da Mata Atuá-Anajás

Em memória de Rodolpho Antonio Pereira,
meu pai. Aprendiz de música que se prezava
de ter sangue cabano e descender de índios.

Não direi (dizendo) como Pascal, “creio, porque é Absurdo!”. Mas, tão simplesmente, creio. Porque pelo sentimento do seu coração o plácido caboclo Agostinho Batista achou a paz universal, no umbro das matas do alto Atuá e Anajás. Misterioso cerne da Biodiversidade, que antigamente o profeta Isaias anunciou e o Santo de Assis cantou sem contradição nenhuma com a Ciência pura. Por necessidade e acaso aos centros da Ilha do Marajó, no delta estuarino do “Mar Doce”: o maior rio do Planeta. Enquanto o seringueiro solfejava a flauta doce p’ra matar as suas mágoas ele se viu, face à face, diante da sutil presença da poesia concreta. Viva, alada e sonante. Que só vendo para crer mais do que nunca.
Naturalmente, a maravilha se fez plumas e canto do Uirapuru como a leveza do ar que se respira com aroma de flor silvestre. Naquela hora suspensa dos movimentos aparentes do dia, no sítio mágico não se duvidaria do poder divino da mãe Natureza. Como da aparição da Virgem a qualquer andarilho vagamundo, em busca de salvação da sua vida. Abriu-se na humana consciência da biosfera um espaço que antes jazia oculto desde o descobrimento do Novo Mundo, um portal ao mundo novo.
Na verdade, o paraíso procurado na terra não estava ali nas cabeceiras dos contravertentes do Amazonas e Pará, pelos âmagos preservados da Ilha do Marajó entre árvores de borracha e lagos encantados no esquecimento da devastação amazônica. Coração (quase) imaculado da Ilha Grande. Que, no dizer do naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira, era a “menina dos olhos” do inspetor Florentino da Silveira Frade (talvez o autor anônimo da primeira Notícia Histórica da Ilha, na metade o século XVIII, donde o sábio da Viagem Filosófica bebeu nas primeiras fontes a fim de escrever também a sua Notícia de 1783, baseada naquela e aumentada de observações e impressões próprias). Tampouco se recuperaria o Jardim do Éden pelo remendo social de Missunga, herdeiro do coronel Coutinho, no rio Paricatuba (na foz do Marajó-Açu), onde meu pai dizia os tangarás-da-mata outrora vinham bailar a horas mortas do dia, constante das páginas do romance Marajó, de seu irmão Dalcídio. Mas, o caminho à primitiva morada sagrada passava perto das cabeceiras do Atuá-Anajás, qualquer um acreditaria ao ouvir o que tem a dizer o seringueiro e folclorista Agostinho Batista, tradicional morador do Muaná. Alarmado com a perspectiva de dragas e tratores entrarem triunfantes como o Dragão da maldade rio acima a profanar o sítio onde o caboclo toca flauta e o Uirapuru canta.
Dirão os coloniais “cegos” do Sermão aos Peixes do padre Vieira, é a Preguiça mãe de todos os vícios. Direi com os sociólogos e economistas humanistas, é o Ócio pai e mãe da filosofia e apanágio de nobres cidadãos, que em exigência crescente não sabem donde vem o que consomem e querem sempre do bom e do melhor... O desequilíbrio ecológico começa no coração do homem consumidor nas cidades: não será levando o alienado “progresso” urbano aos sertões, mas – ao contrário – importando a paz do interior para as ruas, casas e apartamentos de mini-cidades e aldeias sustentáveis que a gente haverá futuro algum dia.
Como se sabe, uirapurus e tangarás são indicadores biológicos da devastação da natureza, pois só sobrevivem na mata virgem. Eis a questão sucinta do caboclo do Muaná, decidido a não trocar a primogenitude da sua gente naquele rio por um “prato de lentilhas” sob forma de cestas básicas ou salário-mínimo. Argumento que na maioria das vezes daria ar de riso a arrogantes devotos do deus Progresso (já se sabe que não de graça), acostumados que estão a passar por cima de tais ponderações “românticas”. E, portanto, estamos todos na cidade ou no interior “no mato sem cachorro” e nos mais diferentes recantos do globo os ricos cada vez mais ricos, os pobres cada vez mais pobres. E como a “coisa” já foi longe demais deliberei por consciência própria e fidelidade da defesa do Povo marajoara, dar eco ao singelo apelo de meu colega caboclo Agostinho Batista.
Mas, do mesmo modo como o milagre se manifestou a ele daquele modo; também no seu vivo argumento dá-se casamento justo e perfeito da fé com a razão. Ou, melhor dizendo o verdadeiro equilíbrio entre a qualidade de vida e o ganha pão dessa gente do fim do mundo. Pelo que valeria a pena assinalar o sítio desse acontecimento extraordinário como algo maior: nunca menos que uma ermida dedicada à Nossa Senhora do Tempo ou do Livramento, conforme a tradição dessa nossa gente católica iberiana. Assim como carece ainda recuperar, no Mapuá, o sítio da Igreja do Santo Cristo que os sete caciques nheengaíbas levantaram e o padre Antônio Vieira consagrou para todos juntos – marajoaras, tupinambás e portugueses – celebrarem a paz do Grão-Pará (Amazônia). Ora, quem conhecer a antropologia americana levantaria as mãos aos céus, ao saber desse acontecimento singular da história da Amazônia brasileira.

O lugar onde todos os lugares se resumem ou a quarta dimensão

Quando Uirapuru canta a mata se encanta. Tudo queda em silêncio e paz, dizem velhos mateiros calejados da “lei da selva”. E, portanto, aquele evento extraordinário seria ponto certo de Mutação para nova ciência do espaço-tempo relativo: na ínfima fração de um décimo de segundo, a eternidade se fazia presente. Pois, enquanto a paz é infinita a vida fica mais bonita no seio da maré. Todos os tempos e lugares se resumiram num único Lugar: que nem o Aleph, do vidente e escritor cego Jorge Luís Borges.
Paresque, o cantador da mata virgem surge do nada e ao nada retorna após o concerto.  Por acaso, o som doce da flauta do seringueiro atraiu o passarinho em necessidade de companhia. Quando um tocava, o outro calava: e tudo era a mesma música. O profano e o sagrado interagiam naquele concerto da mata virgem, que vinha da preteridade do mundo, desde os Princípios.
Pelo fio do tempo se desatava a Corda da romaria tecida de elétrons, íons, prótons, nêutrons e a infinidade de coisas que a gente não sabe e talvez nunca jamais há de saber... (com amável licença do filósofo da Latinidade, Edgar Morin). Aí, o tempo marajoara passava gota a gota. Como o sereno caindo fino das folhas, madrugada adentro, durante a evapotranspiração da floresta. Devagar, devagarzinho, quase parando... Isto o caboclo achava muito bom. Não carecia pressa ou lucro. Mas porém, não há dinheiro nenhum que pague.
Não é curioso, por exemplo, que no Velho Mundo se considera o leão, devido à força, “rei” dos animais. E, na Amazônia, um simples passarinho com sua simplicidade e canto maravilhoso reina e encanta a floresta? Que sentido o mundo poderia tirar desta lição da natureza?  Quando se sabe, ademais, que aqui vieram convergir anseios de conquista incontroláveis, com tribos antropófagas e guerreiros medievais movidos compulsivamente por ambições de diferentes paraísos. Nós não somos ingênuos quando às diversas cobiças de Norte ou Sul, aqui na faixa do Equinócio. Porém temos esperança – pela paz verde do Uirapuru – em conquistar o mundo, convencendo-o primeiramente de que a região equatorial não é “celeiro” nem “almoxarifado” de ninguém. Mas, nada menos que oportunidade única de se criar uma nova civilização. Este é o dilema amazônico, na metáfora da herança primordial e o evasivo prato feito de lentilhas do imediatismo da fome desde as Origens, que as Escrituras falaram. Erro secular do nosso colonialismo congênito.

O empate da hidrovia e a mais valia da biosfera

A Vila de Muaná (1823) já nos deu régua e compasso. O desconhecido rio dos Mapuá (1659) mostrou a autodeterminação das nações indígenas marajoaras a todo mundo – velho ou novo – a caminho da justiça e da paz. Enfim, a Ilha Grande de Joanes ou Marajó (aliás, Analáu Hohynkáku, Marinatambalo, Ilha Grande dos Nheengaíbas, idem dos Aruans) foi vestibular do sábio Alexandre Rodrigues Ferreira (ajudado pelo inspetor Florentino da Silveira Frade e o sargento-mor índio Severino dos Santos), na Viagem Filosófica ao interior da Amazônia, e nos mandou a sua Notícia Histórica (1873).
Aqueles que, num simulacro de democracia, decidem graciosamente sobre o destino da brava gente marajoara sem a escutar e interpretar legítima e verdadeiramente. Ou falam de boca cheia sobre “a maior ilha marítimo-fluvial do mundo” no estuário da maior bacia fluvial do planeta; por acaso, sem jamais saber o que significa sobreviver naquelas condições ilhadas:
Já leram sobre a Carta-Patente do Pe. Antônio Vieira aos Sete Caciques Nheengaíbas? Sabem todas as conseqüências históricas e jurídicas da resposta (sem a qual a viagem de Pedro Teixeira teria sido mera curiosidade geográfica semelhante à “descoberta” das amazonas por Orellana e a revogação da “linha” de Tordesilhas impossível, em 1750) à luz do Direito Internacional moderno e suas possíveis interpretações no campo da democracia contemporânea? Tiveram eles a acima dita Notícia Histórica? Conservam dela o essencial sobre a antiguidade humana e a riqueza biogeográfica da ilha? Que o naturalista diz ter visto nesta Ilha Grande (50 mil km², povoada desde 1000 anos antes da Era Cristã) o potencial de uma província. E, pode-se dizer até, credencial suficiente para as Ilhas ser consideradas os “Países-Baixos” do novo trópico, por exemplo.
Os nobres senhores sabem a história verdadeira da adesão do Pará à independência do Brasil? Os amazônidas não faziam parte do Brasil antes de 1823 (isto é, há apenas 180 anos), nem o Grão-Pará esteve diretamente ligado ao Vice-Reino do Brasil durante a permanência da Família Real no Rio de Janeiro, mas sempre ao Reino de Portugal. Os paraenses deliberaram conquistar a nacionalidade brasileira, a 14 de Abril em Belém; e proclamaram tal decisão, a 28 de Maio em Muaná, pagando o gesto de liberdade com o próprio sangue. Porém, o arreglo neocolonial de 15 de agosto deixou cair a máscara ente 16 e 17 de outubro; perpetuando a humilhação do Povo do Pará até à convulsão popular de 1835 e a repressão genocida de 1836 a 1840: traições e falsificações históricas hereditárias e a previsível ira popular.
Se honestamente os senhores não sabem – pelo amor à República Federativa e à pátria comum latino-americana de seus filhos e netos – voltem depressa aos bancos escolares. E escutem, por favor, o que essa gente cabocla tem a dizer! Pois, a repetência colonial do gigante adormecido Brasil no berço esplêndido da América do Sol ainda não deixou aprender a lição: não há meio que se sustente nem ambiente que preste, onde a gente da terra for excluída dos benefícios da Obra. Os ecos da Cabanagem reboando pelas entranhas da varja nos açaizais povoados de más lembranças, em frente à cidade, não nos deixam dormir sossegados...
Então, vi o velho seringueiro conhecido de Chico Mendes e afeiçoado amigo de Giovanni Gallo (que Deus os tenha). Ele falava a verdade do seu sentimento quando explicava as razões contra a escavação e dragagem do canal da Hidrovia do Marajó nas cabeceiras dos rios Atuá e Anajás. Achou importante que se cogitasse, na hora, implantar na Ilha uma reserva da biosfera. Este assunto ele pouco entende, porém aprovaria qualquer coisa para deixar de lado a destruição de lagos e matas donde extraiu as mais interessantes lendas do seu repertório e as cento e tantas “estradas” de seringa que foram sustento de sua gente.
Dizendo ele que, ao contrário do que se ouve a favor da obra de seus pesadelos, os caboclos ribeirinhos nada têm a ganhar com o projeto adorado por alguns empreiteiros e transportadores de carga. Que a gentinha dos rios apartados tem seus nomes tomados em vão para dourar a pílula da devastação daqueles estirões. Que, na verdade, seria deixada a ver navios. Visto que a hidrovia não mostra nenhuma ação direta de inclusão social se não em tese, com os decantados benefícios indiretos do “progresso”. Mas tão só a redução de alguns quilômetros para economia de fretes e aumento de lucros no transporte de cargas.
Segundo deu a entender, em vez de fixar caboclos nas terras de seus antepassados, a súbita abertura de trechos isolados à concorrência de fora seria mais depressa motivo para os ribeirinhos deixarem os sítios da sua pobreza e ir aumentar invasões da miséria nos subúrbios das cidades, à vizinhança de outros atropelados do Desenvolvimento. Em princípio, o nosso amigo seringueiro não é contra hidrovias. Aliás, o que é um rio navegável? Por que não cuidam antes das “hidrovias” naturais que são rios, furos, lagos e igarapés? Será que só vale a pena meter draga onde seria melhor conservar a natureza? Há – diz ele –, qualquer coisa que não entende nessa discussão. E, portanto, está contra – tão-só – à destruição de recantos remotos da sua estimação, nas funduras da mata entre rios Atuá-Anajás.
Crente do poder divino das coisas naturais e sobrenaturais gravou na memória cenas vividas na solidão dos centros da Ilha Grande. Onde plasmódio e curupiras fazem permanente morada. E onde o comum dos mortais nunca meteu os pés ou jamais colocou as mãos em cima. O atento ouvinte parece ver nas pupilas acendidas daquele um a vidência de tempos pretéritos e futuros, como num filme que o próprio personagem vai narrando com voz firme e serena.

Primeira Conferência de Meio Ambiente do Marajó

O tempo, vários ataques de malária e carências mil da lida botaram marcas inconfundíveis no amável rosto do seringueiro. A gente acabava de ouvir histórico discurso proferido pela senhora prefeita de Muaná, anfitriã do encontro, dona Ortensia Guimarães. Digna matriarca na melhor tradição marajoara do relevante papel da mulher na comunidade. A gestora marajoara declarou abraçar a causa da reserva da biosfera em Marajó, proposta pelo Grupo em Defesa do MarajóGDM, a Cooperativa Ecológica das Mulheres Extrativistas do MarajóCEMEM e a Corporação Associativo-Ambiental PanamazônicaCAMPA; acolhida por unanimidade no encontro de Muaná.
Causou-nos grata surpresa a Conferência preparatória às conferências de Belém e Brasília, donde partiu o apelo democrático do Marajó dirigido à ONU, através da República Federativa do Brasil, que não poderia ter melhor lugar a sua legitimação. Pois se trata do povo e da cidade que afrontou no passado o poder colonial, proclamando com todas as conseqüências a luta popular, resistência armada, prisão, humilhações, deportação e mortes no Tejo ingrato e distante. Padecimentos no cárcere de S. Julião, onde penaram também outros mártires da Amazônia. Tais como o sábio jesuíta João Daniel, primeiro naturalista da região amazônica.
Pois foi em Muaná que ocorreu a gloriosa Adesão da província ultramarina do Grão-Pará (Amazônia portuguesa) à independência do Brasil (28/05/1823). Sem dúvida, o vetusto e singelo monumento da praça 28 de Maio, com a lápide dos heróis de Muaná, embora desconhecido da intelectualidade tupiniquim, representa o melhor testemunho dos justos e originais motivos da Cabanagem.
Daí porque barões assinalados da historiografia oficial desconhecem os feitos da cidade-monumento de Muaná. E relegam a praça da adesão à inclemência do sol e das chuvas para destacar, indevidamente, datas e sítios desfocados da realidade histórica. Compensada apenas pelo aprazível consolo das tardes ao pôr do sol, quando da chegada de bandos ruidosos de japiins que vêm pernoitar na arborizada praça ao lado e entoar o réquiem dos heróis esquecidos da amazonidade brasileira.
Com tais antecedentes, a candidatura do Marajó ao programa “Homem e Biosfera” da UNESCO e à rede mundial de reservas da biosfera (à semelhança do Pantanal, Cerrado, Caatinga e Amazônia Central, no Brasil; e mais de 240 reservas em todo o mundo) tem sabor de um resgate extraordinário. Longe disto representar a temida “internacionalização” da Amazônia, significará ao contrário reconhecimento da autonomia regional democrática assegurada pelas leis do País.
  Ao ouvir as explicações dadas pelos proponentes, o caboclo adverso à construção do canal da hidrovia nos confins das “suas” matas onde canta o uirapuru suspirou pelo sucesso da reserva da biosfera. Acho que ele teme que a construção – ao longo de 32 quilômetros de canal, o dobro em diques de contenção e docas de manobra para balsas de até 8 metros de largura com mais de um metro de calado – venha a perturbar o sossego da mãe do rio (a Cobra grande). Podendo vir daí algo temível também no plano metafísico, além da chamada ecologia... Não é por causa um vago conceito de meio ambiente que ele está contra. Ou por molestar teorias complicadas que não entende nem morto. Mas, sim pelo motivo de que tal escavação seria o túmulo do seringal da sua vida. Cemitério dos derradeiros “mondongos”; fim dos berçários de alevinos e reservatórios da fauna e da flora aquática. Até as onças que ainda restam escondidas por lá e os jacarés e cobras que escaparam da sanha humana, teriam que se defender atacando animais domésticos. A, assim, acabariam os seus dias caçados até a extinção total.
Considero o caboclo de quem falo (como tantos outros da mesma escola) mestre em “desenvolvimento sustentável”. Método supimpa de produção, distribuição e consumo que, talvez, foi vislumbrado desde as entrelinhas da História do Futuro, na utopia barroca de Antônio Vieira. E no fabuloso Tesouro Máximo Encontrado no Amazonas, da escrita arcaizante do padre João Daniel. Este fez observatório no Moju (séc. XVIII) e Vieira (séc. XVII) anteviu a vocação natural hidroviária do planeta amazônico; ao deparar “avenidas, ruas e praças d’água” nos Estreitos de Breves: “clímax igapóreo” da Terra, na expressão de Eidorfe Moreira. O Padre grande esteve a poucas léguas do sítio ecológico que o nosso amigo jurou defender.
E, portanto, cristãos novos e velhos do Grão-Pará careciam de entendimento justo e perfeito da Carta do Apóstolo Tiago às Tribos Perdidas, segundo a Bíblia Sagrada. Nosso personagem tem nome de convertido, talvez por necessidade e acaso da conservação da memória e do meio ambiente de seus antepassados na preocupação de seus netos e da mais descendência que há de vir. Ele se chama, simplesmente, Agostinho Batista. Ademais, folclorista e escritor popular, além de seringueiro, mateiro experiente e flautista encantador de passarinhos da mata. Uma extraordinária atração ecoturística do Marajó a procura de empreendedor que o queira transformar em “produto”, com a nobre finalidade da geração de empregos e renda na comunidade tradicional de Muaná.

Marajó um lugar não como qualquer outro

  Tal qual o convertido Agostinho marajoara, também eu sou caboclo “educado” para matar ou morrer na dura lei da selva, que a sobrevivência nos sítios ensina sem compaixão. Aqui a gente não carecia de cartão de crédito, botijão de gás, vale transporte e cesta básica até há pouco tempo. A gente só precisava da ajuda de Deus primeiramente e, depois, de cachorro farejador, munição, espingarda e pontaria certeira. Fora disso, qualquer um se tornava “panema” e – Deus o livre! – precisava de caridade alheia todos os dias. Se desse, então, p’ra “mexer” na propriedade dos brancos a coisa ficava “peor” e cedo ou tarde, acabava dando com os costados na cadeia de São José...
Assim, a gente se ri do pessoal da cidade. Que, diz-que, quer porque quer o tal “desenvolvimento” a qualquer preço. E, subjugados à lei do Cão, ficamos ilhados e peiados a ver navios levar madeira de lei, minério e peixe ao estrangeiro a troco de um prato-feito de “lentilhas” na figura ridícula do salário mínimo (quando há). Por esta inglezia já fui adepto do Progresso e da Civilização. Por sorte, tive algum curupira por padrinho que me desviou do caminho da devastação. Tal qual, paresque, aconteceu com o parente Agostinho Batista. Eu escrevi loas à criação de um território federal do Marajó (anos 60) e fiz propaganda da hidrovia (anos 80), sem medir as conseqüências da economia de alguns quilômetros a menos entre Macapá e Belém. Continuo eu, sim, favorável à óbvia opção das hidrovias naturais da Amazônia. Que são os rios, com o mínimo de intervenção e o máximo de prudência científica e responsabilidade social e ambiental.
  Já pairava uma dúvida em meu espírito sobre a mais valia para a população tradicional entre uma reserva da biosfera ou a construção de um canal artificial de navegação de 32 quilômetros, rasgando áreas isoladas e quase intocadas. Eu não me impressionava com a conversa fiada do impacto ambiental sobre peixinhos misturados e confundidos – diziam – pelas águas emendadas. Quem conhece nossa hidrografia dava boas risadas dessa estória, com razão. Considero que não existe parto sem dor, assim como não há desenvolvimento econômico com custo ambiental zero. O que faz a diferença é a verdadeira questão do IDH da população local: o resto, conversa mole p’ra boi dormir...
Agora, todavia, percebo que a hidrovia não seria apenas um parto, mas um estupro. Tendo por vítima além da natureza também a gente ribeirinha, ao contrário do que se dizia... Muito me impressiona saber do enorme volume de mais de 13 milhões de metros cúbicos de terra, lama, biomassa e material orgânico a inevitavelmente entrar em decomposição, quando for retirado dos “mondongos” para dar lugar ao canal de navegação. Neste caso, o mínimo que se tem a fazer é ir em expedição tirar as dúvidas in loco, levando gregos e troianos ao terreno.
Onde será depositado o material extraído do “valão”, sem enterrar e entulhar o entorno? Aí mora o perigo. Para depositar mais longe, implicaria custos mais elevados que talvez justificassem alternativas que não a construção do canal. Dentre as quais, melhor aproveitamento dos cursos naturais com inovação tecnológica em equipamentos de transporte e navegação. Na verdade, a maioria dos membros do GDM não está convencida da necessidade do “furo” artificial, numa região que, por natureza, já se chama Furos de Breves.
Talvez os pesquisadores não soubessem, exatamente, e só ouviram falar do ecossistema a ser atravessado e alterado pela hidrovia. Nossas canoas motorizadas cruzam os centros da Ilha em diversas direções, ao tempo das cheias. A alegada abertura do canal para socorro de caboclos ilhados lembraria que a dragagem do Canal Tartarugas em meios a debates pela imprensa, depois de feita caiu em silêncio e não teve estudo a posteriori. De modo a prever as conseqüências possíveis sobre escavação de novo canal, este com maiores impactos para passagem de balsas e barateamento de fretes entre Macapá e Belém. Significativamente, uma região de extraordinária vocação hidroviária e de recursos aquáticos não tem centro de pesquisa e formação técnica especializada à altura do potencial.
Penso que uma alternativa à Hidrovia do Marajó se oferecerá a partir da Alça Viária, que ainda não havia nos anos 80; quando se aventou a idéia dessa ligação transmarajora em Macapá. Franklin Rebelo e eu (em artigo publicado em “O Liberal”) fizemos eco na imprensa em Belém sobre o assunto. Com o distrito industrial e portuário de Vila do Conde, entretanto, mudou-se o eixo viário do Pará em direção à bacia do Tocantins. Assim, em vez de abrir os centros da ilha do Marajó sem estudos ecológicos completos melhor será investir na perenização do lago Arari e na infra-estrutura portuária de Abaetetuba (centro tradicional de intercâmbio com as Guianas). Que, não só melhor atenderia o transporte hidroviário para as microrregiões de Portel e Furos de Breves, no Marajó, como também faria a ligação com a Zona Franca Santana-Macapá e a área metropolitana de Belém com transporte modal mais moderno e mais rápido, implicando, portanto em melhor produtividade. É claro que esta opção não existia ao começo dos estudos para o projeto em questão.
Tendo em vista a construção das eclusas de Tucuruí para aproveitamento da Hidrovia Araguaia-Tocantins, eventual operação de carga em Abaetetuba com destino ao Amapá e as Guianas poderá ser feita sem prejuízos com o cancelamento final do projeto da hidrovia do Marajó. Pois a ligação portuária Abaetetuba-Santana substituirá com vantagem a inicialmente prevista com projeção rodoviária para o Oiapoque em direção a Caiena e Puerto Ordaz (Venezuela) em face de Trinidad e Tobago e o rosário ilhéu do Caribe, via a hidrovia natural do Tajapuru.
Deste modo, entre mortos e feridos, escaparemos todos e o seringueiro Agostinho Batista agradecerá com o dueto com o Uirapuru da sua estimação, assistido alguma vez por ecoturistas maravilhados. Não antes que meu fraterno camarada Franklin Rebelo haja vencido o cruel isolamento da Contracosta. Com a inclusão da sua sonhada “Rodoleste (rodovia do leste marajoara) ao projeto governamental Costa do Sol. Pelo qual, a ligação em ferry-boat Barcarena – Ponta de Pedras se estenderá por estrada pelos campos de Ponta de Pedras aos campos de Cachoeira, continuando por Santa Cruz do Arari até às margens da Contracosta, em face da Ilha Mexiana.
A exemplo do Pantanal, o Marajó deve fazer opção preferencial pelo seu potencial ecológico com inovação tecnológica compatível, de modo a se tornar referência ecoturística do Pará. Muito melhor para todos e não apenas para alguns.

José Varella, do GDM.
Belém do Pará, 12/10/2003.

quarta-feira, 10 de julho de 2013

S.O.S CULTURA MARAJOARA: se após mil anos o Gigante acordou #OcupeMarajó



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A arte está no olho de quem vê

Picasso, num piquenique à beira mar, viu restos de peixe no fundo de um prato e transformou o que iria para o lixo num desenho artístico. Giovanni Gallo (cf. "Motivos Ornamentais da Cerâmica Marajoara", edições do Museu do Marajó www.museudomarajo.com.br), em Santa Cruz do Arari, provocado pelo caboco Vadiquinho com um pacote de "cacos de índio" (fragmentos de cerâmica marajoara) viu ali a semente para um museu inteiro enquanto a senhora da faxina da casa paroquial achava que aquilo seria ótimo para aterro do quintal...

Para muitos, não apenas a "Criaturada grande de Dalcídio" padecendo toda sorte de carências, o "museu do Gallo" é comparável aos cacos que lhe deram origem. Todavia, uma leitura historicamente contextualizada e politicamente mais atenta acaba descobrindo o escândalo nacional que, desde a década de 1930, separa o patrimônio colonial da herança pré-colonial; que envolveu a célebre polêmica entre o Museu Nacional e Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).

A cerâmica marajoara não seria, por acaso, a mais conhecida e elaborada arte primeva do Brasil? Se não for, por que se deram ao trabalho de arrombar sítios arqueológicos e fazer contrabando para o exterior? E se a resposta é positiva, por que se estão a perder os sítios arqueológicos da ilha do Marajó, entre chuvas e esquecimento, entregues às patas dos búfalos? 

PROVOCAÇÕES À CONSCIÊNCIA NACIONAL

Agora que o gigante adormecido está despertando do longo sono colonial; seria bom que a juventude nas ruas cobrasse mais respeito à Cultura Marajoara.

Mas, como a mocidade independente poderia falar de algo que lhe não ensinaram. Será mesmo que as autoridades da educação e cultura brasileira, pelo menos leram a obra de divulgação elaborada pela arqueóloga brasileira Denise Shaan "Cultura Marajoara", editora Senac, São Paulo, 2010 (especialmente o capítulo sobre o Museu do Marajó?

Por acaso a ministra do Planejamento Miriam Belchior, em viagem de serviço para entrega de títulos de autorização de uso de terras do patrimônio da União, na ilha do Marajó, visitou o dito museu: lá terá visto na entrada a mais velha peça da coleção geológica reportando a milhões de anos passados em contraste com a mais nova riqueza acabada de chegar...

Trata-se de uma viagem iniciática às riquezas do Brasil. Será que havia um guia ali naquele momento, capaz de fazer o papel do inventor daquela exposição? Será que alguém disse à minista que existe uma sutil conexão entre aquele lugar de memória e a regularização fundiária das populações remanescentes das velhas nações indígenas da Amazônia? Assim como a terríver lembrança da escravidão está ali como uma brasa indormida?


Logo, quando se pede criação de uma universidade multicampi com a cara marajoara e, ao mesmo tempo, perde-se a paciência com a estranha burocracia que empaca na candidatura do arquipélago como reserva da biosfera; faz todo sentido buscar meios para realizar o sonho de Giovanni Gallo em ver a modesta associação comunitária transformada em fundação capaz de atender a todos os municípios.

Então, os primeiros a se interessar pela demanda devem ser estudantes de História com especialização em Arqueologia e Etnologia. Pois, a partir do Marajó, estaria aptos a discutir a antiguidade pré-colonial do Brasil retomando a defesa nacionalista da revolução de 30, com o Museu Nacional (UFRJ) (cf. artigo de Heloisa Alberto Torres na revista do SPHAN[IPHAN] de 1937 sobre os sítios arqueológicos da ilha do Marajó.

Tanto Museu Nacional quanto Museu de Etnologia da USP, segundo Shaan na obra citada, possuem coleções de cerâmica marajoara, que foram tirada no Marajó de maneira não totalmente correta.

Pensamos que a Presidenta Dilma poderia determinar ao Ministério da Cultura o reconhecimento oficial da Cultura Marajoara como patrimônio cultural brasileiro. Para isto o Congresso Nacional e a União Nacional de Estudantes poderia ser decisivos.

E, deste modo, o Brasil prepararia junto à UNESCO programa de repatriamento de peças e coleções de cerâmica marajoara numa ação soberana de defesa das raízes pré-colombianas do Brasil... O valor simbólico que ajudará a qualquer governo de cunho popular a se voltar para as populações tradicionais, indígenas sobretudo, realçando a originalidade tropical ainda mais quanto anda nas ruas o processo emancipatório democrático em curso.

Estudantes e professores da USP e UFRJ, além de outros nas mais universidades do país, poderão se aliar ao movimento marajoara para criação da Universidade Federal do Marajó, a ser desmembrada a UFPA trazendo o Museu do Marajó (sempre passando necessidade de manutenção e amadorismo) a vir ser, por exemplo, o que o Museu Nacional - ressalvadas diferenças - é para a UFRJ.