Percy Lau era peruano de nascimento e brasileiro por adoção. Dentre tantas cenas do interior do Brasilzão, ele fixou a imagem arquétipica do "vaqueiro marajoara", trabalhador rural das campinas alagadas, que Dalcídio Jurandir plantou definitivamente na paisagem cultural latino-americana. Ambos, desenhador e romancista, foram contemporâneos e viveram profundamente a Amazônia. Eles retrataram a região com cara de gente, que nem Portinari pintou o mundo operário brasileiro. Curiosamente, as vidas destes dois artistas tiveram certas coincidências notáveis: em 1939, quando Dalcídio reescrevia o romance seminal "Chove nos campos de Cachoeira" e escrevia "Marinatambalo" (publicado com título de "Marajó" e festejado como primeiro romance sociológico brasileiro), em Salvaterra, na ilha do Marajó; o IBGE publicou a primeira edição do clássico "Tipos e Aspectos do Brasil" ilustrado por Percy Lau. Dalcídio trabalhou como recenseador do IBGE em Santarém-PA, onde com Cronge da Silveira diretor no Pará teve notícia de haver ganho o prêmio "Dom Casmurro", primeiro da carreira. Os dois viveram e morreram na cidade do Rio de Janeiro. Lau (Arequipa, Peru, 1903- Rio de Janeiro, Brasil 1972) faleceu com idade aproximada de 70 anos no ano que o filho de Ponta de Pedras (Marajó-Pará, 1909) recebeu o Prêmio "Machado de Assis" (primeiro de autor amazônico dentre dois, até hoje, compartilhado em 2010 com o ilustre filósofo paraense Benedito Nunes), o autor do ciclo literário Extremo-Norte faleceu em 1979.
A FRUTA QUE EU DEVIA CONHECER POR DEVER DE OFÍCIO
1966, mais ou menos, ia eu flanando pelo largo de Nazaré, em Belém, quando deparei com entra e saí de gente no auditório da antiga Rádio e TV Marajoara. Que se passa? O porteiro respondeu, é um professor que está dando palestra. Como se chama? O homem respondeu, não sei... Só sei que ele fala pelos cotovelos e tem barba grande. Entrei, era um tal de Paulo Freire... Nunca ouvi falar. O professor tinha brasa na fala, de modo que ninguém dormia na aula. Eu fiquei logo aceso com o assunto, pois o caso era o modo de fazer, numa semana, um camarada que não sabe ler nem escrever aprender todinha a cartilha do ABC...
Gente! Disse cá com meus botões, eu quero é ver... O cabra dizia que não carece judiar o analfabeto adulto. Ele até podia apostar que um trabalhador sabe mais que doutor no caso da prática do ofício. Ara! Justamente, eu concordei na hora por experiência própria. Pois sou daqueles cabocos salvos do purgatório porque tive boa professora de ABC. Daí em diante, só com as minhas primeiras letras, subi na vida por conta própria. Você pode não acreditar pois a dúvida em um direito humano dos mais certos, porém se chegar perto vai ver que tenho razão e não preciso de inventar nadinha. Fui moleque de recado, aprendiz de rádio-técnico, tirador de açaí, vaqueiro de gadinho curraleiro, marreteiro, ajudante de mecânico e carpinteiro; comerciário, cobrador, office-boy, balconista, "estudante profissional", agitador subversivo, repórter polícial, cronista, secretário-contador. Por fim, chamado pelo prefeito eleito de minha terra natal, compadre de meus pais e meu padrinho de crisma, Antonico Malato; estava eu com encargo de secretário de finanças quando vi o professor Paulo Freire ensinar como alfabetizar num cursilho à jato duma semana...
Claro! Uma semana é força de expressão, só os idiotas da objetividade e os do eterno contra a libertação do ser humano podiam puxar pra trás. Eu compreendi tudo aquilo direitinho. Pois o caso era que, não só eu tinha uma dívida de gratidão à minha professora Alda, como também com o governador Barata o qual achava que era de fato e de direito o Estado do Pará em pessoa... O coronel interventor da Revolução de 30 mandou a professora nova em folha para a vila de Itaguari (antes e depois Ponta de Pedras para sempre). Esta vila foi semente da estória de Vilarana, que eu mesmo com meu parco engenho converti dos tijucos do Fim do Mundo e lenda do navio encantado encostado na beira da ilha do Coati. O caso sério é que eu estava com um abacaxi grande pra descascar.
Toda semana a Prefeitura havia de pagar a turma da capinação de rua. Além do mais, ia começar construção da obra da catedral de Ponta de Pedras, projeto do engenheiro Bonna; e o Prefeito Antonico ficou na obrigação de ajudar com verba no pagamento de folha de mão de obra. Sabe como é, a sociedade pede mas depois cobra... O meu compromisso, que vinha da Prefeitura de Faro com alguma recomendação de ter feito serviço com boa aprovação; era reformar tudo quando possivel na Prefeitura de Ponta de Pedras. Na verdade, eu queria ir pra Brasília atrás de emprego e certificado ou diploma que me faltava: dois anos, pelo menos, eu devia ficar para a judar a meu padrinho Antonico a consertar a prefeitura velha e mal afamada como uma fazenda de sesmaria. Ele que até 1965 tinha passado uma vida toda no cartório herdado de seu pai Raimundo Malato. Mas, da contabilidade pública municipal em plena Ditadura e reforma administrativa federal pelo célebre Roberto Campos; o tabelião pontapedrense era marinheiro de primeira viagem e sabia tanto quanto eu entendia missa em latim.
Foi assim que a reforma da prefeitura, mais a parte da despesa pública para construção da catedral e as despesas ordinárias e/ou eventuais do costume (ajuda para enterro, casamento, conserto de casa, canoa furada, etc) - como um rio correndo para o mar - desaguavam em papéis de prestação de contas na tesouraria e depois na contabilidade rumo ao tribunal de contas na forma de balancetes trimestrais, etc. e tal. Ora, para ter tudo aprovado como deve ser e ainda (coisa rara!), o Prefeito merecer um inesperado elogio do Governador Alacid por ser a Prefeitura de Ponta de Pedras a primeira do estado a encaminhar um Plano de Aplicação de Recursos para todo o mandato (1966-1969), aprovado pela Câmara após incrivel elaboração de orçamento participativo 'avant la lettre'... Era preciso a "santíssima trindade", o tesoureiro Nilson, o auxiliar de contabilidade e este que vos fala bancando papel de secretário dar conta do recado (como de fato demos, pelo menos até eu me despedir em fins de 1967).
Onde, de fato, estava pegando e tem a ver com Pau Freire e tudo o resto? Na hora de pagar os trabalhadores sempre aparecia quem não sabe assinar o nome... Então, era caso de "sujar o dedo" na tinta e apertar o polegar no recibo com um ladino qualquer assinando "a rogo". A situação me incomodava duplamente. Outros faziam chacota com o pobre, "quem manda não estudar!". Eu sabia quem de fato havia "mandado" esta gente sem eira nem beira ficar analfabeta, mas se fosse eu dizer na lata teria que mudar de emprego e de cidade na hora. Quando tem obra grande com muito trabalhador recebendo avulso com assinatura "a rogo", é sinal de que tem porta aberta e tentação para o dinheiro público sair pelo ralo. Tem mais, naquele caso, Ponta de Pedras era uma fazenda com ruelas cheias de capim e o ganho da gente da pobreza era capinação paga pela prefeitura. O prefeito Antonico era um homem íntegro, católico assíduo na missa; dividido entre a caridade e o desejo sincero de modernizar o município. Para isto ele se candidatou, perdeu eleição a primeira vez e depois ganhou dois mandatos, no último morreu no cargo. Homem de velhos príncípios, porém inclinado a inovações... Queria comprar trator com rotativa para limpeza das ruas, mas como os capinadores no rabo do terçado e enxada iriam sobreviver? Sem o dinheirinho semanal não teriam no pequeno comércio de ponta de balcão quem lhes vendesse fiado... O efeito em cascata não era desprezivel na vilarana.
Carecia racionalizar gastos públicos, moralizar a gestão, mas sobretudo oferecer oportunidade de melhor meio de vida a toda população. Daria romance a história de todas tratativas para aumentar salários sem ofender a legislação Roberto Campos de controle da inflação: não se podia aumentar o custeio local mais de 10%!!! Em Brasília o dízimo era muito, na mísera aldeia (pois era como uma aldeia) era nada. O prefeito morria de vergonha ao dizer que tinha de dar um cruzeiro de "aumento" num ordenado de fiscal a Cr$ 10,00 insuficiente para pagar no fim do mês o fiado da Casa da Beira. Brincadeira! Tínhamos que achar uma brecha e aumentar, como aumentamos, 100% (isto é, de Cr$ 10,00 para a incrivel mordomia de marajá de Cr$ 20,00)... A realidade ia além da ficção...
Eu tinha que me virar, está claro, em dois ou três. Na verdade, tirando o caso do tesoreiro que tinha certificado de contabilista de empresa II grau; o resto do pessoal prefeito e secretários inclusive não tinham mais que a boa ou razoável alfabetização. Foi aí que eu me toquei para o drama de tantos analfabetos obrigados à humilhação de sujar o dedo e pedir para testemunha assinar a rogo recibo do mísero dinheirinho. Eu conversava com os desletrados... Queriam aprender a ler e a escrever? Quem não quer? Um caso me chamou atenção, Tomé era analfabeto de pai e mãe; porém sua mulher era professora... Leiga, mas professora que ensinava a crianças ler e escrever. Por que, então, ela não ensinava o marido e pai de seus filhos? Bem que ela tentou: mas Tomé dizia que já tinha passado o tempo, papagaio velho não aprende a falar, que não precisava disto "pra porra nenhuma"... Deixa estar meu camarada, ainda vou te pegar na curva...
Quando Paulo Freire deu a tal palestra fiquei atento. Como foi que operários da construção de Brasília, que não sabiam ler nem escrever, puderam aprender sem largar o trabalho e em tão curto tempo se livraram da cegueira intelectual? O pulo do gato era começar bem longe da sala de aula com uma pesquisa social a fim de saber como o potencial aluno trabalha. Estamos falando de gente como Tomé, que aliás era apenas capinador de rua numa vila na beira do rio... Diacho! Aqui estava eu no mato sem cachorro; pois não tinha experiência de professor, nenhuma ajuda de pesquisador e precisava achar uma palacra-chave de três sílabas capaz de fatiar para montar o quebra-cabeças com as cinco vogais A, E, I, O e U... Fácil de achar em Brasília, que depois de muito estudo com uma equipe especializada, achou na palavra TIJOLO o troféu. Mas para gente de Ponta de Pedras, o que podia ser a chave do sucesso? Ninguém queria esquentar cabeça e os tantos analfabetos não precisavam ler e escrever "pra porra nenhuma". Rabiscar o nome servia, malmente, no dia de votar no patrão. Se não...
Mas, eu não me chamo Zé se não achar jeito de ensinar Tomé e seus camaradas de rabo de enxada a ler e escrever. Ora, como que eu não me lembrei logo? Esta gente aí era doutorada em coisas do rio e da roça desde muitas gerações. O professor Freire dizia que o segredo da alfabetização de adultos está no fato de que ninguem ensina ninguém, mas aprende (Guimarães Rosa perguntando a buritizeiros das veredas dos Urucuia poderia emendar: "mestre não é quem ensina, mas quem de repende aprende"). Pois é, eu fiquei devendo uma ao mestre Tomé. Foi caso que eu, muito pimpão por minha astúcia pedagógica em inventar MA-NI-VA (no Ver O Peso já se vende pré-cozida para preparo da maniçoba), vi logo que a turma no cursinho noturno que improvisei na sede do Círculo Operário Pontapedrense tinha muito mais pra me ensinar do que eu a lhes repassar o truque que por acaso aprendi a flanar numa tarde no largo de Nazaré.
A família silábica MA - ME - MI - MO - MU com sua parentada toda na maniçoba inventada pela maniva da necessidade deu variados frutos da mandioca utilíssima e puxou conversa do arco da velha... O pessoal arredio no início das aulas foi chegando e do acanhamento passou à saliência misturando pedaços do talo da mandioca inventando palavras novas e lembrando acontecimentos da vida da gente. Foi aí que Tomé viu no improvisado quadro de cartolina a palavra MU-NA... Muna? Sim senhor, lá tá M-U... N-A. É muna. Tomé, o que é muna? É uma fruta... Uma fruta? Sim, senhor; uma fruta... Eu desconfiei, pois nunca ouvi falar em muna e quanto mais uma fruta com este nome. Voltei a perguntar, Tomé, tu conheces esta fruta? Ele respondeu, sinceramente, "eu não, senhor... Mas porém o senhor é um homem viajado e deve conhecer". Toma-te responsabilidade!
É verdade, eu devia conhecer uma tal fruta madura da educação de adultos que Paulo Freire plantou e mestre Tomé ensinou a colher tão de surpresa como foi meu curioso encontro com o apóstolo da educação libertadora. Tanto mais, que depois de uma forçada parada para tratar as fadigas e a malária, tão logo cheguei em Brasília em busca de emprego cuidei de me matricular no curso preparatório para exames supletivos (famoso curso Artigo 99) do colégio La Salle. Fruta nutritiva, a muna; que me motivou a vencer a vergonha e passar direto nos exames de primeiro e segundo graus do Colégio de ensino médio Elefante Branco. No tranco, de janeiro de 1970 a janeiro de 1971, o caboco do Fim do Mundo acabou entrando, em quarto lugar geral, no vestibular da então UDF. É verdade que meu espírito nômade não me deixaria terminar nenhum curso (assim mesmo perambulei pela UFPA e faltou pouco tempo para concluir bacharelado de Economia na UnB), a culpa é minha só. Ou talvez não seja culpa, mas oportunidade a novas provas vestibulares sem fim.
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