segunda-feira, 19 de novembro de 2012

NOTÍCIA HISTÓRICA DO MARAJÓ









“Notícia Histórica da Ilha Grande de Joanes ou Marajó” (resumida)

Alexandre Rodrigues Ferreira
    Comentada por José Varella Pereira


Posfácio duma margem, prêambulo da outra

       Encerra-se aqui nossa Breve História [Nota: apêndice do ensaio “Breve História da Amazônia Marajoara”] pelo acréscimo de versão resumida da Notícia Histórica de 1783 com que o naturalista luso-brasileiro Alexandre Rodrigues Ferreira iniciou a monumental Viagem Filosófica na Amazônia portuguesa. A primeira é um olhar "nativo" através de frestas da memória, de dentro para fora da Ilha grande do rio-mar (49.602 km², um território insular maior do que a superfície dos Países-Baixos, parte da mesorregião Marajó formada por três microrregiãos - Arari, Furos de Breves e Portel - no arquipélago e faixa continental ribeirinha da margem direita do Rio Pará somando 104 mil km², entre as respectivas bocas dos rios Xingu e Tocantins).

       Sem adentrar à época contemporânea (geralmente tratada separadamente na história de cada um dos 17 municípios da região, inclusive Oeiras do Pará que o IBGE tirou do Marajó), quisemos entretanto preencher lacuna sobre as possíveis origens da gente marajoara. O fim do mundo de Analáu Yohynkáku (nome aruã da ilha do Marajó, conforme Domingos Soares Ferreira Penna). Este texto, metaforicamente "pré-histórico", não pretende ser completo: ele apenas junta cacos do tempo e espaço marajoaras como um convite à pesquisa histórica profunda e mais abrangente, com que se há de descobrir toda importância da maior ilha marítimo-fluvial  do planeta e seu povo extraordinário. O qual - por necessidade e acaso - conquistou a nacionalidade brasileira e ainda continua pelejando em busca de cidadania plena no seio da República Federativa do Brasil.
Marajó é uma das regiões amazônicas das mais notáveis por natureza e cultura. Neste sentido, esta Breve História assume papel de manifesto e até mesmo de panfleto político em favor do reconhecimento, sem ambigüidades, da especificidade e autonomia do povo marajoara. Uma primeira vez demonstrada no século XVII, quando da Restauração da independência de Portugal. Nos episódios relativos ao acordo do Rio Mapuá 1659 após 44 anos de guerra de conquista do rio das Amazonas desde a tomada de São Luís do Maranhão, em 1615, uma situação inacreditável. Onde o comércio e amizade dos marajoaras com mercadores holandeses e britânicos foi trocada pela opressão dos portugueses escravistas do Grão-Pará. Essa adesão do Marajó dramática e aparentemente absurda ao domínio português, a fim de reconquistar a Terra-Firme perdida diante da invasão do inimigo hereditário Tupinambá; foi reiterada no século XIX. Com a proclamação de Muaná, em 28 de maio de 1823, desta feita trocando a soberania de Lisboa pelo império brasileiro no Rio de Janeiro.

A lógica geopolítica dessa extraordinária fidelidade das gentes das Ilhas a Terra Firme, acredito eu, explica o absurdo abandono de um longo relacionamento pacífico e vantajoso de sessenta anos (1599-1659) de duração com colonos holandeses e britânicos, a troco do arriscado convívio com inimigos brutais para fazer cessar quarenta e quatro anos hostilidades e má vizinhança entre as duas margens do Rio Pará. A fatal atração do continente sobre as ilhas tem, provavelmente, explicação nas migrações pré-colombianas das Antilhas para as Guianas e o delta-estuário do Amazonas. Onde a constelação do Cruzeiro do Sul (Arapari) teria sido guia às migrações maritimas; como, inversamente, o pouso do sol atrairia tupinambás de Pernambuco e Paraíba para o "rio das Amazonas". Quer dizer, afinal de contas, a chave da amazonidade acha-se antes no céu e nas águas do que em terra... Penso que tais movimentos à margem da história oficial podem ser a grande descoberta da Amazônia pós-colonial no século XXI.

       O segundo texto é olhar externo: o viajante do século das Luzes descobre a ilha grande das Amazônias. Trata-se da perspectiva iluminista do autor de a Viagem Filosófica que também, de certa maneira, corresponde ao papel de porta-voz ou alter-ego do comandante Florentino da Silveira Frade (provavelmente, autor anônimo da primeira Notícia da Ilha Grande de Joanes, datado da metade do século XVIII; quando ele inspecionou a ilha do Marajó para realizar o inventário das fazendas, em 1759, a mando do governador Mendonça Furtado a fim de promover o seqüestro dos bens da Companhia de Jesus).

Importante também na Notícia Histórica de 1783 o depoimento do sargento-mor Severino dos Santos, índio sacaca aportuguesado, registrado escrupulosamente por Alexandre Ferreira. Quero crer que na toponímia marajoara o "Igarapé do Severino", que desagua no Lago Arari e tem cabeceiras nos campos baixos tenha seu nome como recordação das andanças do guia do Inspetor Florentino. Elo de antiga aliança entre as mais velhas etnias insulanas e os portugueses do Pará contra os Aruãs bravios e as penetrações estrangeiras através do Cabo Norte (Amapá). O sargento-mor da vila de Monforte era descendente de antiga nação contemporânea da "fase" arqueológica marajoara, segundo consta. Ele dizia ser de etnia Iona (Joanes) por autodenominação ou Sakaka por apodo de índios camaradas na construção da fortaleza da Barra (1686). 

Dois olhares que se cruzam e ampliam a visão dos acontecimentos vistos de perspectivas diferentes. Mas, a Notícia Histórica recuperada pelo zelo do professor Miranda Neto logo recaiu ao anterior esquecimento deste antigo drama da carência de divulgação. Por isto, nossa humilde iniciativa de complementar a Breve História com extrato da Notícia Histórica .

Relatos de viajantes e exploradores da época dizem que os indígenas da região quando chegavam forasteiros às aldeias, entravam depressa as suas casas e de dentro destas os observavam atentamente através das frestas. Assim também nossa breve história das Ilhas do fim do mundo... Um olhar talvez “naif”, porém comprometido com o interior da ilha grande. Uma visão que cruza diversos olhares sobre o fenômeno do ilhamento do mundo e o estranhamento do outro. Sem dúvida, a ótica principal é a Notícia Histórica que  Alexandre Rodrigues Ferreira (1756-1815) endereçou a Europa iluminista conforme o espírito das viagens filosóficas (exploratórias). A notícia do século XVIII hoje ajuda a ver a Amazônia sob uma perspectiva dominadora. Às vezes míope. Serve, sobretudo, para enxergar, pelo retrovisor, conseqüências que a insularidade escondeu. 

Nosso desejo é que o cruzamento destes olhares ajude o leitor a compreender o espaço-tempo regional, acima da cortina de mangais e do labirinto de igapós e mondongos. O texto a seguir foi condensado daquele que o professor Miranda Neto recuperou em separata da Revista do Livro, em setembro de 1964. 

Resolvi subdividir o texto supracitado, assim ele perde originalidade, mas tem a vantagem de despojar detalhes menos significativos para destacar trechos mais interessantes para a atualidade.

Nota acerca da autoria da primeira Notícia biogeográfica do Marajó

O leitor não deve se despedir de Alexandre Rodrigues Ferreira sem agradecer a Florentino da Silveira Frade e ao sargento-mor Severino dos Santos. Fique certo de que o sábio da Viagem Philosophica não poderia, em menos de um mês entre novembro e dezembro de 1783, dar notícia extensa e pormenorizada como a que apresentou tão rapidamente, sem ele ter ao seu lado estes dois homens providenciais durante o 'vestibular' do alto curso que iria empreender nos sertões do Grão-Pará e Rio Negro. Era natural, portanto, que fosse assim: o Marajó era (e ainda é, de certo modo) portão do rio das “Almazonas”...

            Creio que o autor anônimo da “Notícia da Ilha Grande de Joannes” a que se referem Dante Teixeira e Nelson Papavero em “O novo Éden”, edição do Museu Paraense Emilio Goeldi: Belém, 2002; seja provavelmente o inspetor-geral da Ilha, Florentino da Silveira Frade. Ninguém mais que ele tinha na época percorrido toda extensão insular no trabalho que, em 1759, resultou no inventário dos bens da missão dos Jesuítas o qual lhe incumbira o governador do Grão-Pará e Maranhão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, irmão do poderoso Marquês de Pombal. Evidentemente, o trabalho teve caráter sigiloso o que explica que tenha ficado sem divulgação e em anonimato durante tanto tempo. Como Alexandre Ferreira informa, Florentino Frade era fazendeiro no rio Arari quando, vindo das terras que ele teve no rio Guamá perto de Belém, levantou a capela de Nossa Senhora da Conceição no lugar da Cachoeira do rio Arari. A freguesia de 1747 que hoje é cidade de Cachoeira do Arari na evolução das primeiras fazendas de gado a partir dos currais que, em 1680, Francisco Rodrigues Pereira fundou no dito rio. Portanto, Florentino já se achava instalado com sua família em Marajó antes da expulsão dos Jesuítas, no século XVIII. Um homem talhado para informar o governo sobre o que se passava no interior da vasta ilha da foz do Amazonas.

            A família Frade é uma das mais antigas da Ilha do Marajó, desde fins do século XVII, originada dos frades das Mercês (engenho de Sant’Ana e fazendas do Arari), irmãos leigos que não estavam obrigados ao celibato do clero, muito especialmente nas circunstâncias da catequese católica e colonização de territórios extremos da conquista hispânica. Convém não perder de vista que a ordem Mercedária chegou ao Pará através de Quito (Equador) no regresso da viagem de Pedro Teixeira, em 1639, e que Marajó caia nas raias de Castela até 1750, com o final reconhecimento espanhol do “uti possidetis” real português pelo tratado de Madri.

Assim, a escolha de Silveira Frade pelo atento Mendonça Furtado para inventariar o patrimônio das fazendas dos Jesuítas para ser expropriadas e doadas a homens-bons, conhecidos na historiografia paraense como os Contemplados; correspondia à necessidade do governo de Pombal. Seria necessário um homem-bom imune à influência jesuítica e com bastante intimidade com o terreno ainda desconhecido em maior parte. Daí por que o consideramos o provável autor anônimo da Notícia da Ilha Grande de Joannes (1756?), antecedendo à Notícia Histórica de 1783. Nesta última, por exemplo, informa-se que o Inspetor achou o teso (sítio arqueológico de Cultura Marajoara) “Pacoval” do rio Arari, no dia 20 de novembro de 1756; o primeiro constante de fonte para história: razão pela qual nós temos proposto registro oficial considerando esta data como Dia Nacional da Cultura Marajoara, coincidente ao Dia Nacional da Consciência Negra (lembrando, aliás, que os primeiros “negros da terra” (escravos indígenas) da América do Sul, foram arrancados da ilha do Marajó pelo espanhol Vicente Pinzón, em janeiro de 1500.

            Ademais, detalhe importante: as rivalidades internas na ilha do Marajó. Enquanto, os padres da Companhia de Jesus tinham sua força de trabalho em índios cativos nas fazendas de gado e trato corrente com as etnias Aruã e seus belicosos parentes da Contracosta; os frades Mercedários possuíam escravos negros e se relacionavam às vezes com os índios Sakaka ou Yona (Joanes) da costa-fronteira aliados aos portugueses e rivais tradicionais dos Aruã invasores de terras ancestrais desses grupos mais antigos da ilha grande. A considerável amizade entre o Inspetor-Geral Florentino e o Sargento-Mor de Monforte, Severino dos Santos, (índio joanes) esclarece esta relação especial na Notícia Histórica.
            Precisa-se ver como indígenas hostis à colonização – confederados em torno dos Anajás (índios Mocoões, donde se formou o termo mucuagem, costume de roubar gado) e dos Aruãs, sob nome genérico e pejorativo tupi nheengaíba, “falante da língua ruim” –  se aliaram aos Jesuítas como seus defensores diante de colonos escravistas aliados ao inimigo hereditário Tupinambá. Os Joanes (Iona), mais antigos na ilha que os Aruãs, segundo relato do velho sakaka, foram empurrados dos centros da Ilha para a costa-fronteira (municípios atuais de Soure, Salvaterra, Cachoeira do Arari e Ponta de Pedras). Creio assim que a conexão entre arqueologia e antropologia, e de ambas à história; revelaria o fato da famosa “fase” cerâmica marajoara corresponder talvez ao apogeu do povo Iona (Joanes). Para tal hipótese, a preciosa informação de Severino dos Santos se tornaria uma verruma deveras interessante.
Assim como o relato do naturalista de Coimbra em 1783 apontada ao papel essencial de Florentino Frade, da mesma maneira custa crer que a inspeção deste último pudesse ser cumprida sem o conhecimento de índios amigos tais como o sakaka Severino dos Santos, por exemplo. O informante de Alexandre Ferreira aponta a lugares conhecidos na geografia local, donde os antigos Iona (joanes) foram desalojados por invasores Aruãs vindos das Ilhas de Fora (Bailique, Viçosa, Caviana e Mexiana) para a costa norte da Ilha, desde o ano de 1300 em diante. Além de efetuar incursões e assaltos até Barcarena e o rio Guamá, às ilhargas da Cidade do Pará (Belém).
Porquanto o texto parece complicado sem auxílio de uma carta geográfica razoável, uma excursão detalhada no terreno poderia esclarecer a questão. A geografia de Marajó tem duas faces distintas a cada ano: o estio, de junho até dezembro; e a estação das chuvas, de janeiro a maio. O verão reduz distâncias  a trote de animais de montaria (modernamente, com uso de veículos motorizados). Mas, ao mesmo tempo o verão dilata as distâncias às embarcações. Já o inverno, pelo contrário, emenda todas as águas e deixa fazendas ilhadas debaixo do dilúvio de todos os anos. Então, no tempo da chuva  é a vez das canoas...
A geografia anfíbia explicará talvez a toponímia aparentemente sem nexo. Como seria possível? O fato de ter existido um notável personagem como Severino dos Santos (pode-se dizer, Severino Yona), "índio principal" (cacique) dos Joanes ou Sakakas, ao mesmo tempo Sargento-Mor (major de milícia) do destacamento da Vila de Monforte (aldeia de Joanes) e a toponímia do importante Igarapé do Severino, que comunica no inverno o Lago Arari (a dizer o berço daquela civilização marajoara esquecida) com o Igarapé Goiapi (“caminho dos Cayá” (?), povo que teve aldeia onde foi a vila Monsarás, causaria maior curiosidade à medida em que as coisas marajoaras fossem re-suscitadas.
Esta "cartografia" arcaica que se esconde à sombra da crônica colonial e nas esmaecidas lembranças do povo, apontaria aí uma mera coincidência de nomes ou, pelo contrário, uma notícia importante para resgate da etno-história marajoara? O leitor deve ser informado do fato de que além de um extraordinário ecossistema que desaparece e renasce em ciclos curtos, de seis em seis meses; há no curso aquático Goiapi - Severino sítios arqueológicos importantes como Pacoval (o mais antigo e conhecido "teso" de camutins) e o teso dos Bichos. Claro indício de uma área cultural importante na ilha do Marajó.
       É dizer (por hipótese bem provável): durante as cheias que alagam os campos o sargento-mor que talvez na sua infância escutou falar ainda da legenda heróica do temível tuxaua aruã Guaiamã, inimigo hereditário dos Joanes ou Sakaka; buscava varadouros (atalhos) deixados pelos seus avoengos para ir com menos risco aos lugares ancestrais perdidos diante da invasão dos aruã. Entre outros, o lago Guajará sagrado pela encantaria dos pajés e o teso do Pacoval ("bananal"), onde repousam os mortos ilustres da cultura marajoara: daí por que acredito que esse caminho dos Yona/ Cayá/ Maruaná/ Guaianá e mais velhos “marajoaras” tomou nome de Severino em memória àquele que mais conhecia o velho caminho do passado de sua gente. Dado, talvez, por algum branco sertanista de sua intimidade. O qual tendo o velho índio por guia, aprendeu atalhar os campos alagados para encurtar o caminho do Arari (cheios de voltas e perigo das incursões dos Aruã bravios vindos da Contracosta pelo igarapé (hoje canal) Tartarugas), sem levantar suspeitas. Alguém, por exemplo, com o perfil do Inspetor-Geral encarregado pelo governo de inventariar as fazendas das Missões prestes a ser seqüestradas por Pombal e determinar a expulsão dos Jesuístas do Pará.
Águas e campos que se emendam e se separam, temporariamente; neste  instável e mutante chão marajoara.


Viagem filosófica começa pela maior ilha marítimo-fluvial do mundo

            “... pelas 11 horas da noite do dia 7 de novembro [1783] embarcamos desta Cidade do Pará para a Vila de Monforte [antes aldeia dos Yona ou Sakaka, aportuguesada Joanes, com 700 habitantes, hoje distrito de Joanes, no município de Salvaterra]. Dias antes me havia participado o mesmo Sr. General [Capitão-general Martinho de Souza Albuquerque, governador do Pará], que devendo nós, para abono de nossas diligências, remeter logo na Charrua [barcaça de transporte marítimo] as produções [coletas que o naturalista estava encarregado de fazer], que soubessem da brevidade do tempo, em nenhuma outra parte as acharíamos tão prontas como na Ilha Grande de Joanes, para onde nos acompanhava o seu Inspetor-Geral Florentino da Silveira Frade. [...] A estação para a viagem era a mais própria [o verão amazônico, ou estio] ... : Com vento de servir, maré vazante, apenas largamos o porto da Cidade, deixamos à direita da ponte do Continente, a vila de Pé na Cova, que distará coisa de meia légua. Seguiu-se a Fazenda de Val de Caens, onde possuem os Religiosos das Marcês um engenho de descascar arroz, olaria, fornos de cal, arrozais, roças de maniba [maniva, mandioca, Manihot utilissima], e outras lavouras, como café, cacau, etc. Passamos imediatamente a barra depois da qual, se avistam a olaria, e roças do Capitão Antônio de Carvalho, fica este sítio dentro de uma enseada, e também distará da barra coisa de meia légua. A outra distância semelhante deixamos a fazenda Livramento, que pertence aos Religiosos do Carmo, e nela conservam uma boa Olaria. Passada outra meia légua, na ponta da enseada, a que chamam a ponta do Mel, fica a fazenda do Pinheiro [hoje Icoaraci] , que tem boas casas, e boas roças e também pertence aos Religiosos do Carmo: até aqui terra firme do Continente em que está a Cidade. Segue-se então, costa abaixo, e mesmo à direita a Ilha de Caratatuba [Caratateu, ou Outeiro] onde possui Lázaro Fernandes Borges o seu sítio, que consta de roça, e boas casas, em pouca distância do Pinheiro: tal foi a nossa navegação esta noite em que não repontou a maré. Como porém não tardou muito, havendo conseguido os 19 remeiros, que levávamos, paramos na baía de Santo Antônio pelas 4 horas da madrugada do dia Sábado, tomamos terra na ponta da Ilha do Mosqueiro ao norte da Baía de Santo Antônio: aqui nos demoramos até a praiamar. Saltando à terra para, no entanto, reconhecermos as produções mais óbvias.”

 “... tudo tão curioso, que, com algum desgosto, largamos da Ilha pelas 11 horas do dia, por devermos sem perda de tempo lançar mão da maré. Assim continuamos a costeá-la até uma ponta, que toma o seu nome, donde largamos a Vila aproando a Monforte para onde queríamos atravessar porque já passava de meio dia”.

            O leitor acompanha a precariedade das viagens no grande "mar doce”. Totalmente dependente de canoas à vela ou remos movidos a braços de índios e caboclos remadores. No mês de novembro, os ventos alísios na baía do Marajó sopram o Geral, no decorrer da tarde até o pôr do sol. Se essa "viração"  coincide maré vazante, as águas ficam agitadas e se encrespam. A navegação perigosa. Portanto, a canoa grande – igarité – do Ouvidor Geral com os seus passageiros e remadores iria passar maus momentos... 

Sendo curioso que homens experimentados, como Florentino Frade que ia a bordo, não tenham decidido esperar a maré da manhã seguinte. O que talvez indique a habitual obediência desses homens à vontade dos senhores. E o sábio revelava pressa para recolher logo alguma informação, sem perda de tempo, a fim de remeter a Lisboa pela barcaça que estava preste a zarpar.

            “Teríamos com efeito atravessado já uma légua de baía, quando nos saltou o vento à proa, tão rijo e pertinaz que, para escaparmos às Cancras  [pancada de chuva forte] do mar, dentro, na Canoa, resolvemos arribar para a mesma Ilha do Mosqueiro que havíamos deixado: aportamos pelas 3 horas da tarde no Sítio do Capitão José Joaquim Henriques de Lima, e nele desembarcamos. [...] pelas ave-marias nos recolhemos à Canoa, onde dormitamos um pouco à espera da vazante, para com ela largarmos, como largamos, aos 3 quartos para uma hora da noite.

            Eram por este tempo, em conseqüência da Lua, as cabeças de águas, como aqui chamam os práticos: venta de terra um vento fresco; estavam bem fundadas as esperanças de felizmente atravessarmos a baía: esperanças então, que, em pouco menos de uma hora, todas se trocaram em sustos no meio de perigos, que até aos mesmos práticos atemorizaram: tinha a canoa uma proa tão baixa, que cada Cancra a soçobrava: de muito e muito fez-se tão rijo o vento, com trovoadas secas, que o podiam sofrer as velas: mais de três vezes adormeceu de todo a embarcação, que pela furiosa impressão do vento sobre as velas era arrancada das ondas: rompeu-se, finalmente, uma delas, e cuido, que, que uma das minhas maiores felicidades é a de haver escapado das nove correntezas, que nesta baía atravessamos.

            Tais são, por sua ordem, atravessando do Mosqueiro para Monforte: 1ª a Correnteza da Cidade; a 2ª de Carnapijó; que é uma ilha por detrás da Ilha das Onças, fronteira à mesma Cidade; a 3ª de Tatamoeva; 4ª dos Tocantins; 5ª de Arari, que já é rio da Ilha Grande, a cuja correnteza se ajunta a do outro rio da mesma ilha, Marajó-guaçu; 6ª a da Tiririca, que é no meio da travessia; a 7ª a da Coroa Grande, que nasce fronteira ao rio Jaburu-acá, acima da Vila de Monsarás; a 8ª a de Camará, rio que também fica acima de Monsarás; a 9ª a do Saravajá, que principia em uma ponta de terra acima da Vila de Monforte, distância de ¼ de légua. Na tal Vila de Monforte aportamos pelas 4 horas e um quarto da madrugada, e desembarcamos pelas 6 ½  do dia (Domingo). Do que sabemos por experiência própria, e do que afirmam todos por tradição, seguida de pais a filhos a tempos imemoriais, concluo, que é realmente perigosa a travessia do Pará para a Ilha Grande de Joanes. Não obstante, ainda mais perigosa a fazem as precipitações das viagens que a cada passo se empreendem, sem pesarem-se, com madureza, as circunstâncias de estação, em que se viaja, de Canoas que atravessam, e dos práticos, que as dirigem; porque de fato, uma coisa é o tempo melhor [de] estar-se no Marajó, e outra o de atravessar-se a sua baía [...] São ordinárias as Caladas [falta de vento], e só a remos empreenderá, e com facilidade se conseguirão viagens; mas que remédio têm senão atravessá-las em todo o tempo as Canoas, que transportam o gado para os Açougues da Cidade? Eis aqui a necessidade, que sempre foi a mestra da indústria, também neste país feita mestra da navegação: Observam que os ventos reinantes na Costa da Ilha que demandam são Nordestes-Lestes, Lestes-Nordestes, previnem o tempo das águas-vivas mais, e menos, segundo a quadra do ano abrigam-se ao mesmo anúncio do céu, nestas, ou naquela enseada, ali esperam a maré, que desejam, e praticada contudo a prudência náutica diariamente em dias, e voltas, atravessam para a ilha grande que passo a considerar como naturalista.”

            O geógrafo Armando Levy Cardoso ao estudar a psicologia indígena, nas demarcações da fronteira Norte; em Toponímia Brasílica, recorda lição de Alfred Wallace, no livro Rio Negro, no qual o precursor de Darwin diz que a lenda das amazonas se criou antes pelo modo das perguntas dos espanhóis aos índios e as respostas destes de acordo com a expectativa do forasteiro. Cardoso se refere ao caboclo marajoara como dotado de temperamento peculiar no trato com estranhos. A estes responde invariavelmente “sim, senhor” ou “não, senhor” ao gosto do freguês. Porém, sem dizer um pio do que não quer falar. O próprio autor da Viagem Filosófica, conforme o espírito científico da época, classificou o nativo amazônico como Homo sapiens, variedade Tapuia (sic). Homem particular surdido de história natural específica.

            Pensei nisto, ao ler sobre a travessia do sábio Alexandre Rodrigues Ferreira para a Ilha do Marajó. Que acaba sendo seu batismo nas águas amazônicas na iniciação à Viagem Filosófica. Conforme Wallace, a sugestão do estranho conduz à resposta do índio ou caboclo. De tal modo, que o estrangeiro sente-se dono da situação: quando na verdade a história é outra... 

No caso da travessia da baía de Marajó pelo naturalista, parece ter sido a pressa da Ciência a causa do risco e perigo passados. Pois, noutra situação os práticos da navegação evitariam hora tão inconveniente e o mesmo doutor, logo que compreendeu como as coisas funcionam nestas margens do planeta talvez tenha aprendido a confiar a seus guias de viagem o respeito aos usos e costumes do lugar.

            Há milhares de anos, os nativos da região convivem com o sol e a chuva, os ventos e as marés... Antes da hora do dia ou da noite, era preciso consultar o tempo de marés regidas pela Lua que ditava o ritmo da vida ribeirinha. Novembro, mês de ventos fortes na força do verão... Se a arquitetura do espaço civilizado deu, alguma vez, com os burros n’água nestas ribeiras foi por não consultar a geografia neotropical, por um desvio histórico de demasiada conformação ao exterior.

Cartografia da confusão

            “E considerando logo a latitude, em que demora, segundo o Mapa do Estado que me foi dado, e aumento do ponto, que se lhe deu na cópia, deve estar situada a Ilha Grande de Joanes na Latitude de 1º da linha do centro. Mas será esta, com efeito, a sua verdadeira latitude? Eis aqui o que eu não abono depois de haver observado sobre o dito Mapa, que ele, em muitas partes, foi trocado por uma simples informação em vez de ter havido, como devia, a inspeção ocular; então observou-se uma e sobre a Carta desenhou-se outra coisa...”
           
            Ou, por outra: onde é que estamos nós? Donde viemos? Aonde vamos?


Circunavegação do Igarapé-Puca

            “... tudo, até agora, são estimativas dos habitantes: o que é certo, nesta parte, é o tempo que gastou em a rodear o Inspetor Florentino da Silveira Frade no 1º de maio de 1756; saiu do Igarapé-puca, rio acima, e navegando em roda da ilha, mas sempre encostado a ela, quando então entrou pelo Arari, donde sai o Igarapé-puca, que foi o ponto da sua volta, contava já 22 dias de viagem. Navegava portanto em uma canoa ligeira, esquipada com 4 remos por banda, que nunca se demorou em parte alguma tempo considerável, antes, nas situações da Costa em que era precisa a enchente para seguir viagem, contando foi o tempo que gastou em rodear, por que além desta primeira viagem empreendeu o mesmo comandante a segunda no projeto de a atravessar por terra, de costa a costa, que pôs em ação em 21 de novembro do mesmo ano; partiu do Mauá [tributário do rio Arari, onde o pioneiro Francisco Rodrigues Pereira levantou o primeiro curral de gado da Ilha do Marajó, em 1680] para o Arari, e gastou um dia; atravessou do Arari para a fazenda de  São Luís, então retiro dos Jesuítas [localizada na margem esquerda do rio Anajás-Mirim, doada em 1760 ao Contemplado José Pedro da Costa Souto Maior] , e gastou outro daqui às Cabeceiras de Mucoã [Uma das extintas nações indígenas da Ilha do Marajó, termo primitivo de mucuagem, coisa roubada, em geral carne de gado, referente ao abigeato em Marajó. Cf. Miranda Neto, nota à pagina 148 da supracitada revista: Mucoan transformou-se em Mucoon, o rio Mocoões do município de Anajás] – (3º dia sem descansar); do Mucoã ao Pacoval de Santa Cruz, nome que a esta vila pôs o Comandante por achá-la cheia de pacovais [plantações de certa espécie de bananeira encontradas junto a aldeias indígenas, o autor refere-se ao lugar que deu origem ao município de Santa Cruz do Arari, célebre sítio arqueológico à boca do Igarapé do Severino, que serviu de base ao livro de Raimundo de Morais, denominado O homem de Pacoval] (4º dia). Neste pacoval observou, de caminho, as cabeceiras de uns poucos rios: o Cururu, o Mucuon, o Guarapixi [Arapixi], o Camarão-tuba, e outros, com a diferença que o Camarão-tuba e Guarapixi já são rios que correm da contracosta para dentro: do pacoval até à beirada do Camarão-tuba  o 5º dia também sem descansar.
            Marchava, portanto, montado em muito bons cavalos, que, no passo que levavam, expediram légua [pouco mais de 6,5 km] por hora. Sem, no espaço de 5 dias, demorar-se nem sequer para comer, porque de manhã, e de noite é que se faziam, e suposto que, para romper do Pacoval de Santa Cruz para diante, se demorasse três dias em fazer queimar os capinais [campo cerrado, capinzal] que impediam a passagem, estes três dias não os incluiu no número de todos os que efetivamente gastou; que foram oito, e o Comandante, para a sua estimativa de distância, só pondera os 5 de caminho efetivo. Ora, já é sabido que, do Arari para baixo até a ponta do Maguari, cada vez mais se estreita a Ilha, assim como da boca do Arari, costa acima, mais se alarga, e a travessia que fez não foi pela parte mais larga, que tem a Ilha de Joanes. Chama-se Ilha de Joanes, porque havendo sido povoada por diversas nações de Índios, como foram os Aruans, Mucoons, Ingaíbas, Mariapans [aqui talvez se ache o derradeiro vestígio lingüístico daqueles 36 índios capturados por Vicente Pinzón, em 1500, dos quais o navegador espanhol teria ouvido o nome da ilha: Marinatambalo ou Marinatambal, provavelmente Maritambo, nação que talvez incluísse a aldeia de Mariocaí (Gurupá hoje), na acepção de lugar de mari (fruta) em dialetos híbridos caribe-aruaque; isto é, Nu-Aruak] e Cariponás [Caripunas, a dizer: mestiços de Caribes ou Galibi, os protocaboclos marajoaras saídos da guerra antropofágica nas Antilhas, entre os Karib e os Arawak], entre estes a povoou também a nação Juioanas [Yuiana, Yu (o nome deste povo, propriamente dito, apelidado Sakaka; origem do município de Salvaterra) mais a terminação iana, gente, povo], eis aqui o nome que depois com o tempo se reduziu ao que hoje tem de Joanes, como se disséssemos ilha de Juioanas.”



O recado pré-histórico da Notícia Histórica

            “Tal é a informação que dá sobre diversas perguntas minhas o Sacaca Severino dos Santos, Sargento-Mor da Ordenança dos Índios da Vila de Monforte: é um índio, pelo que dele alcancei, suficientemente versado nas coisas do país, civilizado já pelos menos com a civilidade de haver aprendido a ler e escrever, fala expeditamente a língua portuguesa, que entende como os nacionais. Conta de idade 70 e tantos anos, e portanto nenhum escrúpulo faço em subscrever as suas informações.

            Como eu disse acima que esta era a informação do Sacaca Severino dos Santos, para não deixar suspensos os juízos sobre a palavra Sacaca, devo advertir desde agora que Sacaca se ficou chamando a nação Juioana [Joanes] depois do seguinte caso: – trabalhavam na fortaleza da barra da cidade [numa ilhota em frente de Val de Cães, que explodiu e ficou arrasada] não só os Juioanas mas com eles outras nações; presidia ao trabalho dos primeiros certo espírito muito  ativo, que dentre eles havia sido escolhido para feitor, e como a palavra que pela sua gíria pronunciava para animar os seus era necessariamente – Sacacon – que vale o mesmo que aviar. Com o trabalho, as outras nações que a ouviam sem a perceberem porque era gíria para ser entendida pelos Juioanas, entraram a chamá-los Sacacas, e Sacacas ficaram até o dia de hoje.

            Habitavam sempre os Sacacas de hoje, que então eram Juioanas, continua o Sargento-mor, pelos centros da Ilha nos lugares que hoje chamam Laranjeiras [sítio à margem do furo de mesmo nome, que comunica a bacia do Marajó-Açu, através de seu tributário Curral Panema; à bacia do Arari, abaixo do sítio Araquiçaua], Trigueiras, Três Irmãos, Curuxis, e por outras ilhas [bosques formados em meio à vastidão dos campos de Marajó, muitas vezes assinalados pela ocorrência de “tesos” ou aterros arqueológicos] mais, que ainda existem no meio dos campos, em cabeceiras dos rios, ou junto aos lagos, enquanto os não obrigou a perseguição dos Aroans, seus inimigos e juntamente a dos Tupinambás a descerem deles para a costa, em que no presente se acha a vila de Monforte.”

            A informação de Severino Sakaka atestada por Alexandre Ferreira é fonte valiosa da história marajoara. Quando ele fala, por exemplo, do episódio ocorrido durante a construção da fortaleza de Nossa Senhora das Mercês da Barra, concedida, em 1685, pelo Governador Gomes Freire de Andrade ao capitão Antônio Lameira de Franca; colabora no cruzamento da tradição oral de seu povo com a história da colonização.

Dá pista também para a derradeira batalha entre os Yuiana (Joanes) e seus inimigos Aruãs. Que, pelas datas dos acontecimentos, comprova não terem sido infundados os receios dos amigos de Francisco Rodrigues Pereira (1680) que o advertiam do perigo de levar seu gado para a Ilha com a ameaça dos índios bravios, desertores e escravos refugiados. A um simples olhar, compreende-se logo a insuficiência de estudos sobre a etno-história marajoara. Assim, as hipóteses sobre o passado pré-histórico ficam demasiadamente dependentes de teorias e suposições. E, portanto a antropologia deveria ser chamada a recuperar esses fragmentos de memória que afloraram em relatos como este ou do encontro de Ferreira Pena, em fins do século XIX na vila de Chaves, com o índio velho Anselmo José, o derradeiro aruã.

            Pelo que diz o informante da Notícia Histórica, seu povo constitui população mais antiga do que a dos Aruã. Habitava os centros da Ilha Grande e diante da pressão dos invasores da costa norte, foram, cada vez mais, empurrados para a margem da baía do Marajó. Isto é, as bordas de terras altas e mata ciliar junto às praias. 

Comparando tal informação com esquema de estudos arqueológicos mais aceitos, com suas fases artísticas de elaboração da cerâmica encontrada, tem-se clara sugestão de que os Yuiana ou Sacacas foram, pelo menos, contemporâneos da fase ceramista Marajoara (quando não o próprio povo que deu os mais célebres oleiros marajoaras). A decadência da arte pré-colombiana poderia então ser explicada, não só pelo fenômeno da guerra defensiva contra a invasão dos Aruã, interferindo certamente na passagem de conhecimentos de uma elite de artistas para a geração subseqüente, como também da perda de matéria-prima de qualidade para confecção daquela sofisticada cerâmica. Mas tudo são suposições, na falta de programa de pesquisa de envergadura. Falava-se muito em geração de emprego e renda para as populações tradicionais, sem lhes perguntar, de verdade, em que as mesmas mais gostariam de investir o seu saber e vontade de se desenvolver.

Acordo entre os Joanes e os portugueses do Pará

            “Pela nação Caripuná, que eram de parte a parte camaradas [isto é, amigos dos Yuã e dos Aruã ao mesmo tempo], foram informados os Juioanas, que na parte em que ao presente está a cidade do Pará se achava gente branca, valorosa pelas suas armas, e que faria timbre de os proteger: Continuavam as violências dos Aroans, a fama do valor português os animava, o interesse do seu sossego e segurança veio a acabar com eles que atravessassem a baía. Atravessaram-na com efeito para o lugar da cidade, e tendo logo a fortuna de nela encontrarem um parente seu, que em rapaz havia sido cativo pelos Tupinambás nos campos da Ilha, batizado depois com o nome de João, e por alcunha o Sapatu [João Sapato, talvez] , deste se serviram como seu intérprete para pôr na presença do Capitão-mor, que então governava o Pará [em torno do ano de 1685, isto é; havia cinco anos que se levantou o primeiro curral de gado do Arari], a representação seguinte:
            Que as violências dos Aroans os consternavam de modo que nenhum outro recurso lhes deixavam para a vida e liberdade mais que o que ousavam tomar de se abrigarem debaixo das armas portuguesas de cujo valor, e sucessos militares estavam bem informados. Que de boa mente se sujeitavam ao domínio d’El Rei de Portugal, protestando serem seus leais vassalos, se o Capitão Mor os auxiliasse com soldados e oficiais que os ajudassem a vencer na guerra os Aroans. Foi aceita a sua fala e o sinal menos equívoco que levaram da sua boa aceitação foi o destacamento de soldados comandados por um Capitão, e mais oficiais, debaixo de cuja proteção se retiraram para a Ilha, e se apresentaram na Aldeia que presentemente é a Vila de Monforte [atual Joanes velha, onde se acha a antiga capela dos jesuítas]. Ignorantes, como estavam os Aroans, do reforço dos Juioanas, não tardaram em os assaltar: Incorporados com os soldados saem-lhe ao encontro os Juionas; baralhamdo-se no conflito uns, e outros, os Aroans, que querem escapar da morte fogem para a praia do Rio-de-água-doce [hoje a localidade Água Boa], distante da aldeia meia légua, costa abaixo; aqui são mortos os mesmos que fugiram; o que fica na praia são cadáveres; apenas salvam a vida os poucos que guardavam as canoas, em que tinham vindo os Aroans.

            Estavam as três canoas no Rio Jobim, onde se tinha feito o desembarque, daqui fugiram tão intimidados do que viram os Aroans que as vigiavam, e tais notícias levaram aos poucos, que as esperavam, que jamais intentaram outro combate. Tal foi o termo das violências, que faziam os Aroans da contracosta da Ilha aos Juionas, já há muito tempo retirados para a Aldeia da costa fronteira.”

            Este recorte da memória de Severino dos Santos relatada por Alexandre Rodrigues Ferreira se reporta ao ano da construção da fortaleza da Barra, 1685. Comporta estas observações: fazia cinco anos que se levantaram os primeiros currais de gado no rio Mauá, tributário do Arari, por Francisco Rodrigues Pereira. Que, portanto, se justificavam os receios desta empresa contra os “índios bravios”. Que as lembranças de um homem de presumivelmente mais de 70 anos de idade, em fins de 1783; cujo nascimento corresponde ao tempo do célebre cacique dos temidos Aruãs, Guaiamã, são uma preciosidade em meio à notável carência de informações etno-históricas de Marajó.

            Isto nos faz lembrar o fato que só em 1659, na região dos estreitos de Breves, os índios de Marajó se deixaram abordar pacificamente. E, portanto, na chamada Costa-Fronteira – litoral sudeste – o primeiro contato pacifico teria sido o supracitado: 1685. Visto que a morte do jesuíta Luís Figueira naufragado com seus companheiros na Baía do Sol, levados pelo vento e as ondas à praia de Joanes; “devorados” pelos índios daquela localidade revela a hostilidade que deu motivo a fama de canibais (que não eram) aos índios do Marajó. 

O conflito entre Sakakas e Aruãs remete à questão que a arqueologia denomina fase cerâmica Marajoara com transição para a fase Aruã. Estamos a ver que as mais velhas etnias foram sendo empurradas pelas novas, dos centros da ilha para a Costa-Fronteira.

            Segundo a datação arqueológica, o estilo Aruã se manifesta cerca do ano 1200 sucedendo ao estilo Marajoara. O leitor não deve confundir as fases arqueológicas com tribos de mesmo nome. São situações que se confundem, mas não se correspondem exatamente. Por exemplo, não há propriamente um grupo específico marajoara. Mas, uma arte cerâmica “marajoara” desenvolvida não se sabe por que povo. Teriam sido os “Joanes” autores do mais brilhante estilo ornamental da cerâmica marajoara?

            Os Joanes ou Sacacas são provavelmente remanescentes de um povo que habitou a Ilha há mais tempo do que os Aruãs, que foram a última migração vinda da costa do Amapá. Na verdade, ainda há muitas conjecturas sobre o passado dos marajoaras. Em luta entre si, grupos indígenas antigos do Marajó e Amapá pertenceriam à mesma família lingüística Aruak, subgrupada sob o nome geral de Nu-Aruak, às vezes mesclados a grupos de língua Karib vindos das Guianas e Antilhas, também há muito tempo.

            Viu-se também em Marajó algum parentesco artístico com a cerâmica sub-andina da região de Loja (Equador), mas esta é mais uma das diversas cogitações. De todo modo, trocas culturais entre populações do alto e baixo-Amazonas não podem ser afastadas liminarmente.

            Há expectativa, entretanto, que as fases Marajoara e Aruã coexistiram certo tempo. Segundo notícias não confirmadas ainda, a cerâmica marajoara chegaria até quase 1600. Quando os primeiros colonos holandeses já estavam estabelecidos no Xingu, pouco antes da fundação de Belém.

Costa-Fronteira de Joanes

            “Conservou-se o destacamento de soldados até o tempo do Sr. Capitão General Manoel Bernardo de Mello e Castro, em que ainda se nomeava o Comandante da fronteira de Joanes, e foi o último nomeado Matias Pais de Albuquerque, que também era oficial maior da Secretaria do Estado do Pará. O mesmo Sr. Capitão General mandou recolher a última peça de Artilharia, que lá existia em um reduto, de que apenas se percebem as ruínas.

            Enquanto nos sucessos das nações, na aldeia de Joanes ficaram os Juionas, por outro nome os Sacacas; os seus inimigos Aroans repartiram-se por várias Aldeias, como eram: a de Najatuba na contracosta, hoje Vila de Chaves; a Aldeia da Conceição, hoje Vila de Salvaterra; a Aldeia de São José, hoje lugar de Mondim, todas na administração que foi dos Capuchos. Os Ingaibas ainda existem nas duas vilas de Conde, e de Beja, algum dia aldeias de Sumaúma, e Martigura, ambas da administração que foi dos Jesuítas. Dos Mocoons, Mariapans, e Caripunás, por acaso existem alguns dos seus descendentes... Até aqui está a informação do Sargento-mor, pelo que respeita às antiguidades da Ilha.”

República teocrática versus Província pecuária

            “Eu a considero no tocante à sua extensão, fertilidade, produção, rios, situações, como o embrião de uma vasta Província. Corria o ano de 1757 quando ordenou o Sr. Capitão General Francisco Xavier de Mendonça Furtado [Miranda Neto, comentando a Notícia Histórica, esclarece que se trata do governador do Estado do Grão-Pará e Maranhão (1753), irmão materno do Marquês de Pombal; e que o mesmo foi também Secretário da Marinha e Negócios Ultramarinos] que para a Ilha Grande de Joanes partissem: o Ouvidor Pascoal de Abranches Madeira, o Juiz de Fora Feliciano Ramos Nobre Mourão, e o Inspetor Geral que é da dita Ilha Florentino da Silveira Frade, para na Ilha executarem as reais ordens de Sua Majestade, que mandava abolir o Governo temporal, e espiritual, que tinham os missionários de Santo Antônio, e São Boaventura nas Aldeias, chamadas missões da sobredita Ilha. Havia no ano de 1756 descoberto o Inspetor a contracosta do norte por ordem que para isso teve do mesmo Sr. Capitão General, como também atravessando o centro, depois de haver descoberto no ano de 1754 o [rio] Camotim [trata-se da zona de maior ocorrência de sítios arqueológicos, este rio é tributário do rio Anajás-Mirim, que conflui com o rio Arari e também se comunica com a bacia central, o rio Anajás Grande, durante a estação da cheia]. Havia sido esta Ilha da Baronia da Casa de Mesquitela no dia de hoje pertencendo-lhe “de jure” [de direito] e herdade; e pondo nela, como de alguns documentos consta, o Barão Luís de Sousa de Macedo de Aragão Vidal tanto Ouvidor como as outras Justiças; nomeando Capitão-Mor, Ajudante, Sargento-Mor, e criando a muitos destes Capitães-Mores seus Lugar-Tenentes: Até nomeou o Barão um Juiz das demarcações, a quem pertencia demarcar as terras, que em nome do Barão dava o Capitão-Mor, e o Barão depois as confirmava. Havia Sua Majestade, em conseqüência das apresentações do seu Capitão General, resolvido que era conveniente ao seu serviço entrar na propriedade da Ilha dando em seu lugar o Viscondado de Mesquitela, e parece que, segundo ouvi, três mil cruzados mas, ficando Sua Majestade com pleno domínio das suas terras. Haviam, finalmente, administrado em um e outro foro as Povoações os mencionados Missionários, cuja administração é que mandava Sua Majestade abolir pelo Alvará com força de Lei de 7 de Junho de 1755.

            Pôs-se em execução o Alvará, nomeara-se as justiças, o governo temporal na forma da Lei que regula as ereções das Povoações, ficaram incumbidos do espiritual os mesmos Missionários, sujeitos porém ao Exmo. Bispo Dom Frei Miguel de Bulhões, que lhes passou as provisões de Vigários, e desde esta época, verdadeiramente grande para as coisas do Marajó, tudo levou aquela resolução que necessitava. De Aldeias passaram a Vilas as povoações que mais o mereciam: os mesmos nomes foram mudados e por estes substituídos outros que ditou o Exmo. General.”

            O trecho acima se refere à importantíssima reforma política da Ilha do Marajó, que vai do período da capitania hereditária de 1665 à incorporação da Ilha ao patrimônio da Coroa portuguesa, em 1754. Nos 89 anos em que durou a Capitania hereditária, o primeiro donatário foi sucedido por seu filho, Luís Gonçalo de Sousa de Macedo, 1º barão de Joanes; o neto Antônio de Sousa de Macedo foi o segundo barão. O quarto donatário e 3º barão da Ilha Grande de Joanes, Luís de Sousa de Macedo foi aquele a quem foi paga a indenização de 3000 cruzados e atribuído título honorífico de visconde de Mesquitela, em 1754.

Não precisa dizer que os donatários não puseram jamais os pés no Pará para gozar da posse de Marajó. Conquistado e pacificado com tantos sofrimentos e penas. Em nome dos donos governavam prepostos nomeados, também ausentes da Ilha, lá com seus escravos e feitores à testa dos afazeres. Não espanta, portanto, que Diretores de Índios, cabos de guerra e os Principais das aldeias fossem, pouco a pouco, se transformando no poder de fato. Estando, portando, tal estrutura à origem da sociologia marajoara.

Das Missões ao Diretório dos Índios

“A Aldeia de Joanes, da administração dos Padres de Santo Antônio, passou a vila de Monforte. A Aldeia do Caiá, da Administração dos Padres de São Boaventura, passou a vila de Monsarás; a da Conceição, dos mesmos Padres, tomou o nome de Vila de Salvaterra; a Menino Jesus, dos Padres de Santo Antônio, o de Vila de Soure; a de São José dos mesmos Padres, o de lugar de Mondim a Aldeia da Doutrina, no rio Maruacá, que era da administração dos Padres de São Boaventura, o de Lugar de Condeixa; a Aldeia dos Guaianases [Guaianá], dos mesmos Padres, o Lugar de Vilar; a Aldeia das Mangabeiras, também dos mesmos, o de Lugar da Ponta de Pedras; até aqui as povoações sobre a costa fronteira ao Canal da Cidade, e dentro nos rios que desembocam nessa costa, a saber:

Correndo costa abaixo, e sobre ela as duas vilas de Monsarás, e Monforte; ao pé de Monsarás, dentro do rio Maruacá, rio acima, e para a esquerda dele o Lugar de Condeixa; abaixo da Vila de monforte coisa de 3 léguas, entrando pelo rio Paracauari, ou Igarapé grande, para a esquerda do rio, a Vila de Salvaterra; defronte de Salvaterra, à direita, o Lugar de Mondim; e deste mesmo lado à distância de 1/4 de légua a Vila de Soure. Costa acima de Monsarás para adiante e pouco distante do rio Arari, está o primeiro lugar de Vilar; e deste, a distância de meia légua, o outro de Ponta de Pedras [a este último, atual vila de Mangabeira, se juntou a população do Lugar de Vilar]; e pouco mais adiante de um quarto de légua, o rio Marajó-guaçu, tudo roças de uns, e fazendas de gado de outros.

Na contracosta, a Aldeia de Najatuda [Inajatuba, termo em nheengatu; lugar de palmeiras inajás], da administração dos de Santo Antônio, passou a Vila de Chaves, a outra Aldeia que havia dentro do rio Cajuuna acima de Chaves, e, pela esquerda do rio chamado Santa Ana, passou a Lugar de Parada [talvez em referência ao sítio de escala para expedições vindas de Belém com destino ao Cabo do Norte]; mas este lugar se juntou depois, haverá 24 anos à Vila de Chaves, sendo Diretor desta Vila o Capitão Félix da Silva Cunha.

Se, de todas estas Povoações, tirarmos a soma, e a ela ajuntarmos o novo lugar que criou o Sr. Capitão General José de Nápoles Telo de Menezes no rio Paraoaru, da invocação de Santa Ana dos Breves, vir-se-á, no conhecimento, que são dez por todas as povoações da Ilha Grande, 5 Vilas, e 5 Lugares sem nelas porém se incluírem ainda as fazendas particulares dos que a cultivam em diversos campos e rios.

Uma coisa não se mudou no meio desta revolução geral, que foi em cada Povoação a invocação da Igreja; ficaram todas sendo as mesmas que tinham quando Aldeias: Nossa Senhora do Rosário a invocação da igreja de Monforte; São Francisco a de Monsarás; Nossa Senhora da Conceição a de Salvaterra; Menino Jesus a de Soure; São José a de Lugar de Mondim; Nossa Senhora da Conceição a do Lugar de Condeixa; São Francisco a do Lugar de Vilar; outra vez a Conceição a do Lugar de Ponta de Pedras; e na contracosta São Francisco a invocação da Vila de Chaves e já que tenho entrado insensivelmente nas coisas do Estudo Eclesiástico desta ilha, principiamos por ele para ir descendo por uma Ordem a todas as outras repartições, de  cada uma das quais tocarei as notícias mais óbvias.”


Sobre a Cachoeira do rio Arari

“Não falando agora das Missões que hoje são Vilas, e lugares foi a primeira Igreja Matriz a de Nossa Senhora da Conceição sobre a Cachoeira do rio Arari, que ainda existe. Corria o ano de 1747 quando veio para este sítio Florentino da Silveira Frade mudando-se com toda a sua família da fazenda que possuía, no rio Guamá, para esta outra, que também tinha no rio Arari; como aqui não achou igreja nem sacerdote que nos dias de preceito celebrasse Missa, resolveram-se ele, e seu sogro André Fernandes Gavinho, então Capitão-Mor, e depois Lugar-Tenente do Barão, a pedirem ao Sr. Dom Frade Guilherme de São José a licença que precisavam para lhes poder Missa a ambas as  famílias o Sacerdote André Pinheiro de Carvalho, que eles haviam apalavrado. A missa então em um Altar Portátil que nos domingos e dias santos levantavam sobre a varanda das casas da residência do dito Capitão-Mor; impetrada a licença, principiou a celebrar o Sacerdote, e divulgada a notícia da missa certa no Arari entrou o povo a concorrer para a ouvir: observaram este concurso os impetrantes da licença, e depois de ambos erigirem uma Capela no lugar, em que hoje está a Igreja  Matriz, representaram aos moradores que, visto terem todos missa tão perto, sem os incômodos de viagens dilatadas, de razão deviam concorrer para a consignação de uma côngrua [pensão para subsídio do pároco] , em que melhor subsistisse o Sacerdote... Que se Sua Excelência Reverendíssima fosse servido acordar o seu beneplácito aí outras suplicar que intentavam, ficaria a Capela sujeita aos Curas da Cidade respectiva onde cadê cada morador tivesse a sua residência, que o Sacerdote, em virtude do Despacho que esperavam, ficaria obrigado a administrar os sacramentos, e ele mesmo os desobrigaria da Quaresma enviando aos Vigários respectivos da Cidade a relação dos que havia desobrigado, para, nas suas Freguesias, se darem por desobrigados: Visitou a Capela o Bispo, e o  patrimônio, que se fez para ela constou de 40 braças de terra em quadro, e umas poucas éguas e novilhas.

Assim estavam as coisas da Capela do Arari quando o Sr. Dom Frade Miguel de Bulhões, sucessor do Sr. Dom Frade Guilherme,a foi visitar: Eis aqui o Prelado, que a erigiu em Freguesia de todos os moradores os moradores da Ilha Grande de Joanes, excetuando os índios das povoações desse tempo: deu parte a Sua Majestade e Sua Majestade não foi servida de confirmar a nova Freguesia, mas, enviando-lhe ornamentos, cálices, castiçais assinou ao Vigário a Côngrua de 40 réis: foi o primeiro Vigário Colado, que teve o Padre Pedro Antônio Fernandes Gavinho, irmão que era do Capitão-mor; depois da sua morte tem disso todos encomendados até o que existe presentemente, que é o Padre Estanislau da Silveira Frade, filho do Comandante Inspetor Geral, um dos dois que acima disse que haviam erigido a Capela: é uma Capela, ainda pelo que respeita à grandeza do edifício, suficientemente paramentada do preciso; tem só o Altar da Capela-mor, e nela ouvimos Missa dia da Conceição, a 8 de Dezembro de 83, vindo de volta do Arari para a Cidade do Pará. Já quando veio suceder, ao Sr. Dom Frade Miguel, o Sr. Dom Frade João de Queirós achou abolidas as missões, trocadas em Vilas e Lugares as povoações que, espiritual e temporalmente, governavam os Missionários, nomeado seu Vigário em cada Vila, o que tudo serviu de facilitar o despacho a nova petição dos moradores da velha Ilha: Representavam a Sua Excelência Reverendíssima que, morando alguns mui distantes da Cachoeira, onde estava a Igreja Matriz, com muito mais trabalho vinham a cumprir com os preceitos da missa, desobriga etc. do que se os deixasse Sua Excelência Reverendíssima alistar nas freguesias das Vilas que estavam mais perto das suas fazendas; mandou Sua Excelência que informasse o Vigário, e não tendo achado circunstância que encontrasse a nova resolução, deferiu aos moradores como pediam, pagando eles os anuais aos respectivos Vigários, que os desobrigam.”

Igrejas, Capelas e fazendas

“ Além das Igrejas Matrizes, que deixo especificadas tanto a das Vilas e Lugares como a de que acabo de tecer a história, conta esta ilha várias Capelas que estão dispersas pelas fazendas dos particulares. Principiando pelas que estão nos dois rios, Arari e Marajó-Guaçu: Logo na boca do Arari, à esquerda [na margem direita do rio, o autor se refere no sentido de quem chega à Ilha], está a Capela de Santa Ana, no Engenho dos Religiosos das Mercês, que também tem Olaria, e roças: aos mesmos padres pertence outra Capela de Nossa Senhora das Mercês [onde a lenda popular fez habitar uma cobra grande debaixo do altar, não podendo ser removida a santa imagem sem o perigo da cobra fazer um terremoto no lugar] perto já do Lago do rio Arari, fazenda de gado vacum, e cavalar, que ali possuem; acima desta fazenda, à esquerda [margem direita do rio], a Capela da Nossa Senhora dos Remédios, na fazenda que foi dos Jesuítas em que contemplou Sua Majestade o Mestre de Campo, José Miguel Aires, hoje de seu filho, o Capitão Antônio Miguel Aires. No Rio Marajó-Guaçu, rio acima, à esquerda, a Capela de Nossa Senhora do Rosário, na fazenda algum dia dos Jesuítas, com que foi contemplado o Alferes Francisco da Costa Almeida e Silva, presentemente de sua mãe, D. Ana Felícia de Guimarães, segunda vez casada com o Capitão Bento de Oliveira. Costa acima da Ilha estão as Capelas seguintes; das Mercês, no engenho e fazenda de arroz, e algodões etc. do Capitão Agostinho José Tenório; mais adiante a de São Miguel, no engenho do Mestre de campo Pedro Furtado de Mendonça, ambas filiais a Oeiras; mais adiante, no Rio Paraoaru, a da Senhora Santa Ana dos Breves, no novo Lugar que erigiu o Sr. Capitão General José de Nápoles; no rio Paracuari, abaixo de Monforte, a de Santo Antônio, na fazenda do Capitão José Francisco Fernandes Gavinho, ambas filiais a Soure, e ambas à esquerda [trecho confuso, talvez por erro de traslado do texto manuscrito de 1783], rio acima da direita porém a Capela de São Lourenço na outra fazenda dos Religiosos das Mercês no Rio Camará, acima da Vila de Monsarás: me esqueci de colocar de Nossa Senhora de Assunção na fazenda de gado dos Religiosos do Carmo; resulta afinal do que tenho arengado a tal respeito que são na Ilha Grande, pelo que me lembro: 10 as Igrejas Matrizes, incluindo as freguesias das Vilas, e Lugares, e a da Conceição; 11 as Capelas particulares; que quando ao ensino da doutrina, administração dos Sacramentos e os mais ofícios paroquiais, cumprem com o que devem os Vigários atuais; suposto que sendo eles, como são, os únicos Sacerdotes que há, cada um na sua Igreja, e sim, muitas vezes, obrigados os de uma freguesia irem administrar os Sacramentos a outra: logo que adoece o Vigário ou tem urgente necessidade de se retirar a Cidade, que não obstante este auxílio mútuo alguns são dispensados por Sua Excelência Reverendíssima para nos dias de preceito celebrarem 2 vezes, em ordem a não deixarem de ouvir missa os moradores que, em conseqüência deste trabalho, forcejam quanto podem os encomendados por serem rendidos talvez porque não é compensado a solidão em que vivem, e o trabalho que têm com outra côngrua maior do que é nas Vilas e de 80$réis, nos Lugares a de 60$réis e na Freguesia a de 40$réis: os Capelães então nas suas Capelas exercitam a jurisdição de Párocos, e nem há outro recurso. Basta de Estudo Eclesiástico, por agora, porque passo a considerar o Civil.”

Do governo das Vilas e Lugares sob regime do Diretório

“Têm todas as Vilas a sua Câmara, a que são sujeitos os Lugares, o de Mondim, por exemplo, à Vila de Soure, e Vilar [extinguiu-se, localidade próxima à agrovila Antônio Vieira, sua população foi remanejada para Mangabeira, distrito de Ponta de Pedras] à de Monsarás: cobra esta Vila além dos subsídios das águas ardentes [aguardente de cana], que são do Rei, o novo imposto dos alambiques de 6$réis cada ano, que pagam os 10 cong.os [?] a terça parte para El Rei, e o resto para as  despesas da Câmara. Presidem a cada uma das Câmaras dois Juízes: um branco, e outro índio: às vezes ambos brancos, três Vereadores que são índios, e brancos, um escrivão sempre branco, um procurador que na falta do Branco pode ser índio ladino, oficiais de Justiça como Meirinho, Alcaide, Carcereiro, Porteiro, etc. Figura também entre estas personagens o Principal dos índios que sempre é índio da família do primeiro chefe da nação; a eles são dirigidas as Portarias para índios, ele deve resolver sobre elas com o Conselho do Diretor na forma do Diretório, que se deve observar na Povoação dos Índios do Pará e Maranhão enquanto Sua Majestade não mandar o contrário, confirmado pelo Alvará da Confirmação de 17 de agosto de 1758.

Mas se da Letra do Alvará é que aos diretores não compete por modo algum jurisdição coativa, por ser toda a que lhes confere Sua Majestade, simplesmente diretiva, como prendem ele à sua voz, soltam, resolvem, determinam, e o mesmo Principal nada faz senão o que eles querem que faça? O fato é este: a escusa do fato é a ignorância que alegam no Principal: as coisas falam por si (grifei), e eu deixo o Estado Civil para ponderar o Militar.”

Os escrúpulos do sábio de Coimbra diante do Diretório local já dizem tudo. Em 6 de junho de 1755, o governo de Lisboa tirou das Missões a competência sobre assuntos indígenas. O motivo foi o conflito particular entre o governador Mendonça Furtado e os Jesuítas, como já foi dito. Mas, havia também mais sérios antecedentes políticos e ideológicos na Europa, dos quais não se pode isentar completamente a alta hierarquia da Igreja Católica romana nem justificar os abusos cometidos pelo orgulhoso e vingativo Marquês de Pombal.

O Diretório dos Índios tinha diretores nomeados entre militares e civis de confiança do governo para exercer o papel antes dos missionários. Não houve e nem podia haver a mínima preparação para esta mudança. Uma vez que o diretor cuidando do governo da aldeia “elevada” por decreto à condição de vila devia ser assistido por câmara de vereadores brancos e índios, estes últimos através de Principais (chefes), mera formalidade que não encontrava na realidade prática nenhuma.

As freguesias recebiam vigários ao gosto do governo e o vice-governador era o bispo dom Miguel de Bulhões, inimigo da Companhia de Jesus. Ainda assim, surgiam conflitos entre vigários e diretores de índios. Estes índios vexados por todos os modos, guardavam ressentimentos ferozes. Sua descendência, os “caboclos” (da Língua Geral, na acepção de “saído do mato), criou-se na esperança da desforra. Os ecos da invasão de Caiena por tropas paraenses a mando de Portugal, quando de seu regresso em 1817, iria agitar esses espíritos refratários à civilização ocidental. Os descendentes de chefes indígenas, aculturados e explorados pelos brancos, iriam ser caudilhos de agitações e motins políticos no Pará insuflados pela notícia da Confederação do Equador, em Pernambuco (1817), da  Revolução liberal do Porto (1821), do “Grito do Ipiranga” (1822), Adesão do Pará (1823), a tomada de Belém pelos cabanos (1835)... A crônica de um desastre anunciado, que a paz de Mapuá (1659) – apesar dos pesares –  teria conseguido evitar o pior: o precoce genocídio dos Nheengaíbas. E a conseqüente e previsível perda da Amazônia por Portugal em vantagem da Holanda, provavelmente chamada a lutar em socorro de seus aliados indígenas desde o Amapá, dizimados pela “guerra justa” total.

O Estado militar do Marajó 1783

“Advirto em outra parte que, no tempo dos Barões, e sendo um deles Luís de Sousa de Macedo, além das justiças que punha, nomeava também o Capitão-Mor, Sargento-mor Ajudante, e mais Oficialidade para o comando da Ordenança que ainda não era fardada, antes para os alardos [revista de tropa] marchava cada soldado como muito podia, e lhe parecia; neste pé se conservou a ordenança desde esse tempo, sem nesta parte mudarem coisa alguma os Senhores Capitães Generais, o Sr. Francisco Xavier de Mendonça, e Bernardes de Melo, até que a tudo deu uma volta, o Sr. Fernando da Costa; formou das Ordenanças que havia uma Companhia de Cavalaria auxiliar de Voluntários criando logo o seu primeiro Capitão, que é no dia de hoje; constava a Companhia de 100 homens, todos montados, vestidos e armados à sua custa, com fardamento de casaca parda, canhões [manga sobreposta ao dólmã de fardamento ou cano de bota], e veste amarela (agaloadura de ouro nos Oficiais).

Não se contentou com isto o Sr. João Pereira Caldas, e em vez de 1 Companhia criou 4, a saber: conservou a de Cavalaria auxiliar, que achou feita mas aboliu-lhe o título de voluntária. Criou 2ª Companhia de Infantaria, também auxiliar, e de ambas as Companhias fez Capitão ao Comandante Florentino; reforçou estas duas Companhias auxiliares com a criação de outras duas de ordenança franca, com seus respectivos oficiais, com a diferença, porém, que as 3 primeiras companhias de auxiliares, uma a cavalo e outra a pé, constam de 100 homens cada umas, incluídos os oficiais, e as outras 2, de ordenança franca, de 150 cada uma, de modo que a soma total da gente monta a 500 homens, e todo o Corpo intitulado “Tropa Ligeira Auxiliar”.  Mandou-se, desta feita, o uniforme de umas, e ordenou-se novo para as novas Companhias; o que se ordenou à Companhia de Infantaria auxiliar foi casaca e calção pretos, veste, canhões, e gola encarnados, botinas e cartucheiras nos soldados, agaloadas  de prata as casas e golas dos oficiais, da mesma prata é toda em roda agaloada a farda dos Oficiais de Cavalaria cujos soldados, sim, têm as casacas e os calções pretos com golas, e canhões encarnados como a infantaria; mas a veste é branca, trazem suas bandoleiras, calção, botas leves; e tem exercício de dragões; não sentam praça nestas 2 Companhias senão brancos, e mamelucos, todos fardados, e todos em com armas; frutificaram tanto em ambos os repetidos exercícios que se fizeram no tempos do Sr. João Pereira Caldas, que no manejo, fogos, e mais evoluções militares puseram-se tão prontos, como a tropa regulada; de cuja observação o que se concluiu foi que em cada anos para adiante se fizessem 4 revistas gerais: a 1ª na Páscoa, a 2ª pelo Espírito Santo, a 3ª em 21 de Setembro, e a última pelo Natal. Presentemente, com o aumento da Ilha, cresceu a necessidade de Capitães para as duas Companhias porque não podia assistir a ambas o Capitão Florentino; por este motivo foi o Sr. José de Nápoles?(sic) Segundos Capitães a cada um dos que conferiu o exercício do seu posto, ficando o Capitão Florentino Comandante do Corpo. Está sempre municiado de pólvora, bala, perdigotos [certo tipo de chumbo para caça], pederneiras [pedra de isqueiro para espoleta] de que tudo está entregue ao Comandante, e assim o arrecada em seu quartel de Monforte.

No tocante às outras duas Companhias de Ordenança Franca os oficiais é que vestem o mesmo uniforme que os da Infantaria auxiliar. Por mais ordens que se tenham passado a respeito dos soldados sempre aparecem como podem, ou querem, já com armas, já com flechas, os tapuias, pretos forros, mulatos, cafuzos, caribocas, etc. Têm eles a obrigação de, sendo chamados pelo seu comandante, aparecerem sempre com o seu remo porque devem estar prontos para as diligências marítimas. Ora, além de todas estas 4 Companhias, há nas Vilas e Lugares ordenanças de índios com seus oficiais de Capitão para baixo, porque só em Monforte há o Sargento-mor Severino, e ainda os mesmos postos estão por prover.

Pelo que respeita à defesa da Ilha no caso de ser abordada, eu não vejo outros meios, por ora, senão os que costuma praticar a guerra de estratagema. Em toda a costa nenhuma dificuldade encontra o desembarque à exceção dos obstáculos que são comuns à nossa mesma navegação. Uma ou duas fortalezas que houvessem, com impedirem o passo em um ou dois Lugares não fecham por isso os outros: a povoação da Ilha pela estimativa mais próxima, e os últimos cálculos do Comandante não passará muito de 4.870 almas por todas.”



Geografia da insularidade e alinhavado d’água
           
            “Examinarei agora se, para crescer a povoação, faltam na Ilha rios, que sirvam para os transportes dos seus gêneros, se há estes gêneros, ou podem haver com facilidade, se não tem, enfim, dentro em si mesma tudo quanto é capaz de fertilizar um Reino. Não entro no detalhe particular dos Rios todos, e Igarapés grandes ou pequenos; por que só fito a vista nos que ou são, ou se podem fazer mais navegáveis; é posta esta prevenção.

            É sem dúvida que, entre os muitos rios que a retalham, tem o primeiro lugar o Arari: fica fronteiro à Cidade do Pará e engrossa a sua corrente com as águas dos rios Muirim, Uarumás, Salitre, Cururu, Tucunaré, São José, e Anajás-Mirim, todos à esquerda, rio acima [margem direita, de fato]; à direita [margem esquerda] logo da sua entrada deságuam nele, o Gurupá, Murutucu, Mauá, Guaiapi, sem fazer caso de igarapés que deixo de contar. Seguem-s,e costa abaixo, o rio Caracará, que recebe as águas dos outros dois rios Aracaju e Auaí, ambos à direira; depois o Igarapé Tuca, que chamam o Mututi: mais o Rio Urubucuara, que engrossa com o Mututi, mais o rio Guajará, e outro Jaburucuara, que engrossa com as águas do Gurupatuba.

Contiuam, costa abaixo, os rios Camará, que recebe pela esquerda. Rio acima, os outros rios: Quió, e Caraparó; pela direita, o Marípá [curiosamente, a toponímia ainda conservava étimos da área guianense, onde, por exemplo, esse Maripá; em tupi Inajá], Turauá, e Juruba, e rio de São Miguel; depois de Camará o Maruacá [onde se vê da raiz nuaruaque que vai formar Maruaná, primitivo habitante de Soure], o Guaruari [observar a desinência “ari”, em aruaque; rio],  onde está Condeixa, o Xipocu, ao pé de Monsarás, o Jobim abaixo de Monforte [observar que, às vezes, se confunde a antiga Vila de Monforte com a atual cidade de Soure ou Salvaterra, o que fica claro que não], o Paraucauari, que recebe à esquerda, rio acima, Jaoitaratuba [Jacitaratuba?], e Carnaoca, e, pela direita, o Maratacá, abaixo do Pesqueiro que está ao pé do Igarapé Oaitama o rio Cajuipe, por outro nome Cajutuba [do tupi, “caminho do cajuí” e “lugar de muito caju”, respectivamente]; assim por diante o Camarupi, o Cambu, que tem uma boca larguíssima, o Umerituba [Marituba? O mesmo que Umarizal: nossa hipótese para o nome registrado por Pinzón (1500), “Marinatambal”, melhor grafado Maritambo, lugar de mari ou umari, em línguas guianenses], e Jarau donde principia a ponta da Coroa de areia chamada Maguari, e corre ao mar.

Semelhantemente, contracosta acima, aparece o rio Guaiapoava [este nome tupi parece se referir aquele povo que habitou o extinto Lugar de Vilar (os “Guaianases”, ao qual também Vieira fez registro) provavelmente nuaruaque, “Gua” ou “Waya” e “pó”, semelhante a; mais “aba”, gente], que já tem fazendas de gado, e reparte um braço que é o chamado rio dos Aroans para a parte do rio Ganhoão [Wayã? A autodenominação dos Guaianá ou “Guaianases”?]; e o outro braço para a esquerda em direitura para o Lago Arari [nuaruaque, “ara”, arara; e “ari”, rio]: segue-se então o Ganhoão, o Cajutuba, o Guarapixi [observar o hibridismo que se vai desenvolvendo, a partir de nomes aruaques e tupis, devido à ocupação portuguesa], o Camarão Tuba [lugar de muito camarão, hibridismo tupi-português], e o furo de Cajuúna [“caju preto”, isto é a variedade cajuí], que sai ao Rio [dos índios] Anajás, donde se encaminha até a ponta do Parauaú [o Rio Pará, em direção a Breves, pelo nheengatu: Pará-Uaçu, Grão-Pará em português]. Recebe o Rio Anajás os 4 rios, que são: o Cururu, o Mocoões, ambos caudalosos, o Ipecaquara, e o Camotim; nenhum como o Anajás anda mais nas meninas dos olhos do Comandante: é pelas boas terras que tem para cacauais, cafezais, arrozais, tabacais; produz excelentes madeiras e nele se puseram três fábricas [barracão para lavrar madeira] para se tirar o preciso para a fortificação de Macapá: dentro dos seus matos há muito timbó-titica, timbó-guaçu, e muita casca preciosa, tem muitos porcos [queixada, selvagem], veados, antas, onças, tigres, e inumeráveis espécies das outras classes de animais; fica a sua foz defronte do Macapá, e para lá manda o gado preciso pelas muitas fazendas que dele tem. Desta foz, deixando à direita infinitas ilhas, e rios, vêm-se até o Paraoaú, abaixo do sítio do Capitão Prudente Hernandes quase junto ao Tajapuru, caminho das canoas do Sertão [que subiam o rio Amazonas], e dos que vão para o Macapá, e aqui faz outra ponta à Ilha de Joanes, voltando-se pelo rio Paraoaú [o dito Rio Pará], está para baixo o Guajará,e, deixando este, se vai pelo Mutuacá; e segue-se o Pexiá: depois, costa abaixo, o Paracaúba [Pracaúba, em São Sebastião da Boa Vista], adiante do rio Mucaná [Muaná?], o Atuá [jacaré, em caribe], e dentro neste, à direita, rio acima, Anabiju, com águas também do Tauá; segue-se o Igarapé grande, Pariru  [Paruru, banana pacova; em nuaruaque], despois o rio Marajó-guaçu, que dá o nome a toda a Ilha (grifei), e afinal o Igarapé-puca que, entrando por ele dentro, fura o rio Arari, e pois que já estes montam acima de de cinqüenta e tantos rios, sem haver incluído os Igarapés, examinarei igualmente os Lagos,...”.

Acerca da civilização lacustre

“... que forem mais óbvios sobre a Carta da Ilha, que a seu modo traçou o Comandante: à direita logo que em se entrando pelo rio Arari [margem esquerda] ficam os Lagos de Mortucu (sic), do rio Mauá, do Guaiapi [termo tupinambá provavelmeten, “caminho do Guaia” / Waya; do povo Cayá ou “Guaianases”?], e além do Lago grande do Arari; segue-se para o Centro [da Ilha], outro, o Apeí: segue-se à direita do Lago grande o Lago de Santa Luzia, e, para a esquerda do mesmo, o de Santa Isabel; da banda do Guajará estão os lagos, do rio Guaiapaúba, ou rio das Tartarugas, o mesmo Guaiapaúba tem Lago no braço que chamam rio dos Aroans, e no tempo do inverno se comunica com os Lagos do Bolho (sic), Mucuon e Cururu, e, por não implicar esta notícia com a outra das situações, bastará que respeitemos os nomes dos Lagos que têm os rios especificados, como são o do rio Ganhoão, do Guaiapuca, os dos Anajás, Taraira, e Canga, e Jacaretuba, e do Camotim, e do Maguari Guicaúba, e do Tucunari, e do Paracuuba, do Atua, do Marajó-Guaçu, do Jaburaicá, do Quio, e Caraparó, do Tarauá, que se comunica com o do Jobim, do Jatuba e do Paracauari; e, no centro do rio, os Lagos grandes das Frecheiras, Laranjeiras e Três Irmãos e Morotim-pecu, e Jacarés, e Lago de Carnaoca, e do Cambu, e outros, sendo certo que todos estes e do Arari, e do Guajará são os mais consideráveis pela sua grandeza e continuação de água que muitos outros; por pequenos, não se especificam na relação dos Lagos como também pela falta de observação total que, sem dúvida, os faria montar  assim aos trinta e tantos já indicados. E, suposto que os rios desde o Paracauari, costa acima, até o Atua à exceção de um, ou dois, todos os mais tinham duas, três Cachoeiras; estas são tão baixas que, com enchente, se passam; nem do Paracauari, costa abaixo, até o Maguari, e deste, costa de Amazonas, voltando sobre a Ilha, a vir buscar o Atua, há mais Cachoeira ou beirada de pedras: porque desde o Pariru [Paruru, banana pacova], costa abaixo, até o Igarapé-grande [ou rio Paracauari], abaixo de Monforte [antiga aldeia de Joanes], é que se observam recifes de pedras, avançadas ao mar:...”

Sobre a cegueira amazônica

“... em conseqüência de fertilidade, que às terras comunicam estes rios, tudo produz, e de muito mais produções é capaz a ilha grande; não quero dizer com isto que toda planta em todo o lugar dela produzirá tão bem como em outro terreno, que lhe for apropriado. As plantas são como os animais; têm suas pátrias, escreveu Virgilio; nem toda a terra produz fora do seu clima: os jardins da Europa, sem embargo disso; que infinidade de grama para pastos, e das plantas geralmente que são aquáticas não produzem os alagadiços! Em que se torna o mais  grosso na Ilha: do arroz é fama constante que é mais graúdo, e pesa mais que o das outras partes porque pesando o alqueire duas, ou três partes em arroz inteiro de 28 até 30 arráteis [antiga medida de peso, correspondendo a 429 gramas, contendo 16 onças; 15 quilogramas aproximadamente], o da ilha grande em igual medida monta no peso até 40: é este um gênero que cultivam os lavradores, e transportam para a Cidade mas não cultivam naquela abundância, que deveria resultar de ser esta planta, que, com preferência a outra, se despreze nos alagadiços nem possuem no seu auge a arte de, com menos gente, trabalhar muito, parecem-se as suas lavouras ensaios de agricultura rústica, e acaso é que ainda assim depois de confiada a semente em um alagadiço que não tratam depois de ser devorado pelos pássaros a maior parte, são no seu tanto copiosas as colheiras. O que então não faltam, depois das chuvas, são os pastos para o ado: foi esta uma observação tão constante, e palpável às mãos destes cegos (frisei) [Alexandre Ferreira, por razão oposta, século e meio depois repete o tema da cegueira dos habitantes da região] que não puderam deixar de ceder aos convites da natureza, que lhes insinuava a criação de gado: o primeiro que situou no rio Arari, fazenda de gado foi Francisco Rodrigues Pereira: o lugar em que a situou foi logo à boca do rio para a direita no Sítio que chamam Amanegituba defronte da fazenda de Santa Ana dos Religiosos das Mercês; situou aqui porque receava entrar pelo centro onde, informava um dos companheiros, que havia gentio bravo e homens foragidos (frisei) [índios Aruã, desertores e escravos refugiados]; vendo, porém, que depois tanto melhores eram os pastos e tanto mais abundantes quanto mais se chegava para o centro, situou-se mais acima em algumas 5, ou 6 paragens, como a Cachoeira, o Pau Grande, Santa Rita, Curral de Meias, São Joaquim e o Lago Pata. Seguiram-se à sua imitação os Padres das Mercês, os Religiosos do Carmo, Jesuítas e os Seculares [civis, sem filiação a nenhuma ordem religiosa].

Sete foram as fazendas de gado que na Ilha tiveram os Jesuítas: 4 no Arari e três no Marajó-Guaçu; das 7 fazendas considerarei as que tinham no Arari; em primeiro lugar, a saber, a primeira rio acima, é a fazenda de Nossa Senhora dos Remédios, em que foi contemplado o Mestre de Campo José Miguel Aires, hoje de seu filho Antonio Miguel Aires; a 2ª, no Igarapé São José, em que foi contemplado o defunto José Correia de Lacerda; a 3ª a do Menino Jesus, no rio Mari, à esquerda, em que foi contemplado o Sargento-Mor da Praça, João Baptista de Oliveira, hoje de seu genro, o Alferes Antônio José Lima; 4ª, a fazenda da boca do Lago Santo Inácio em que foi contemplado o Sargento-Mor da Cidade Manuel José Henriques de Lima, hoje de seu genro Sargento-Mor de auxiliares Carlos Gemaque: além destas 4, farei menção: dos dois retiros como chamavam, isto é, duas fazendas de beneficiar gado: uma nas cabeceiras do Lago Nanatuba, em que foi contemplado o Coronel Manuel Joaquim Pereira de Sousa Feio, e outra, nas cabeceiras do rio Anajás, que deságua no Arari, contemplação do Sargento-mor José Pedro da Costa Souto Maior. Quanto as três do Marajó-guaçu, na de São Brás contemplou João Falcato da Silva: nade São Francisco o Sargento-Mor Domingos Pereira de Moais [erro do texto tipográfico, leia-se Moraes]; na do Rosário o Alferes Francisco da Costa Almeida da Silva, hoje de sua mestra Dona Ana Felícia de Queirós, que já acima disse, que casou segunda vez: Não falo da fazenda de Santa Ana, entre as que possuem na Ilha os Religiosos das Mercês porque só consta de olarias, roças e não tem gado: acima do rio Arari um bom espaço para a direita tem a fazenda de gado de São Jerônimo; seguem-se adiante do mesmo rio a de São João, e de Nossa Senhora das Mercês, que é fazenda grande: antes do Lago, para o lado esquerdo, a de São Pedro Nolasco, e no mesmo Lago a fazenda grande de São Miguel. Nas cabeceiras do rio Guaiapi, que desemboca no Arari a de São José: no Rio Paraucauari [confrontar grafia anterior, Paracauari; a terminação “ári” é típica das línguas de tronco Arwak, com a significação de rio], rio acima, à direita as de 2 de São Lourenço, e Santo André; mais dois retiros, o de Santa Ana, e o outro do Lago de Guajará: estas são as que existem porque, para as fazerem maiores, incorporam com elas as terras das 7 que demoliram; a saber, a que herdaram de Manuel Alves Rosa, a do Cururu, a de Santa Maria do Socorro, a do Menino Jesus, a de Santo Antônio, a das Almas, e a da Conceição da banda e São Pedro Nolasco: a que tinham no Murutucu já a venderam a Custódio da Silva.

Os que menos fazendas tem na Ilha são os Carmelitas: das 5, que possuíam, a fazenda da Assunção no rio chamado Jutuba, e outra perto desta chamada Atuxiá; a que tinham com o nome de Santa Maria já a  venderam.

Ajuntando às sobreditas fazendas as outras mais dos particulares, que todas montam acima de cento e tantas, fica sendo infinita a soma de cabeças de gado vacum e cavalar, que deve produzir na Ilha: mas produz ela tantas como pode produzir! Para resolução deste problema eu junto ao meu papel a cópia do resumo da quantidade de gado vacum e cavalar que ao Exmo. Sr. Martinho de Sousa e Albuquerque apresentou o Inspetor Geral: Parece que é a diferença bem notável a que tem 0 3º triano à vista do n.º deste mapa; de modo que no primeiro triano, a soma total de gado vacum, entre bois e vacas, não passava de 63.255 cabeças; a do 8º triano montou a 102.337; a do gado cavalar,  entre cavalos e éguas no primeiro triano não passava de 5.018; a do 8º triano montou a 17.352”.

Números que merecem reservas, pois como ainda hoje a pecuária extensiva nesta Ilha apresenta grande dificuldade para contagem real dos rebanhos soltos pelos ermos longínquos. Ainda mais naquelas eras! E ainda mais o componente político, que cercava o seqüestro dos bens das ordens religiosas e as dádivas do Estado a particulares fiéis ao governo colonial.

Da fabulosa pecúnia das Missões ao vulgar roubo de gado, por esporte

“Quem viu algum dia a Ilha Grande, quando Sua Majestade se representava, que eram nela tão numerosas as cabeças de gado, que salgadas que fossem as suas carnes e remetidas em barris tiraria delas Sua Majestade as provisões das Armadas; quem vê a fertilidade das terras e fecundidade dos animais de todas as classes não pode suspender a admiração que causa o que depois sucedeu. Chegou-se a terrenos de não haver quase gado algum: enquanto o havia em abundância até era divertimento passar-se do Pará ao Marajó, e em havendo pólvora e bala durava tanto a caça das reses, quanto a munição: morta a rês o de que se tratava era de lhe tirar o couro; ficavam as carnes pelos campos para pastos dos corvos. Os proprietários das fazendas indiscrimidamente matavam os vitelos e vitelas. Persuadiu-se o administrador das fazendas das Mercês do Arari, que aos Padres se tomavam as fazendas, e para lançar mão do gado furiosamente entrou a matar vacas sem deixar recurso à multiplicação; o tempo em fim que se devia empregar em aumentar as fazendas começadas, foi preciso consumir-se depois em as restabelecer.

Sentiu de tal modo a Cidade do Pará as conseqüências destas desordens (frisei), que foi o Capitão General obrigado a remedia-las; deram-se as providências precisas, e delas são fruto a conservação do gado, que presentemente há, e a esperança do que pode haver. É verdade que influem muito na multiplicação anual dos filhos e conservação dos pais as mudanças dos anos, nas respectivas estações: se duram muito as secas do verão, como durou esta [o estio de 1783], morre então infinito gado: o que pasta nos sertões das Ilhas tem sempre pasto, mas morre à sede, porque secam alguns traços e Lagos; o que tem água nos rios não tem pasto nas beiradas, e morre de fome: uns e outro cansados de longas marchas em diligência, ou de água os que vem do sertão nos rios, morrem neles atolados no tijuco: vêm sequisosos, como disse, bebem imediatamente a água da beirada, está toda enlodada em tijuco, e passam a procurá-la mais para a corrente atolam-se no tijuco até em cima, constipam-se, não há ali logo quem os salve, assim morrem muitas reses, cavalos, assim vi eu desde a fazenda do Arari onde estive até o Lago do rio, para cima de vinte e tantas mortes.

Eis aqui agora de onde tiram os proprietários a maior parte das carnes secas que vendem por 1.000 réis: aproveitam-se depois dos couros e tudo entra na conta das carnes, que remetem para a Cidade: outra coisa é certa que para o Açougue desta mesma embarcam ainda do Marajó o gado preciso; nem o que se embarca ordinariamente chega em termos de se matar; quanto à primeira dizem-me que na carreira do transporte do gado andavam 14 canoas (3 de [ilegível] e 11 do contrato) ao presente dizem-me que andam 12, a saber: 9 do contratador, uma do Coronel Manoel Joaquim; outra dos Padres das Mercês e a última de Luís Pereira da Cunha; é, sem dúvida, que a maior canoa dos Padres das Mercês embarca até 50 cabeças, a tanto não chegam as canoas ordinárias do açougue: Quando na cidade se matam 30, até 36 cabeças, como agora sucede, padece o povo, que não tem outra coisa de que se sustente nem ainda que haja é tão barata como a carne; quando à segunda do miserável estado em que chega o gado eu sou testemunho ocular, porque eu o vi embarcar no Arari: ainda pastando o gado, pelos campos das fazendas que tem pasto em que se embarca, a duas, três e mais léguas de distância; do tal porto vão os vaqueiros nas antevésperas do embarque escolher, ajuntar e conduzir para os currais do porto as cabeças que hão de embarcar; sequiosas, abafadas e aquiloadas, chegam ao curral, e se ainda não chegou a canoa nele se demoram sem comer 1, 2 dias. Sem comer se embarcam na canoa onde sem comerem andam 3, 4 dias de viagem, fora os que tem de espera que as matem no açougue. Custa um boi 2.000 réis no Marajó, e 2.500; uma vaca 1.200, ou 1.600; um garrote 800 réis; mas cada cabeça que se embarca na canoa do contrato, se bem me lembro, é tomada por três mil réis em conseqüência do risco; quanto teria trabalhado a Holanda neste país sobre o sebo, a manteiga, e o queijo: pois gêneros são estes de que apenas vi aparecerem algumas mostras.

E como não hão de ser férteis estes campos! Pelo inverno, estercados com o sedimento das águas, que os inundam todos; pelo verão, com as cinzas das queimadas, que fazem; além da resolução [decomposição] das folhas secas que passam à terra em um ou outro tempo estrumadas com os estercos de tanto gado; o nitro no meio destas estercarias tem o seu domicílio; o mato com a facilidade floresce; as plantas acham a terra substancial, e o que agora é uma roça, daqui a dois anos é um mato.

Outro gênero na Ilha de notável consumo na Cidade são as águas ardentes da terra [cachaça] , que nela se fazem. Nas tais aguardentes consomem a cana toda que plantam e enchem a boca os proprietários de Senhores de Engenho, não sendo mais que de engenhocas que nem engenhocas são em comparação com as da Bahia; até é vergonha dizer-se que em terras aonde se planta cana não há um arretel de açúcar, que não seja comprado na Cidade: tudo produz a Ilha, Sr. Exmo., nas terras apropriadas a cada planta; tenho visto de altura de duas vezes pelo mato: mas ninguém o cultiva: dá-se bem e muito bem o arroz, que já falei em outra parte: o algodão, o cacau, e o café, o urucu, o tabaco; de todos estes gêneros a agricultura do país, quando muito, o que apresenta são algumas amostras: para que mais, se a mesma farinha de que se sustentam é plantada sem mais custo que o seguinte: queimam o mato, e ficam na terra as raízes das árvores e ainda estacas das mesmas: por entre estas estacas, enterram no terreno duro a estaca da maniba, está plantada. Ora quem sabe, como eles, que o que se quer desta planta são as raízes, sabe também que quando mais movida for a terra, e suficientemente solta ao plantar em covas como se faz na Bahia, menos obstáculo encontram as raízes para crescerem em todas as suas dimensões, e fazer-se, por conseguinte, mais copiosa a colheita; sem embaraço disso, há curiosos de experiências que plantam o cominho gergelim, de que tiram o azeite com que frejem [fritam] peixe: e de uma árvore chamada pau de breu recolhem os moradores de Ponta de Pedra no Rio Atua o chamado breu, que vai para a sua [ilegível] dos índios e na Cidade vende a arroba por 640 [réis]. Só nas fazendas dos curiosos [experientes] se acha alguma couve, repolho e poucas outras hortaliças”.

Da fauna marajoara comida pelos séculos

            “Nadam nos rios infinitos peixes-bois, e pirarucus, pirauíbas (sic), arauanas [aruanãs], dourados, pescadas, mandubés, traíras, jejeis [jejus], acarás, serapós [sarapós], tamoatás, pirapocus, piranhas, poraquês, aracus, corimatás, tucunarés, anojás [cachorrinho-do-padre], jacundás, fora os jabotins [jabutis], tracajás, muçuãs (são cágados) e tartarugas: nas outras classes de animais, como nas dos quadrupés (sic), tem infinitos morcegos; símios de muitas castas, tatus, tamanduás, preguiças, quatus [coatis], quatipurus, mucuras, raposas, onças, porcos bravos [queixada e caititu], e porcos de espinho [cuandu], antas, capioaras [capivaras], ouriços [o naturalista confunde, é o mesmo porco espinho], periás [preás; evidentemente Alexandre Ferreira louvou-se nas informações prestadas por Florentino Frade e seus subordinados, relevando-se portanto a grafia do ditado], cutias, pacas, veados, lontras, etc. Entre as aves são notáveis o tijoju [tuiuiú], jaburu, maguari, urubus pretos, urubus tingas [brancos], as corujas, mochos [jacurutus], corvos [equívoco, ou talvez se refere ao urubu jeréua, ou urubu belo], papagaios, araras, tucanos, araçaris, e de papo branco, e encarnados, as marandubeiras [maracanãs?], amanaciras [curicas?], tem-tem, guará, jacamins, anus, anumás, imensos gaviões, e pássaros pequenos, como beija-flores, tiepirangas (sic), cardeais, gaturamas, sanhadus [sanhaçus, ou suís], viúvas do Brasil (?), etc. Os anfíbios são os maiores; as cobras socuruju [sucuriju], jibóia, e o jacaré, a que acompanham outros lagartos, insetos, e vermes são a praga do País”.


700 almas do Pesqueiro Real a ver navios encantados

            “Tais são as produções que pude observar de passagem pelo espaço de 23 dias que estivemos na Ilha Grande demorando-nos somente na Vila de Monforte, e na fazenda do Arari; consumiram-se em viagens enfadonhas pela costa, pelo rio Arari; daí volta os dias que restam para completar os que contamos desde 7 de Novembro, que embarcamos para Monforte até 10 de Dezembro que desembarcamos no Pará. Não deixei de notar a perspectiva da Vila de Monforte pelo seu exterior assim como a olhei pelo seu físico. Está situada sobre a costa e olha para o Canal da Cidade. Nele observa os navios, que demandam o porto do Pará, e da Vila expede o Comandante uma canoa de aviso ao General dando-lhe parte do Lugar em que descobre o navio, do seu tamanho, e o mais que pode observar: conta por todas 700 almas; dá aos índios precisos para o contrato de pesqueiro real que tem ao pé, onde se pescam infinitas tainhas, além das gorujubas [gurijubas], e mais peixes da Costa; os índios desta Vila são geralmente tidos por mui forçosos, industriosos, e trabalhadores, mas tem sido tantas as Portarias a tirar os índios da Vila para serviços particulares, tão penoso o trabalho do pesqueiro (frisei) que leva quase os homens capazes de trabalho da Vila, que não mentirei se disser, que nem tempo tem para do pesqueiro virem à Vila a levantar as suas choupanas caídas, para cuidarem das suas roças. As doenças não são muitas, nem as que há, passam pela maior parte de constipações, ainda pelas outras partes da Ilha reinam particularmente as doenças inflamatórias com as mais que resultam da atmosfera quente, e úmida diariamente: Os índios também não sabem nem alguém os ensina a corrigir de algum modo os defeitos naturais do clima, e ainda que o soubessem não podem agora cobrir as suas choupanas tão baixas, e rente com a terra úmida, e, no inverno, alagada, quanto mais levantar as choupanas, assoalhá-las, e prevenir por outros muitos modos a podridão. Estou em dizer, Sr. Exmo., que mais escravos ficaram os índios depois de declarada a sua liberdade do que antes da declaração (frisei) [Alexandre Ferreira se refere à lei de liberdade dos índios, com que o governo de Pombal justificou a dissolvição das missões e expulsão dos Jesuítas; dando origem à servidão do Diretório dos Índios]. O Sr. do índio (escravo, “negro da terra”) zelava na sua vida o seu dinheiro: hoje não importa que adoeça, que morra, que estoure de trabalho, porque nisso de ele trabalhar ganha o Contratador, o Diretor, o Juiz, etc.; de ele morrer ninguém perde, porque vem outro, e quem perde hoje um, amanhã outro é, Sua Majestade que nem conserva as Vilas, nem até ao presente experimenta as atitudes que há muito deviam ter resultado dos seus muitos altos desígnios.”

Teoria da cobra grande: ou a notícia do rio Arari

            “Concluirei esta representação, que seria inifinita a escrever tudo o que observei, dando a Vossa Excelência uma sucinta notícia do Arari: É o rio mais complicado, com voltas e rodeios, que espero ver, de modo que para, de sua boca subir-se ao Lago, é mais o tanto que se gasta em desandar as voltas andadas do que avançar-se adiante; pela sua beirada de uma a outra parte estão sitas muitas roças, e engenhocas de açúcar para as águas-ardentes que tiram, e fazenda de gado vacum e vacalar: É galante a teoria do rio que ouvi a um índio sendo perguntado pela razão daquelas voltas, e portanto escrevo: A Ilha no seu princípio, diz ele, não tinha estes rios mas tinha pela terra dentro infinitas cobras: estas obrigadas das secas corriam do centro para a costa a buscar a água: no caminho que faziam de rastos pela terra deixavam com o peso e grandeza dos corpos impressas nela as suas figuras, assim mesmo tortuosas, e implicadas em torcicolos, como elas são.Caíram as águas das chuvas sobre este rasto que achavam feito, e no seu princípio abriram regatos: engrossaram depois os regatos, e ficou sendo total o grande rio o que não fora, no princípio, mais que um regato da grossura de uma grande cobra.”

Potomografia

“Tenho dito, em outra parte, quais são os rios que desembocam neste [rio Arari] e qual a situação da sua boca a respeito da Cidade do Pará: é bastante muito largo à entrada, e estreita depois; mas nunca tanto, que por ele deixem de navegar as maiores canoas de gado; recebe as marés da costa até junto ao lago, ou ao mesmo lago aonde são menos sensíveis: todo o seu fundo por baixo desde São Pedro Nolasco para cima é tijuco: monta com as enchentes das águas acima das terras, e vai tingir os toros de paus, e troncos das árvores da beirada: quando principia a chover, as águas do rio Anajás [refere-se ao Anajás-Mirim, o qual por sua vez conflui também com o Anajás Grande na estação da cheia], que desemboca no Arari, em vez de buscarem a boca deste rio sobem para o seu lago [este fenômeno se deve ao fato de que a Ilha tem configuração de um prato, com suas bordas mais elevadas do que o centro do qual o Lago é precisamente a parte mais funda] a inundá-lo, e só depois de superabundar bem a água é incorporado com o Arari desde o Anajás; o que procede de ser mais rebaixada a terra para o Lago. Já da fazenda de Nossa Senhora das Mercês [aqui o folclore marajoara fez morar debaixo da capela a cobra grande, que não pode ser retirada de seu altar a imagem de Nossa Senhora sem perigo de terremoto devido à revolta da dita cobra], para baixo, algum pedregulho se encontra tinto de ferro, e argila corada diversamente da qual fazem as panelas, potes, e outros vasos grosseiros (frisei) [informação interessante à hipótese do encerramento da fase arqueológica marajoara ter conotação com a invasão dos Aruãs e deslocamento dos grupos mais antigos como os Joanes (Sakaka) ou Yoana para a costa sudeste da Ilha, dita Costa-Fronteira do Pará na crônica do século XVIII, distante de jazidas de argila usada na fina arte cujo apogeu se situa próximo a 1300: a falta de matéria prima somada à perda de território e deslocamento forçado dos construtores dos tesos e cultura lacustre dos campos inundáveis com a perda das reservas de peixe do mato, poderia talvez ser uma pista a mais para entender o fim daquela célebre fase].

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