“Notícia Histórica da
Ilha Grande de Joanes ou Marajó” (resumida)
Alexandre Rodrigues
Ferreira
Comentada por José Varella Pereira
Posfácio duma margem, prêambulo da outra
Encerra-se aqui nossa Breve História
[Nota: apêndice do ensaio “Breve História da Amazônia Marajoara”] pelo
acréscimo de versão resumida da Notícia Histórica de 1783 com que o
naturalista luso-brasileiro Alexandre Rodrigues Ferreira iniciou a monumental Viagem
Filosófica na Amazônia portuguesa. A primeira é um olhar "nativo"
através de frestas da memória, de dentro para fora da Ilha grande do rio-mar
(49.602 km², um território insular maior do que a superfície dos Países-Baixos,
parte da mesorregião Marajó formada por três microrregiãos - Arari, Furos de
Breves e Portel - no arquipélago e faixa continental ribeirinha da margem
direita do Rio Pará somando 104 mil km², entre as respectivas bocas dos rios
Xingu e Tocantins).
Sem adentrar à época contemporânea
(geralmente tratada separadamente na história de cada um dos 17 municípios da
região, inclusive Oeiras do Pará que o IBGE tirou do Marajó), quisemos
entretanto preencher lacuna sobre as possíveis origens da gente marajoara. O
fim do mundo de Analáu Yohynkáku
(nome aruã da ilha do Marajó, conforme Domingos Soares Ferreira Penna).
Este texto, metaforicamente "pré-histórico", não pretende ser
completo: ele apenas junta cacos do tempo e espaço marajoaras como um convite à
pesquisa histórica profunda e mais abrangente, com que se há de descobrir toda
importância da maior ilha marítimo-fluvial
do planeta e seu povo extraordinário. O qual - por necessidade e acaso -
conquistou a nacionalidade brasileira e ainda continua pelejando em busca de
cidadania plena no seio da República Federativa do Brasil.
Marajó
é uma das regiões amazônicas das mais notáveis por natureza e cultura. Neste
sentido, esta Breve História assume papel de manifesto e até mesmo de
panfleto político em favor do reconhecimento, sem ambigüidades, da especificidade
e autonomia do povo marajoara. Uma primeira vez demonstrada no século XVII,
quando da Restauração da independência de Portugal. Nos episódios
relativos ao acordo do Rio Mapuá 1659 após 44 anos de guerra de conquista do
rio das Amazonas desde a tomada de São Luís do Maranhão, em 1615, uma situação
inacreditável. Onde o comércio e amizade dos marajoaras com mercadores
holandeses e britânicos foi trocada pela opressão dos portugueses escravistas
do Grão-Pará. Essa adesão do Marajó dramática e aparentemente absurda ao
domínio português, a fim de reconquistar a Terra-Firme perdida diante da
invasão do inimigo hereditário Tupinambá; foi reiterada no século XIX. Com a
proclamação de Muaná, em 28 de maio de 1823, desta feita trocando a soberania
de Lisboa pelo império brasileiro no Rio de Janeiro.
A lógica geopolítica dessa extraordinária
fidelidade das gentes das Ilhas a Terra Firme, acredito eu, explica o absurdo
abandono de um longo relacionamento pacífico e vantajoso de sessenta anos
(1599-1659) de duração com colonos holandeses e britânicos, a troco do
arriscado convívio com inimigos brutais para fazer cessar quarenta e quatro
anos hostilidades e má vizinhança entre as duas margens do Rio Pará. A fatal
atração do continente sobre as ilhas tem, provavelmente, explicação nas
migrações pré-colombianas das Antilhas para as Guianas e o delta-estuário do
Amazonas. Onde a constelação do Cruzeiro do Sul (Arapari) teria sido
guia às migrações maritimas; como, inversamente, o pouso do sol atrairia
tupinambás de Pernambuco e Paraíba para o "rio das Amazonas". Quer
dizer, afinal de contas, a chave da amazonidade acha-se antes no céu e nas
águas do que em
terra... Penso que tais movimentos à margem da história
oficial podem ser a grande descoberta da Amazônia pós-colonial no século XXI.
O segundo texto é olhar externo: o
viajante do século das Luzes descobre a ilha grande das Amazônias. Trata-se da
perspectiva iluminista do autor de a Viagem
Filosófica que também, de certa maneira, corresponde ao papel de porta-voz
ou alter-ego do comandante Florentino da Silveira Frade (provavelmente,
autor anônimo da primeira Notícia da Ilha
Grande de Joanes, datado da metade do século XVIII; quando ele inspecionou
a ilha do Marajó para realizar o inventário das fazendas, em 1759, a mando do governador
Mendonça Furtado a fim de promover o seqüestro dos bens da Companhia de Jesus).
Importante também na Notícia Histórica
de 1783 o depoimento do
sargento-mor Severino dos Santos, índio sacaca aportuguesado, registrado
escrupulosamente por Alexandre Ferreira. Quero crer que na toponímia marajoara
o "Igarapé do Severino", que desagua no Lago Arari e tem
cabeceiras nos campos baixos tenha seu nome como recordação das andanças do
guia do Inspetor Florentino. Elo de antiga aliança entre as mais velhas etnias
insulanas e os portugueses do Pará contra os Aruãs bravios e as penetrações
estrangeiras através do Cabo Norte (Amapá). O sargento-mor da vila de Monforte
era descendente de antiga nação contemporânea da "fase" arqueológica
marajoara, segundo consta. Ele dizia ser de etnia Iona (Joanes) por
autodenominação ou Sakaka por apodo de índios camaradas na construção da
fortaleza da Barra (1686).
Dois olhares que se cruzam e ampliam a
visão dos acontecimentos vistos de perspectivas diferentes. Mas, a Notícia Histórica recuperada pelo zelo
do professor Miranda Neto logo recaiu ao anterior esquecimento deste antigo
drama da carência de divulgação. Por isto, nossa humilde iniciativa de complementar
a Breve História com extrato da Notícia Histórica .
Relatos de viajantes e exploradores da
época dizem que os indígenas da região quando chegavam forasteiros às aldeias,
entravam depressa as suas casas e de dentro destas os observavam atentamente
através das frestas. Assim também nossa breve história das Ilhas do fim do
mundo... Um olhar talvez “naif”, porém comprometido com o interior da ilha
grande. Uma visão que cruza diversos olhares sobre o fenômeno do ilhamento
do mundo e o estranhamento do outro. Sem dúvida, a ótica principal é a Notícia
Histórica que Alexandre Rodrigues
Ferreira (1756-1815) endereçou a Europa iluminista conforme o espírito das
viagens filosóficas (exploratórias). A notícia do século XVIII hoje
ajuda a ver a Amazônia sob uma perspectiva dominadora. Às vezes míope. Serve,
sobretudo, para enxergar, pelo retrovisor, conseqüências que a insularidade
escondeu.
Nosso desejo é que o cruzamento destes
olhares ajude o leitor a compreender o espaço-tempo regional, acima da cortina
de mangais e do labirinto de igapós e mondongos. O texto a seguir foi
condensado daquele que o professor Miranda Neto recuperou em separata da Revista
do Livro, em setembro de 1964.
Resolvi subdividir o texto supracitado, assim
ele perde originalidade, mas tem a vantagem de despojar detalhes menos
significativos para destacar trechos mais interessantes para a atualidade.
Nota acerca da autoria da primeira Notícia biogeográfica do Marajó
O leitor não deve se despedir de
Alexandre Rodrigues Ferreira sem agradecer a Florentino da Silveira Frade e ao
sargento-mor Severino dos Santos. Fique certo de que o sábio da Viagem Philosophica não poderia, em
menos de um mês entre novembro e dezembro de 1783, dar notícia extensa e
pormenorizada como a que apresentou tão rapidamente, sem ele ter ao seu lado
estes dois homens providenciais durante o 'vestibular' do alto curso que iria
empreender nos sertões do Grão-Pará e Rio Negro. Era natural, portanto, que
fosse assim: o Marajó era (e ainda é, de certo modo) portão do rio das “Almazonas”...
Creio que
o autor anônimo da “Notícia da Ilha
Grande de Joannes” a que se referem Dante Teixeira e Nelson Papavero em “O novo Éden”, edição do Museu Paraense
Emilio Goeldi: Belém, 2002; seja provavelmente o inspetor-geral da Ilha,
Florentino da Silveira Frade. Ninguém mais que ele tinha na época percorrido
toda extensão insular no trabalho que, em 1759, resultou no inventário dos bens
da missão dos Jesuítas o qual lhe incumbira o governador do Grão-Pará e
Maranhão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, irmão do poderoso Marquês de
Pombal. Evidentemente, o trabalho teve caráter sigiloso o que explica que tenha
ficado sem divulgação e em anonimato durante tanto tempo. Como Alexandre
Ferreira informa, Florentino Frade era fazendeiro no rio Arari quando, vindo
das terras que ele teve no rio Guamá perto de Belém, levantou a capela de Nossa
Senhora da Conceição no lugar da Cachoeira do rio Arari. A freguesia de 1747
que hoje é cidade de Cachoeira do Arari na evolução das primeiras fazendas de
gado a partir dos currais que, em 1680, Francisco Rodrigues Pereira fundou no
dito rio. Portanto, Florentino já se achava instalado com sua família em Marajó
antes da expulsão dos Jesuítas, no século XVIII. Um homem talhado para
informar o governo sobre o que se passava no interior da vasta ilha da foz do
Amazonas.
A família
Frade é uma das mais antigas da Ilha do Marajó, desde fins do século XVII,
originada dos frades das Mercês (engenho de Sant’Ana e fazendas do Arari), irmãos
leigos que não estavam obrigados ao celibato do clero, muito especialmente nas
circunstâncias da catequese católica e colonização de territórios extremos da conquista
hispânica. Convém não perder de vista que a ordem Mercedária chegou ao Pará
através de Quito (Equador) no regresso da viagem de Pedro Teixeira, em 1639, e
que Marajó caia nas raias de Castela até 1750, com o final reconhecimento
espanhol do “uti possidetis” real português pelo tratado de Madri.
Assim, a escolha de Silveira Frade pelo
atento Mendonça Furtado para inventariar o patrimônio das fazendas dos Jesuítas
para ser expropriadas e doadas a homens-bons, conhecidos na historiografia
paraense como os Contemplados;
correspondia à necessidade do governo de Pombal. Seria necessário um homem-bom
imune à influência jesuítica e com bastante intimidade com o terreno ainda
desconhecido em maior parte. Daí por que o consideramos o provável autor
anônimo da Notícia da Ilha Grande de
Joannes (1756?), antecedendo à Notícia
Histórica de 1783. Nesta última, por
exemplo, informa-se que o Inspetor achou o teso (sítio arqueológico de Cultura
Marajoara) “Pacoval” do rio Arari, no dia 20 de novembro de 1756; o primeiro
constante de fonte para história: razão pela qual nós temos proposto registro
oficial considerando esta data como Dia
Nacional da Cultura Marajoara, coincidente ao Dia Nacional da Consciência Negra (lembrando, aliás, que os
primeiros “negros da terra” (escravos indígenas) da América do Sul, foram
arrancados da ilha do Marajó pelo espanhol Vicente Pinzón, em janeiro de 1500.
Ademais,
detalhe importante: as rivalidades internas na ilha do Marajó. Enquanto, os
padres da Companhia de Jesus tinham sua força de trabalho em índios cativos nas
fazendas de gado e trato corrente com as etnias Aruã e seus belicosos parentes
da Contracosta; os frades Mercedários possuíam escravos negros e se
relacionavam às vezes com os índios Sakaka ou Yona (Joanes) da costa-fronteira
aliados aos portugueses e rivais tradicionais dos Aruã invasores de terras
ancestrais desses grupos mais antigos da ilha grande. A considerável amizade
entre o Inspetor-Geral Florentino e o Sargento-Mor de Monforte, Severino dos
Santos, (índio joanes) esclarece esta relação especial na Notícia Histórica.
Precisa-se
ver como indígenas hostis à colonização – confederados em torno dos Anajás
(índios Mocoões, donde se formou o
termo mucuagem, costume de roubar
gado) e dos Aruãs, sob nome genérico e pejorativo tupi nheengaíba, “falante da língua ruim” – se aliaram aos Jesuítas como seus defensores
diante de colonos escravistas aliados ao inimigo hereditário Tupinambá. Os
Joanes (Iona), mais antigos na ilha
que os Aruãs, segundo relato do velho sakaka, foram empurrados dos centros da
Ilha para a costa-fronteira (municípios atuais de Soure, Salvaterra, Cachoeira
do Arari e Ponta de Pedras). Creio assim que a conexão entre arqueologia e
antropologia, e de ambas à história; revelaria o fato da famosa “fase”
cerâmica marajoara corresponder talvez ao apogeu do povo Iona (Joanes). Para tal hipótese, a preciosa
informação de Severino dos Santos se tornaria uma verruma deveras interessante.
Assim como o relato do naturalista de
Coimbra em 1783 apontada ao papel essencial de Florentino Frade, da mesma
maneira custa crer que a inspeção deste último pudesse ser cumprida sem o
conhecimento de índios amigos tais como o sakaka Severino dos Santos, por
exemplo. O informante de Alexandre Ferreira aponta a lugares conhecidos na
geografia local, donde os antigos Iona (joanes) foram desalojados por invasores
Aruãs vindos das Ilhas de Fora (Bailique, Viçosa, Caviana e Mexiana) para a
costa norte da Ilha, desde o ano de 1300 em diante. Além de
efetuar incursões e assaltos até Barcarena e o rio Guamá, às ilhargas da Cidade do Pará (Belém).
Porquanto o texto parece complicado sem
auxílio de uma carta geográfica razoável, uma excursão detalhada no terreno
poderia esclarecer a questão. A geografia de Marajó tem duas faces distintas a
cada ano: o estio, de junho até dezembro; e a estação das chuvas, de janeiro a
maio. O verão reduz distâncias a trote
de animais de montaria (modernamente, com uso de veículos motorizados). Mas, ao
mesmo tempo o verão dilata as distâncias às embarcações. Já o inverno, pelo
contrário, emenda todas as águas e deixa fazendas ilhadas debaixo do dilúvio de
todos os anos. Então, no tempo da chuva
é a vez das canoas...
A
geografia anfíbia explicará talvez a toponímia aparentemente sem nexo. Como
seria possível? O fato de ter existido um notável personagem como Severino dos
Santos (pode-se dizer, Severino Yona), "índio principal" (cacique)
dos Joanes ou Sakakas, ao mesmo tempo Sargento-Mor (major de milícia) do
destacamento da Vila de Monforte (aldeia de Joanes) e a toponímia do importante
Igarapé do Severino, que comunica no inverno o Lago Arari (a dizer o
berço daquela civilização marajoara esquecida) com o Igarapé Goiapi
(“caminho dos Cayá” (?), povo que teve aldeia onde foi a vila Monsarás,
causaria maior curiosidade à medida em que as coisas marajoaras fossem re-suscitadas.
Esta "cartografia" arcaica que
se esconde à sombra da crônica colonial e nas esmaecidas lembranças do povo,
apontaria aí uma mera coincidência de nomes ou, pelo contrário, uma notícia
importante para resgate da etno-história marajoara? O leitor deve ser informado
do fato de que além de um extraordinário ecossistema que desaparece e renasce
em ciclos curtos, de seis em seis meses; há no curso aquático Goiapi - Severino
sítios arqueológicos importantes como Pacoval (o mais antigo e conhecido
"teso" de camutins) e o teso dos Bichos. Claro indício de uma área
cultural importante na ilha do Marajó.
É dizer (por
hipótese bem provável): durante as cheias que alagam os campos o sargento-mor
que talvez na sua infância escutou falar ainda da legenda heróica do temível
tuxaua aruã Guaiamã, inimigo hereditário dos Joanes ou Sakaka; buscava varadouros
(atalhos) deixados pelos seus avoengos para ir com menos risco aos lugares
ancestrais perdidos diante da invasão dos aruã. Entre outros, o lago Guajará
sagrado pela encantaria dos pajés e o teso do Pacoval ("bananal"),
onde repousam os mortos ilustres da cultura marajoara: daí por que acredito que
esse caminho dos Yona/ Cayá/ Maruaná/ Guaianá e mais velhos “marajoaras” tomou nome de Severino em memória àquele que mais
conhecia o velho caminho do passado de sua gente. Dado, talvez, por algum
branco sertanista de sua intimidade. O qual tendo o velho índio por guia,
aprendeu atalhar os campos alagados para encurtar o caminho do Arari (cheios de
voltas e perigo das incursões dos Aruã bravios vindos da Contracosta pelo
igarapé (hoje canal) Tartarugas), sem levantar suspeitas. Alguém, por exemplo,
com o perfil do Inspetor-Geral encarregado pelo governo de inventariar as fazendas
das Missões prestes a ser seqüestradas por Pombal e determinar a expulsão dos
Jesuístas do Pará.
Águas e campos que se emendam e se
separam, temporariamente; neste instável
e mutante chão marajoara.
Viagem filosófica começa pela maior ilha marítimo-fluvial do mundo
“... pelas 11 horas da
noite do dia 7 de novembro [1783]
embarcamos desta Cidade do Pará para a Vila de Monforte [antes aldeia dos
Yona ou Sakaka, aportuguesada Joanes, com 700 habitantes, hoje distrito de
Joanes, no município de Salvaterra]. Dias antes me havia participado o mesmo
Sr. General [Capitão-general Martinho de Souza Albuquerque, governador do
Pará], que devendo nós, para abono de nossas diligências, remeter logo na
Charrua [barcaça de transporte marítimo] as produções [coletas que o
naturalista estava encarregado de fazer], que soubessem da brevidade do
tempo, em nenhuma outra parte as acharíamos tão prontas como na Ilha Grande de
Joanes, para onde nos acompanhava o seu Inspetor-Geral Florentino da Silveira
Frade. [...] A estação para a viagem era a mais própria [o verão amazônico,
ou estio] ... : Com vento de servir, maré vazante, apenas largamos o porto
da Cidade, deixamos à direita da ponte do Continente, a vila de Pé na Cova, que
distará coisa de meia légua. Seguiu-se a Fazenda de Val de Caens, onde possuem
os Religiosos das Marcês um engenho de descascar arroz, olaria, fornos de cal,
arrozais, roças de maniba [maniva, mandioca, Manihot utilissima], e
outras lavouras, como café, cacau, etc. Passamos imediatamente a barra depois
da qual, se avistam a olaria, e roças do Capitão Antônio de Carvalho, fica este
sítio dentro de uma enseada, e também distará da barra coisa de meia légua. A
outra distância semelhante deixamos a fazenda Livramento, que pertence aos
Religiosos do Carmo, e nela conservam uma boa Olaria. Passada outra meia légua,
na ponta da enseada, a que chamam a ponta do Mel, fica a fazenda do Pinheiro [hoje
Icoaraci] , que tem boas casas, e boas roças e também pertence aos
Religiosos do Carmo: até aqui terra firme do Continente em que está a Cidade.
Segue-se então, costa abaixo, e mesmo à direita a Ilha de Caratatuba [Caratateu,
ou Outeiro] onde possui Lázaro Fernandes Borges o seu sítio, que consta de
roça, e boas casas, em pouca distância do Pinheiro: tal foi a nossa navegação
esta noite em que não repontou a maré. Como porém não tardou muito, havendo
conseguido os 19 remeiros, que levávamos, paramos na baía de Santo Antônio
pelas 4 horas da madrugada do dia Sábado, tomamos terra na ponta da Ilha do
Mosqueiro ao norte da Baía de Santo Antônio: aqui nos demoramos até a praiamar.
Saltando à terra para, no entanto, reconhecermos as produções mais óbvias.”
“... tudo tão curioso, que, com
algum desgosto, largamos da Ilha pelas 11 horas do dia, por devermos sem perda
de tempo lançar mão da maré. Assim continuamos a costeá-la até uma ponta, que
toma o seu nome, donde largamos a Vila aproando a Monforte para onde queríamos
atravessar porque já passava de meio dia”.
O leitor acompanha a
precariedade das viagens no grande "mar doce”. Totalmente dependente de
canoas à vela ou remos movidos a braços de índios e caboclos remadores. No mês
de novembro, os ventos alísios na baía do Marajó sopram o Geral, no
decorrer da tarde até o pôr do sol. Se essa "viração" coincide maré vazante, as águas ficam
agitadas e se encrespam. A navegação perigosa. Portanto, a canoa grande –
igarité – do Ouvidor Geral com os seus passageiros e remadores iria passar maus
momentos...
Sendo curioso que homens experimentados, como
Florentino Frade que ia a bordo, não tenham decidido esperar a maré da manhã
seguinte. O que talvez indique a habitual obediência desses homens à vontade
dos senhores. E o sábio revelava pressa para recolher logo alguma informação,
sem perda de tempo, a fim de remeter a Lisboa pela barcaça que estava preste a
zarpar.
“Teríamos com efeito
atravessado já uma légua de baía, quando nos saltou o vento à proa, tão rijo e
pertinaz que, para escaparmos às Cancras [pancada de chuva forte] do mar, dentro,
na Canoa, resolvemos arribar para a mesma Ilha do Mosqueiro que havíamos
deixado: aportamos pelas 3 horas da tarde no Sítio do Capitão José Joaquim
Henriques de Lima, e nele desembarcamos. [...] pelas ave-marias nos recolhemos
à Canoa, onde dormitamos um pouco à espera da vazante, para com ela largarmos,
como largamos, aos 3
quartos para uma hora da noite.
Eram por este tempo,
em conseqüência da Lua, as cabeças de águas, como aqui chamam os práticos:
venta de terra um vento fresco; estavam bem fundadas as esperanças de
felizmente atravessarmos a baía: esperanças então, que, em pouco menos de uma
hora, todas se trocaram em sustos no meio de perigos, que até aos mesmos
práticos atemorizaram: tinha a canoa uma proa tão baixa, que cada Cancra a
soçobrava: de muito e muito fez-se tão rijo o vento, com trovoadas secas, que o
podiam sofrer as velas: mais de três vezes adormeceu de todo a embarcação, que
pela furiosa impressão do vento sobre as velas era arrancada das ondas:
rompeu-se, finalmente, uma delas, e cuido, que, que uma das minhas maiores
felicidades é a de haver escapado das nove correntezas, que nesta baía
atravessamos.
Tais são, por sua
ordem, atravessando do Mosqueiro para Monforte: 1ª a Correnteza da Cidade; a 2ª
de Carnapijó; que é uma ilha por detrás da Ilha das Onças, fronteira à mesma
Cidade; a 3ª de Tatamoeva; 4ª dos Tocantins; 5ª de Arari, que já é rio da Ilha
Grande, a cuja correnteza se ajunta a do outro rio da mesma ilha, Marajó-guaçu;
6ª a da Tiririca, que é no meio da travessia; a 7ª a da Coroa Grande, que nasce
fronteira ao rio Jaburu-acá, acima da Vila de Monsarás; a 8ª a de Camará, rio que também fica acima de
Monsarás; a 9ª a do Saravajá, que principia em uma ponta de terra acima da Vila
de Monforte, distância de ¼ de légua. Na tal Vila de Monforte aportamos pelas 4
horas e um quarto da madrugada, e desembarcamos pelas 6 ½ do dia (Domingo). Do que sabemos por
experiência própria, e do que afirmam todos por tradição, seguida de pais a
filhos a tempos imemoriais, concluo, que é realmente perigosa a travessia do
Pará para a Ilha Grande de Joanes. Não obstante, ainda mais perigosa a fazem as
precipitações das viagens que a cada passo se empreendem, sem pesarem-se, com
madureza, as circunstâncias de estação, em que se viaja, de Canoas que
atravessam, e dos práticos, que as dirigem; porque de fato, uma coisa é o tempo
melhor [de] estar-se no Marajó, e outra o de atravessar-se a sua baía [...]
São ordinárias as Caladas [falta de vento], e só a remos empreenderá,
e com facilidade se conseguirão viagens; mas que remédio têm senão
atravessá-las em todo o tempo as Canoas, que transportam o gado para os
Açougues da Cidade? Eis aqui a necessidade, que sempre foi a mestra da
indústria, também neste país feita mestra da navegação: Observam que os ventos
reinantes na Costa da Ilha que demandam são Nordestes-Lestes, Lestes-Nordestes,
previnem o tempo das águas-vivas mais, e menos, segundo a quadra do ano
abrigam-se ao mesmo anúncio do céu, nestas, ou naquela enseada, ali esperam a
maré, que desejam, e praticada contudo a prudência náutica diariamente em dias,
e voltas, atravessam para a ilha grande que passo a considerar como
naturalista.”
O geógrafo Armando
Levy Cardoso ao estudar a psicologia indígena, nas demarcações da fronteira
Norte; em Toponímia
Brasílica, recorda lição de Alfred Wallace, no livro Rio
Negro, no qual o precursor de Darwin diz que a lenda das amazonas se criou
antes pelo modo das perguntas dos espanhóis aos índios e as respostas destes de
acordo com a expectativa do forasteiro. Cardoso se refere ao caboclo marajoara
como dotado de temperamento peculiar no trato com estranhos. A estes responde
invariavelmente “sim, senhor” ou “não, senhor” ao gosto do
freguês. Porém, sem dizer um pio do que não quer falar. O próprio autor da Viagem
Filosófica, conforme o espírito científico da época, classificou o nativo
amazônico como Homo sapiens, variedade Tapuia (sic). Homem
particular surdido de história natural específica.
Pensei nisto, ao ler
sobre a travessia do sábio Alexandre Rodrigues Ferreira para a Ilha do Marajó.
Que acaba sendo seu batismo nas águas amazônicas na iniciação à Viagem
Filosófica. Conforme Wallace, a sugestão do estranho conduz à resposta do
índio ou caboclo. De tal modo, que o estrangeiro sente-se dono da situação:
quando na verdade a história é outra...
No caso da travessia da baía de Marajó pelo
naturalista, parece ter sido a pressa da Ciência a causa do risco e perigo
passados. Pois, noutra situação os práticos da navegação evitariam hora tão
inconveniente e o mesmo doutor, logo que compreendeu como as coisas funcionam
nestas margens do planeta talvez tenha aprendido a confiar a seus guias de
viagem o respeito aos usos e costumes do lugar.
Há milhares de anos,
os nativos da região convivem com o sol e a chuva, os ventos e as marés...
Antes da hora do dia ou da noite, era preciso consultar o tempo de marés
regidas pela Lua que ditava o ritmo da vida ribeirinha. Novembro, mês de ventos
fortes na força do verão... Se a arquitetura do espaço civilizado deu, alguma
vez, com os burros n’água nestas ribeiras foi por não consultar a geografia
neotropical, por um desvio histórico de demasiada conformação ao exterior.
Cartografia da confusão
“E considerando logo a
latitude, em que demora, segundo o Mapa do Estado que me foi dado, e aumento do
ponto, que se lhe deu na cópia, deve estar situada a Ilha Grande de Joanes na
Latitude de 1º da linha do centro. Mas será esta, com efeito, a sua verdadeira
latitude? Eis aqui o que eu não abono depois de haver observado sobre o dito
Mapa, que ele, em muitas partes, foi trocado por uma simples informação em vez
de ter havido, como devia, a inspeção ocular; então observou-se uma e sobre a
Carta desenhou-se outra coisa...”
Ou,
por outra: onde é que estamos nós? Donde viemos? Aonde vamos?
Circunavegação do Igarapé-Puca
“... tudo, até
agora, são
estimativas dos habitantes: o que é certo, nesta parte, é o tempo que gastou em
a rodear o Inspetor Florentino da Silveira Frade no 1º de maio de 1756; saiu do
Igarapé-puca, rio acima, e navegando em roda da ilha, mas sempre encostado a
ela, quando então entrou pelo Arari, donde sai o Igarapé-puca, que foi o ponto
da sua volta, contava já 22 dias de viagem.
Navegava portanto em uma canoa ligeira, esquipada com 4 remos por banda, que
nunca se demorou em parte alguma tempo considerável, antes, nas situações da
Costa em que era precisa a enchente para seguir viagem, contando foi o tempo
que gastou em rodear, por que além desta primeira viagem empreendeu o mesmo
comandante a segunda no
projeto de a atravessar por terra, de costa a costa, que pôs em ação em 21 de
novembro do mesmo ano; partiu do Mauá [tributário do rio Arari, onde o
pioneiro Francisco Rodrigues Pereira levantou o primeiro curral de gado da Ilha
do Marajó, em 1680] para o Arari, e gastou um dia; atravessou do Arari para
a fazenda de São Luís, então retiro dos
Jesuítas [localizada na margem esquerda do rio Anajás-Mirim, doada em 1760
ao Contemplado José Pedro da Costa Souto Maior] , e gastou outro
daqui às Cabeceiras de Mucoã [Uma das extintas nações indígenas da Ilha do
Marajó, termo primitivo de mucuagem, coisa roubada, em geral carne de
gado, referente ao abigeato em Marajó. Cf. Miranda Neto, nota à pagina 148 da
supracitada revista: Mucoan transformou-se em Mucoon, o rio
Mocoões do município de Anajás] – (3º dia sem descansar); do Mucoã ao
Pacoval de Santa Cruz, nome que a esta vila pôs o Comandante por achá-la cheia
de pacovais [plantações de certa espécie de bananeira encontradas junto a
aldeias indígenas, o autor refere-se ao lugar que deu origem ao município de Santa
Cruz do Arari, célebre sítio arqueológico à boca do Igarapé do Severino, que
serviu de base ao livro de Raimundo de Morais, denominado O homem de Pacoval]
(4º dia). Neste pacoval observou, de caminho, as cabeceiras de uns poucos
rios: o Cururu, o Mucuon, o Guarapixi [Arapixi], o Camarão-tuba, e
outros, com a diferença que o Camarão-tuba e Guarapixi já são rios que correm
da contracosta para dentro: do pacoval até à beirada do Camarão-tuba o 5º dia também sem descansar.
Marchava, portanto,
montado em muito bons cavalos, que, no passo que levavam, expediram légua [pouco mais de 6,5 km] por hora. Sem, no espaço de
5 dias, demorar-se nem sequer para comer, porque de manhã, e de noite é que se
faziam, e suposto que, para romper do Pacoval de Santa Cruz para diante, se
demorasse três dias em fazer queimar os capinais [campo cerrado, capinzal] que
impediam a passagem, estes três dias não os incluiu no número de todos os que
efetivamente gastou; que foram oito, e o Comandante, para a sua estimativa de
distância, só pondera os 5 de caminho efetivo. Ora, já é sabido que, do Arari
para baixo até a ponta do Maguari, cada vez mais se estreita a Ilha, assim como
da boca do Arari, costa acima, mais se alarga, e a travessia que fez não foi
pela parte mais larga, que tem a Ilha de Joanes. Chama-se Ilha de Joanes,
porque havendo sido povoada por diversas nações de Índios, como foram os
Aruans, Mucoons, Ingaíbas, Mariapans [aqui talvez se ache o derradeiro
vestígio lingüístico daqueles 36 índios capturados por Vicente Pinzón, em 1500,
dos quais o navegador espanhol teria ouvido o nome da ilha: Marinatambalo ou
Marinatambal, provavelmente Maritambo, nação que talvez incluísse
a aldeia de Mariocaí (Gurupá hoje), na acepção de lugar de mari (fruta)
em dialetos híbridos caribe-aruaque; isto é, Nu-Aruak] e Cariponás [Caripunas,
a dizer: mestiços de Caribes ou Galibi, os protocaboclos marajoaras saídos da
guerra antropofágica nas Antilhas, entre os Karib e os Arawak], entre estes
a povoou também a nação Juioanas [Yuiana, Yu (o nome deste povo,
propriamente dito, apelidado Sakaka; origem do município de Salvaterra) mais a
terminação iana, gente, povo], eis aqui o nome que depois com o tempo
se reduziu ao que hoje tem de Joanes, como se disséssemos ilha de Juioanas.”
O recado pré-histórico da Notícia Histórica
“Tal é a informação
que dá sobre diversas perguntas minhas o Sacaca Severino dos Santos,
Sargento-Mor da Ordenança dos Índios da Vila de Monforte: é um índio, pelo que
dele alcancei, suficientemente versado nas coisas do país, civilizado já pelos
menos com a civilidade de haver aprendido a ler e escrever, fala expeditamente
a língua portuguesa, que entende como os nacionais. Conta de idade 70 e tantos
anos, e portanto nenhum escrúpulo faço em subscrever as suas informações.
Como eu disse acima
que esta era a informação do Sacaca Severino dos Santos, para não deixar
suspensos os juízos sobre a palavra Sacaca, devo advertir desde agora que
Sacaca se ficou chamando a nação Juioana [Joanes] depois do seguinte caso: – trabalhavam na fortaleza da
barra da cidade [numa ilhota em frente de Val de Cães, que explodiu e ficou
arrasada] não só os Juioanas mas com eles outras nações; presidia ao
trabalho dos primeiros certo espírito muito
ativo, que dentre eles havia sido escolhido para feitor, e como a
palavra que pela sua gíria pronunciava para animar os seus era necessariamente
– Sacacon – que vale o mesmo que aviar. Com o trabalho, as outras nações que a
ouviam sem a perceberem porque era gíria para ser entendida pelos Juioanas, entraram
a chamá-los Sacacas, e Sacacas ficaram até o dia de hoje.
Habitavam sempre os
Sacacas de hoje, que então eram Juioanas, continua o Sargento-mor, pelos
centros da Ilha nos lugares que hoje chamam Laranjeiras [sítio à margem do furo de mesmo nome, que comunica a
bacia do Marajó-Açu, através de seu tributário Curral Panema; à bacia do Arari,
abaixo do sítio Araquiçaua], Trigueiras, Três Irmãos, Curuxis, e por
outras ilhas [bosques formados em meio à vastidão dos campos de Marajó,
muitas vezes assinalados pela ocorrência de “tesos” ou aterros arqueológicos]
mais, que ainda existem no meio dos campos, em cabeceiras dos rios, ou junto
aos lagos, enquanto os não obrigou a perseguição dos Aroans, seus inimigos e
juntamente a dos Tupinambás a descerem deles para a costa, em que no presente
se acha a vila de Monforte.”
A informação de
Severino Sakaka atestada por Alexandre Ferreira é fonte valiosa da história
marajoara. Quando ele fala, por exemplo, do episódio ocorrido durante a
construção da fortaleza de Nossa Senhora das Mercês da Barra, concedida, em
1685, pelo Governador Gomes Freire de Andrade ao capitão Antônio Lameira de
Franca; colabora no cruzamento da tradição oral de seu povo com a história da
colonização.
Dá pista também para a derradeira batalha entre os
Yuiana (Joanes) e seus inimigos Aruãs. Que, pelas datas dos acontecimentos,
comprova não terem sido infundados os receios dos amigos de Francisco Rodrigues
Pereira (1680) que o advertiam do perigo de levar seu gado para a Ilha com a
ameaça dos índios bravios, desertores e escravos refugiados. A um simples
olhar, compreende-se logo a insuficiência de estudos sobre a etno-história
marajoara. Assim, as hipóteses sobre o passado pré-histórico ficam
demasiadamente dependentes de teorias e suposições. E, portanto a antropologia
deveria ser chamada a recuperar esses fragmentos de memória que afloraram em
relatos como este ou do encontro de Ferreira Pena, em fins do século XIX na
vila de Chaves, com o índio velho Anselmo José, o derradeiro aruã.
Pelo que diz o informante da Notícia
Histórica, seu povo constitui população mais antiga do que a dos Aruã.
Habitava os centros da Ilha Grande e diante da pressão dos invasores da costa
norte, foram, cada vez mais, empurrados para a margem da baía do Marajó. Isto
é, as bordas de terras altas e mata ciliar junto às praias.
Comparando tal informação com esquema de estudos
arqueológicos mais aceitos, com suas fases artísticas de elaboração da cerâmica
encontrada, tem-se clara sugestão de que os Yuiana ou Sacacas foram, pelo
menos, contemporâneos da fase ceramista Marajoara (quando não o
próprio povo que deu os mais célebres oleiros marajoaras). A decadência da arte
pré-colombiana poderia então ser explicada, não só pelo fenômeno da guerra
defensiva contra a invasão dos Aruã, interferindo certamente na passagem de
conhecimentos de uma elite de artistas para a geração subseqüente, como também
da perda de matéria-prima de qualidade para confecção daquela sofisticada
cerâmica. Mas tudo são suposições, na falta de programa de pesquisa de
envergadura. Falava-se muito em geração de emprego e renda para as populações
tradicionais, sem lhes perguntar, de verdade, em que as mesmas mais gostariam
de investir o seu saber e vontade de se desenvolver.
Acordo entre os Joanes e os portugueses do Pará
“Pela nação
Caripuná, que eram de parte a parte camaradas [isto é, amigos dos Yuã e dos
Aruã ao mesmo tempo], foram informados os Juioanas, que na parte em que ao
presente está a cidade do Pará se achava gente branca, valorosa pelas suas armas,
e que faria timbre de os proteger: Continuavam as violências dos Aroans, a fama
do valor português os animava, o interesse do seu sossego e segurança veio a
acabar com eles que atravessassem a baía. Atravessaram-na com efeito para o
lugar da cidade, e tendo logo a fortuna de nela encontrarem um parente seu, que
em rapaz havia sido cativo pelos Tupinambás nos campos da Ilha, batizado depois
com o nome de João, e por alcunha o Sapatu [João Sapato, talvez] , deste
se serviram como seu intérprete para pôr na presença do Capitão-mor, que então
governava o Pará [em torno do ano de 1685,
isto é; havia cinco anos que se levantou o primeiro curral de gado do Arari], a
representação seguinte:
Que as violências dos
Aroans os consternavam de modo que nenhum outro recurso lhes deixavam para a
vida e liberdade mais que o que ousavam tomar de se abrigarem debaixo das armas
portuguesas de cujo valor, e sucessos militares estavam bem informados. Que de
boa mente se sujeitavam ao domínio d’El Rei de Portugal, protestando serem seus
leais vassalos, se o Capitão Mor os auxiliasse com soldados e oficiais que os
ajudassem a vencer na guerra os Aroans. Foi aceita a sua fala e o sinal menos
equívoco que levaram da sua boa aceitação foi o destacamento de soldados
comandados por um Capitão, e mais oficiais, debaixo de cuja proteção se
retiraram para a Ilha, e se apresentaram na Aldeia que presentemente é a Vila
de Monforte [atual Joanes velha, onde
se acha a antiga capela dos jesuítas]. Ignorantes, como estavam os Aroans,
do reforço dos Juioanas, não tardaram em os assaltar: Incorporados com os
soldados saem-lhe ao encontro os Juionas; baralhamdo-se no conflito uns, e
outros, os Aroans, que querem escapar da morte fogem para a praia do
Rio-de-água-doce [hoje a localidade Água Boa], distante da aldeia meia
légua, costa abaixo; aqui são mortos os mesmos que fugiram; o que fica na praia
são cadáveres; apenas salvam a vida os poucos que guardavam as canoas, em que
tinham vindo os Aroans.
Estavam as três canoas
no Rio Jobim, onde se tinha feito o desembarque, daqui fugiram tão intimidados
do que viram os Aroans que as vigiavam, e tais notícias levaram aos poucos, que
as esperavam, que jamais intentaram outro combate. Tal foi o termo das
violências, que faziam os Aroans da contracosta da Ilha aos Juionas, já há
muito tempo retirados para a Aldeia da costa fronteira.”
Este recorte da
memória de Severino dos Santos relatada por Alexandre Rodrigues Ferreira se
reporta ao ano da construção da fortaleza da Barra, 1685. Comporta estas
observações: fazia cinco anos que se levantaram os primeiros currais de gado no
rio Mauá, tributário do Arari, por Francisco Rodrigues Pereira. Que, portanto,
se justificavam os receios desta empresa contra os “índios bravios”. Que as
lembranças de um homem de presumivelmente mais de 70 anos de idade, em fins de
1783; cujo nascimento corresponde ao tempo do célebre cacique dos temidos
Aruãs, Guaiamã, são uma preciosidade em meio à notável carência de informações
etno-históricas de Marajó.
Isto nos faz lembrar o
fato que só em 1659, na região dos estreitos de Breves, os índios de Marajó se
deixaram abordar pacificamente. E, portanto, na chamada Costa-Fronteira –
litoral sudeste – o primeiro contato pacifico teria sido o supracitado: 1685.
Visto que a morte do jesuíta Luís Figueira naufragado com seus companheiros na
Baía do Sol, levados pelo vento e as ondas à praia de Joanes; “devorados” pelos
índios daquela localidade revela a hostilidade que deu motivo a fama de
canibais (que não eram) aos índios do Marajó.
O conflito entre Sakakas e Aruãs remete à questão que
a arqueologia denomina fase cerâmica Marajoara
com transição para a fase Aruã. Estamos a ver que as mais velhas etnias foram
sendo empurradas pelas novas, dos centros da ilha para a Costa-Fronteira.
Segundo a datação
arqueológica, o estilo Aruã se manifesta cerca do ano 1200 sucedendo ao
estilo Marajoara. O leitor não deve confundir as fases
arqueológicas com tribos de mesmo nome. São situações que se confundem,
mas não se correspondem exatamente. Por exemplo, não há propriamente um grupo
específico marajoara. Mas, uma arte cerâmica “marajoara” desenvolvida
não se sabe por que povo. Teriam sido os “Joanes” autores do mais brilhante
estilo ornamental da cerâmica marajoara?
Os Joanes ou Sacacas
são provavelmente remanescentes de um povo que habitou a Ilha há mais tempo do
que os Aruãs, que foram a última migração vinda da costa do Amapá. Na verdade,
ainda há muitas conjecturas sobre o passado dos marajoaras. Em luta entre si,
grupos indígenas antigos do Marajó e Amapá pertenceriam à mesma família
lingüística Aruak, subgrupada sob o nome geral de Nu-Aruak, às vezes mesclados
a grupos de língua Karib vindos das Guianas e Antilhas, também há muito tempo.
Viu-se também em
Marajó algum parentesco artístico com a cerâmica sub-andina da região de Loja
(Equador), mas esta é mais uma das diversas cogitações. De todo modo, trocas
culturais entre populações do alto e baixo-Amazonas não podem ser afastadas
liminarmente.
Há expectativa,
entretanto, que as fases Marajoara e Aruã coexistiram certo tempo. Segundo
notícias não confirmadas ainda, a cerâmica marajoara chegaria até quase 1600.
Quando os primeiros colonos holandeses já estavam estabelecidos no Xingu, pouco
antes da fundação de Belém.
Costa-Fronteira de Joanes
“Conservou-se o
destacamento de soldados até o tempo do Sr. Capitão General Manoel Bernardo de
Mello e Castro, em que ainda se nomeava o Comandante da fronteira de Joanes, e
foi o último nomeado Matias Pais de Albuquerque, que também era oficial maior
da Secretaria do Estado do Pará. O mesmo Sr. Capitão General mandou recolher a
última peça de Artilharia, que lá existia em um reduto, de que apenas se
percebem as ruínas.
Enquanto nos sucessos
das nações, na aldeia de Joanes ficaram os Juionas, por outro nome os Sacacas;
os seus inimigos Aroans repartiram-se por várias Aldeias, como eram: a de
Najatuba na contracosta, hoje Vila de Chaves; a Aldeia da Conceição, hoje Vila
de Salvaterra; a Aldeia de São José, hoje lugar de Mondim,
todas na administração que foi dos Capuchos. Os Ingaibas ainda existem nas duas
vilas de Conde, e de Beja, algum dia aldeias de Sumaúma, e Martigura, ambas da
administração que foi dos Jesuítas. Dos Mocoons, Mariapans, e Caripunás, por
acaso existem alguns dos seus descendentes... Até aqui está a informação do
Sargento-mor, pelo que respeita às antiguidades da Ilha.”
República teocrática versus Província pecuária
“Eu a considero no
tocante à sua extensão, fertilidade, produção, rios, situações, como o embrião
de uma vasta Província. Corria o ano de 1757 quando ordenou o Sr. Capitão
General Francisco Xavier de Mendonça Furtado [Miranda Neto, comentando a Notícia Histórica, esclarece que se
trata do governador do Estado do Grão-Pará e Maranhão (1753), irmão materno do
Marquês de Pombal; e que o mesmo foi também Secretário da Marinha e Negócios
Ultramarinos] que para a Ilha Grande de Joanes partissem: o Ouvidor Pascoal
de Abranches Madeira, o Juiz de Fora Feliciano Ramos Nobre Mourão, e o Inspetor
Geral que é da dita Ilha Florentino da Silveira Frade, para na Ilha executarem
as reais ordens de Sua Majestade, que mandava abolir o Governo temporal, e
espiritual, que tinham os missionários de Santo Antônio, e São Boaventura nas
Aldeias, chamadas missões da sobredita Ilha. Havia no ano de 1756 descoberto o
Inspetor a contracosta do norte por ordem que para isso teve do mesmo Sr.
Capitão General, como também atravessando o centro, depois de haver descoberto
no ano de 1754 o [rio] Camotim [trata-se da zona de maior ocorrência
de sítios arqueológicos, este rio é tributário do rio Anajás-Mirim, que conflui
com o rio Arari e também se comunica com a bacia central, o rio Anajás Grande,
durante a estação da cheia]. Havia sido esta Ilha da Baronia da Casa de
Mesquitela no dia de hoje pertencendo-lhe “de jure” [de direito] e
herdade; e pondo nela, como de alguns documentos consta, o Barão Luís de Sousa
de Macedo de Aragão Vidal tanto Ouvidor como as outras Justiças; nomeando
Capitão-Mor, Ajudante, Sargento-Mor, e criando a muitos destes Capitães-Mores
seus Lugar-Tenentes: Até nomeou o Barão um Juiz das demarcações, a quem
pertencia demarcar as terras, que em nome do Barão dava o Capitão-Mor, e o
Barão depois as confirmava. Havia Sua Majestade, em conseqüência das
apresentações do seu Capitão General, resolvido que era conveniente ao seu
serviço entrar na propriedade da Ilha dando em seu lugar o Viscondado de
Mesquitela, e parece que, segundo ouvi, três mil cruzados mas, ficando Sua
Majestade com pleno domínio das suas terras. Haviam, finalmente, administrado em
um e outro foro as Povoações os mencionados Missionários, cuja administração é
que mandava Sua Majestade abolir pelo Alvará com força de Lei de 7 de Junho de
1755.
Pôs-se em execução o
Alvará, nomeara-se as justiças, o governo temporal na forma da Lei que regula
as ereções das Povoações, ficaram incumbidos do espiritual os mesmos
Missionários, sujeitos porém ao Exmo. Bispo Dom Frei Miguel de Bulhões, que
lhes passou as provisões de Vigários, e desde esta época, verdadeiramente
grande para as coisas do Marajó,
tudo levou aquela resolução que necessitava. De Aldeias passaram a Vilas as
povoações que mais o mereciam: os mesmos nomes foram mudados e por estes
substituídos outros que ditou o Exmo. General.”
O trecho acima se
refere à importantíssima reforma política da Ilha do Marajó, que vai do período
da capitania hereditária de 1665 à incorporação da Ilha ao patrimônio da Coroa
portuguesa, em 1754. Nos 89 anos em que durou a Capitania hereditária, o
primeiro donatário foi sucedido por seu filho, Luís Gonçalo de Sousa de Macedo,
1º barão de Joanes; o neto Antônio de Sousa de Macedo foi o segundo barão. O
quarto donatário e 3º barão da Ilha Grande de Joanes, Luís de Sousa de Macedo
foi aquele a quem foi paga a indenização de 3000 cruzados e atribuído título
honorífico de visconde de Mesquitela, em 1754.
Não precisa dizer que os donatários não puseram jamais
os pés no Pará para gozar da posse de Marajó. Conquistado e pacificado com
tantos sofrimentos e penas. Em nome dos donos governavam prepostos nomeados, também
ausentes da Ilha, lá com seus escravos e feitores à testa dos afazeres. Não
espanta, portanto, que Diretores de Índios,
cabos de guerra e os Principais das aldeias fossem, pouco a pouco, se
transformando no poder de fato. Estando, portando, tal estrutura à origem da
sociologia marajoara.
Das Missões ao Diretório dos Índios
“A Aldeia de Joanes, da administração dos Padres de
Santo Antônio, passou a vila de Monforte. A Aldeia do Caiá, da Administração
dos Padres de São Boaventura, passou a vila de Monsarás; a da Conceição, dos
mesmos Padres, tomou o nome de Vila de Salvaterra; a Menino Jesus, dos Padres
de Santo Antônio, o de Vila de Soure; a de São José dos mesmos Padres, o de
lugar de Mondim a
Aldeia da Doutrina, no rio Maruacá, que era da administração dos Padres de São
Boaventura, o de Lugar de Condeixa; a Aldeia dos Guaianases [Guaianá], dos mesmos Padres, o Lugar de Vilar; a
Aldeia das Mangabeiras, também dos mesmos, o de Lugar da Ponta de Pedras; até
aqui as povoações sobre a costa fronteira ao Canal da Cidade, e dentro nos rios
que desembocam nessa costa, a saber:
Correndo costa abaixo, e sobre ela as duas vilas de
Monsarás, e Monforte; ao pé de Monsarás, dentro do rio Maruacá, rio acima, e
para a esquerda dele o Lugar de Condeixa; abaixo da Vila de monforte coisa de 3
léguas, entrando pelo rio Paracauari, ou Igarapé grande, para a esquerda do
rio, a Vila de Salvaterra; defronte de Salvaterra, à direita, o Lugar de
Mondim; e deste mesmo lado à distância de 1/4 de légua a Vila de Soure. Costa acima
de Monsarás para adiante e pouco distante do rio Arari, está o primeiro lugar
de Vilar; e deste, a distância de meia légua, o outro de Ponta de Pedras [a este último, atual vila de Mangabeira, se juntou a
população do Lugar de Vilar]; e pouco mais adiante de um quarto de légua, o
rio Marajó-guaçu, tudo roças de uns, e fazendas de gado de outros.
Na contracosta, a Aldeia de Najatuda [Inajatuba, termo em nheengatu; lugar de palmeiras
inajás], da administração dos de Santo Antônio, passou a Vila de Chaves, a
outra Aldeia que havia dentro do rio Cajuuna acima de Chaves, e, pela esquerda
do rio chamado Santa Ana, passou a Lugar de Parada [talvez em referência ao
sítio de escala para expedições vindas de Belém com destino ao Cabo do Norte]; mas
este lugar se juntou depois, haverá 24 anos à Vila de Chaves, sendo Diretor
desta Vila o Capitão Félix da Silva Cunha.
Se, de todas estas Povoações, tirarmos a soma, e a ela
ajuntarmos o novo lugar que criou o Sr. Capitão General José de Nápoles Telo de
Menezes no rio Paraoaru, da invocação de Santa Ana dos Breves, vir-se-á, no
conhecimento, que são dez por todas as povoações da Ilha Grande, 5 Vilas, e 5
Lugares sem nelas porém se incluírem ainda as fazendas particulares dos que a
cultivam em diversos campos e rios.
Uma coisa não se mudou no meio desta revolução geral,
que foi em cada Povoação
a invocação da Igreja; ficaram todas sendo as mesmas que tinham quando Aldeias:
Nossa Senhora do Rosário a invocação da igreja de Monforte; São Francisco a de
Monsarás; Nossa Senhora da Conceição a de Salvaterra; Menino Jesus a de Soure;
São José a de Lugar de Mondim; Nossa Senhora da Conceição a do Lugar de
Condeixa; São Francisco a do Lugar de Vilar; outra vez a Conceição a do Lugar
de Ponta de Pedras; e na contracosta São Francisco a invocação da Vila de
Chaves e já que tenho entrado insensivelmente nas coisas do Estudo Eclesiástico
desta ilha, principiamos por ele para ir descendo por uma Ordem a todas as
outras repartições, de cada uma das
quais tocarei as notícias mais óbvias.”
Sobre a Cachoeira do rio Arari
“Não falando agora das Missões que hoje são Vilas, e
lugares foi a primeira Igreja Matriz a de Nossa Senhora da Conceição sobre a
Cachoeira do rio Arari, que ainda existe. Corria o ano de 1747 quando veio para
este sítio Florentino da Silveira Frade mudando-se com toda a sua família da
fazenda que possuía, no rio Guamá, para esta outra, que também tinha no rio
Arari; como aqui não achou igreja nem sacerdote que nos dias de preceito
celebrasse Missa, resolveram-se ele, e seu sogro André Fernandes Gavinho, então
Capitão-Mor, e depois Lugar-Tenente do Barão, a pedirem ao Sr. Dom Frade
Guilherme de São José a licença que precisavam para lhes poder Missa a ambas
as famílias o Sacerdote André Pinheiro
de Carvalho, que eles haviam apalavrado. A missa então em um Altar Portátil
que nos domingos e dias santos levantavam sobre a varanda das casas da
residência do dito Capitão-Mor; impetrada a licença, principiou a celebrar o
Sacerdote, e divulgada a notícia da missa certa no Arari entrou o povo a
concorrer para a ouvir: observaram este concurso os impetrantes da licença, e
depois de ambos erigirem uma Capela no lugar, em que hoje está a Igreja Matriz, representaram aos moradores que,
visto terem todos missa tão perto, sem os incômodos de viagens dilatadas, de
razão deviam concorrer para a consignação de uma côngrua [pensão para subsídio do pároco] , em que melhor
subsistisse o Sacerdote... Que se Sua Excelência Reverendíssima fosse servido
acordar o seu beneplácito aí outras suplicar que intentavam, ficaria a Capela
sujeita aos Curas da Cidade respectiva onde cadê cada morador tivesse a sua
residência, que o Sacerdote, em virtude do Despacho que esperavam, ficaria
obrigado a administrar os sacramentos, e ele mesmo os desobrigaria da Quaresma
enviando aos Vigários respectivos da Cidade a relação dos que havia
desobrigado, para, nas suas Freguesias, se darem por desobrigados: Visitou a
Capela o Bispo, e o patrimônio, que se
fez para ela constou de 40 braças de terra em quadro, e umas poucas éguas e
novilhas.
Assim estavam as coisas da Capela do Arari quando o
Sr. Dom Frade Miguel de Bulhões, sucessor do Sr. Dom Frade Guilherme,a foi
visitar: Eis aqui o Prelado, que a erigiu em Freguesia de todos os moradores os
moradores da Ilha Grande de Joanes, excetuando os índios das povoações desse
tempo: deu parte a Sua Majestade e Sua Majestade não foi servida de confirmar a
nova Freguesia, mas, enviando-lhe ornamentos, cálices, castiçais assinou ao
Vigário a Côngrua de 40 réis: foi o primeiro Vigário Colado, que teve o Padre
Pedro Antônio Fernandes Gavinho, irmão que era do Capitão-mor; depois da sua
morte tem disso todos encomendados até o que existe presentemente, que é o
Padre Estanislau da Silveira Frade, filho do Comandante Inspetor Geral, um dos
dois que acima disse que haviam erigido a Capela: é uma Capela, ainda pelo que
respeita à grandeza do edifício, suficientemente paramentada do preciso; tem só
o Altar da Capela-mor, e nela ouvimos Missa dia da Conceição, a 8 de Dezembro
de 83, vindo de volta do Arari para a Cidade do Pará. Já quando veio suceder,
ao Sr. Dom Frade Miguel, o Sr. Dom Frade João de Queirós achou abolidas as
missões, trocadas em Vilas e Lugares as povoações que, espiritual e
temporalmente, governavam os Missionários, nomeado seu Vigário em cada Vila, o que tudo
serviu de facilitar o despacho a nova petição dos moradores da velha Ilha:
Representavam a Sua Excelência Reverendíssima que, morando alguns mui distantes
da Cachoeira, onde estava a Igreja Matriz, com muito mais trabalho vinham a
cumprir com os preceitos da missa, desobriga etc. do que se os deixasse Sua
Excelência Reverendíssima alistar nas freguesias das Vilas que estavam mais
perto das suas fazendas; mandou Sua Excelência que informasse o Vigário, e não
tendo achado circunstância que encontrasse a nova resolução, deferiu aos
moradores como pediam, pagando eles os anuais aos respectivos Vigários, que os
desobrigam.”
Igrejas, Capelas e fazendas
“ Além das Igrejas Matrizes, que deixo especificadas
tanto a das Vilas e Lugares como a de que acabo de tecer a história, conta esta
ilha várias Capelas que estão dispersas pelas fazendas dos particulares.
Principiando pelas que estão nos dois rios, Arari e Marajó-Guaçu: Logo na boca
do Arari, à esquerda [na margem
direita do rio, o autor se refere no sentido de quem chega à Ilha], está a
Capela de Santa Ana, no Engenho dos Religiosos das Mercês, que também tem
Olaria, e roças: aos mesmos padres pertence outra Capela de Nossa Senhora das
Mercês [onde a lenda popular fez habitar uma cobra grande debaixo do altar,
não podendo ser removida a santa imagem sem o perigo da cobra fazer um
terremoto no lugar] perto já do Lago do rio Arari, fazenda de gado vacum, e
cavalar, que ali possuem; acima desta fazenda, à esquerda [margem direita do
rio], a Capela da Nossa Senhora dos Remédios, na fazenda que foi dos
Jesuítas em que contemplou Sua Majestade o Mestre de Campo, José Miguel Aires,
hoje de seu filho, o Capitão Antônio Miguel Aires. No Rio Marajó-Guaçu, rio
acima, à esquerda, a Capela de Nossa Senhora do Rosário, na fazenda algum dia
dos Jesuítas, com que foi contemplado o Alferes Francisco da Costa Almeida e
Silva, presentemente de sua mãe, D. Ana Felícia de Guimarães, segunda vez
casada com o Capitão Bento de Oliveira. Costa acima da Ilha estão as Capelas
seguintes; das Mercês, no engenho e fazenda de arroz, e algodões etc. do
Capitão Agostinho José Tenório; mais adiante a de São Miguel, no engenho do
Mestre de campo Pedro Furtado de Mendonça, ambas filiais a Oeiras; mais
adiante, no Rio Paraoaru, a da Senhora Santa Ana dos Breves, no novo Lugar que
erigiu o Sr. Capitão General José de Nápoles; no rio Paracuari, abaixo de
Monforte, a de Santo Antônio, na fazenda do Capitão José Francisco Fernandes
Gavinho, ambas filiais a Soure, e ambas à esquerda [trecho confuso, talvez
por erro de traslado do texto manuscrito de 1783], rio acima da direita
porém a Capela de São Lourenço na outra fazenda dos Religiosos das Mercês no
Rio Camará, acima da Vila de Monsarás: me esqueci de colocar de Nossa Senhora
de Assunção na fazenda de gado dos Religiosos do Carmo; resulta afinal do que
tenho arengado a tal respeito que são na Ilha Grande, pelo que me lembro: 10 as
Igrejas Matrizes, incluindo as freguesias das Vilas, e Lugares, e a da
Conceição; 11 as Capelas particulares; que quando ao ensino da doutrina,
administração dos Sacramentos e os mais ofícios paroquiais, cumprem com o que
devem os Vigários atuais; suposto que sendo eles, como são, os únicos
Sacerdotes que há, cada um na sua Igreja, e sim, muitas vezes, obrigados os de
uma freguesia irem administrar os Sacramentos a outra: logo que adoece o
Vigário ou tem urgente necessidade de se retirar a Cidade, que não obstante
este auxílio mútuo alguns são dispensados por Sua Excelência Reverendíssima
para nos dias de preceito celebrarem 2 vezes, em ordem a não deixarem de ouvir
missa os moradores que, em conseqüência deste trabalho, forcejam quanto podem
os encomendados por serem rendidos talvez porque não é compensado a solidão em
que vivem, e o trabalho que têm com outra côngrua maior do que é nas Vilas e de
80$réis, nos Lugares a de 60$réis e na Freguesia a de 40$réis: os Capelães
então nas suas Capelas exercitam a jurisdição de Párocos, e nem há outro
recurso. Basta de Estudo Eclesiástico, por agora, porque passo a considerar o
Civil.”
Do governo das Vilas e Lugares sob
regime do Diretório
“Têm todas as Vilas a sua Câmara, a que são sujeitos
os Lugares, o de Mondim, por exemplo, à Vila de Soure, e Vilar [extinguiu-se, localidade próxima à agrovila Antônio
Vieira, sua população foi remanejada para Mangabeira, distrito de Ponta de
Pedras] à de Monsarás: cobra esta Vila além dos subsídios das águas ardentes
[aguardente de cana], que são do Rei, o novo imposto dos alambiques de
6$réis cada ano, que pagam os 10 cong.os [?] a terça parte para El Rei,
e o resto para as despesas da Câmara.
Presidem a cada uma das Câmaras dois Juízes: um branco, e outro índio: às vezes
ambos brancos, três Vereadores que são índios, e brancos, um escrivão sempre
branco, um procurador que na falta do Branco pode ser índio ladino, oficiais de
Justiça como Meirinho, Alcaide, Carcereiro, Porteiro, etc. Figura também entre
estas personagens o Principal dos índios que sempre é índio da família do
primeiro chefe da nação; a eles são dirigidas as Portarias para índios, ele
deve resolver sobre elas com o Conselho do Diretor na forma do Diretório, que
se deve observar na Povoação dos Índios do Pará e Maranhão enquanto Sua
Majestade não mandar o contrário, confirmado pelo Alvará da Confirmação de 17
de agosto de 1758.
Mas se da Letra do Alvará é que aos diretores não
compete por modo algum jurisdição coativa, por ser toda a que lhes confere Sua
Majestade, simplesmente diretiva, como prendem ele à sua voz, soltam, resolvem,
determinam, e o mesmo Principal nada faz senão o que eles querem que faça? O
fato é este: a escusa do fato é a ignorância que alegam no Principal: as
coisas falam por si (grifei),
e eu deixo o Estado Civil para ponderar o Militar.”
Os escrúpulos do sábio de Coimbra diante do Diretório
local já dizem tudo. Em 6 de junho de 1755, o governo de Lisboa tirou das
Missões a competência sobre assuntos indígenas. O motivo foi o conflito
particular entre o governador Mendonça Furtado e os Jesuítas, como já foi dito.
Mas, havia também mais sérios antecedentes políticos e ideológicos na Europa,
dos quais não se pode isentar completamente a alta hierarquia da Igreja
Católica romana nem justificar os abusos cometidos pelo orgulhoso e vingativo
Marquês de Pombal.
O Diretório dos Índios tinha diretores
nomeados entre militares e civis de confiança do governo para exercer o papel
antes dos missionários. Não houve e nem podia haver a mínima preparação para
esta mudança. Uma vez que o diretor cuidando do governo da aldeia “elevada” por
decreto à condição de vila devia ser assistido por câmara de vereadores brancos
e índios, estes últimos através de Principais (chefes), mera formalidade que
não encontrava na realidade prática nenhuma.
As freguesias
recebiam vigários ao gosto do governo e o vice-governador era o bispo dom
Miguel de Bulhões, inimigo da Companhia de Jesus. Ainda assim, surgiam
conflitos entre vigários e diretores de índios. Estes índios vexados por todos
os modos, guardavam ressentimentos ferozes. Sua descendência, os “caboclos” (da
Língua Geral, na acepção de “saído do mato), criou-se na
esperança da desforra. Os ecos da invasão de Caiena por tropas paraenses a
mando de Portugal, quando de seu regresso em 1817, iria agitar esses espíritos
refratários à civilização ocidental. Os descendentes de chefes indígenas,
aculturados e explorados pelos brancos, iriam ser caudilhos de agitações e
motins políticos no Pará insuflados pela notícia da Confederação do Equador, em
Pernambuco (1817), da Revolução liberal
do Porto (1821), do “Grito do Ipiranga” (1822), Adesão do Pará (1823), a tomada
de Belém pelos cabanos (1835)... A crônica de um desastre anunciado, que a paz
de Mapuá (1659) – apesar dos pesares –
teria conseguido evitar o pior: o precoce genocídio dos Nheengaíbas. E a
conseqüente e previsível perda da Amazônia por Portugal em vantagem da Holanda,
provavelmente chamada a lutar em socorro de seus aliados indígenas desde o
Amapá, dizimados pela “guerra justa” total.
O Estado militar do Marajó 1783
“Advirto em outra parte que, no tempo dos Barões, e
sendo um deles Luís de Sousa de Macedo, além das justiças que punha, nomeava
também o Capitão-Mor, Sargento-mor Ajudante, e mais Oficialidade para o comando
da Ordenança que ainda não era fardada, antes para os alardos [revista de tropa] marchava cada soldado como
muito podia, e lhe parecia; neste pé se conservou a ordenança desde esse tempo,
sem nesta parte mudarem coisa alguma os Senhores Capitães Generais, o Sr.
Francisco Xavier de Mendonça, e Bernardes de Melo, até que a tudo deu uma
volta, o Sr. Fernando da Costa; formou das Ordenanças que havia uma Companhia
de Cavalaria auxiliar de Voluntários criando logo o seu primeiro Capitão, que é
no dia de hoje; constava a Companhia de 100 homens, todos montados, vestidos e
armados à sua custa, com fardamento de casaca parda, canhões [manga
sobreposta ao dólmã de fardamento ou cano de bota], e veste amarela
(agaloadura de ouro nos Oficiais).
Não se contentou com isto o Sr. João Pereira Caldas, e
em vez de 1 Companhia criou 4,
a saber: conservou a de Cavalaria auxiliar, que achou
feita mas aboliu-lhe o título de voluntária. Criou 2ª Companhia de Infantaria,
também auxiliar, e de ambas as Companhias fez Capitão ao Comandante Florentino;
reforçou estas duas Companhias auxiliares com a criação de outras duas de
ordenança franca, com seus respectivos oficiais, com a diferença, porém, que as
3 primeiras companhias de auxiliares, uma a cavalo e outra a pé, constam de 100
homens cada umas, incluídos os oficiais, e as outras 2, de ordenança franca, de
150 cada uma, de modo que a soma total da gente monta a 500 homens, e todo o
Corpo intitulado “Tropa Ligeira Auxiliar”.
Mandou-se, desta feita, o uniforme de umas, e ordenou-se novo para as
novas Companhias; o que se ordenou à Companhia de Infantaria auxiliar foi casaca
e calção pretos, veste, canhões, e gola encarnados, botinas e cartucheiras nos
soldados, agaloadas de prata as casas e
golas dos oficiais, da mesma prata é toda em roda agaloada a farda dos Oficiais
de Cavalaria cujos soldados, sim, têm as casacas e os calções pretos com golas,
e canhões encarnados como a infantaria; mas a veste é branca, trazem suas
bandoleiras, calção, botas leves; e tem exercício de dragões; não sentam praça
nestas 2 Companhias senão brancos, e mamelucos, todos fardados, e todos em com
armas; frutificaram tanto em ambos os repetidos exercícios que se fizeram no
tempos do Sr. João Pereira Caldas, que no manejo, fogos, e mais evoluções
militares puseram-se tão prontos, como a tropa regulada; de cuja observação o
que se concluiu foi que em cada anos para adiante se fizessem 4 revistas
gerais: a 1ª na Páscoa, a 2ª pelo Espírito Santo, a 3ª em 21 de Setembro, e a
última pelo Natal. Presentemente, com o aumento da Ilha, cresceu a necessidade
de Capitães para as duas Companhias porque não podia assistir a ambas o Capitão
Florentino; por este motivo foi o Sr. José de Nápoles?(sic) Segundos Capitães a
cada um dos que conferiu o exercício do seu posto, ficando o Capitão Florentino
Comandante do Corpo. Está sempre municiado de pólvora, bala, perdigotos [certo tipo de chumbo para caça], pederneiras [pedra
de isqueiro para espoleta] de que tudo está entregue ao Comandante, e assim
o arrecada em seu quartel de Monforte.
No tocante às outras duas Companhias de Ordenança
Franca os oficiais é que vestem o mesmo uniforme que os da Infantaria auxiliar.
Por mais ordens que se tenham passado a respeito dos soldados sempre aparecem
como podem, ou querem, já com armas, já com flechas, os tapuias, pretos forros,
mulatos, cafuzos, caribocas, etc. Têm eles a obrigação de, sendo chamados pelo
seu comandante, aparecerem sempre com o seu remo porque devem estar prontos
para as diligências marítimas. Ora, além de todas estas 4 Companhias, há nas
Vilas e Lugares ordenanças de índios com seus oficiais de Capitão para baixo,
porque só em Monforte há o Sargento-mor Severino, e ainda os mesmos postos
estão por prover.
Pelo que respeita à defesa da Ilha no caso de ser
abordada, eu não vejo outros meios, por ora, senão os que costuma praticar a
guerra de estratagema. Em toda a costa nenhuma dificuldade encontra o
desembarque à exceção dos obstáculos que são comuns à nossa mesma navegação.
Uma ou duas fortalezas que houvessem, com impedirem o passo em um ou dois
Lugares não fecham por isso os outros: a povoação da Ilha pela estimativa mais
próxima, e os últimos cálculos do Comandante não passará muito de 4.870 almas
por todas.”
Geografia da insularidade e
alinhavado d’água
“Examinarei agora se,
para crescer a povoação, faltam na Ilha rios, que sirvam para os transportes
dos seus gêneros, se há estes gêneros, ou podem haver com facilidade, se não
tem, enfim, dentro em si mesma tudo quanto é capaz de fertilizar um Reino. Não
entro no detalhe particular dos Rios todos, e Igarapés grandes ou pequenos; por
que só fito a vista nos que ou são, ou se podem fazer mais navegáveis; é posta
esta prevenção.
É sem dúvida que,
entre os muitos rios que a retalham, tem o primeiro lugar o Arari: fica
fronteiro à Cidade do Pará e engrossa a sua corrente com as águas dos rios
Muirim, Uarumás, Salitre, Cururu, Tucunaré, São José, e Anajás-Mirim, todos à
esquerda, rio acima [margem direita,
de fato]; à direita [margem esquerda] logo da sua entrada deságuam
nele, o Gurupá, Murutucu, Mauá, Guaiapi, sem fazer caso de igarapés que deixo
de contar. Seguem-s,e costa abaixo, o rio Caracará, que recebe as águas dos
outros dois rios Aracaju e Auaí, ambos à direira; depois o Igarapé Tuca, que
chamam o Mututi: mais o Rio Urubucuara, que engrossa com o Mututi, mais o rio
Guajará, e outro Jaburucuara, que engrossa com as águas do Gurupatuba.
Contiuam, costa abaixo, os rios Camará, que recebe
pela esquerda. Rio acima, os outros rios: Quió, e Caraparó; pela direita, o
Marípá [curiosamente, a toponímia
ainda conservava étimos da área guianense, onde, por exemplo, esse Maripá; em tupi Inajá], Turauá,
e Juruba, e rio de São Miguel; depois de Camará o Maruacá [onde se vê da
raiz nuaruaque que vai formar Maruaná, primitivo habitante de Soure], o
Guaruari [observar a desinência “ari”, em aruaque; rio], onde está Condeixa, o Xipocu, ao pé de
Monsarás, o Jobim abaixo de Monforte [observar que, às vezes, se confunde a
antiga Vila de Monforte com a atual cidade de Soure ou Salvaterra, o que fica
claro que não], o Paraucauari, que recebe à esquerda, rio acima,
Jaoitaratuba [Jacitaratuba?], e Carnaoca, e, pela direita, o Maratacá,
abaixo do Pesqueiro que está ao pé do Igarapé Oaitama o rio Cajuipe, por outro
nome Cajutuba [do tupi, “caminho do cajuí” e “lugar de muito caju”,
respectivamente]; assim por diante o Camarupi, o Cambu, que tem uma boca
larguíssima, o Umerituba [Marituba? O mesmo que Umarizal: nossa hipótese
para o nome registrado por Pinzón (1500), “Marinatambal”, melhor grafado Maritambo,
lugar de mari ou umari, em línguas guianenses], e Jarau donde principia a
ponta da Coroa de areia chamada Maguari, e corre ao mar.
Semelhantemente, contracosta acima, aparece o rio
Guaiapoava [este nome tupi parece se
referir aquele povo que habitou o extinto Lugar de Vilar (os “Guaianases”,
ao qual também Vieira fez registro) provavelmente nuaruaque, “Gua” ou “Waya” e
“pó”, semelhante a; mais “aba”, gente], que já tem fazendas de gado, e
reparte um braço que é o chamado rio dos Aroans para a parte do rio Ganhoão [Wayã?
A autodenominação dos Guaianá ou “Guaianases”?]; e o outro braço para a
esquerda em direitura para o Lago Arari [nuaruaque, “ara”, arara; e “ari”,
rio]: segue-se então o Ganhoão, o Cajutuba, o Guarapixi [observar o
hibridismo que se vai desenvolvendo, a partir de nomes aruaques e tupis, devido
à ocupação portuguesa], o Camarão Tuba [lugar de muito camarão,
hibridismo tupi-português], e o furo de Cajuúna [“caju preto”, isto é a
variedade cajuí], que sai ao Rio [dos índios] Anajás, donde se
encaminha até a ponta do Parauaú [o Rio Pará, em direção a Breves, pelo
nheengatu: Pará-Uaçu, Grão-Pará em português]. Recebe o Rio Anajás os
4 rios, que são: o Cururu, o Mocoões, ambos caudalosos, o Ipecaquara, e o
Camotim; nenhum como o Anajás anda mais nas meninas dos olhos do Comandante: é
pelas boas terras que tem para cacauais, cafezais, arrozais, tabacais; produz
excelentes madeiras e nele se puseram três fábricas [barracão para lavrar
madeira] para se tirar o preciso para a fortificação de Macapá: dentro dos
seus matos há muito timbó-titica, timbó-guaçu, e muita casca preciosa, tem
muitos porcos [queixada, selvagem], veados, antas, onças, tigres, e
inumeráveis espécies das outras classes de animais; fica a sua foz defronte do
Macapá, e para lá manda o gado preciso pelas muitas fazendas que dele tem.
Desta foz, deixando à direita infinitas ilhas, e rios, vêm-se até o Paraoaú,
abaixo do sítio do Capitão Prudente Hernandes quase junto ao Tajapuru, caminho
das canoas do Sertão [que subiam o rio Amazonas], e dos que vão para o
Macapá, e aqui faz outra ponta à Ilha de Joanes, voltando-se pelo rio Paraoaú [o
dito Rio Pará], está para baixo o Guajará,e, deixando este, se vai pelo
Mutuacá; e segue-se o Pexiá: depois, costa abaixo, o Paracaúba [Pracaúba, em São Sebastião da Boa
Vista], adiante do rio Mucaná [Muaná?], o Atuá [jacaré, em
caribe], e dentro neste, à direita, rio acima, Anabiju, com águas também do
Tauá; segue-se o Igarapé grande, Pariru [Paruru, banana pacova; em nuaruaque],
despois o rio Marajó-guaçu, que dá o nome a toda a Ilha (grifei), e
afinal o Igarapé-puca que, entrando por ele dentro, fura o rio Arari, e pois
que já estes montam acima de de cinqüenta e tantos rios, sem haver incluído os
Igarapés, examinarei igualmente os Lagos,...”.
Acerca da civilização lacustre
“... que forem mais óbvios sobre a Carta da Ilha, que
a seu modo traçou o Comandante: à direita logo que em se entrando pelo rio
Arari [margem esquerda] ficam os
Lagos de Mortucu (sic), do rio Mauá, do Guaiapi [termo tupinambá
provavelmeten, “caminho do Guaia” / Waya; do povo Cayá ou “Guaianases”?], e
além do Lago grande do Arari; segue-se para o Centro [da Ilha], outro, o
Apeí: segue-se à direita do Lago grande o Lago de Santa Luzia, e, para a
esquerda do mesmo, o de Santa Isabel; da banda do Guajará estão os lagos, do
rio Guaiapaúba, ou rio das Tartarugas, o mesmo Guaiapaúba tem Lago no braço que
chamam rio dos Aroans, e no tempo do inverno se comunica com os Lagos do Bolho (sic),
Mucuon e Cururu, e, por não implicar esta notícia com a outra das situações,
bastará que respeitemos os nomes dos Lagos que têm os rios especificados, como
são o do rio Ganhoão, do Guaiapuca, os dos Anajás, Taraira, e Canga, e
Jacaretuba, e do Camotim, e do Maguari Guicaúba, e do Tucunari, e do Paracuuba,
do Atua, do Marajó-Guaçu, do Jaburaicá, do Quio, e Caraparó, do Tarauá, que se
comunica com o do Jobim, do Jatuba e do Paracauari; e, no centro do rio, os
Lagos grandes das Frecheiras, Laranjeiras e Três Irmãos e Morotim-pecu, e
Jacarés, e Lago de Carnaoca, e do Cambu, e outros, sendo certo que todos estes
e do Arari, e do Guajará são os mais consideráveis pela sua grandeza e
continuação de água que muitos outros; por pequenos, não se especificam na
relação dos Lagos como também pela falta de observação total que, sem dúvida,
os faria montar assim aos trinta e
tantos já indicados. E, suposto que os rios desde o Paracauari, costa acima,
até o Atua à exceção de um, ou dois, todos os mais tinham duas, três
Cachoeiras; estas são tão baixas que, com enchente, se passam; nem do
Paracauari, costa abaixo, até o Maguari, e deste, costa de Amazonas, voltando
sobre a Ilha, a vir buscar o Atua, há mais Cachoeira ou beirada de pedras:
porque desde o Pariru [Paruru, banana pacova], costa abaixo, até o
Igarapé-grande [ou rio Paracauari], abaixo de Monforte [antiga
aldeia de Joanes], é que se observam recifes de pedras, avançadas ao
mar:...”
Sobre a cegueira amazônica
“... em conseqüência de fertilidade, que às terras
comunicam estes rios, tudo produz, e de muito mais produções é capaz a ilha
grande; não quero dizer com isto que toda planta em todo o lugar dela produzirá
tão bem como em outro terreno, que lhe for apropriado. As plantas são como os
animais; têm suas pátrias, escreveu Virgilio; nem toda a terra produz fora do
seu clima: os jardins da Europa, sem embargo disso; que infinidade de grama
para pastos, e das plantas geralmente que são aquáticas não produzem os
alagadiços! Em que se torna o mais
grosso na Ilha: do arroz é fama constante que é mais graúdo, e pesa mais
que o das outras partes porque pesando o alqueire duas, ou três partes em arroz
inteiro de 28 até 30 arráteis [antiga
medida de peso, correspondendo a 429 gramas, contendo 16 onças; 15 quilogramas
aproximadamente], o da ilha grande em igual medida monta no peso até 40: é
este um gênero que cultivam os lavradores, e transportam para a Cidade mas não
cultivam naquela abundância, que deveria resultar de ser esta planta, que, com
preferência a outra, se despreze nos alagadiços nem possuem no seu auge a arte
de, com menos gente, trabalhar muito, parecem-se as suas lavouras ensaios de
agricultura rústica, e acaso é que ainda assim depois de confiada a semente em
um alagadiço que não tratam depois de ser devorado pelos pássaros a maior
parte, são no seu tanto copiosas as colheiras. O que então não faltam, depois
das chuvas, são os pastos para o ado: foi esta uma observação tão constante, e
palpável às mãos destes cegos (frisei) [Alexandre Ferreira,
por razão oposta, século e meio depois repete o tema da cegueira dos habitantes
da região] que não puderam deixar de ceder aos convites da natureza, que
lhes insinuava a criação de gado: o primeiro que situou no rio Arari, fazenda
de gado foi Francisco Rodrigues Pereira: o lugar em que a situou foi logo à
boca do rio para a direita no Sítio que chamam Amanegituba defronte da fazenda
de Santa Ana dos Religiosos das Mercês; situou aqui porque receava entrar pelo
centro onde, informava um dos companheiros, que havia gentio bravo
e homens foragidos (frisei) [índios Aruã, desertores e escravos
refugiados]; vendo, porém, que depois tanto melhores eram os pastos e tanto
mais abundantes quanto mais se chegava para o centro, situou-se mais acima em
algumas 5, ou 6 paragens, como a Cachoeira, o Pau Grande, Santa Rita, Curral de
Meias, São Joaquim e o Lago Pata. Seguiram-se à sua imitação os Padres das
Mercês, os Religiosos do Carmo, Jesuítas e os Seculares [civis, sem
filiação a nenhuma ordem religiosa].
Sete foram as fazendas de gado que na Ilha tiveram os
Jesuítas: 4 no Arari e três no Marajó-Guaçu; das 7 fazendas considerarei as que
tinham no Arari; em primeiro lugar, a saber, a primeira rio acima, é a fazenda
de Nossa Senhora dos Remédios, em que foi contemplado o Mestre de Campo José
Miguel Aires, hoje de seu filho Antonio Miguel Aires; a 2ª, no Igarapé São
José, em que foi contemplado o defunto José Correia de Lacerda; a 3ª a do
Menino Jesus, no rio Mari, à esquerda, em que foi contemplado o Sargento-Mor da
Praça, João Baptista de Oliveira, hoje de seu genro, o Alferes Antônio José
Lima; 4ª, a fazenda da boca do Lago Santo Inácio em que foi contemplado o Sargento-Mor
da Cidade Manuel José Henriques de Lima, hoje de seu genro Sargento-Mor de
auxiliares Carlos Gemaque: além destas 4, farei menção: dos dois retiros como
chamavam, isto é, duas fazendas de beneficiar gado: uma nas cabeceiras do Lago
Nanatuba, em que foi contemplado o Coronel Manuel Joaquim Pereira de Sousa
Feio, e outra, nas cabeceiras do rio Anajás, que deságua no Arari, contemplação
do Sargento-mor José Pedro da Costa Souto Maior. Quanto as três do
Marajó-guaçu, na de São Brás contemplou João Falcato da Silva: nade São
Francisco o Sargento-Mor Domingos Pereira de Moais [erro do texto tipográfico, leia-se Moraes]; na do
Rosário o Alferes Francisco da Costa Almeida da Silva, hoje de sua mestra Dona
Ana Felícia de Queirós, que já acima disse, que casou segunda vez: Não falo da
fazenda de Santa Ana, entre as que possuem na Ilha os Religiosos das Mercês
porque só consta de olarias, roças e não tem gado: acima do rio Arari um bom
espaço para a direita tem a fazenda de gado de São Jerônimo; seguem-se adiante do
mesmo rio a de São João, e de Nossa Senhora das Mercês, que é fazenda grande:
antes do Lago, para o lado esquerdo, a de São Pedro Nolasco, e no mesmo Lago a
fazenda grande de São Miguel. Nas cabeceiras do rio Guaiapi, que desemboca no
Arari a de São José: no Rio Paraucauari [confrontar grafia anterior, Paracauari;
a terminação “ári” é típica das línguas de tronco Arwak, com a significação de
rio], rio acima, à direita as de 2 de São Lourenço, e Santo André; mais dois
retiros, o de Santa Ana, e o outro do Lago de Guajará: estas são as que existem
porque, para as fazerem maiores, incorporam com elas as terras das 7 que
demoliram; a saber, a que herdaram de Manuel Alves Rosa, a do Cururu, a de
Santa Maria do Socorro, a do Menino Jesus, a de Santo Antônio, a das Almas, e a
da Conceição da banda e São Pedro Nolasco: a que tinham no Murutucu já a
venderam a Custódio da Silva.
Os que menos fazendas tem na Ilha são os Carmelitas:
das 5, que possuíam, a fazenda da Assunção no rio chamado Jutuba, e outra perto
desta chamada Atuxiá; a que tinham com o nome de Santa Maria já a venderam.
Ajuntando às sobreditas fazendas as outras mais dos
particulares, que todas montam acima de cento e tantas, fica sendo infinita a
soma de cabeças de gado vacum e cavalar, que deve produzir na Ilha: mas produz
ela tantas como pode produzir! Para resolução deste problema eu junto ao meu
papel a cópia do resumo da quantidade de gado vacum e cavalar que ao Exmo. Sr.
Martinho de Sousa e Albuquerque apresentou o Inspetor Geral: Parece que é a
diferença bem notável a que tem 0 3º triano à vista do n.º deste mapa; de modo
que no primeiro triano, a soma total de gado vacum, entre bois e vacas, não
passava de 63.255 cabeças; a do 8º triano montou a 102.337; a do gado cavalar, entre cavalos e éguas no primeiro triano não
passava de 5.018; a do 8º triano montou a 17.352”.
Números que merecem reservas, pois como ainda hoje a
pecuária extensiva nesta Ilha apresenta grande dificuldade para contagem real
dos rebanhos soltos pelos ermos longínquos. Ainda mais naquelas eras! E ainda
mais o componente político, que cercava o seqüestro dos bens das ordens
religiosas e as dádivas do Estado a particulares fiéis ao governo colonial.
Da fabulosa pecúnia das Missões ao
vulgar roubo de gado, por esporte
“Quem viu algum dia a Ilha Grande, quando Sua
Majestade se representava, que eram nela tão numerosas as cabeças de gado, que
salgadas que fossem as suas carnes e remetidas em barris tiraria delas Sua
Majestade as provisões das Armadas; quem vê a fertilidade das terras e
fecundidade dos animais de todas as classes não pode suspender a admiração que
causa o que depois sucedeu. Chegou-se a terrenos de não haver quase gado algum:
enquanto o havia em abundância até era divertimento passar-se do Pará ao
Marajó, e em havendo pólvora e bala durava tanto a caça das reses, quanto a
munição: morta a rês o de que se tratava era de lhe tirar o couro; ficavam as
carnes pelos campos para pastos dos corvos. Os proprietários das fazendas
indiscrimidamente matavam os vitelos e vitelas. Persuadiu-se o administrador
das fazendas das Mercês do Arari, que aos Padres se tomavam as fazendas, e para
lançar mão do gado furiosamente entrou a matar vacas sem deixar recurso à
multiplicação; o tempo em fim que se devia empregar em aumentar as fazendas
começadas, foi preciso consumir-se depois em as restabelecer.
Sentiu de tal modo a Cidade do Pará as conseqüências
destas desordens (frisei), que
foi o Capitão General obrigado a remedia-las; deram-se as providências
precisas, e delas são fruto a conservação do gado, que presentemente há, e a
esperança do que pode haver. É verdade que influem muito na multiplicação anual
dos filhos e conservação dos pais as mudanças dos anos, nas respectivas
estações: se duram muito as secas do verão, como durou esta [o estio de
1783], morre então infinito gado: o que pasta nos sertões das Ilhas tem
sempre pasto, mas morre à sede, porque secam alguns traços e Lagos; o que tem
água nos rios não tem pasto nas beiradas, e morre de fome: uns e outro cansados
de longas marchas em diligência, ou de água os que vem do sertão nos rios,
morrem neles atolados no tijuco: vêm sequisosos, como disse, bebem
imediatamente a água da beirada, está toda enlodada em tijuco, e passam a
procurá-la mais para a corrente atolam-se no tijuco até em cima, constipam-se,
não há ali logo quem os salve, assim morrem muitas reses, cavalos, assim vi eu
desde a fazenda do Arari onde estive até o Lago do rio, para cima de vinte e
tantas mortes.
Eis aqui agora de onde tiram os proprietários a maior
parte das carnes secas que vendem por 1.000 réis: aproveitam-se depois dos
couros e tudo entra na conta das carnes, que remetem para a Cidade: outra coisa
é certa que para o Açougue desta mesma embarcam ainda do Marajó o gado preciso;
nem o que se embarca ordinariamente chega em termos de se matar; quanto à
primeira dizem-me que na carreira do transporte do gado andavam 14 canoas (3 de
[ilegível] e 11 do contrato) ao
presente dizem-me que andam 12,
a saber: 9 do contratador, uma do Coronel Manoel
Joaquim; outra dos Padres das Mercês e a última de Luís Pereira da Cunha; é,
sem dúvida, que a maior canoa dos Padres das Mercês embarca até 50 cabeças, a
tanto não chegam as canoas ordinárias do açougue: Quando na cidade se matam 30,
até 36 cabeças, como agora sucede, padece o povo, que não tem outra coisa de
que se sustente nem ainda que haja é tão barata como a carne; quando à segunda
do miserável estado em que chega o gado eu sou testemunho ocular, porque eu o
vi embarcar no Arari: ainda pastando o gado, pelos campos das fazendas que tem
pasto em que se embarca, a duas, três e mais léguas de distância; do tal porto
vão os vaqueiros nas antevésperas do embarque escolher, ajuntar e conduzir para
os currais do porto as cabeças que hão de embarcar; sequiosas, abafadas e aquiloadas,
chegam ao curral, e se ainda não chegou a canoa nele se demoram sem comer 1, 2
dias. Sem comer se embarcam na canoa onde sem comerem andam 3, 4 dias de
viagem, fora os que tem de espera que as matem no açougue. Custa um boi 2.000
réis no Marajó, e 2.500; uma vaca 1.200, ou 1.600; um garrote 800 réis; mas
cada cabeça que se embarca na canoa do contrato, se bem me lembro, é tomada por
três mil réis em conseqüência do risco; quanto teria trabalhado a Holanda neste
país sobre o sebo, a manteiga, e o queijo: pois gêneros são estes de que apenas
vi aparecerem algumas mostras.
E como não hão de ser férteis estes campos! Pelo
inverno, estercados com o sedimento das águas, que os inundam todos; pelo
verão, com as cinzas das queimadas, que fazem; além da resolução [decomposição] das folhas secas que passam à terra
em um ou outro tempo estrumadas com os estercos de tanto gado; o nitro no meio
destas estercarias tem o seu domicílio; o mato com a facilidade floresce; as
plantas acham a terra substancial, e o que agora é uma roça, daqui a dois anos
é um mato.
Outro gênero na Ilha de notável consumo na Cidade são
as águas ardentes da terra [cachaça]
, que nela se fazem. Nas tais aguardentes consomem a cana toda que
plantam e enchem a boca os proprietários de Senhores de Engenho, não sendo mais
que de engenhocas que nem engenhocas são em comparação com as da Bahia; até é
vergonha dizer-se que em terras aonde se planta cana não há um arretel de
açúcar, que não seja comprado na Cidade: tudo produz a Ilha, Sr. Exmo., nas
terras apropriadas a cada planta; tenho visto de altura de duas vezes pelo
mato: mas ninguém o cultiva: dá-se bem e muito bem o arroz, que já falei em
outra parte: o algodão, o cacau, e o café, o urucu, o tabaco; de todos estes
gêneros a agricultura do país, quando muito, o que apresenta são algumas
amostras: para que mais, se a mesma farinha de que se sustentam é plantada sem
mais custo que o seguinte: queimam o mato, e ficam na terra as raízes das
árvores e ainda estacas das mesmas: por entre estas estacas, enterram no
terreno duro a estaca da maniba, está plantada. Ora quem sabe, como eles, que o
que se quer desta planta são as raízes, sabe também que quando mais movida for
a terra, e suficientemente solta ao plantar em covas como se faz na Bahia, menos
obstáculo encontram as raízes para crescerem em todas as suas dimensões, e
fazer-se, por conseguinte, mais copiosa a colheita; sem embaraço disso, há
curiosos de experiências que plantam o cominho gergelim, de que tiram o azeite
com que frejem [fritam] peixe: e de uma árvore chamada pau de breu
recolhem os moradores de Ponta de Pedra no Rio Atua o chamado breu, que vai
para a sua [ilegível] dos índios e na Cidade vende a arroba por 640 [réis].
Só nas fazendas dos curiosos [experientes] se acha alguma couve, repolho
e poucas outras hortaliças”.
Da fauna marajoara comida pelos séculos
“Nadam nos rios
infinitos peixes-bois, e pirarucus, pirauíbas (sic), arauanas [aruanãs], dourados,
pescadas, mandubés, traíras, jejeis [jejus], acarás, serapós [sarapós],
tamoatás, pirapocus, piranhas, poraquês, aracus, corimatás, tucunarés, anojás
[cachorrinho-do-padre], jacundás, fora os jabotins [jabutis],
tracajás, muçuãs (são cágados) e tartarugas: nas outras classes de animais,
como nas dos quadrupés (sic), tem infinitos morcegos; símios de muitas
castas, tatus, tamanduás, preguiças, quatus [coatis], quatipurus,
mucuras, raposas, onças, porcos bravos [queixada e caititu], e porcos de
espinho [cuandu], antas, capioaras [capivaras], ouriços [o
naturalista confunde, é o mesmo porco espinho], periás [preás;
evidentemente Alexandre Ferreira louvou-se nas informações prestadas por
Florentino Frade e seus subordinados, relevando-se portanto a grafia do ditado],
cutias, pacas, veados, lontras, etc. Entre as aves são notáveis o tijoju [tuiuiú],
jaburu, maguari, urubus pretos, urubus tingas [brancos], as corujas,
mochos [jacurutus], corvos [equívoco, ou talvez se refere ao urubu
jeréua, ou urubu belo], papagaios, araras, tucanos, araçaris, e de papo
branco, e encarnados, as marandubeiras [maracanãs?], amanaciras [curicas?],
tem-tem, guará, jacamins, anus, anumás, imensos gaviões, e pássaros pequenos,
como beija-flores, tiepirangas (sic), cardeais, gaturamas, sanhadus [sanhaçus,
ou suís], viúvas do Brasil (?), etc. Os anfíbios são os maiores; as
cobras socuruju [sucuriju], jibóia, e o jacaré, a que acompanham outros
lagartos, insetos, e vermes são a praga do País”.
700 almas do Pesqueiro Real a ver navios encantados
“Tais são as produções
que pude observar de passagem pelo espaço de 23 dias que estivemos na Ilha
Grande demorando-nos somente na Vila de Monforte, e na fazenda do Arari;
consumiram-se em viagens enfadonhas pela costa, pelo rio Arari; daí volta os
dias que restam para completar os que contamos desde 7 de Novembro, que embarcamos
para Monforte até 10 de Dezembro que desembarcamos no Pará. Não deixei de notar
a perspectiva da Vila de Monforte pelo seu exterior assim como a olhei pelo seu
físico. Está situada sobre a costa e olha para o Canal da Cidade. Nele observa
os navios, que demandam o porto do Pará, e da Vila expede o Comandante uma
canoa de aviso ao General dando-lhe parte do Lugar em que descobre o navio, do
seu tamanho, e o mais que pode observar: conta por todas 700 almas; dá aos
índios precisos para o contrato de pesqueiro real que tem ao pé, onde se pescam
infinitas tainhas, além das gorujubas [gurijubas],
e mais peixes da Costa; os índios desta Vila são geralmente tidos por mui
forçosos, industriosos, e trabalhadores, mas tem sido tantas as Portarias a
tirar os índios da Vila para serviços particulares, tão penoso o trabalho do
pesqueiro (frisei) que leva quase os homens capazes de trabalho da
Vila, que não mentirei se disser, que nem tempo tem para do pesqueiro virem à
Vila a levantar as suas choupanas caídas, para cuidarem das suas roças. As
doenças não são muitas, nem as que há, passam pela maior parte de constipações,
ainda pelas outras partes da Ilha reinam particularmente as doenças
inflamatórias com as mais que resultam da atmosfera quente, e úmida diariamente:
Os índios também não sabem nem alguém os ensina a corrigir de algum modo os
defeitos naturais do clima, e ainda que o soubessem não podem agora cobrir as
suas choupanas tão baixas, e rente com a terra úmida, e, no inverno, alagada,
quanto mais levantar as choupanas, assoalhá-las, e prevenir por outros muitos
modos a podridão. Estou em dizer, Sr. Exmo., que mais escravos ficaram os
índios depois de declarada a sua liberdade do que antes da declaração
(frisei) [Alexandre Ferreira se refere à lei de liberdade dos índios, com que o
governo de Pombal justificou a dissolvição das missões e expulsão dos Jesuítas;
dando origem à servidão do Diretório dos Índios]. O Sr. do índio
(escravo, “negro da terra”) zelava na sua vida o seu dinheiro: hoje não
importa que adoeça, que morra, que estoure de trabalho, porque nisso de ele
trabalhar ganha o Contratador, o Diretor, o Juiz, etc.; de ele morrer ninguém
perde, porque vem outro, e quem perde hoje um, amanhã outro é, Sua Majestade
que nem conserva as Vilas, nem até ao presente experimenta as atitudes que há
muito deviam ter resultado dos seus muitos altos desígnios.”
Teoria da cobra grande: ou a notícia do rio Arari
“Concluirei esta
representação, que seria inifinita a escrever tudo o que observei, dando a
Vossa Excelência uma sucinta notícia do Arari: É o rio mais complicado, com
voltas e rodeios, que espero ver, de modo que para, de sua boca subir-se ao
Lago, é mais o tanto que se gasta em desandar as voltas andadas do que
avançar-se adiante; pela sua beirada de uma a outra parte estão sitas muitas
roças, e engenhocas de açúcar para as águas-ardentes que tiram, e fazenda de
gado vacum e vacalar: É galante a teoria do rio que ouvi a um índio sendo
perguntado pela razão daquelas voltas, e portanto escrevo: A Ilha no seu
princípio, diz ele, não tinha estes rios mas tinha pela terra dentro infinitas
cobras: estas obrigadas das secas corriam do centro para a costa a buscar a
água: no caminho que faziam de rastos pela terra deixavam com o peso e grandeza
dos corpos impressas nela as suas figuras, assim mesmo tortuosas, e implicadas
em torcicolos, como elas são.Caíram as águas das chuvas sobre este rasto que
achavam feito, e no seu princípio abriram regatos: engrossaram depois os
regatos, e ficou sendo total o grande rio o que não fora, no princípio, mais
que um regato da grossura de uma grande cobra.”
Potomografia
“Tenho dito, em outra parte, quais são os rios que desembocam neste [rio Arari] e qual a situação da sua boca a
respeito da Cidade do Pará: é bastante muito largo à entrada, e estreita
depois; mas nunca tanto, que por ele deixem de navegar as maiores canoas de
gado; recebe as marés da costa até junto ao lago, ou ao mesmo lago aonde são
menos sensíveis: todo o seu fundo por baixo desde São Pedro Nolasco para cima é
tijuco: monta com as enchentes das águas acima das terras, e vai tingir os
toros de paus, e troncos das árvores da beirada: quando principia a chover, as
águas do rio Anajás [refere-se ao Anajás-Mirim, o qual por sua vez conflui
também com o Anajás Grande na estação da cheia], que desemboca no Arari, em
vez de buscarem a boca deste rio sobem para o seu lago [este fenômeno se
deve ao fato de que a Ilha tem configuração de um prato, com suas bordas mais
elevadas do que o centro do qual o Lago é precisamente a parte mais funda] a
inundá-lo, e só depois de superabundar bem a água é incorporado com o Arari
desde o Anajás; o que procede de ser mais rebaixada a terra para o Lago. Já da
fazenda de Nossa Senhora das Mercês [aqui o folclore marajoara fez morar
debaixo da capela a cobra grande, que não pode ser retirada de seu altar a
imagem de Nossa Senhora sem perigo de terremoto devido à revolta da dita cobra],
para baixo, algum pedregulho se encontra tinto de ferro, e argila corada diversamente
da qual fazem as panelas, potes, e outros vasos grosseiros (frisei)
[informação interessante à hipótese do encerramento da fase arqueológica
marajoara ter conotação com a invasão dos Aruãs e deslocamento dos grupos mais
antigos como os Joanes (Sakaka) ou Yoana para a costa sudeste da Ilha,
dita Costa-Fronteira do Pará na
crônica do século XVIII, distante de jazidas de argila usada na fina arte cujo
apogeu se situa próximo a 1300: a falta de matéria prima somada à perda de
território e deslocamento forçado dos construtores dos tesos e cultura lacustre
dos campos inundáveis com a perda das reservas de peixe do mato, poderia talvez
ser uma pista a mais para entender o fim daquela célebre fase].
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