Papeando com meu filho Rodolfo, ele me dizia que neste ano criadores de pato no Pará faturaram alto o almoço do Círio. Enquanto antes, devido à lei da oferta e da procura, o precioso pato no tucupi escassiou no "natal dos paraenses", de maneira tal que o camarada tinha que trocar pato por marreco congelado, peru ou frango processado e importado lá das bandas Sul se quisesse degustar algo parecido. Ou, então, pagar um dinheirão a marreteiro que ia se abastecer caminhão no vizinho estado do Maranhão.
Claro, eu por mim, não de agora; acho que os parauras da gema preocupados com ameaça de divisão do Pará deviam antes fazer campanha O PATO É NOSSO! Ou "Não se metam com o tucupi da gente!"... Claro, é tentativa de fazer piada. Mas o caso é sério, tão sério que devia estar nos planos de candidatos e candidatas de 2012 a cargos eletivos nos municípios da área metropolitana de Belém e entornos da Capital, notadamente com a transformação dos mercados da carne e do peixe do Ver O Peso em um baita centro de gastronomia tradicional da Amazônia. Sem esquecer o sonho de um aquário amazônico de grande porte feito para estourar a boca do balão do desenvolvimento sustentável...
Desta maneira, a repaginação do Ver O Peso, a começar com a venda de peixe e carne "in natura" exclusivamente nos bairros e supermercados de Belém; aposentaria sem drama nosso conhecido urubu do Ver O Peso. Em lugar do prestimoso gari-urubu, a ser devidamente condecorado em cerimônia solene depois de anos e anos de bons serviços prestado ao público; há que se entronizar com galas sua majestade O Pato no Tucupi no maior templo de gastronomia popular do Brasil e América Latina: a feira do Ver O Peso, com certeza!
Este marquetingue ribeirinho sai por conta da ACADEMIA DO PEIXE FRITO http://academiaveropeso.blogspot.com , todavia cumpre ter em mente que não existe almoço de graça. Milagre, às vezes, acontece numa vida vivida com merecendência... Mas o maior milagre é a Vida ela mesma. Portanto, se carece pagar promessa pela graça divina alcançada; como em Portugal fez o cavaleiro e caçador feudal Dom Fuas Roupinho, alcaide de Porto de Mós, prostando-se ao chão no Sítio da Nazaré aos pés da Virgem negra com o Menino Deus ao seio; também cá o povo do Círio de Nazaré de Belém do Pará deve pagar o pato que consome como convém a bons filhos e filhas da Madre de Deus.
Como conviria, então, fazer a mesa em comunhão à devoção nazarena? Não sou carola, mas creio que primeiramente, antes da primeira bocada, devia-se agradecer à mãe Natureza por ser generosa com o clima e a safra, depois à senhora dona da casa com sua cozinheira ou cozinheiro caso haja e todo mais pessoal da faxina... Sem os quais nem esta conversa seria feita. Podem sentar e servirem-se à vontade, porém não se esqueçam de lavar as mãos de suas antigas faltas contra a fraternidade: como estarão neste dia as mãos e a barriga do lavrador lá na sua roça? Quem foi que ralou mandioca e tirou o tucupi? Quem plantou e quem trouxe à feira o jambu? Enfim, quem criou o pato e quem ganhou de fato com o preço do bicho até toda esta alquimia virar mercadoria e se transformar em tesouro e sabor ao paladar? Esta lavagem de consciência não se faz na bacia de Pilatos... E o pecado da gula se paga no SPA ou na UTI com infarto.
Há que se pagar o pato do Círio por sua mais valia na cadeia produtiva e no arranjo econômico do turismo solidário. Se não, adeus solidariedade no segmento de turismo religioso! Com mais culpa até do que outros ramos da "indústria sem chaminé" dedicados quase que exclusivamente ao culto do Vitelo de Ouro... A conversa me fez lembrar acontecimento lá na minha terrinha de Ponta de Pedras. Cheguei lá e encontrei o único hotel que então existia na cidade transformado em hospital ou antes ambulatório. Como eu estava "assim" com o prefeito e o médico, me foi arranjado -- excepcionalmente -- um quarto, não de paciente mas hóspede da coisa que o povo, com sua formidável verve difundida na rádio cipó, chamava de "hospitel"...
Altas horas, depois de muita conversa jogada fora com os compadres e manos velhos, a madrugada veio ao encontro da cidadezinha mergulhada em sono profundo. Fui então buscar o leito no "hospitel", fechado naturalmente àquela hora. Mas, um atencioso vigia estava de plantão e pronto para abri-me a porta. Era um homem de cerca de sessenta anos de idade, esmerilado pelo tempo, queixa-se de reumatismo parecendo-me que ele carecia mais de hospital do que de emprego no hotel... A frio sereno da madrugada fazia o pobre homem se vergar como faquir e parecer dez anos mais velho. Sentei-me a seu lado na soleira da porta a escutar suas queixas. Pobre, preto, puto da vida... Dependia daquele empreguinho para "criar" uma penca de netos que duas filhas solteiras e "preguiçosas" (dizendo ele) lhe arranjaram com diferentes e ausentes pais. Olha lá essa situação! E o cara ainda fazia piada da própria sorte...
Eu fiquei na minha; quer dizer, não lhe revelei o que estava pensando. Na verdade, eu fora ali cedido pelo governo federal para ajudar o município a fazer alguma coisa a fim de mudar o velho panorama herdado do "Diretório dos Índios" (1757): esta "revolução" iluminista pombalina, donde por um processo complicado passando pela expulsão dos Jesuítas e confisco de bens da Missão (1759), cem anos após a Pacificação dos rebeldes Nheengaíbas; no ano de 1793 o poder colonial oficializou a romaria espontânea começada na hunilde ermida de palhas na Estrada de Nazaré. Assim, da barraca do caboclo Plácido para o Palácio do Governo [Museu de História do Pará] aconteceu o primeiro Círio de Nazaré de Belém do Pará, réplica amazônica da devoção do Sítio da Nazaré em Portugal. Não sei ao certo se há ou não uma geminação entre o município da Vigia de Nazaré (Brasil) e o município da Nazaré (Portugal), metendo em acento o turismo religioso que passa todos os anos na capital deste estado, que vai fazer 400 anos (2016) e teve seu batismo pensando em Belém da Judeia, que vem a ser justamente Belém da Palestina.
Para encerrar o papo já pensando no que fazer, antes que o homem me desse uma "facada" para comprar o magro pão daquele dia; perguntei a ele onde morava com a família. Respondeu-me que morava no lugar dito Armazém: um igarapé na periferia da cidade... Eu, já pensando na oportunidade para projetinho de desenvolvimento familiar, lhe fiz ver a excelência do Armazém para criação de patos... O que é pura verdade. Lá os bichos soltos no terreiro se reproduzem em na natureza ao sabor da maré, não pode existir pato ecológico mais "verde" do que aqueles criados nas várzeas entre a barraca-palafita e a beira do rio, quando muito uma cobra sucuriju come um ou dois patinhos, de tempo em tempo. E o banal pedágio natural que um ribeirinho tem pagar...
O homem ao me ouvir falar tamanha "besteira", arregalou os olhos como se tivesse visto um E.T. daqueles que costumam frequentar as bandas de Colares. E sentenciou: "não dá certo!". Por que não? Porque já experimentei e os vizinhos roubam demais uns aos outros... E tudo vai parar na porta da Delegacia (de polícia). Puxa vida! Consegui replicar, dizendo: "Viste? O pior inimigo do pobre é outro pobre!". E fui dormir com dor de cabeça, pensando "onde eu vim me meter"... Acho que o cara me odiou pelo resto da vida, mas o Armazém se tentou alguma coisa ainda foi em regime de parceria sem jamais motivo para soltar foguetes de contentamento.
O pato do Círio tem algo mais que o preço da mercadoria: a mais valia. Que alguém comeu não se sabe onde, só não foi quem plantou ou criou... Devemos pensar que do Sítio da Nazaré o Círio chegou a Vigia do Pará e depois a Belém, que de lá em Portugal hoje nos venha ainda além da tradição da peregrinação inspiração a um turismo e lazer solidários. Nosso pato no tucupi possa, doravante, ser semelhante ao galo de Barcelos, cuja estória Saramago contou na "Viagem a Portugal" e eu a reproduzi na minha "Novíssima Viagem Filosófica". De modo que dessas ilhas todas nas cercanias da paisagem cultural de Belém do Pará, com suas várzeas e igarapés atendidos pela regularização fundiária, plano de manejo ambiental, crédito incentivado e extensão técnica, possam por milagre de Nossa Senhora fazer do Ver O Peso uma referência mundial em economia solidária. O lugar onde se come o melhor pato no tucupi sem dor na consciência.
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