domingo, 9 de junho de 2013

VAL DE CÃES (VALE DE CÃES), O HAITI É AQUI





Val de Cães (vale de cães), o Haiti é aqui.
(uma paródia da composição “Haiti”, de Caetano Veloso)





Quando você for informado que malucos
Tão matando bandos de cachorros doidos
Quase todos viralatas famintos e vadios
Lá na pacata Santa Cruz do Arari ou na elétrica cidade de Tucuruí
Lembre-se há mais de 500 e tontos anos
Começou aqui o sequestro de aldeias de índios
Pra fazer escravos negros da terra na América do Sul
Tão logo o espanhol Pinzón pisou a ilha do Marajó
Três meses antes de Cabral descobrir o país do Pau-Brasil
A caminho das Índias...

Será que ouviu falar dos Contemplados? felizes ganhadores 
Das fazendas da missão da Companhia de Jesus na ilha de Joanes
Ou Marajó
Dado e arregaçado havendo porteira fechada com escravaria
Gados e cavalaria cabo-verdiana
Tudo de graça aos homens-bons fiéis ao Marquês de Pombal
entre as ditas fazendas uma certa Santa Cruz do lago Arari
Que viria dar o que falar 200 e tantos anos depois.

A porrada mal havia começado por Colombo
Escravizando indios das Bahamas pra procurar ouro no Haiti...
E "los perros para aperrear a los índios
Vieram com os Conquistadores para fundar a raça
Fila Brasileiro na caça ao índio pelos Bandeirantes no país do Futuro...
No Pará talvez você não saiba depois do achado da santa
Pelo caboco Plácido e os milagres da Senhora de Nazaré
O Cirio em Belém do Pará começou com o governador português
Francisco da Silva Coutinho cheio de culpa e pecados
Por ter mandado matar afogada uma escrava preta
Da fazenda Val de Cães com corrente atada ao pescoço
Da dita criada afogada de sua amásia branca
Grávida de oito meses que saiu da fazenda Val de Cães
A galope pra Cidade Velha a ver o que Dom Juan do Piry
Aprontava no Palácio do Governo em orgias faladas na cidade
A branca perdeu a criança e a preta pagou com a vida a ira
De dom Francisco Coutinho.

Morto de remorso o governador adoeceu gravemente
Mas com arrependimento e fé no perdão da Virgem de Nazaré
Dom Francisco se tornou devoto número um da santa
Pra escarmento geral da pecadora Capitania do grão Pará
Fez ele promessa do primeiro Círio diz a lenda
E assim a imagem santa foi levada em trasladação
Pela população à luz de velas caminhando pela mata escura
Da ermida modesta na beira da estrada do Una
Para as luzes oficiais da capela real do Palácio da Cidade.

Destarte quando você ver a Berlinda e a Corda
Carro dos Milagres e mais alegorias do carnaval devoto
Lembre-se de todos negros da terra e negros da Guiné
Dos cachorros mortos, pacas, cotias e todos Gados do rio
Sacrificados no altar da civilização da Amazônia.
Pense nas crianças prostituídas pedindo esmola
Nas mulheres violentadas, homens espancados em xadrez
Pobres ribeirinhos
Na beira do rio de Breves a ver navios da Zona Franca de Manaus
A caminho de São Paulo com aparelhos eletrônicos
A ser rotulados e revendidos em todo país do Carnaval
A ver partidas de futebol, novelas e domingão do Faustão.
No porto de Vila do Conde prostíbulos a bordo
Marinheiros que partem sem dizer adeus...
Na Ponta Negra de Muaná piratas lembram
Nheengaíbas acusados de ser canibais e corsários do rio.

Pense nos animais (tem mais bicho do que gente na Amazônia)
Mas não se esqueça de visitar a Cachoeira do rio Arari
Que existiu ali e não ficou nem na lembrança da gente
Ver o pavoroso Viramundo e outros instrumentos de tortura
De pretos no Museu do Marajó com a memória dolorosa
Dos tempos desnaturados da escravatura.
Então aguce seus ouvidos da razão pra escutar mano Caetano
Cantar o lamento terrível da servidão de tantos quantos Haitis
E não acredite em Papai Noel
Nem estória da carochinha quando disserem pra você
Que a culpa é da Dilma,
E do Lula, Fernando Henrique Cardoso, Fernandinho Beira Mar,
Ou da inflação, Dom Pedro ou a abertura dos portos por dom João
Lembre-se enfim de todos negros da Terra e negros da Guiné, 
cachorros doidos, onças pintadas, jaguatiricas
Periquitos e papagaios que pagaram o pato da Civilização
40 mil cabanos exterminados que nem cachorro doido
numa população amazônica de apenas cem mil almas penadas:
"Quando você for convidado pra subir no adro da
Fundação Casa de Jorge Amado
Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos
E outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos
(E são quase todos pretos)
E aos quase brancos pobres como pretos
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados
E não importa se olhos do mundo inteiro possam
estar por um momento voltados para o largo
Onde os escravos eram castigados
E hoje um batuque, um batuque com a pureza de
meninos uniformizados
De escola secundária em dia de parada
E a grandeza épica de um povo em formação
Nos atrai, nos deslumbra e estimula
Não importa nada
Nem o traço do sobrado, nem a lente do Fantástico
Nem o disco de Paul Simon
Ninguém
Ninguém é cidadão
Se você for ver a festa do Pelô
E se você não for
Pense no Haiti
Reze pelo Haiti

"O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui

"E na TV se você vir um deputado em pânico
Mal dissimulado
Diante de qualquer, mas qualquer mesmo
Qualquer qualquer
Plano de educação
Que pareça fácil
Que pareça fácil e rápido
E vá representar uma ameaça de democratização
do ensino de primeiro grau
E se esse mesmo deputado defender a adoção da pena capital
E o venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto
E nenhum no marginal
E se, ao furar o sinal, o velho sinal vermelho habitual
Notar um homem mijando na esquina da rua
sobre um saco brilhante de lixo do Leblon
E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo diante da chacina
111 presos indefesos
Mas presos são quase todos pretos
Ou quase pretos
Ou quase brancos quase pretos de tão pobres
E pobres são como podres
E todos sabem como se tratam os pretos
E quando você for dar uma volta no Caribe
E quando for trepar sem camisinha
E apresentar sua participação inteligente no bloqueio a Cuba
Pense no Haiti
Reze pelo Haiti

O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui



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