Não sei se amanhã a ilha do Marajó estará preparada a receber o repatriamento da cerâmica marajoara extraída dos tesos arqueológicos e levada embora desde a primeira notícia (20/11/1756), conforme informa o naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira, em "Notícia Histórica da Ilha Grande de Joanes, ou Marajó" (Lisboa, 1783), separata da "Viagem Philosophica" (1783-1792); ou se ainda os marajoaras lesados dos 400 anos de invenção da Amazônia hão de esperarmais 50 anos para ver de volta o tesouro que lhe tiraram sem consideração e consentimento.
O que parece certo é que o mundo todo está mudando de atitude imperial por necessidade do chamado "desenvolvimento sustentável". O que implica reconhecer que entre Biodiversidade e Diversidade Cultural não há separação nenhuma: portanto, não há desenvolvimento que não seja humano... E este não se faz sem fundamento economico, como também não existe nada que seja global sem sustento local. A dicotomia "centro" e "periferia" existe apenas no mundo político. A periferia está por todos os centros e há centros na periferia...
O IDH de miséria nas ilhas da Amazônia Marajoara esconde riquezas incalculáveis!... Nada é mais urgente do que elevar a auto-estima desta gente, quebrando a causação circular da pobreza. Não basta só prover um prato de lentilhas para quem foi roubado de sua antiga fortuna. Se amigos das populações tradicionais da Amazônia em todo mundo estão dispostos a abolir a falsa caridade do novo colonialismo, resgatem a antiga Cultura Marajoara e ajudem a gente a restaurá-la com visões de futuro: museus de prestígio internacional (sobretudo aqueles da lista de Denise Schaan, em "Cultura Marajoara", editora SENAC, São Paulo, 2010).
Com raras exceções, os marajoaras mais esclarecidos e os políticos paraenses em geral merecem muitas críticas sobre o estado de ruína a que foi condenada a Cultura. Todavia, mais críticas cabem aos acadêmicos e os políticos brasileiros da Cultura, que não se sensibilizam nem agem para remediar o absurdo.
Adiante, o profundo artigo do doutor Nelson Sanjad, do Museu Paraense Emílio Goeldi; sobre a relação histórica, no século XIX, entre "região" e "nação" lança luz sobre a situação que perdura no campo exterior e no interior do País. Indiretamente, esclarece o drama de Giovanni Gallo com o sui generis o "Nosso Museu do Marajó" (ecomuseu avant la lettre, inventado de "cacos de índio" na vila de pescadores Jenipapo, na beira do lago onde floresceu a primeira cultura complexa da Amazônia; tal qual a desdenhada "ciência de potes quebrados" de Ferreira Penna). E, no limite da disciplina, o purgatório da literatura marajoara de Dalcídio Jurandir...).
Que nos sirva de base a uma reflexão criativa compartilhada, com que enfim a transversalidade da Ciência sirva à Educação, Cultura e ao Turismo com gerador de emprego e renda: com que a Floresta Nacional de Caxiunã e a Estação Científica Ferreira Penna se abram à comunidade marajoara cooperando num esquema federativo com as universidades atuando na região para dotar o Museu do Marajó / Casa de Dalcídio Jurandir de meios para realizar a missão maior que se espera.
O novo Brasil democrático precisa da Amazônia Marajoara renascida! Preparar Marajó para a volta de seu tesouro arqueológico, com os agradecimentos desta gente aos museus nacionais e estrangeiros que, durante o longo período colonial de destruição e exílio; zelaram pela conservação e estudo da primeira civilização autenticamente brasileira.
leiam as conclusões finais do doutor Nelson Sanjad em seu muito oportuno artigo sobre a área cultural da Guiana Brasileira (Amapá e Baixo-Amazonas):
"Para Ladislau Netto, o acervo do Museu Paraense estava, certamente, entre os mais importantes, em razão do valor atribuído, no século XIX, às urnas e aos crânios de Maracá, ou à cultura marajoara - a única "grande civilização" comprovadamente existente no passado brasileiro. Ladislau Netto não admitia terem os vestígios da Nação outro destino que não os salões do Museu Nacional. Segundo ele, o estudo dos índios era não apenas "a necessidade a mais urgente e a mais alta missão atual", pois estavam prestes a desaparecer, como também Museu Nacional era o "único estabelecimento científico do Brasil em condição de recolher e de estudar os despojos" dos antigos habitantes do território114. Ao se referir às sociedades nativas, o tom fatalista de Ladislau dava, assim, um sentido ao seu empenho em favor das pesquisas antropológicas - e uma missão científica e política ao Museu Nacional.
Tal missão tinha como base as coleções arqueológicas e etnográficas, que serviam para comprovar, ou não, as teorias sobre o povoamento das Américas; e também para criar uma narrativa sobre os povos que contribuíram para formar a nação brasileira115. Aos debates, fossem sobre o autoctonismo ou sobre as rotas migratórias pré-coloniais, somavam-se os problemas do destino, da tutela e da integração dos povos indígenas à sociedade nacional, questões que, a um só tempo, incentivavam a ciência e eram por ela incentivadas - e que tinham como fim a construção do passado e a avaliação das possibilidades de desenvolvimento econômico e social do país116.
Núcleo importante para as discussões científicas do Segundo Reinado - particularmente aquelas que tinham como foco os conceitos de território, natureza, sociedade e história -, o Museu Nacional contava com o apoio da máquina administrativa imperial (incluindo os presidentes das províncias) para fazer convergir para si acervos e recursos financeiros. Nesse sentido, pode ser considerado mais um espaço onde se desenrolavam as tensões entre região e nação, ou seja, entre os projetos ilustrados locais (como os museus e as agremiações), que tentavam consolidar-se em meio a dificuldades políticas e financeiras, e a imagem do Império divulgada pela Coroa por meio de suas agências oficiais, muito melhor aparelhadas e em condições de se expandir. Essas perspectivas nem sempre eram coerentes, nem convergentes, como se pode depreender do dilema profissional de Ferreira Penna: sem apoio do governo local, encontrou suporte para suas investigações no Museu Nacional, embora sua primeira intenção tenha sido desenvolver um museu provincial.
O embate entre o Museu Paraense e o Museu Nacional (incluindo o confisco do acervo do primeiro pelo segundo) e as propostas divergentes elaboradas por Ferreira Penna e por Ladislau Netto para a regulamentação do acesso ao patrimônio arqueológico amazônico mostram que, sob o discurso da "identidade nacional", jazem iniciativas ou movimentos culturais locais fragmentados. Da mesma forma, a apropriação do espólio dos índios marajoaras oscilou segundo as intenções políticas dos que estavam envolvidos no debate: enquanto Ferreira Penna enfatizou (com poucas evidências) que a expressão máxima da "raça primitiva" brasileira ocorrera no Pará - justificando assim a permanência, na província, dos vestígios arqueológicos correspondentes, Ladislau Netto e Lacerda não corroboraram essa tese, limitando-se a distinguir aqueles índios dos que então viviam no país. Em uma escala diferente da de Ferreira Penna, Ladislau via na arqueologia marajoara a possibilidade de dar complexidade à formação social do país, recuando para tempos pré-coloniais a origem da nacionalidade brasileira - enobrecida, em parte, com uma "legítima civilização".
Essas distintas visões demonstram que a arqueologia brasileira do século XIX - então em processo de formação teórica e de quadros profissionais - foi capaz de restaurar "potes quebrados" para construir representações sobre o passado, mas que propiciou, também, os meios necessários para a articulação de outros discursos (de circulação restrita) destinados a construir identidades alternativas à idéia hegemônica de Nação formulada a partir da capital do Império."
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http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-47142011000100005&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
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