em Parintins (Amazonas), boi Garantido reverenciando a terceira idade.
Car@s suman@s,
A nossa velha cultura marajoara carece, mais que nunca, que a velha guarda abra o olho e se levante, antes que seja tarde, pra dar um norte à mocidade dependente de perigosas inglesias e novidades mortais. A gente não é xenófobo (ódio a estrangeiros), muito pelo contrário. Mas porém, a gente não é besta... Um tio velho sacaca, uma avó passada pela casca do alho de longe sabe se o forasteiro que vem chegando é gente boa ou se é lobo coberto com pele de ovelha. Que o caboco marajoara sabe separar o joio do trigo ficou provado na histórica naturalização do marajoara que nasceu na Itália, padre Giovanni Gallo, criador do Museu do Marajó.
O Gallo implodiu-se pra dar testemunho da Criaturada grande de Dalcídio, mesmo que o padre nunca tenha lido nenhum romance do autor de "Chove nos campos de Cachoeira", este um exilado no Rio de Janeiro leu todos artigos de Giovanni Gallo na imprensa e o incentivou a publicar o clássico "Marajó, a ditadura da água".
A antiga vila da Cachoeira do rio Arari - "rio de araras" extintas na paisagem do Marajó, cachoeira essa sumida no sumetume da lenda da primeira noite do mundo -, foi asilo de "O homem que implodiu". Todavia, a obra "Motivos Ornamentais da Cerâmica Marajoara" o testamento do Gallo deixado às futuras gerações marajoaras. Pena que metade do povo do Marajó não sabe ler nem escrever...
Raros os cabocos retóricos, que somos nós, alfabetizados e letrados na escola da vida. Sobretudo, os poucos alfabetizados politicamente; tendo como redobrado dever de consciência falar em nome dos muitos conterrâneos que não tem vez nem voz na História. Por isto, hoje este caboco blogueiro que vos fala quer homenagear e falar de um genuíno caboco marajoara, retórico supimpa e cultivador de chula, que se chama Agostinho Batista, filho de Muaná. O tal seringueiro idoso, que um dia foi companheiro de Chico Mendes e para não implodir mato adentro, sem vez e voz nas funduras das matas do rio Atuá; meteu sua velha montaria a reboque da Cobragrande transformada em Navio Encantado, e subiu o Tocantins até onde deu porto mais perto pra rumar a pé até a capital, Palmas. E lá, enfim, mestre Agostinho houve reconhecimento, provando assim que ninguém é profeta em sua aldeia...
E nós com isto? Ora, essa! Se acaso o mulatinho Dalcídio José, filho de dona Margarida e do capitão Alfredo; não tivesse pegado o Ita acha que ele chegaria a ser Dalcídio Jurandir sem o Rio de Janeiro? Marajó é uma mina que jaze ao léu entre chuvas e esquecimento. Padece dum dos piores índices de desenvolvimento humano (o tal IDH). No Marajó a teoria é outra, aqui de fato só temos dois partidos políticos, não importa a piracema de legendas e o troca-troca eleitoral: o partido dos que estão por cima e o dos que ficam por baixo na peleja... E já se sabe qual dos dois nunca saiu de baixo.
Por ora basta de falação. A gente não deve esquecer que, depois de 190 anos que Muaná proclamou a Adesão do Pará à Independência do Brasil, só dois presidentes da República vieram ao Marajó: o general Geisel convidado pelo partido dos que sempre estão por cima... E o sindicalista Lula a convite do partido dos que sempre ficam por debaixo.
Já falamos de outra feita a respeito de Mestre Agostinho, herdeiro da tribo dos Muaná. Agora é pra dizer que ele vem aí para falar da Universidade Aberta à Terceira Idade. A Academia do Peixe Frito se prepara para recepcionar a delegação da Universidade Federal do Tocantins e já convidou a Irmandade do Glorioso São Sebastião para lhe fazer companhia. Abaixo, uma crônica (pode ser encontrada na internet) na qual a gente conta como foi que se descobriu esse um. Bom proveito.
Flauta e Uirapuru
no encanto da Mata Atuá-Anajás
Em memória de Rodolpho Antonio Pereira,
meu pai. Aprendiz de música que se prezava
de ter sangue cabano e descender de índios.
Não direi (dizendo) como
Pascal, “creio, porque é Absurdo!”. Mas,
tão simplesmente, creio. Porque pelo sentimento do seu coração o plácido
caboclo Agostinho Batista achou a paz universal, no umbro das matas do alto Atuá e Anajás. Misterioso cerne da Biodiversidade, que
antigamente o profeta Isaias anunciou e o Santo de Assis cantou sem contradição
nenhuma com a Ciência pura. Por necessidade e acaso aos centros da Ilha do Marajó, no delta estuarino do “Mar Doce”: o maior rio do Planeta.
Enquanto o seringueiro solfejava a flauta doce p’ra matar as suas mágoas ele se
viu, face à face, diante da sutil presença da poesia
concreta. Viva, alada e sonante. Que só vendo para crer mais do que nunca.
Naturalmente, a maravilha se
fez plumas e canto do Uirapuru como a leveza do ar que se respira com aroma de
flor silvestre. Naquela hora suspensa dos movimentos aparentes do dia, no sítio
mágico não se duvidaria do poder divino da mãe Natureza. Como da aparição da
Virgem a qualquer andarilho vagamundo, em busca de salvação da sua vida.
Abriu-se na humana consciência da biosfera um espaço que antes jazia oculto
desde o descobrimento do Novo Mundo,
um portal ao mundo novo.
Na verdade, o paraíso
procurado na terra não estava ali nas cabeceiras dos contravertentes
do Amazonas e Pará, pelos âmagos preservados da Ilha do Marajó
entre árvores de borracha e lagos encantados no esquecimento da devastação
amazônica. Coração (quase) imaculado da Ilha Grande. Que, no dizer do
naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira, era a “menina dos olhos” do inspetor
Florentino da Silveira Frade (talvez o autor anônimo da primeira Notícia Histórica da Ilha, na metade o século XVIII, donde o sábio da Viagem Filosófica bebeu nas primeiras
fontes a fim de escrever também a sua Notícia
de 1783, baseada naquela e aumentada de observações e impressões próprias).
Tampouco se recuperaria o Jardim do Éden pelo remendo social de Missunga,
herdeiro do coronel Coutinho, no rio Paricatuba (na
foz do Marajó-Açu), onde meu pai dizia os tangarás-da-mata outrora vinham bailar a horas mortas do
dia, constante das páginas do romance Marajó, de seu irmão Dalcídio.
Mas, o caminho à primitiva morada sagrada passava perto das cabeceiras do Atuá-Anajás, qualquer um acreditaria ao ouvir o que tem a
dizer o seringueiro e folclorista Agostinho Batista, tradicional morador do Muaná. Alarmado com a perspectiva de dragas e tratores entrarem triunfantes como o Dragão da maldade rio acima a
profanar o sítio onde o caboclo toca flauta e o Uirapuru canta.
Dirão os coloniais “cegos”
do Sermão aos Peixes do padre Vieira,
é a Preguiça mãe de todos os vícios. Direi com os sociólogos e economistas
humanistas, é o Ócio pai e mãe da filosofia e apanágio de nobres cidadãos, que
em exigência crescente não sabem donde vem o que consomem e querem sempre do
bom e do melhor... O desequilíbrio ecológico começa no coração do homem
consumidor nas cidades: não será levando o alienado “progresso” urbano aos
sertões, mas – ao contrário – importando a paz do interior para as ruas, casas
e apartamentos de mini-cidades e aldeias sustentáveis que a gente haverá futuro
algum dia.
Como se sabe, uirapurus e
tangarás são indicadores biológicos da devastação da natureza, pois só
sobrevivem na mata virgem. Eis a questão sucinta do caboclo do Muaná, decidido a não trocar a primogenitude
da sua gente naquele rio por um “prato de lentilhas” sob forma de cestas
básicas ou salário-mínimo. Argumento que na maioria das vezes daria ar de riso
a arrogantes devotos do deus Progresso (já se sabe que não de graça),
acostumados que estão a passar por cima de tais ponderações “românticas”. E, portanto,
estamos todos na cidade ou no interior “no mato sem cachorro” e nos mais
diferentes recantos do globo os ricos cada vez mais ricos, os pobres cada vez
mais pobres. E como a “coisa” já foi longe demais deliberei por consciência
própria e fidelidade da defesa do Povo marajoara, dar eco ao singelo apelo de
meu colega caboclo Agostinho Batista.
Mas, do mesmo modo como o
milagre se manifestou a ele daquele modo; também no seu vivo argumento dá-se
casamento justo e perfeito da fé com a razão. Ou, melhor dizendo o verdadeiro
equilíbrio entre a qualidade de vida e o ganha pão dessa gente do fim do mundo.
Pelo que valeria a pena assinalar o sítio desse acontecimento extraordinário
como algo maior: nunca menos que uma ermida dedicada à
Nossa Senhora do Tempo ou do Livramento, conforme a tradição dessa nossa gente
católica iberiana. Assim como carece ainda recuperar,
no Mapuá, o sítio da Igreja do Santo Cristo que os sete caciques nheengaíbas
levantaram e o padre Antônio Vieira consagrou para todos juntos – marajoaras,
tupinambás e portugueses – celebrarem a paz do Grão-Pará (Amazônia). Ora, quem
conhecer a antropologia americana levantaria as mãos aos céus, ao saber desse
acontecimento singular da história da Amazônia brasileira.
O lugar onde todos os lugares se resumem ou a quarta
dimensão
Quando
Uirapuru canta a mata se encanta. Tudo queda em silêncio e paz, dizem velhos
mateiros calejados da “lei da selva”. E, portanto, aquele evento extraordinário
seria ponto certo de Mutação para
nova ciência do espaço-tempo relativo: na ínfima fração de um décimo de
segundo, a eternidade se fazia presente. Pois, enquanto a paz é infinita a vida
fica mais bonita no seio da maré. Todos os tempos e lugares se resumiram num
único Lugar: que nem o Aleph, do
vidente e escritor cego Jorge Luís Borges.
Paresque, o cantador da mata virgem surge do nada e ao nada
retorna após o concerto. Por acaso, o
som doce da flauta do seringueiro atraiu o passarinho em necessidade de
companhia. Quando um tocava, o outro calava: e tudo era a mesma música. O
profano e o sagrado interagiam naquele concerto da mata virgem, que vinha da preteridade do mundo, desde os Princípios.
Pelo fio
do tempo se desatava a Corda da
romaria tecida de elétrons, íons, prótons, nêutrons e a
infinidade de coisas que a gente não sabe e talvez nunca jamais há de saber...
(com amável licença do filósofo da Latinidade, Edgar Morin).
Aí, o tempo marajoara passava gota a gota. Como o sereno caindo fino das
folhas, madrugada adentro, durante a evapotranspiração
da floresta. Devagar, devagarzinho, quase parando... Isto o caboclo achava
muito bom. Não carecia pressa ou lucro. Mas porém, não há dinheiro nenhum que pague.
Não é
curioso, por exemplo, que no Velho Mundo se considera o leão, devido à força,
“rei” dos animais. E, na Amazônia, um simples passarinho com sua simplicidade e
canto maravilhoso reina e encanta a floresta? Que sentido o mundo poderia tirar
desta lição da natureza? Quando se sabe,
ademais, que aqui vieram convergir anseios de conquista incontroláveis, com tribos antropófagas e guerreiros medievais movidos compulsivamente
por ambições de diferentes paraísos. Nós não somos ingênuos quando às
diversas cobiças de Norte ou Sul, aqui na faixa do Equinócio. Porém temos esperança – pela paz verde do Uirapuru – em conquistar
o mundo, convencendo-o primeiramente de que a região equatorial não é “celeiro”
nem “almoxarifado” de ninguém. Mas, nada menos que oportunidade única de se
criar uma nova civilização. Este é o dilema amazônico, na metáfora da herança
primordial e o evasivo prato feito de lentilhas do imediatismo da fome desde as
Origens, que as Escrituras falaram. Erro secular do nosso colonialismo
congênito.
O empate da hidrovia e a mais valia da biosfera
A Vila de Muaná (1823) já nos deu régua e compasso. O desconhecido
rio dos Mapuá (1659) mostrou a autodeterminação das
nações indígenas marajoaras a todo mundo – velho ou novo – a
caminho da justiça e da paz. Enfim, a Ilha Grande de Joanes
ou Marajó (aliás, Analáu Hohynkáku, Marinatambalo,
Ilha Grande dos Nheengaíbas, idem dos Aruans)
foi vestibular do sábio Alexandre Rodrigues Ferreira (ajudado pelo inspetor
Florentino da Silveira Frade e o sargento-mor índio Severino dos Santos), na Viagem Filosófica ao interior da
Amazônia, e nos mandou a sua Notícia Histórica
(1873).
Aqueles que, num simulacro
de democracia, decidem graciosamente sobre o destino da brava gente marajoara
sem a escutar e interpretar legítima e verdadeiramente. Ou falam de boca cheia
sobre “a maior ilha marítimo-fluvial do mundo” no estuário da maior bacia
fluvial do planeta; por acaso, sem jamais saber o que significa sobreviver
naquelas condições ilhadas:
Já leram sobre a Carta-Patente do Pe.
Antônio Vieira aos Sete Caciques Nheengaíbas? Sabem
todas as conseqüências históricas e jurídicas da resposta (sem a qual a viagem
de Pedro Teixeira teria sido mera curiosidade geográfica semelhante à
“descoberta” das amazonas por Orellana e a revogação
da “linha” de Tordesilhas impossível, em 1750) à luz do Direito Internacional
moderno e suas possíveis interpretações no campo da democracia contemporânea?
Tiveram eles a acima dita Notícia
Histórica? Conservam dela o essencial sobre a antiguidade humana e a
riqueza biogeográfica da ilha? Que o naturalista diz ter visto nesta Ilha
Grande (50 mil km², povoada desde 1000 anos antes da
Era Cristã) o potencial de uma província. E, pode-se dizer até, credencial
suficiente para as Ilhas ser consideradas os “Países-Baixos” do novo trópico, por exemplo.
Os nobres senhores sabem a
história verdadeira da adesão do Pará à independência do Brasil? Os amazônidas não faziam parte do Brasil antes de 1823 (isto
é, há apenas 180 anos), nem o Grão-Pará esteve diretamente ligado ao Vice-Reino
do Brasil durante a permanência da Família Real no Rio de Janeiro, mas sempre
ao Reino de Portugal. Os paraenses deliberaram conquistar a nacionalidade
brasileira, a 14 de Abril em Belém; e proclamaram tal decisão, a 28 de Maio em Muaná, pagando o gesto de liberdade com o próprio sangue.
Porém, o arreglo
neocolonial de 15 de agosto deixou cair a máscara ente
16 e 17 de outubro; perpetuando a humilhação do Povo do Pará até à convulsão
popular de 1835 e a repressão genocida de 1836 a
1840: traições e falsificações históricas hereditárias e a previsível ira
popular.
Se honestamente os senhores
não sabem – pelo amor à República Federativa e à pátria comum
latino-americana de seus filhos e netos – voltem depressa aos bancos
escolares. E escutem, por favor, o que essa gente cabocla tem a dizer! Pois, a
repetência colonial do gigante adormecido Brasil no berço esplêndido da América do Sol ainda não deixou
aprender a lição: não há meio que se sustente nem ambiente que preste, onde a
gente da terra for excluída dos benefícios da Obra. Os ecos da Cabanagem
reboando pelas entranhas da varja nos açaizais povoados de más lembranças, em
frente à cidade, não nos deixam dormir sossegados...
Então, vi o velho
seringueiro conhecido de Chico Mendes e afeiçoado amigo de Giovanni Gallo (que Deus os tenha). Ele falava a verdade do seu
sentimento quando explicava as razões contra a escavação e dragagem do canal da
Hidrovia do Marajó nas cabeceiras dos rios Atuá e Anajás. Achou importante que se cogitasse, na hora,
implantar na Ilha uma reserva da biosfera. Este assunto ele pouco entende,
porém aprovaria qualquer coisa para deixar de lado a destruição de lagos e
matas donde extraiu as mais interessantes lendas do seu repertório e as cento e
tantas “estradas” de seringa que foram sustento de sua gente.
Dizendo ele que, ao
contrário do que se ouve a favor da obra de seus pesadelos, os caboclos
ribeirinhos nada têm a ganhar com o projeto adorado por alguns empreiteiros e
transportadores de carga. Que a gentinha dos rios apartados tem seus nomes
tomados em vão para dourar a pílula da devastação daqueles estirões. Que, na
verdade, seria deixada a ver navios. Visto que a hidrovia não mostra nenhuma
ação direta de inclusão social se não em tese, com os decantados benefícios
indiretos do “progresso”. Mas tão só a redução de alguns quilômetros para
economia de fretes e aumento de lucros no transporte de cargas.
Segundo deu a entender, em
vez de fixar caboclos nas terras de seus antepassados, a súbita abertura de
trechos isolados à concorrência de fora seria mais depressa motivo para os
ribeirinhos deixarem os sítios da sua pobreza e ir aumentar invasões da miséria
nos subúrbios das cidades, à vizinhança de outros atropelados do
Desenvolvimento. Em princípio, o nosso amigo seringueiro não é contra
hidrovias. Aliás, o que é um rio navegável? Por que não cuidam antes das
“hidrovias” naturais que são rios, furos, lagos e igarapés? Será que só vale a
pena meter draga onde seria melhor conservar a natureza? Há – diz ele –,
qualquer coisa que não entende nessa discussão. E, portanto, está contra –
tão-só – à destruição de recantos remotos da sua estimação, nas funduras da
mata entre rios Atuá-Anajás.
Crente do poder divino das
coisas naturais e sobrenaturais gravou na memória cenas vividas na solidão dos
centros da Ilha Grande. Onde plasmódio e curupiras fazem permanente morada. E
onde o comum dos mortais nunca meteu os pés ou jamais colocou as mãos em cima.
O atento ouvinte parece ver nas pupilas acendidas daquele um a vidência de
tempos pretéritos e futuros, como num filme que o próprio personagem vai
narrando com voz firme e serena.
Primeira Conferência de Meio Ambiente do Marajó
O tempo, vários ataques de
malária e carências mil da lida botaram marcas inconfundíveis no amável rosto
do seringueiro. A gente acabava de ouvir histórico discurso proferido pela
senhora prefeita de Muaná, anfitriã do encontro, dona
Ortensia Guimarães. Digna matriarca na melhor
tradição marajoara do relevante papel da mulher na comunidade. A gestora
marajoara declarou abraçar a causa da reserva da biosfera em Marajó, proposta pelo Grupo
em Defesa do Marajó – GDM, a Cooperativa Ecológica das
Mulheres Extrativistas do Marajó – CEMEM e a Corporação Associativo-Ambiental
Panamazônica – CAMPA; acolhida por unanimidade no encontro de Muaná.
Causou-nos grata surpresa a
Conferência preparatória às conferências de Belém e Brasília, donde partiu o
apelo democrático do Marajó dirigido
à ONU, através da República Federativa do Brasil, que não poderia ter melhor
lugar a sua legitimação. Pois se trata do povo e da cidade que afrontou
no passado o poder colonial, proclamando com todas as conseqüências a luta
popular, resistência armada, prisão, humilhações, deportação e mortes no Tejo
ingrato e distante. Padecimentos no cárcere de S. Julião,
onde penaram também outros mártires da Amazônia. Tais como o sábio jesuíta João
Daniel, primeiro naturalista da região amazônica.
Pois foi em Muaná que ocorreu a gloriosa Adesão da província
ultramarina do Grão-Pará (Amazônia portuguesa) à independência do Brasil
(28/05/1823). Sem dúvida, o vetusto e singelo monumento da praça 28 de Maio,
com a lápide dos heróis de Muaná, embora desconhecido
da intelectualidade tupiniquim, representa o melhor testemunho dos justos e
originais motivos da Cabanagem.
Daí porque barões
assinalados da historiografia oficial desconhecem os feitos da cidade-monumento
de Muaná. E relegam a praça da adesão à inclemência
do sol e das chuvas para destacar, indevidamente, datas e sítios desfocados da realidade histórica. Compensada apenas pelo
aprazível consolo das tardes ao pôr do sol, quando da chegada de bandos ruidosos
de japiins que vêm pernoitar na arborizada praça ao
lado e entoar o réquiem dos heróis esquecidos da amazonidade
brasileira.
Com tais antecedentes, a
candidatura do Marajó ao programa “Homem e Biosfera” da UNESCO e à rede mundial de reservas da biosfera (à
semelhança do Pantanal, Cerrado, Caatinga e Amazônia Central, no Brasil; e mais
de 240 reservas em todo o mundo) tem sabor de um resgate extraordinário. Longe
disto representar a temida “internacionalização” da Amazônia, significará ao
contrário reconhecimento da autonomia regional democrática assegurada pelas
leis do País.
Ao ouvir as
explicações dadas pelos proponentes, o caboclo adverso à construção do canal da
hidrovia nos confins das “suas” matas onde canta o uirapuru suspirou pelo
sucesso da reserva da biosfera. Acho que ele teme que a construção – ao longo
de 32 quilômetros de canal, o dobro em diques de contenção e docas de manobra
para balsas de até 8 metros de largura com mais de um metro de calado – venha a
perturbar o sossego da mãe do rio (a Cobra grande). Podendo vir daí algo
temível também no plano metafísico, além da chamada ecologia... Não é por causa
um vago conceito de meio ambiente que ele está contra. Ou por molestar teorias complicadas que não entende nem morto. Mas, sim pelo
motivo de que tal escavação seria o túmulo do seringal da sua vida. Cemitério
dos derradeiros “mondongos”; fim dos berçários de alevinos e reservatórios da
fauna e da flora aquática. Até as onças que ainda restam escondidas por lá e os
jacarés e cobras que escaparam da sanha humana, teriam que se defender atacando
animais domésticos. A, assim, acabariam os seus dias
caçados até a extinção total.
Considero o caboclo de quem
falo (como tantos outros da mesma escola) mestre em “desenvolvimento
sustentável”. Método supimpa de produção, distribuição e consumo que, talvez,
foi vislumbrado desde as entrelinhas da História
do Futuro, na utopia barroca de Antônio Vieira. E no fabuloso Tesouro Máximo Encontrado no Amazonas,
da escrita arcaizante do padre João Daniel. Este fez observatório no Moju (séc. XVIII) e Vieira (séc. XVII) anteviu a vocação
natural hidroviária do planeta amazônico; ao deparar “avenidas, ruas e praças
d’água” nos Estreitos de Breves: “clímax igapóreo” da
Terra, na expressão de Eidorfe Moreira. O Padre
grande esteve a poucas léguas do sítio ecológico que o nosso amigo jurou
defender.
E, portanto, cristãos novos
e velhos do Grão-Pará careciam de entendimento justo e perfeito da Carta do Apóstolo Tiago às Tribos
Perdidas, segundo a Bíblia Sagrada. Nosso personagem tem nome de convertido,
talvez por necessidade e acaso da conservação da memória e do meio ambiente de
seus antepassados na preocupação de seus netos e da mais descendência que há de
vir. Ele se chama, simplesmente, Agostinho Batista. Ademais, folclorista e
escritor popular, além de seringueiro, mateiro experiente e flautista
encantador de passarinhos da mata. Uma extraordinária atração ecoturística do Marajó a procura
de empreendedor que o queira transformar em “produto”, com a nobre finalidade
da geração de empregos e renda na comunidade tradicional de Muaná.
Marajó um lugar não como qualquer outro
Tal qual o
convertido Agostinho marajoara, também eu sou caboclo “educado” para matar ou
morrer na dura lei da selva, que a sobrevivência nos sítios ensina sem
compaixão. Aqui a gente não carecia de cartão de crédito, botijão de gás, vale
transporte e cesta básica até há pouco tempo. A gente só precisava da ajuda de
Deus primeiramente e, depois, de cachorro farejador,
munição, espingarda e pontaria certeira. Fora disso, qualquer um se tornava “panema” e – Deus o livre! – precisava de caridade alheia
todos os dias. Se desse, então, p’ra “mexer” na propriedade dos brancos a coisa
ficava “peor” e cedo ou tarde, acabava dando com os
costados na cadeia de São José...
Assim, a gente se ri do
pessoal da cidade. Que, diz-que, quer porque quer o
tal “desenvolvimento” a qualquer preço. E, subjugados à lei do Cão, ficamos
ilhados e peiados a ver navios levar madeira de lei,
minério e peixe ao estrangeiro a troco de um prato-feito de “lentilhas” na
figura ridícula do salário mínimo
(quando há). Por esta inglezia
já fui adepto do Progresso e da Civilização. Por sorte, tive algum curupira por
padrinho que me desviou do caminho da devastação. Tal qual, paresque, aconteceu com o parente Agostinho Batista. Eu escrevi
loas à criação de um território federal do Marajó
(anos 60) e fiz propaganda da hidrovia (anos 80), sem medir as conseqüências da
economia de alguns quilômetros a menos entre Macapá e Belém. Continuo eu, sim,
favorável à óbvia opção das hidrovias
naturais da Amazônia. Que são os
rios, com o mínimo de intervenção e o máximo de prudência científica e
responsabilidade social e ambiental.
Já pairava uma
dúvida em meu espírito sobre a mais valia para a população tradicional entre
uma reserva da biosfera ou a construção de um canal artificial de navegação de
32 quilômetros, rasgando áreas isoladas e quase intocadas. Eu não me
impressionava com a conversa fiada do impacto ambiental sobre
peixinhos misturados e confundidos – diziam – pelas águas emendadas.
Quem conhece nossa hidrografia dava boas risadas dessa estória, com razão.
Considero que não existe parto sem dor, assim como não há desenvolvimento econômico
com custo ambiental zero. O que faz a diferença é a verdadeira questão do IDH
da população local: o resto, conversa mole p’ra boi
dormir...
Agora, todavia, percebo que
a hidrovia não seria apenas um parto, mas um estupro. Tendo por vítima além da
natureza também a gente ribeirinha, ao contrário do que se
dizia... Muito me impressiona saber do enorme volume de mais de 13
milhões de metros cúbicos de terra, lama, biomassa e material orgânico a
inevitavelmente entrar em decomposição, quando for retirado dos “mondongos”
para dar lugar ao canal de navegação. Neste caso, o mínimo que se tem a fazer é
ir em expedição tirar as dúvidas in loco, levando gregos e troianos ao terreno.
Onde será depositado o
material extraído do “valão”, sem enterrar e entulhar o entorno? Aí mora o perigo. Para depositar mais
longe, implicaria custos mais elevados que talvez justificassem alternativas
que não a construção do canal. Dentre as quais, melhor aproveitamento dos
cursos naturais com inovação tecnológica em equipamentos de transporte e
navegação. Na verdade, a maioria dos membros do GDM não está convencida da
necessidade do “furo” artificial, numa região que, por natureza, já se chama
Furos de Breves.
Talvez os pesquisadores não
soubessem, exatamente, e só ouviram falar do ecossistema a ser atravessado e
alterado pela hidrovia. Nossas canoas motorizadas cruzam os centros da Ilha em
diversas direções, ao tempo das cheias. A alegada abertura do canal para
socorro de caboclos ilhados lembraria que a dragagem do Canal Tartarugas em
meios a debates pela imprensa, depois de feita caiu em silêncio e não teve
estudo a posteriori. De modo a prever as conseqüências possíveis
sobre escavação de novo canal, este com maiores impactos para passagem de
balsas e barateamento de fretes entre Macapá e Belém. Significativamente, uma
região de extraordinária vocação hidroviária e de recursos aquáticos não tem
centro de pesquisa e formação técnica especializada à altura do potencial.
Penso que uma alternativa à
Hidrovia do Marajó se oferecerá a partir da Alça
Viária, que ainda não havia nos anos 80; quando se aventou a idéia dessa
ligação transmarajora em Macapá. Franklin
Rebelo e eu (em artigo publicado em “O
Liberal”) fizemos eco na imprensa em Belém sobre o assunto. Com o distrito
industrial e portuário de Vila do Conde, entretanto, mudou-se o eixo viário do
Pará em direção à bacia do Tocantins. Assim, em vez de abrir os centros da ilha
do Marajó sem estudos ecológicos completos melhor
será investir na perenização do lago Arari e na infra-estrutura portuária de Abaetetuba
(centro tradicional de intercâmbio com as Guianas). Que, não só melhor
atenderia o transporte hidroviário para as microrregiões de Portel
e Furos de Breves, no Marajó, como também faria a
ligação com a Zona Franca Santana-Macapá e a área metropolitana de Belém com
transporte modal mais moderno e mais rápido, implicando, portanto em melhor
produtividade. É claro que esta opção não existia ao começo dos estudos para o
projeto em questão.
Tendo em vista a construção
das eclusas de Tucuruí para aproveitamento da
Hidrovia Araguaia-Tocantins, eventual operação de carga em Abaetetuba
com destino ao Amapá e as Guianas poderá ser feita sem prejuízos com o
cancelamento final do projeto da hidrovia do Marajó.
Pois a ligação portuária Abaetetuba-Santana
substituirá com vantagem a inicialmente prevista com projeção rodoviária para o
Oiapoque em direção a Caiena e Puerto Ordaz (Venezuela) em face de Trinidad e Tobago e o rosário
ilhéu do Caribe, via a hidrovia natural do Tajapuru.
Deste modo, entre mortos e
feridos, escaparemos todos e o seringueiro Agostinho Batista agradecerá com o
dueto com o Uirapuru da sua estimação, assistido alguma vez por ecoturistas maravilhados. Não antes que meu
fraterno camarada Franklin Rebelo haja vencido o cruel isolamento da Contracosta. Com a inclusão da sua sonhada “Rodoleste” (rodovia do leste marajoara) ao
projeto governamental Costa do Sol.
Pelo qual, a ligação em ferry-boat Barcarena
– Ponta de Pedras se estenderá por estrada pelos campos de Ponta de Pedras aos
campos de Cachoeira, continuando por Santa Cruz do Arari
até às margens da Contracosta, em face da Ilha Mexiana.
A exemplo do Pantanal, o Marajó deve fazer opção preferencial pelo seu potencial
ecológico com inovação tecnológica compatível, de modo a se tornar referência ecoturística do Pará. Muito melhor para todos e não apenas
para alguns.
José Varella, do GDM.
Belém do Pará, 12/10/2003.
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