sexta-feira, 22 de agosto de 2014

UZINA DE LUZ



o chalé da família João Ramos da Silva


"UZINA DE LUZ" DE PONTA DE PEDRAS DA SAUDADE


Hoje meu pai completaria 110 anos de nascimento se ele ainda estivesse conosco. Todavia, como ele já se foi eu quero recordá-lo falando do progresso de outrora em nossa amada terra marajoara de Ponta de Pedras ao tempo do prefeito lavrador da Mangabeira, o gestor progressista Wolfango Fontes da Silva, mais conhecido como Fango.

'Seu' Rodolfo [Rodolpho Antonio Pereira, meu pai] era um naturalista nato e conservava de memória muita história do lugar que ele me contava repetidas vezes, entre as quais a história da colônia da Mangabeira e transformação da "Uzina de Luz" em fábrica de beneficiamento de produtos agrícolas pelo Fango, caso que vou recordar mais adiante. 

Me lembrei dessa história, por motivo da privatização da antiga "Força e Luz do Pará" (transformada em "Centrais Elétricas do Pará - CELPA"), antes avacalhada "Foi-se a Luz", de modernização em modernização, escorregou à boca do dragão da privatização. Agora, o monopólio que era da iniciativa pública ficou na privada, e olha nós aqui a ter que escolher entre o assalto via tarifaço ou o apagão.

Meu pai era caçula de uma família de sete filhos (Sophia Tautonila, Raymundo, Laudelina Diva, Ambrosina, Otaviano Celso, o natimorto Manuel e Rodolpho Antonio) formada pelo rábula da cidade, Alfredo Nascimento Pereira; e pela índia Antônia Silva, que foi aluna e depois mulher do professor meu avô, nomeado inicialmente para lecionar na vila de Muaná e transferido posteriormente para a vila de Ponta de Pedras, onde veio a conhecer a minha avó indígena e suas duas irmãs, Joana e Serafina, todas elas vindas da antiga aldeia da Mangabeira para aprender as primeiras letras e tabuada. Portanto, o ensino foi a liga que juntou a grande família do capitão Alfredo e suas três mulheres e virou tradição.

Rodolfo era gêmeo do natimorto Manuel e ficou ele órfão de mãe durante o parto difícil. Com a viuvez, o capitão meu avô formou sua segunda família, desta vez com dona Margarida Ramos, uma admirável mulher negra descendente de escravos em Ponta de Pedras; com esta meu avô teve mais seis filhos (Flaviano, Dalcídio José, Ritacínio, Lindinha, Mariinha que faleceu em tenra idade por afogamento acidental no quintal inundado da casa em Cachoeira, e Alfredina). 

O segundo filho deste segundo casamento veio a ser o romancista Dalcídio Jurandir e em sua obra premiada pela Academia Brasileira de Letras se acham vestígios da grande família marajoara, confundida com a criaturada grande do autor. A começar do alter-ego Alfredo, nome próprio do patriarca nascido na vila de Benfica, Benevides; filho do voluntário da pátria, na guerra do Paraguai, meu bisavô Raymundo Pereira. Alfredo pai de Dalcidio, por horas no romance anda como se o personagem Major Alberto fosse, em realidade, fosse a sombra do capitão Alfredo N. Pereira, redator da folha miúda "O Arary", e secretário da Intendência da vila de Cachoeira. 

Ficção e realidade se misturam no quebra-cabeças da crítica literária. Dalcídio é difícil, não todavia para boa parte da gente que lê romances nas três vilas Cachoeira, Muaná e Ponta de Pedras: por ali os personagens estão à flor da pele de determinados viventes, às vezes com desconforto. Dona Amélia é como retrato fosse de dona Margarida Ramos na vida real. E o capitão ficou viúvo pela segunda vez e se casou, pela derradeira; com dona Isabel Trindade, também negra como a segunda esposa e que acrescentou a esta família marajoara mais cinco filhos (pelos apelidos, que minha memória já claudica: Chuchuta, Anaspiano, Mimi, Vivi e Adeflorindo). Meu avô paterno somou 18 filhos, todos reconhecidos em cartório de registro civil com nome de família Pereira. Curiosamente, sou mais velho que meu último tio.

Rodolfo Pereira foi criado por sua irmã mais velha, Sophia Pereira; a qual ele chamava de mãe. Por isto eu e minhas duas irmãs nos acostumamos a chamar de avó à nossa tia. Vó Sophia e tia Lodica ficaram solteironas e muitas coisas que hoje sei aprendi com as duas e com o filho de criação das ditas duas. Tão unidas que às vezes pareciam ter até os pensamentos de uma só pessoa. De minha mãe (Othilia) vem a Espanha, aliás a Galiza; agrária, conservadora, católica apostólica romana até os miolos. Mas, também, na contraparte por necessidade incontornável tivemos aí a África marajoara enrustida na herdade deixada por um bisavô escravista contemplado nos sequestros do Marquês de Portugal. Onde tenho lá minhas raízes no purgatório sebastianista ou no inferno verde da utopia selvagem da Terra sem males: ninguém escapa de um labirinto assim sem feridas na alma e sequelas no corpo. Cada carência ou cicatriz uma história que leva a outra história e a outra e outra até o fim. Vale o dito: libertas e serás também. 

A VOZ DA GUERRA NO CHALÉ DO JOÃO RAMOS

Acho que foi isto -- libertar a si mesmo e os outros pela usina de luz do saber e da arte --, que meu avô Alfredo, descendente de cristão-novo português e suas três mulheres de "cor" tentaram, sem barulho, por toda vida com a criativa prole mestiça de dezoito Pereiras a se dispersar pelos caminhos mundo. 

Tal qual na profecia do preto velho Bibiano a seu neto Alfredo, na beira da mata de Areinha, em Muaná entre pés de miriti, "Passagem dos Inocentes" (se por acaso, a paisagem imaginária não tiver nascido no Campinho, em Ponta de Pedras; terra natal do autor do romance). Só os ossos dos avós restam naquela cidade... Dos dezoito filhos do capitão só a mais "nova" ainda está viva, bastante idosa, morando no Rio de Janeiro. Netos e bisnetos andam longe do Marajó a cuidar da vida.

Quando eu me entendi por gente era prefeito de Ponta de Pedras o senhor Fango e ele havia dois legítimos orgulhos de sua governança: a "Uzina de Luz", que trabalhava dia e noite -- respectivamente, no beneficiamento da produção agrícola e na iluminação pública e residencial; e a invejável colônia agrícola da Mangabeira, contando com valorosos colonos refugiados das grandes secas do Nordeste. "Seu" Fango, apesar de tudo, não era uma unanimidade entre os conterrâneos pois ele recebia críticas constantes da pequena burguesia da vila, que o chamava de "prefeito de tamancos" e fria indiferença dos grandes fazendeiros, que não careciam da prefeitura, absolutamente, para nada.

Meu pai era homem cordial e discreto, criava a familia e cuidava de sua mãe adotiva e da irmã Lodica com o empreguinho público de administrador do Mercado e do Curro Municipal. Mas, ele na intimidade da casa se vangloriava do sangue cabano que lhe corria às veias por parte daquela mãe índia que morreu no parto e se mordia por causa do Fango, adivinhando neste um parentesco tapuia talvez; toda vez que ouvia aquelas descabidas críticas contra o progresso da lavoura... Ouvi meu pai contar a história da eletricidade na vila, dizia que fora obra do coronel Manuel Lobato na intendência, logo após a gestão do major Djalma Machado, na interventoria do coronel Magalhães Barata no bojo de revolução de 1930 no Pará. Mas, quem de fato inaugurou a eletricidade na vila e deu melhor utilidade à "Uzina de Luz" fora o Fango e que este não visava luxo, mas trabalho honrado para todos.

A um pirralho pequeno, uma pequena vila é o mundo e o vasto mundo estava em guerra quando eu me dei conta de mim. Eu não vi a guerra de perto mas ela veio até Ponta de Pedras, por diversos modos. Se eu tivesse engenho e arte poderia dizer melhor como foi que a gente da vila e dos sítios conseguiu vencer aquela guerra. Me lembro, principalmente, de A Voz da América a trazer notícias da guerra pelo rádio fanho e periclitante do sr. João Ramos da Silva, dono da Casa da Beira, metido em pijamas no alto de seu chalé com ouvido colado ao "alto-falante" tarde da noite. De dia não se conta história por que cria rabo e não se ouvia rádio por que a onda não alcançava. Em volta, a vizinhança podia escutar os altos e baixos daquela voz do outro mundo, raios e trovões na estática, que estilhaçava as novidades. E eu na janela da modesta casa de minha avó acompanhava a guerra distante entre Aliados e o Eixo medonho como se fosse, mal comparado, uma partida de futebol. 

Não sei por que sempre chovia e relampejava quando a guerra ia mais animada no rádio do sr. João Ramos... A Voz da América sumia na noite chuvosa e na ventania. Tossia com os pigarros do sr. João Ramos. Pronto! Acabou a guerra, eu pensava cá comigo. E o silêncio reinava no campo do Marajoense futebol club... E, quando acaba, lá vinha ela de volta, a guerra... Isto é, A Voz da América no rádio altissonante que se podia ouvir até no canto na rua, em casa de dona Domingas Malato.

A coisa ia por ai quando, certa vez; correu boato à boca da noite que o Japão iria invadir Ponta de Pedras com paraquedistas ao escurecer. Então, aquele sisudo conselho da praça matriz deliberou ir ao prefeito Fango pedir para se fazer ensaio de defesa civil: a começar por um absoluto apagão da "Uzina de Luz". Quando cresci comecei a desconfiar que aquilo foi estratégia de um certo parente nosso, muito namorador, que ocupava posto de delegado de polícia. Dizque carecia preparar a população a colaborar com a defesa civil. No caso, naquela noite, decretou-se o apagão defensivo.

Jantarzinho rápido antes do sol sentar. E a escuridão chegou que nem a primeira noite do mundo. A pirralhada chorava com medo dos bichos que habitam a noite. Havia patrulhas pelas ruas a vigiar que ninguém acendesse uma lamparina, cachimbo, um cigarro que fosse... Se a aviação nipônica chegasse para despejar paraquedistas não iria achar nadinha embaixo... Acho que deu certo. Quando o dia raiou nem rastros de japonês. Já pelo mercado só risada e boatos sobre patrulheiros pulando cerca no escuro.





ECONOMIA MUNICIPAL DE 'SEU' FANGO

Meu primeiro desfile de 7 de setembro aconteceu enquanto Fango era prefeito. Me lembro bem: foi o mais belo espetáculo cívico que um aluno da primeira série do grupo escolar de Ponta de Pedras já viu. Então cresci e fiz o caminho pra fora da ilha como a maioria. Um dos esportes que a gente tem lá na terrinha é falar mal dos governantes e escolher, de tempo em tempo, mal e porcamente os governantes do lugar. Quando calha de estar longe a gente continua a conjecturar as melhores soluções e os projetos mais risonhos...

Em Belém, lá pelos anos de 1960, havia uns dois ou três lugares onde o pessoal de Ponta de Pedras como que marcava o "ponto" a fim de saber das "últimas"... Um desses pontos era o Café Albano em face ao Palácio Antonio Lemos, onde funcionou a Assembleia Legislativa. Numa manhã conheci aquele senhor já de seus setenta e tantos anos, voz rouca; média estatura. Senhor Fango? Sim... Sou filho do Rodolfo, de Ponta de Pedras... Meses depois, o ex-prefeito visionário e o jovem quixote estavam metidos numa aventura eleitoral. Um bom tempo de aprendizado para toda vida. Muito teria eu a falar sobre este inesquecível encontro.

Mas já falei demais agora e só quero contar sobre o que Fango achava a respeito da geração de energia elétrica em pequenos municípios de vocação agroextrativista e agricultura familiar rica em biomassa, como se diz agora; no popular, lenha... Mostrava-me a bico de lápis quando era "despesa" para a prefeitura comprar ou pedir ajuda ao estado a comprar gerador diesel para dar luz no município. E como, à moda antiga, era mais interessante investir na aquisição de caldeira à lenha para uso múltiplo na produção de eletricidade e beneficiamento de produtos agrícolas.

Segundo Fango, sem mais nada produzir que eletricidade de iluminação a petróleo, o sistema diesel favorecia indústria estrangeira e recolhia dinheiro dos consumidores locais para queimar petróleo importado. Quando, com caldeira a vapor seria a indústria brasileira a ser mais incentivada em milhares de pequenas cidades, vilas e colônias agrícolas a queimar restos de lavoura e extração de madeira ou restos de serraria. Ah, e ainda tinha o biogás e o gasogênio, dito gás pobre. Mestre Fango ficava empolgado, seus olhos brilhavam e eu me contagiava.


caldeira à lenha para geração de eletricidade

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