Ponta de Pedras, Marajó-PA. Vestígios do Igarapé do Vilar (antiga aldeia dos índios "Guaianazes") extinto por assoreamento da foz na baía do Marajó e esquecido por incúria do patrimônio público.
registro fúnebre de um igarapé que morreu
O último suspiro do Igarapé do Vilar aconteceu em fins da década de 1960. E a "pá de cal" foi a estrada da Mangabeira para o Jaguarajó, certamente carecia de uma pequena ponte e dragagem competente. Antes de chamar-se Igarapé do Vilar este extinto curso d'água do município de Ponta de Pedras foi porto de canoas de pesca da velha aldeia dos "Guaianazes" [segundo convenção internacional de antropologia deve-se grafar "dos Guaianá"], primeiros habitantes de Ponta de Pedras na faixa litorânea da baía entre os rios Arari e Marajó-Açu.
Sabemos que rios, lagos, igapós, igarapés e outros tipos de curso d'água podem ter morte natural. Nada porém que atividades humanas predatórias não possam acelerar... Foi o que aconteceu, certamente, como o falecido Igarapé do Vilar. Também, com exemplo dos holandeses, havendo técnica, recurso financeiro e vontade política em certos casos cursos d'água podem ser revitalizados.
Em 1996 proposta da prefeitura de Ponta de Pedras ao Ministério do Meio Ambiente, via SECTAM (hoje SEMA-PA); para revitalizar o Igarapé do Vilar foi encaminhada no bojo de projeto socioambiental mais amplo; fazendo dele parque municipal para turismo tendo às margens memorial dos povos marajoaras incluindo domo de amostra de arqueologia marajoara para fins educativos e turísticos. Caso não tenha sido destruída a proposta original ainda deve estar na SEMA à disposição de pesquisadores.
Realmente, era um belo projeto que poderia ser referência na região. Mas prevaleceu visão de curto prazo, o governo optou por diminuir recursos do pretendido efeito demonstrativo do projeto de Ponta de Pedras e aumentar o número de participantes. Assim, além do dito igarapé já estar morto, matou-se também o projeto. Carece fazer arrodeio para voltar adiante ao assunto específico.
Estudos geográficos e históricos da região estuarina do Marajó são complicados por complexos fatores que vão da simples falta de fontes confiáveis até à sistematização e divulgação das mesmas entre a populações de seus dezesseis municípios com mais de 500 comunidades locais, em três microrregiões: Arari, Breves e Portel, sendo insulares as primeiras e a última localizada no continente, entre a foz do Xingu e do Tocantins, num total de 410 mil habitantes e 104 mil quilômetros quadrados de superfície (maior do que alguns países independentes).
Em geral, cada município destes é um "Marajó" diferente. Existem municípios onde suas localidades distantes uma das outras mal se conhecem e, principalmente, ficam longe da sede municipal. Fato que torna menos difícil aos cidadãos pedir assistência ao município vizinho do que viajar com risco e custo maior à sede.
Todo mundo aí conhece "seu" pequeno Marajó e está pronto a brigar por ele. Sobretudo, durante eleições, de dois em dois anos. Todavia, são poucas pessoas que podem falar razoavelmente a respeito do Marajó como um todo: não raro, as pessoas mais ilustradas, numa população onde metade não sabe ler nem escrever; confundem a história dos lugares com a data de emancipação municipal.
Em muitos casos é recente a definição exata da autonomia municipal e o povoamento local. O município de Ponta de Pedras, por exemplo, um dos mais antigos povoamentos da longa era pré-colonial e da colonização do Marajó, esta depois do século XVII; somente foi emancipado em 1878.
Embora o Arquivo Público do Estado do Pará (APEP) tenha fontes para história dos municípios, os estudos conhecidos em relação a criação do município às margens do rio Marajó-Açu somente foram de conhecimento público local no centenário (comemorado em 1980, após dois anos visto que se ignorava a documentação de instalação da Câmara da nova vila sede do município).
Aliás, além de se tratar de uma "ilha" excêntrica - na verdade, território estadual (104 mil km²) constituído de mais de mil ilhas (65 mil km²) e continente (39 mil km²) - cujo "centro" político se acha na capital do estado, Marajó também é "bicéfalo", social e economicamente falando, como dependência geográfica de Belém e Macapá.
Trata-se de um fenômeno geral no Brasil onde grandes meios de comunicação seguem "informando" que somos um país jovem de apenas 500 anos, descoberto por Portugal. Sabe-se, recentemente, que a historiografia brasileira moldada pelo Império de Pedro II está sendo revisada por novos estudos de história pós-colonial. Mas seria muita pretensão de uma região hiperperiférica querer fazer seu autodescobrimento?
Ou seja, o Marajó grande é território insulado pela história, mais que insular pela geografia física; compartilhado de fato ao norte pelo estado do Amapá através do rio Amazonas, e ao sul pelo estado do Pará através da baía do Marajó. Por tudo isto, uma demanda popular à Presidência da República em 2006, tendo a Diocese de Ponta de Pedras e Prelazia do Marajó como porta-voz da gente marajoara, resultou na elaboração do "Plano de Desenvolvimento Territorial Sustentável do Arquipélago do Marajó - PLANO MARAJÓ", lançado na cidade de Breves, em 2007, conjuntamente, pelo Presidente da República e Governadora do Estado.
O PLANO MARAJÓ representa, com certeza, o maior fato histórico pós-1988 nesta região amazônica, justificadamente chamada a "Amazônia Marajoara". Todavia, depois de sete anos - a idade infantil da Amazônia Marajoara nascida de "cacos de índio" no Museu do Marajó, em 1972, e da Arqueologia amazônica como renascimento da velha Cultura Marajoara - ainda está engatinhando e patinando em contradições de suas próprias origens.
Uma crítica pertinente se faz necessária para própria salvação do PLANO MARAJÓ, antes que este instrumento estratégico de desenvolvimento territorial sustentável volte a reincidir nos mesmos erros e ficar só nas belas palavras. Mas, como os planejadores do desenvolvimento regional vão operar sem conhecer a história da região além do "Descobrimento" luso? E deliberar sobre uma geologia e hidrologia que pouco se conhece?
um problema de base: a descolonização tardia
Mais de uma vez Dom Azcona, Bispo do Marajó; denunciou a doença mais grave, mãe de todas enfermidades da Pobreza... Em vez de buscar remédio o ameaçaram de morte para que se cale. Pra que comemorar datas e figuras ditas históricas sem conhecimento de fundo e contexto históricos? Pra que servem festivais supostamente de cultura popular que terminam em violência e assassinato de jovens? Pra que servem fragmentos de cerâmica?
Sim, tudo isto em resumo e muito mais é o tal IDH (índice de desenvolvimento humano) em questão. Mas a esquizofrenia social é ampla e irrestrita e, portanto, o remédio deveria ser remendar "cacos de índio" e localizar o desenvolvimento socioambiental das 500 "aldeias" (localidades) do Marajó inteiro.
Certamente, o primeiro passo para o desenvolvimento humano das regiões hiperperiféricas começa com ações afirmativas de cidadania e transferência de renda, como os programas Fome Zero e Bolsa Família, por exemplo. Porém isto é apenas emergencial como levar um paciente com hemorragia ao pronto socorro. Passada a crise é que começa de fato o tratamento e cura.
No caso da "Criaturada grande de Dalcídio" (populações tradicionais) a inclusão socioambiental começa com a regularização fundiária de moradores de sítios, secularmente espoliados; complementada por plano de manejo e educação ao desenvolvimento sustentável local (tripé social, econômico e ambiental). Ainda assim, o Desenvolvimento Humano não estará completo se a História da gente estiver só pela metade.
A insegurança em geral das fontes de pesquisa e falta de divulgação de dados consolidados reflete antigas questões ligadas à conquista e colonização do rio Amazonas disputado por espanhóis, portugueses, franceses, holandeses e ingleses.
As fontes escritas, portanto, são em geral equivocadas, precárias, pouco estudadas e os estudos escassos não chegam à população da forma que deveria ser.
Trata-se, evidentemente, de um falha considerável da Educação numa região hiperperiférica da Amazônia brasileira. Ironicamente, localizada a pouca distância de duas capitais estaduais, Belém e Macapá.
Portanto, o baixo IDH da gente marajoara não acontece por geração espontânea, mas consequência de séculos de omissão do estado-nação em contraste com a mais notável civilização originalmente brasileira e primeira cultura complexa da Amazônia. Do ponto de vista da burocracia de Brasília e Belém, o PLANO MARAJÓ faz prova de que a gente marajoara está contemplada pelas preocupações oficiais. Mas para quem perdeu a noção de tempo e lugar na "ilha" de sua aldeia extinta por decreto, tudo isto é apenas presepada sem maiores consequências. O analfabetismo, por exemplo, que se poderia reverter em seis meses e levar adiante em educação continuada é simplesmente uma piada.
A realidade é que são poucos os pesquisadores e as pesquisas acadêmicas especializadas acabam ficando distantes do conjunto de professores da rede escolar de primeiro e segundo graus de ensino que deveriam normalmente ser difusores destes conhecimentos para a população.
É claro que tal problema de extensão do conhecimento acadêmico não é exclusivo desta região. Porém, pelo fato de se tratar do maior arquipélago fluviomarinho da Terra e região de ocorrência da mais significativa cultura pré-colonial do Brasil, Marajó chama atenção como exemplo da marginalização de todas mais regiões culturais do Brasil politicamente isoladas. Um caboco poderá ser diplomado em escola de branco, mas o que ele aprendeu se aplicado pouco tem a ver com a vida real desta gente ribeirinha. Daí que o ensino é maçante e acentua desigualdades pelo incentivo à pequena burguesia local divorciada da totalidade do interior.
a sombra do índio marajoara na região das ilhas
Não se pode tapar o sol com peneiras, Marajó entre 120 territórios de baixo IDH é rico em história, diversidade cultural e biodiversidade. O "case" Guaianá é um exemplo de exclusão histórica e extinção ambiental. Quando o chamado PPG7 (plano piloto do grupo dos sete países mais industrializados do mundo) decidiu disponibilizar recursos aos municípios para projetos de execução descentralizada coube a Ponta de Pedras, por sorte e azar ao mesmo tempo, cerca de 1996, ver aprovado o chamado PED-Guaianá de infeliz memória.
O nome "Guaianá" os pontapedrenses nunca ouviram falar... Parecia inventado como essas peças de propaganda estrangeira. Pelo menos um provável descendente deste povo original do município de Ponta de Pedras, induzido por sabotadores contumazes da cultura popular; expressou seu desconhecimento, dizendo ele inclusive, nunca ter ouvido falar de índios naquele lugar.
Certamente, esse trabalhador descendente de indígenas marajoaras também nunca ouviu falar de uma coisa terrível chamada Diretório dos Índios (1757-1798), quando seus antepassados foram lesados em meio à luta entre o problemático iluminismo português e a ultrapassada escolástica jesuíta. Este fato central para o conhecimento histórico da Amazônia, com foco na ilha do Marajó; foi como um berro do Marquês de Pombal no Paço da Ribeira, dizendo "deleta a Companhia de Jesus!"...
Pombal atirou no que viu e acertou no que não viu: mirou aos padres e atingiu os índios. Fomos, por decreto, considerados súditos de Portugal. A ordem foi apagar tudo, até o fato de que os marajoaras nativos são índios de nascimento, herdeiros da Cultura Marajoara, de mais de mil anos.
Isto que o padre Giovanni Gallo ensinou e deu sua própria vida para o povo marajoara saber... Cerca de 1758, o governador Francisco Xavier de Mendonça Furtado depois de ir ao Rio Negro aguardar o demarcador espanhol para fixarem os limites das duas coroas ibéricas na Amazônia; desceu trocando nomes de aldeias indígenas pela toponímia lusitana.
No Marajó, por exemplo, a aldeia Aricará, fundada pelo Padre Antônio Vieira em 1659; foi chamada Melgaço. Arucará, passou a Portel... Murtigura, virou Vila do Conde; Gebiré; Barcarena.
notícia histórica de Ponta de Pedras
As origens históricas de Ponta de Pedras estão ligadas as sesmarias dos Jesuítas no Rio Marajó-Açu (São Francisco, fazenda Malato; São Braz, Fortaleza e Nossa Senhora do Rosário, Rosário). Além destas três fazendas da Companhia de Jesus, houve ainda a sesmaria dos frades Merceários, na ilha de Santana.
Seriam os rios Arari e Marajó-Açu despovoados antes que o português Francisco Rodrigues Pereira levantasse o primeiro curral de gado no Arari, em 1680? Segundo as fontes historiográficas conhecidas, no ano de 1645, o jesuíta Luiz Figueira vindo com seus companheiros começar a catequese dos índios naufragou na Baía do Sol e o vento e maré levaram os padres numa jangada improvisada até as praias de Joanes onde os índios Aruãs os trucidaram. Criou-se a lenda de que os índios do Marajó seriam antropófagos, e o próprio Vieira divulgou esta balela, certamente inventada pelos Tupinambás, célebres canibais aliados aos portugueses no Pará.
Chamados genericamente de "Nheengaíbas" ("falantes da língua ruim") por seus inimigos Tupinambás, os povos marajoaras eram vários, sendo os mais temidos pela valentia os Aruãs e Anajás... Dentre os sete caciques que fizeram as pazes com portugueses e tupinambás no rio Mapuá, figura a "nação dos Guaianases" (grafia de Vieira em carta de janeiro de 1660 dirigida à regente de Portugal). Na obra "História do Futuro" do mesmo Padre Antônio Vieira os Guaianases são citados.
Algumas vezes, os tais Guaianases aparecem em Arucará (Portel): como o nome de aldeias indígenas geralmente se refere ao tuxaua ou cacique da mesma, pode-se especular que os "nheengaíbas" levados de Mapuá para ao lado de terra firme onde hoje estão Melgaço e Portel tenham, pelo menos em parte, sido desta dita etnia marajoara.
A primeira sesmaria dos Jesuítas teve sede em frente a Murtigura (Vila do Conde), mas a primeira aldeia de catequese foi a Aldeia das Mangabeiras; depois freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Ponta de Pedras (1737); com a crise entre o governo português e a Companhia de Jesus, a aldeia passou a se chamar Lugar de Ponta de Pedras. Localizado meia légua (três quilômetros, mais ou menos) acima do Lugar de Vilar , cujo padroeiro era São Francisco; antiga aldeia dos "Guaianazes" (grafia de Alexandre Rodrigues Ferreira, naturalista da "Viagem Filosófica" (1783-1792), em "Notícia Histórica da Ilha Grande de Joanes, ou Marajó, 1783).
O igarapé em tela era porto e caminho para a campina que vai se comunicar com o rio Armazém, à altura do Cajueiro. A mata ciliar é uma cortina que esconde campos cerrados até a beira do Curral Panema. Cada nome de lugar é resumo de espaço-tempo. É preciso ouvir o que os contadores de estória tem a dizer e ir às fontes confrontar com a história. Foi mestre Brasilino Rodrigues que me ensinou como o "Vilarinho" [Lugar de Vilar] acabou. O pai dele, Bibiano Rodrigues vendo que o Igarapé estava cada vez mais assorreado pela parte de entrada da praia, sem poder agasalhar canoas de pesca, trouxe a família para Mangabeira. E ainda a falta de porto acabou levando a freguesia para a margem esquerda do rio Marajó-Açu.
Muito bom texto Varella cham a atenção pelas citações e se transforma em um precioso documento histórico, que precisa ser estudo e aprofundado nas universidades e historiadores.
ResponderExcluirGrato pelo estímulo. Estamos com um problema em pesquisa nas universidades que são as fontes para história. Por outro lado, professores e alunos de História são pressionados pelo tempo. Muitas vezes a bibliografia citada é considerável, mas quem disse que o autor leu tudo ou se leu algum capítulo compreendeu exatamente.
ExcluirO programa Universidade Aberta à Terceira Idade poderia explorar potencial de vocações tardias para pesquisa em história. Daí talvez surgissem provocações para TCC, dissertação e tese de doutoramento.
Bom material para um início de pesquisa. Infelizmente, os municípios marajoaras não possuem em suas bibliotecas material para consulta e
ResponderExcluirpelo que se constata, não estão muito interessados em "garimpar" esse
material e nem vejo incentivo para isso. Quem sabe um dia, alguém possa juntar essa historia marajoara num único compêndio e disponibilizar para leitura.
Acho que seria uma boa e você seria uma boa fonte de consulta, senão o autor.
Obrigada. Buscando minhas origens, desesperada por informação relevante sobre essa parte do Brasil, Onde viveu minha tataravó. Vou ler e reler. Na esperança de encontrar qualquer pista sobre a que tribo/Aldeia ela pertencia.
ResponderExcluirObrigada por este texto. Já me abriu algumas portas.