
O Chalé dos romances "Chove nos campos de Cachoeira" e "Três casas e um rio", de Dalcídio Jurandir (1909-1979), Prêmio Machado de Assis 1972, da Academia Brasileira de Letras.
REMANDO PELAS MARGENS DA HISTÓRIA
"Ainda teimam desnaufragar o navio. Ele virou fantasma, virou cobra boiuna.
Sobre as enchentes em Marajó, o espetáculo é o mesmo. No meu romance “Marajó”
eu falo da água invasora. O “Chove” está encharcado assim como “Três casas e um Rio”.
Toda a minha obra flutua na enchente. Vejo o jacaré, o peixe aruanã e os defuntos que
escapam do cemitério alagado. Morei numa casa em cima d’água. Até hoje oiço
os peixes e as marrecas e as chuvas enormes. O padre continua em forma. Marajó é ainda
terra encantada. O gado anfíbio. O homem encharcado.
Marajó é como o navio: submerso. Soure – Soures – e Ponta de Pedras estão no teso:
Cachoeira se refugia numa terrazinha firme. A parte baixa, onde morei, é tudo enchido.
Vejo no vaqueiro Aprígio as tardes de ferra, o embarque das rezes, os isguetes poeirentos
com a flauta de Luiz e o saxofone do Paraense. Quando Marajó desencanta?"
(Dalcídio Jurandir / Correspondência)
Na linha do tempo marajoara, o ano de 1972 representa um marco divisório entre o longo passado de um milênio e meio desde os começos da Cultura Marajoara (ver Denise Schaan na obra "Cultura Marajoara" e outras) e o futuro da gente marajoara contemporânea, desde o referido ano em construção.
Na modesta cidade de Santa Cruz, às
margens plácidas do lago Arari, ilha do Marajó; o padre Giovanni Gallo
S.J. vinha da longínqua Europa, com uma curta passagem pelo Maranhão, e
acabava de entrar de cabeça na grande experiência de sua vida, assim
como cego em meio ao tiroteio. Na verdade, o missionário não estava
preparado para aquela desconforme pastoral dos pescadores arariuaras.
Ninguém em seu lugar estaria também. Mas, o italiano daltônico e teimoso
como poucos havia uma virtude extraordinária: gostava de gente com uma
antropologia engajada para além da curiosidade acadêmica e do
salvacionismo da alma à custa do corpo da criatura.
E assim, para desgosto do bispo
diocesano e irritação de caciques políticos, Giovanni esqueceu um pouco
da sacristia e do catecismo para converter-se ele mesmo em aprendiz de
cabocos sem eira nem beira. A fim de melhor saber com que ele estava
lidando, inventou um museu com a gente local. Cada um chegava com um
troço diferente na mão e logo a aula do padre aprendiz com seus
paroquianos mestres estava armada (cf. "Marajó, a ditadura da água",
de Giovanni Gallo). Na verdade, aquela invenção poderia não passar de
um exercício prático para puxar pela memória do local e preencher o
tempo naquele fim de mundo. Se o acaso não viesse a calhar de se casar
com a necessidade: foi quando o caboco Vadiquinho apareceu com um
tremendo bagulho embrulhado dizendo ao padre que era um presente para
quem "gosta de coisa que não presta" (ver Giovanni Gallo em "Motivos Ornamentais de Cerâmica Marajoara"). Eram os famosos "cacos de índio": pedra angular de "O Nosso Museu do Marajó".
Ouso considerar este invento comunitário
o primeiro ecomuseu do Brasil com o incrível potencial de relembrar a
antiga Cultura Marajoara e reinventá-la pela arte e a cultura dos
remanescentes daqueles povos originais desconhecidos. Claro está que tal
reconhecimento depende agora da Educação ribeirinha em causa apontando à
criação de uma futura Universidade Marajoara tendo como fundamento o
barro dos começos do mundo e por ambição o desenvolvimento humano pleno
de sua gente. É verdade que uma coisa destas não pertence a nenhum
indivíduo em particular e não estava nas intenções do padre nem em seus
sonhos mais visionários.
Então, mais uma vez o acaso pintando a
necessidade por esposa. Jorge Amado na Academia Brasileira de Letras
lembrava o "índio sutil" do Marajó saudando-o na entrega do Prêmio
Machado de Assis de 1972. O país sofria os horrores da Ditadura, mas
artistas, poetas, intelectuais como o grande Thiago de Mello faziam a
vez do galo na madrugada: "faz escuro mas eu canto"...
Na fidelidade da amizade entre o poeta
Bruno de Menezes e o romancista Dalcídio Jurandir, Maria de Belém
Menezes tecia a ponte entre Belém e Rio de Janeiro por onde as novidades
do Marajó transitavam: foi assim que o escritor conheceu o padre de
Jenipapo e Santa Cruz do Arari. A Criaturada povoando dez romances do
ciclo Extremo Norte exilada com Alfredo numa mansarda nas Laranjeiras,
na cidade grande do Rio de Janeiro; já havia como se repatriar a
Cachoeira do Arari depois da morte de seu criador (1979).
Em vão, Dalcídio deixou sua última
vontade - escrita precocemente na juventude e descoberta tarde demais
entre velhos papéis do acervo do escritor na Casa de Rui Barbosa - ,
dizia ele que o enterrassem em Cachoeira do Arari debaixo da árvore
Folha Miúda na beira do rio em frente ao Chalé.
Mas o Chalé foi demolido sem apelação, a árvore da infância do escritor levada pela correnteza do rio e nem o rio do romance é o mesmo que banha Cachoeira do Arari agora. Giovanni Gallo também já morreu, como morreu Dalcídio, os sete caciques que fizeram a pax de Mapuá com o Padre Antônio Vieira e todos mais caciques fundadores da antiga Cultura Marajoara - pra não dizer a ecocivilização amazônica -, já morreram os barões hereditários da capitania de Joanes.
Mas o Chalé foi demolido sem apelação, a árvore da infância do escritor levada pela correnteza do rio e nem o rio do romance é o mesmo que banha Cachoeira do Arari agora. Giovanni Gallo também já morreu, como morreu Dalcídio, os sete caciques que fizeram a pax de Mapuá com o Padre Antônio Vieira e todos mais caciques fundadores da antiga Cultura Marajoara - pra não dizer a ecocivilização amazônica -, já morreram os barões hereditários da capitania de Joanes.
Os "negros da terra" e os "negros da
Guiné" confundidos no Diretório dos Índios viraram cabocos... Mas a
Criaturada grande de Dalcídio resiste, a árvore Folha Míuda renasceu no
arboreto do Museu não longe da tumba do padre Gallo. Os "cacos de
índio" tornaram-se sementes de ideias de revitalização e já começam a
dar primeiros frutos no sentido de preparar os espíritos para a
necessária repatriação da cerâmica marajoara desterrada por museus
estrangeiros. A estes devemos nós agradecer por guardar nossa memória
enquanto as sombras da 'primeira noite do mundo' reinavam sobre o país
das Amazonas.
Não é sem alegrias de alvorada,
portanto, que mais de 40 anos depois do grande prêmio literário de
Dalcídio e da fundação do Museu do Marajó, no dia 18 de setembro a
história desta gente se renova de ricas esperanças, quando se sabe que o
Ministério da Educação, em Brasília, abriu suas portas para ouvir o que
representantes da gente marajoara tem a dizer sobre a necessidade de
maior oferta de cursos superiores e de projeto para criação, também, de "A Nossa Universidade do Marajó", a qual não deverá jamais passar ao largo da história do Museu do Marajó de forma nenhuma.
Muito menos pela paisagem cultural da
Criaturada na obra emblemática do "índio sutil": a água que habita
corações e mentes desta gente. Água que cobre mais da metade do planeta e
constitui outro tanto do corpo humano. Água da chuva, água do rio dos
rios e do Oceano. A universidade da maré na educação pelo barro a
configurar o amanhã da Amazônia Marajoara.
quando Marajó desencanta????
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