sábado, 16 de março de 2013

"habemus" Esperança




o caboco que vos fala reza com Chico Buarque, quando este canta "Gente humilde":..."eu que não creio, peço a Deus por minha gente"... 

Não sou deputado nem vereador, falo por dor de consciência em nome da Criaturada grande destas bandas sem vez nem voz. O caso é que depois da gente se queixar ao bispo - que no Marajó são dois e ambos já foram ao Presidente Lula, em 2006, pedir ajuda aos pobres marajoaras - agora, pra completar, faltaria talvez ir ao Papa. 

vai ver que, pra gente humilde destas ilhas do fim do mundo, o jesuíta portenho Francisco poderia vir a ser chamado, simplesmente, Papa Chico... Fica mais bonito entre irmãos do Sul.

diz-que quem tem boca vai a Roma. Nós outros temos boca e temos fome e sede de justiça. Masporém, muitas vezes, não temos meios nem pra ir a Macapá arranjar serviço de garimpo clandestino na Guiana, no outro lado da fronteira. Não é brincadeira. Por esta via dolorosa do caminho da roça já passou muita desgraça e coisas cabeludas que até Deus duvida... 

claro, pra variar, algum contraponto com final feliz que até poderia ser melhor se o pessoalzinho deste fim de mundo fosse mais lembrado. 

hoje quero paz pra falar um pouco da eleição do Papa Chico, dizendo o que de fato isto poderia representar dentro do mato sem cachorro pra gente sem eira nem beira, que certo dia no passado foi pacificada pelo "payaçu" Antônio Vieira numa história inacreditável (27 de agosto de 1659), embora sem interesse acadêmico no juízo final de doutores da lei, constante inclusive da fantástica "História do Futuro" que quase ninguém lê devido a complexidade surrealista. E, no entanto, quando entra na geografia do lugar aí está a geografia fluvial com sua infra-estrutura a suportar toda delirante arquitetura barroca e super-estrutura do passado e do futuro distantes.

Antônio e Francisco são dois jesuítas separados por mais de três séculos, cada um com sua missão e sua história diferentes. Deles falam mal e bem, todavia têm algo em comum como visão de mundo, em especial as relações entre cristãos e judeus afastando preconceitos e malquerenças do passado para construir um futuro mais ameno para toda humanidade em nossa casa comum, a Terra mãe.

esta velha história do avenir, escrita às pressas por Vieira com faca ao peito para se defender como réu de "heresia judaizante", diante de poderosos inimigos ocultos e visíveis, se anunciava como preâmbulo (pra não dizer disfarce, a fim de despistar a mortal censura da Inquisição do Santo Ofício) da verdadeira e jamais concluída "Chave dos Profetas" ou "Reino de Jesus Cristo consumado na terra", vulgo "O Quinto Império do Mundo".

curiosidade na biografia de um jesuíta ecumênico avant la lettre, salvo do pior pela hesitante e insuficiente proteção do rei de Portugal, melhor acolhido pela tolerância do Papa e a admiração devota da rainha da Suécia que o livraram da mão pesada e vingativa da Inquisição portuguesa. Velhos demônios do catolicismo romano...

mas este admirável militante da Contra-Reforma e da Companhia de Jesus no século XVII, despertava intriga por onde passava e pesavam contra ele acusações severas: se por uma parte lutou pela abolição da escravidão dos índios, por outra incentivou a escravização dos negros dos quais, provavelmente, descendia por parte de uma avó mestiça serviçal do solar do conde de Unhão. A destruição de milhares de línguas e culturas indígenas encontrou nele apoio contra a "babel", que dizia existir, no rio das "Almazonas". Preocupou-se mais com a salvação das almas do que o bem-estar do corpo, inclusive do próprio pois sofreu bastante enfermidades e conheceu grande padecimento na velhice.

todavia, passado um século as aldeias das missões na Amazônia tinham se tornado em mão de padres convertidos de pobres mendicantes em ricos prepotentes, como explica o historiador João Lúcio de Azevedo, noutro cativeiro odioso que a tirania do Marquês de Pombal agravou em nome de nova "liberdade" (expulsão dos Jesuítas do Pará e o Diretório dos Índios, entre 1757 e 1798, donde o índio manso (catequizado) "tirado do mato" foi transformado em "caboco" (caboclo), civilizado, para ser súdito português. 

desta massagada catecumena, mestiçada a pobres deportados e enganados açorianos e escravos africanos, somos hoje a população amazônica que com migrantes nordestinos e de outros estados brasileiros beira a algo com 30 milhões de habitantes.

eis aí em traços ligeiros o retrato falado da utopia evangelizadora do padre grande dos índios da Amazônia e suas consequências geopolíticas entre sombras, suspeitas e perigos da Floresta Amazônica e das cortes europeias! Imperador da língua portuguesa, segundo o poeta Fernando Pessoa; jesuíta maquiavélico odiado pelos colonizadores, amigo de reis e papas, temível orador, sebastianista convencido; curioso da astrologia e da cabala. 

só pra recordar a carta que ele escreveu à regente Dona  Luísa de Gusmão, no início de 1660, pouco antes de ser expulso com seus confrades por iracundos colonos do Pará (1661). Dizendo que com a pacificação dos índios do Marajó como amigos dos portugueses ficava guardado o Pará da cobiça dos coloniais estrangeiros. Quem aprendeu geografia do rio Amazonas é obrigado a concordar com o fato de que, sem índios missionados pelos jesuítas nas ilhas do Marajó, não existiria ontem uma Amazônia lusitana (1616-1823) e hoje brasileira.

a aventura e desventura amazônica de Vieira começa com sua missão diplomática na Holanda. Onde ele, tendo compreendido o problema econômico de fundo em Portugal com a expulsão dos judeus e seus respectivos capitais; se aproxima do rabino Menassés ben Israel, da comunidade portuguesa de Amsterdã. Este escrevera o livro "As Esperanças de Israel" afirmando que os índios do Novo Mundo eram descendentes das tribos perdidas do cativeiro da Babilônia. A morte do rei português Dom Sebastião no Marrocos, por ambição e imprudência dos cristãos, teve grande parte de culpa no jesuitismo militante impressionado pelas Cruzadas.

Vieira compreende todo o drama e vê no misticismo do povo um instrumento político manipulado pelos nobres da restauração da monarquia e independência de Portugal: as trovas do sapateiro Bandarra excitam no povo a crença da "ressurreição" de Dom Sebastião (ou seja, a Restauração do trono lusitano) na pessoa do Conde de Braga coroado Dom João IV. O sebastianismo alimentava guetos de cristãos-novos do messianismo de Joaquim de Fiori mal visto pelo anti-semitismo dos cristãos-velhos. Tudo isto foi esquecido sem jamais ser compreendido. Quando o rei amigo morreu, em 1656, Vieira estava isolado no Pará e logo percebe o desamparo e perigo a que ficou exposto: seus inimigos na corte e escravizadores de índios na Amazônia iriam atacar... 

subindo o rio em canoa com remadores indígenas rumo a Cametá (aldeia de Camutá), em abril de 1659, ele escreve a famosa carta secreta "As Esperanças de Portugal" enviada ao bispo do Japão (residente em Lisboa). Na missiva assume a retórica sebastianista com a frase herética que o levaria às barras do tribunal do Santo Ofício, proclamando: "Bandarra é verdadeiro profeta!"... 

Escândalo teológico e esperança de provocar no reino uma reviravolta a favor das missões no Brasil como verdadeiro projeto civilizatório cristão (lembrar as Missões no Cone Sul e comparar com as aldeias da Amazônia de então, antes do famoso tratado de limites de 1750).

o sapateiro de Trancoso havia sido condenado como herético e já estava morto e enterrado por morte natural em prisão domiciliar. Entretanto este poeta morto cujas trovas estavam na memória do povo veio a provocar uma revolução de libertação. Portanto, o missionário recorre ao poeta sebastiano nomeado à distância pelo provincial da Companhia de Jesus à categoria de profeta - além de lembrar a teoria do rabino Menassé a um mundo extremamente anti-judaico para o qual a morte de Cristo era obra dos judeus -; parecia a Vieira também ele ser capaz de "ressuscitar" a Dom João IV. 

claro, o rasteiro materialismo prático português da época colonial, a cegueira, estava longe de entender uma caprichosa metáfora desta. Re-suscitar o rei Restaurador, no caso, seria revitalizar o patriotismo português debaixo da restauração do reinado perdido nas areias escaldantes do Marrocos com a morte suicida de Dom Sebastião. Olhando bem o discurso por esta parte, o trovador popular havia razão, tanto quanto o payaçu dos índios da Amazônia está sendo novamente suscitado agora por um caboco metido a leitor de história. 

Todos dias de comemoração é dia de "ressurreição". Quem vai a missa ou culto com fé ressuscita Jesus Cristo em seu coração e todo índio que comunga do Kuarup xinguano saberá do que estamos falando. O missionário que pegou o espírito da coisa, longe de querer "extirpar" a barbaridade do Outro ("o diabo são os outros"), saberá que a degustação de mingau de banana com as cinzas do morto na cultura Ianomami é sucedâneo da Eucaristia. Há sabedoria e veneração à Vida cósmica [Zeus, Deus, Buda, Tupã, Oxalá...] em casa de Mina, terreiros e searas de umbanda no culto ancestral de vóduns e orixás ou caruanas... O mapa não é o território: a letra mata, mas o espírito vivifica...

era aqui que eu queria chegar para lembrar que não se precisa ir a uma determinada igreja particular se o mundo inteiro for sagrado como um templo para o crente. Jesus de Nazaré falava aramaico, que segundo dizem a mesma palavra se aplica indistintamente a "pai" ou "mãe"... 

Sendo assim, o "Padre Nosso" também é "Madre Nossa" e a melhor tradução da extinta língua semítica talvez fosse a palavra "vida" para expressar nossa origem na Terra. Quem tem horror de ser descendente de "macacos" poderia se consolar com a certeza científica de que a vida na terra veio do céu, das estrelas: mas a humildade ensina que somos parentes das amebas... E a mulher veio antes do homem, não há maior nem menor; há diferenças que se completam como metades do mesmo ser humano.

e a Fome é o que mais consome o Homem e todos mais viventes. Daí que a gente se lembra do Papa Chico quando dizem que ele teria dito aos cardeais que é preciso a humanidade contemplar a face misericordiosa de Deus para que haja salvação, por suposto, a todos e não só para alguns eleitos conforme as mais vetustas tradições religiosas exclusivas ou modernas que condenam os infiéis a penas infernais neste e outros mundos. 

o Papa escreveu ao rabino de Roma ofertando contributo às boas relações entre católicos e judeus. Isto me lembra a condenação do padre Antônio Vieira e que sua utopia evangelizadora também ia ao encontro da paz com o Islã. Hoje para que o império da justiça e da paz se faça presente no mundo é preciso ir além da grande família de Abraão.

e já que o ecumenismo deveria abraçar, imediatamente, católicos e evangélicos para juntos em toda cristandade concretizar a história do futuro entre crentes e não-crentes em busca da Paz, queria eu encerrar, posto que já falei demais; lembrando o protestante Ariano Suassuna com seu magnífico "Auto da Compadecida" na qual a mãe de Jesus é advogada desta pobre gente do sertão do mundo industrializado.

a face misericordiosa de Deus habita, atrevo-me a dizer, o templo do coração humano não muito longe do ódio e do medo vizinhos da humanidade filha da animalidade (a Igreja que se reconciliou com Galileu precisa tomar coragem para se reconciliar com a paleontologia do jesuíta Teillard de Chardin tirando-o do silêncio a que foi condenado como o silêncio imposto pelo Santo Ofício ao padre Antônio Vieira).

no Alcorão Jesus e seu mãe estão sentados no paraíso ao lado do Profeta Maomé e um dos nomes pelos quais os islâmicos invocam Alá é, justamente, o Misericordioso. Sem compaixão e misericórdia o mundo é choro e ranger de dentes...

dizem os sábios que Deus falou aos homens por diferentes meios? Pois se falou uma vez, poderá ainda estar a falar ou falará depois. O problema, então, é ouvir ("a voz do Povo é a voz de Deus") se acaso somos surdos como cegos estávamos no Colonialismo ("Sermão aos Peixes", padre Antônio Vieira, Maranhão, 1654). Ghandi foi o pagão mais cristão que jamais houve outro igual. O revolucionário Hugo Chávez proclamou que Jesus Cristo foi o primeiro comunista do mundo. Por acaso um ateu como Oswald de Andrade, quando disse que fizemos Cristo nascer na Bahia ou em Belém do Pará, não disse a verdade? Pois se Deus é brasileiro e agora o Papa argentino não está na hora de ouvir a voz do Povo sofredor?

Mas a Mãe de todos humanos e de todas criaturas - a Compadecida - é aquela energia divina e maravilhosa que faz o milagre do amor e da vida apesar de tudo, seja na gente ou nos bichos, nos sóis e luas de todos os céus como cria Francisco de Assis. Ora, as chaves sutis que abrem a porta da compaixão não são o esquecimento, muito menos a indiferença e o egoismo; mas o arrependimento e o perdão.


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