quinta-feira, 2 de maio de 2013

NOSSA VARJA: CAPITAL SOCIOAMBIENTAL DA CRIATURADA GRANDE

Blog do Lélio
modesta homenagem do blogue CULTURA MARAJOARA ao sumano Lélio e a briosa força-tarefa da SPU, por levar avante contra vento e maré a desigual luta da brava gente marajoara.


Nossa Varja

Embora, no ilhamento geral do maior arquipélago fluviomarinho do planeta, ninguém soubesse que faltavam apenas 10 anos para a Princesa Isabel assinar a célebre Lei Áurea. E, finalmente, após o martírio de Tiradentes enforcado e esquartejado pelo crime de sonhar com a Independência republicana, a proclamação da República em 1889; chegou o dia 30 de Abril de 1878, quando Ponta de Pedras, na ilha do Marajó, terra natal do “índio sutil” Dalcídio Jurandir, conquistou autonomia municipal.

A partir desta data a antiga Itaguari (em língua-geral Nheengatu, “ponta de pedras”) deixou para trás um longo passado, que hoje se perde na lenda da primeira noite do mundo: tempo mítico pré-histórico. Há coisa de 5 mil anos, quando nômades paleo-índios perambulavam pelas várzeas e mangais mariscando e praticando a pesca manual, chamada gapuia, em busca do que comer para matar a fome.

É claro que quando alguém diz “Fome Zero”, esta gente grita “quero”. E pede bis: “oba! O tempo está pra nós, seu Queiroz”. A gente quer mais Brasil sem miséria. Mas, espera! Será possível fazer inclusão socioambiental sustentável sem reacender a extinta fogueira da memória?

Os guardiãos da Floresta precisam eles mesmos se tornar guardiãos da própria História do Brasil pré-colonial. Se a União é proprietária dos sítios arqueológicos do Marajó, assim que das terras de marinha; carece que ela tome conta direitinho do que é seu e informe isto com todas as letras à população. De modo que a gente do povo seja ela a primeira a se engajar na defesa destas riquezas e do território que as contém.

Na geografia humana das nossas várzeas há diversos lugares chamados Mata Fome, cujo nome explica a memória da fartura que havia em rios, lagos, igarapés, furos e igapós no reino da Cobragrande e outros seres encantados chamados, em geral, bicho do fundo. Como diria o perspicaz Alfred Wallace, co-autor da teoria da evolução das espécies; o qual no Marajó, em visita à ilha dos Mexianas, intuiu parte de suas revolucionárias descobertas ao mesmo tempo que Darwin; por necessidade e acaso o nomadismo primitivo tomaria termo com a supimpa invenção da Cultura Marajoara, cerca do ano 400 depois de Jesus Cristo.

Só a cegueira científica e tecnológica, causada pela arrogância política, explica o motivo pelo qual o bioma Marajó-Amazônia ainda não foi reconhecido como patrimônio nacional e reserva da biosfera pela UNESCO, quando outras paisagens menos representativas para tal ostentam títulos que as ajudam conciliar desenvolvimento sustentável e proteção ambiental.

O Brasil precisa descobrir a Amazônia Marajoara. Com o real conhecimento desta entender melhor as mais Amazônias. A chave biogeográfica e histórica que abre a porta das Ilhas do Pará-Amazonas chama-se rio Marajó-Açu (grande Marajó) e a ponta de pedras, Itaguari, comparou-se na conquista do “rio das Amazonas” à famosa Coluna de Hércules para a brava nação Tupinambá. E, portanto, é correto dizer que o grande Marajó começa em Ponta de Pedras. Rio acima se chega ao Arari cujo formador é o lago, berço da primeira civilização nativa do Brasil. O Museu Nacional a par do Museu Paraense Emílio Goeldi acompanhados pelos maiores museus do mundo sabem disto tudo e muito mais. Porém, a gente marajoara não sabe e o desamparado Museu do Marajó, em Cachoeira do Arari, estremecido de tolas rivalidades internas, sobrevive como pode face ao desinteresse mal disfarçado de prefeituras marajoaras, governo estadual e Ministério da Cultura.

O Marajó (“homem malvado”, no preconceito dos antropófagos tupinambás, que encontravam a morte diante da feroz resistência dos Nheengaíbas (“falantes da língua ruim”) foi a pedra no caminho e contradição permanente da Colonização. Sem isto, certamente, o desastre colonial seria total. Esta brava resistência se explica em parte pela própria resiliência socioambiental do bioma, que cedo ou tarde acabou fagocitando conquistadores tupis e colonizadores europeus, acompanhados de negros escravizados e migrantes das secas do Nordeste, fazendo de uns e outros igualmente marajoaras.

No cadinho do famigerado iluminismo papa-chibé, representado pelo Diretório dos Índios (1757-1798) sobre o espólio dos Jesuítas expulsos (1759), restos mortais do acordo de paz do rio Mapuá (Breves, 27/08/1659) entre os sete caciques Nheengaíbas e a Coroa portuguesa; mais o enormíssimo esquecimento histórico da proclamação de Muaná (28/05/1823) para Adesão do Pará à Independência do Brasil – tirando energia não se sabe de quê –, a “Criaturada grande de Dalcidio” não desiste da luta ancestral pela sobrevivência. A dialética dos povos das águas, ao vivo e em cores naturais todos os dias e noites de acordo com o relógio da maré. O grande Mar-Oceano e a Floresta Amazônica banhada pelo imenso Nilo amazônico, encontram-se num infinito embate no golfão que por obra de sua própria gente plantou a semente da ecocivilização chamada Cultura Marajoara, inventada antigamente na ilha filha da Cobragrande.

De conflito em conflito, de conciliação em conciliação. Muitas vezes, pelo império vital do sexo através de casamentos e amasios à moda antiga do cunhadismo inaugurado entre o cristão-novo Martim Soares Moreno e a índia Paraguassu, de Jaguaribe (Ceará), sem o qual não se poderia tomar o Maranhão aos franceses (1615) nem ocupar o Pará (1616) prestes a cair em mãos de mercadores holandeses e ingleses. À margem da história luso-brasileira, mas segundo a utopia selvagem da mítica Terra sem Males encontrada na Tapuya tetama (terra Tapuia) pelos caraíbas comandando arcos e remos tupinambás, em contraditória aliança com as armas e barões assinalados do velho Portugal.

Na complexidade do espaço e do tempo amazônico, 44 anos de guerra amazônica, da tomada do Maranhão (1615) até as pazes com os Nheengaíbas (1659). Os antigos marajoaras jamais foram vencidos pelas armas, mas enganados e usurpados de seu território varzeano pela perfídia dos portugueses do Pará. Rasgada a lei de liberdade dos cativeiros indígenas (1655), arrancada com sacríficio pelo Padre Antônio Vieira; pisoteada a tutela da Companhia de Jesus nos negócios indígenas e expulsos os padres com violência (1661). Enfim, foi consumado o esbulho pelo próprio rei mentecapto Afonso VI (depois deposto por seu irmão, que lhe tomou a mulher ainda virgem segundo consta e o trono deixado rei-pai João IV, dito o Restaurador da independência portuguesa), tomando as ilhas dos indefesos Nheengaíbas para doação graciosa a seu secretário de estado e criação da Capitania hereditária da Ilha Grande de Joanes (1665-1798): matriz espúria das sesmarias do Marajó.

O donatário e patriarca dos Barões de Joanes, Antônio de Sousa de Macedo, que ao que consta nunca veio ao Pará; nomeou a André Fernandes Gavino como capitão-mor da Capitania da Ilha Grande de Joanes, com amplos poderes de administração, inclusive doação de terras em regime de sesmaria. “Joanes” [em vez de Ilha dos Nheengaíbas, depois dita dos Aruans ou Marajó] é uma corruptela aportuguesada do nome de uma das mais antigas etnias marajoaras, os Yona ou Sakakas; que foram deslocados dos centros da ilha, cerca de 1300, diante da invasão dos belicosos Aruãs. Os Sakakas foram habitantes da costa de Salvaterra, até começos da ocupação por fazendas de gado, Aruãs e Joanes lutavam furiosamente.

Esta guerra entre povos indígenas do Marajó terminou quando os Caripunas, compadres de ambas partes inimigas, aconselhou os Joanes a ir ao Pará propor aliança aos portugueses para escarmentar os Aruãs, acostumados a fazer incursões guerreiras sobre a costa da baía. Apesar dos Tupinambás, amigos dos colonizadores e praticantes da antropofagia ritual; fazer “razzias” entre os Yona para capturar “negros da terra” junto à Costa-Fronteira; os Yona atravessaram e tiveram êxito inesperado junto a um parente que fora capturado para ser escravo e aprendera a língua-geral, com que acabou sendo intermediário das negociações.

Os colonizadores estavam ansiosos para botar os pés no Marajó que, malmente, só em 1680 com o temerário Francisco Rodrigues Pereira na sesmaria do dito capitão-mor, no rio Mauá, tributário do Baixo Arari pela margem esquerda; conseguiram levantar o primeiro curral de gado, enfrentando o perigo dos índios bravios, mocambos (quilombos) de negros fugidos e desertores que viviam refugiados pelos centros da ilha. Desta maneira, concordaram os portugueses em mandar escolta à aldeia dos Yona para castigar os Aruãs quando aparecessem novamente. Não sem antes os marajoaras dar ajuda na faxina para construção da fortaleza da Barra (1686). Fato que veio a determinar novo apelido dos “joanes” como sacacas. O tuxaua animava seus parentes a terminar rápido o serviço a fim de partirem sem demora a levar o reforço ao Marajó. Dizia ele, sem descanso, a palavra de sua língua “kakakun, sakakun”... Que corresponde em português a “depressa, depressa”. Como os mais trabalhores indígenas na obra não entedessem a língua do Yona, estes ficaram apelidados Sakakas, e seus descendentes ainda hoje se chamam Sacacas, notadamente os chamados pajés sacacas, na acepção de “pajés verdadeiro” (genuínos).

Este episódio relatado pelo índio Severino dos Santos, sargento-mor da vila de Monforte (Salvaterra), ao naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira, transcrito na “Notícia Histórica da Ilha Grande de Joanes, ou Marajó” (1783) termina com a surpresa dos atacantes Aruãs, pela primeira vez sendo repelidos por armas de fogo; e desbaratados a correr pela praia para ser encurralados e dizimados no Igarapé Água Boa. Teriam sobrado dois índios que esperavam nas canoas no Igarapé Jobim e foram contar a façanha dos Yona para nunca mais voltarem.

Com o tempo, se misturaram indiferentemente índios, negros e brancos na mescla marajoara deixando descendentes até hoje. A sesmaria do capitão-mor conviveu com os “joanes” que em sua antiguidade na ilha favoreceu aos colonos a enfrentar os “índios bravios” e a concorrer com as fazendas dos Jesuítas. Escravos negros apareceram na ilha primeiramente com a sesmaria dos frades das Mercês que tinham contato de colaboração com os moradores brancos na vila de Monsarás e na “freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Cachoeira do rio Arari” (1747), depois Vila de Cachoeira.

A origem da família Gavinho se acha na Espanha e Portugal, no Pará o capitão-mor André Fernandes Gavinho teve sesmarias extensas no Marajó. Na Península Ibérica os Gavinho foram ricos proprietários de terras. Os municípios de Soure, Salvaterra e Cachoeira do Arari tem seus limites sobre as antigas sesmarias do capitão-mor Gavinho, enquanto que o município de Ponta de Pedras surgiu das sesmarias da Companhia de Jesus e dos Mercedários. Com a expulsão e desapropriação das fazendas dos Jesuítas, aparece na história os Contemplados: homens bons que o primeiro ministro Marquês de Pombal mandou doar as ditas fazendas com porteira fechada, inclusive a respectiva escravaria. Os índios passaram a ser, supostamente, “livres”. Contudo a realidade é que passaram a servos da gleba.
Na área da primeira sesmaria dos Jesuítas no rio Marajó-Açu, doada ao “contemplado” sargento-mor Domingos Pereira de Moraes; foi assentada a Vila de Ponta de Pedras. Assinou a ata de instalação da nova vila, desmembrada da jurisdição da Vila de Cachoeira, o morador Antônio Pereira de Moraes na qualidade de presidente da Câmara de Vereadores, tendo um irmão de nomes João Pereira de Moraes entre os mais vogais. Daí que pelo arco das gerações é interessante estudar os 135 anos de emancipação municipal de Ponta de Pedras, no mesmo momento que em Belém, no conjunto dos Mercedários, lugar de memória da Cabanagem, o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), órgão da Presidência da República; e a Secretária do Patrimônio da União (SPU), do Ministério do Planejamento; fecharam parceria para implantar o Observatório Socioambiental do Projeto Nossa Várzea no Pará.

O
projeto NOSSA VÁRZEA vem de 2005, anterior aos PLANO MARAJÓ (2007) e programa Território da Cidadania Marajó (2008). Formam o mais importante instrumento de desenvolvimento territorial sustentável na Amazônia, que jamais existiu no Marajó, em todos os tempos, há mais de 350 anos desde a pacificação dos Nheengaíbas (povos rebeldes nuaruaques), em 1659.

De seu exílio carioca Dalcídio Jurandir viu à distância, através da correspondência de Maria de Belém, a ação do bispo Angelo Rivatto, da Diocese de Ponta de Pedras, com duas cooperativas de feição kibutziana. Era notável a improvisação sob os ventos da teologia da libertação na terra do "índio sutil". Aquilo poderia lembrar a ficção no romance "
Marajó", a inverossímil "reforma agrária" de Missunga, herdeiro do latifundiário Coronel Coutinho, no rio Paricatuba fronteiro à vila de Ponta de Pedras... Um rio paradigmático, na sesmaria da fazenda São Francisco (1686) doada em realidade ao “contemplado” sargento-mor Domingos Pereira de Moraes, em 1759. Onde o Diretório dos Índios fez a “caboclização” mediante casamentos forçados de índias catecúmenas e colonos tangidos pela pobreza de Portugal, notadamente imigrantes das ilhas dos Açores, da Madeira e norte de Portugal; para ocupar o "espaço vazio" (em realidade, esvaziado) do Grão-Pará.

O bispo Rivatto ao contrário do atilado padre Vieira, que ele venerava, se revelaria mau aluno de economia, desperdiçando recursos captados no exterior. Seu mais contundente crítico não se achava entre fazendeiros, mas dentro da própria diocese católica, na figura polêmica do padre Gallo, dizendo este último que o dinheiro para obras sociais enviado por igrejas-irmãs da Itália, Suiça e Alemanha saiam em maior parte do bolso de trabalhadores imigrantes (cf. "O homem que implodiu", autobiografia de Giovanni Gallo", Secult: Belém, 2002).


Nas cooperativas assistidas pela Diocese de Ponta de Pedras, a sustentabilidade econômica era manga de colete... Todavia, do ponto de vista socioambiental, o sucesso ainda pode ser medido até hoje com uma simples visita a cerca de quatorze comunidades remanescentes, indo de Praia Grande próximo à foz do rio Marajó-Açu até Porto Santo, no Baixo Arari; percorrendo a antiga
Costa-Fronteira do Pará com faixa de terras, indubitavelmente, do patrimônio da União.

Portanto, no projeto NOSSA VÁRZEA, o Observatório do IPEA/SPU no Pará poderá mostrar este significativo "
case" de insucesso. Acompanhado de semelhantes fracassos, num rosário de esperanças que perderam a fé. Tais como o Programa Pobreza e Meio Ambiente na Amazônia (POEMA), da UFPA em cooperação internacional, em Praia Grande. O projeto piloto de Agricultura Familiar Sustentável, da EMBRAPA, em Jaguarajó. E, finalmente, o amputado e fraudado Projeto de Execução Descentralizado (PED Guaianá), financiado em alvísseras pelo PPG7 para morrer na praia, atingido por certeiro inquérito da Polícia Federal. No caminho do futuro não se deve esquecer maus passos do passado. Pois são eles que nos ensinam a progredir sem jamais repetir a história.

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