terça-feira, 13 de agosto de 2013

TERRA GURUPÁ: UMA HISTÓRIA DE LUTA DE NEGROS DA TERRA E DA GUINÉ


Gurupá, Cachoeira do Arari - comunidade
quilombola do Marajó velho de guerra.

NOTA de aditamento ao post para registro fúnebre.
 
LUTO!

Teodoro Lalor de Lima, ou simplesmente 'seu' Lalor, presidente da Associação de Descendentes de Quilombolas do Gurupá, município de Cachoeira do Arari, foi assassinado momentos depois de desembarcar em Belém e entrar em casa de parentes no bairro CABANAGEM (ironia da história), na segunda-feira, 19/08/20, vindo do Marajó a fim de participar de encontro nacional de Quilombolas, na sede da CNBB Norte... Seu matador, desconhecido e foragido após o crime, o esfaqueou com golpe mortal no lado esquerdo do peito. A polícia não informou até agora a motivação do crime nem localizou o criminoso. As aparências, contudo, indicam mais uma morte anunciada na longa crônica do latifúndio no Estado do Pará.

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Mas a luta continua! Precisamos conhecer mais e melhor a história da brava gente Marajoara. Saber, principalmente, que a Pax de Mapuá (27/08/1659) baseada na Lei de Abolição dos Cativeiros, de 1655, delegando a tutela dos índios à Companhia de Jesus, depois de 44 anos de guerra desde o Maranhão (1615) para expulsão dos estrangeiros; foi fraudada miseravelmente pelos colonos do Pará ávidos de escravos, que expulsaram os Padres com violência; e deu azo à criação da capitania hereditária de Joanes (1665-1757), mãe das sesmarias e do latifúndio dos chamados Contemplados do Marquês de Pombal, aquinhoados com as fazendas dos Jesuítas expulsos do Pará pela segunda vez (1758)... 
Os primeiros negros da terra (escravos indígenas) foram arrancados do Marajó por Pinzón, em 1500, antes do descobrimento do Brasil... Mas, a resistência marajoara retardou até 1860 o primeiro curral de gado [às ilhargas da Terra quilombola Gurupá, por acaso] no rio Arari diante do "perigo dos índios bravios, desertores e escravos fugidos que existiam pelos centros da ilha" (cf. "Notícia Histórica da Ilha Grande de Joanes, ou Marajó", Lisboa, 1783; de Alexandre Rodrigues Ferreira): ou seja MOCAMBOS ou quilombos!!!
JMVP / Belém-PA, 20/08/2003



CHOVE NOS CAMPOS DE CACHOEIRA: 
A NEGRITUDE ALÉM DA MELANINA

                          |>|>|> http://anpuh.org/anais/wp-content/uploads/mp/pdf/ANPUH.S25.1138.pdf

O link acima conduz o leitor à comunicação da pesquisadora Rosa Acevedo sobre quilombos na ilha do Marajó, com ênfase em Terra Gurupá, no município de Cachoeira do Arari. A história da região insular do delta-estuário do Amazonas -- melhor dizendo, Amazônia Marajoara -- constitui um capítulo à parte na conquista e ocupação do rio Babel ou rio das amazonas. 

Mocambos ou quilombos são, na geografia humana marajoara, a contraparte do latifúndio das sesmarias e fazendas dos Contemplados em geral, herdeiros históricos do sistema medieval de morgados da Ilha da Madeira e mais ilhas do Atlântico transplantado mais tarde ao mundo colonial português. 

Na Amazônia Marajoara, este território marginalizado e invisível, quase mágico com seus pajés e encantarias; onde a história oral se mantém viva e resistente ficou conhecido no falar popular dos campos com nome peculiar de "jebre" e seu habitante, chamado "jebrista", como sinônimo de ladrão de gado (cf. Giovanni Gallo, em "Marajó, a ditadura da água"). Todavia a longa história de conflito entre índios e brancos, há mais de trezentos e cinquenta anos; coloca em causa saber quem, de fato, é o ladrão: o despossuído jebrista ou o rico herdeiro das sesmarias da Capitania hereditária da Ilha Grande de Joanes (1665-1757)? 

A cadeia sucessória das sesmarias aponta à farsa e violação da lei de liberdade dos índios (1655), obtida pelo Padre Antônio Vieira junto ao rei Dom João IV em defesa dos direitos humanos dos povos indígenas originais da Amazônia. 

Sobre tal base legal foi fundada a pax de Mapuá (27 de Agosto de 1659). Sem a pacificação das Ilhas não se poderia ocupar sem resistência o rio Amazonas e seus tributários até os confins (construindo o território português além das fronteiras de Tordesilhas (1494-1750), com o respectivo uti possidetis real reconhecido no tratado de Madri, em 1750). 

Sem a paz com os chamados Nheengaíbas (povos nuaruaques ancestrais dos marajoaras na atualidade), invencíveis na guerra e aliados inicialmente aos estrangeiros) não se poderia contar jamais com esta brava gente na construção do território marajoara, como prova inegavelmente a fundação das aldeias históricas de Aricará e de Aracaru, no mesmo ano da paz de Mapuá (1659). 

Mas, desgraçadamente, a vilania, ingratidão e pouca inteligência dos colonos do Pará (vide o "Sermão aos Peixes" (1654), Padre Antônio Vieira) que viviam de explorar a bravura dos Tupinambás, na vil ambição em caçar e escravizar "negros da terra", inicialmente na Costa-Fronteira do Pará (margem esquerda da baía do Marajó) e finalmente o distante Rio Negro; levou à expulsão dos Jesuítas (em 1661, peça primeira vez; e em 1759, a segunda vez). Sem Padres que os protegessem, o primeiro roubo da terra indígena dos Nheengaíbas aconteceu em 1665 com a doação pelo rei mentecapto Dom Afonso VI ao seu secretário de estado, Antônio de Sousa de Macedo, o patriarca dos barões de Joanes. Que nunca botaram o pé no Pará nem meteram um prego na capitania do Marajó... 

E, no entanto, não por acaso, a "leseira amazônica" (apud Marcio de Sousa) na súbita "elevação" da aldeia Aricará (1758) no rescaldo da expulsão dos Jesuítas do Pará, transformada em vila de Melgaço [o pior IDHM do Brasil dentre 5556 municípios, em 2013, faltando apenas dois anos para o fim do prazo das Metas do Milênio da ONU]. Antes que digam que sou coroinha, devo esclarecer logo que a meu juízo os índios, prensados entre o mar (Portugal) e o rochedo (escravismo congênito dos "brancos" do Pará); foram obrigados pela lei da parcimônia a escolher o mal menor. Ou seja, perder a memória, mas não perder a vida sob proteção das aldeias das missões.

 A leseira amazônica

Com a pax de Mapuá foi dado termo a 44 anos de guerra para expulsão dos estrangeiros desde a tomada do Maranhão (1615), há 400 anos. Porém, a universidade ocupada pela elite paraense não se interessa em pesquisar a pacidificação da até então "Ilha dos Nheengaíbas" ou dos "ferozes" Aruans... Para se apegar com unhas e dentes à cláusula "pétrea" das sesmarias dos barões de Joanes e Contemplados dos Marquês de Pombal (cf. José Varella Pereira, "Novíssima Viagem Filosófica" em REVISTA IBERIANA: Secult, Belém, 1999).

A história particular de 'Terra Gurupá' configura substrato socioambiental do romanceiro de Dalcidio Jurandir (ver www.dalcidiojurandir.com.br) e sua criaturada tão bem representada no Museu do Marajó (ver www.museudomarajo.com.br ). A famigerada "data magna" do Pará é a ponta do iceberg fundiário dependente de trabalho escravo. Assim, seu augusto feriado deveria dar oportunidade ao Povo Paraense para estudar a história propriamente dita da Adesão do Pará à Independência do Brasil.

Claro está que o 15 de agosto foi um golpe contra o movimento patriótico de 14 de Abril em contradição à proclamação de 28 de Maio em Muaná, tendo os heróis paraenses encarcerados na fortaleza de São Julião da Barra (Portugal) ou mortos com surto de varíola a bordo da charrua "Andorinha do Tejo", a caminho de prisão perpétua após escaparem da pena capital em Belém a rogos do bispo Dom Romualdo Coelho. 

Que data infame foi aquela do cambalacho neocolonial no palácio do governo, cujo trágico desfecho foi a violenta repressão ao povo paraense pela tropa mercenária do comando inglês às ordens do tenente John Pascoe Greenfell, assassino de 252 nacionalistas na chamada Tragédia do brigue Palhaço em rota batida para eclosão da Cabanagem. 

Ora, a Cabanagem é filha da revolução abolicionista e republicana desde o Haiti. O contágio libertário chegou ao Pará ao fim da ocupação de Caiena (1809-1817) com o regresso das tropas paraenses recrutadas entre mestiços de índios e negros libertos. Criaturada afeita às lides da pesca ao largo do Cabo Norte e do Salgado, assim que às grandes jornadas de viagem ao Alto Amazonas e ao Rio Negro. 

A repressão imperial aos cabanos recrutou a escória das cadeias do Nordeste a soldo contra entrega de rosário de orelhas secas cortadas aos rebeldes mortos, na soma aproximada de 40 mil mortos numa população de 100 almas. O que, sem nenhuma dúvida, configura um genocídio amazônico cujo fim não parece chegar até os nossos dias.


Os primeiros negros da terra na América do Sul

Pouca gente sabe, a Negritude aportou na ilha do Marajó antes do "descobrimento" do Brasil. Portando, avant la lettre do invento rebelde de estudantes africanos e afrodescendentes, em Paris, insultados pelo racismo na pátria imortal da Revolução de 1789.

A notícia do sequestro de homens livres da foz do maior rio do mundo para servir de escravos aos Conquistadores manteve-se em segredo durante séculos: que nem a lenda da Primeira Noite do mundo (metáfora do triunfo da preguiça sobre o império do trabalho escravo). Até que estudos históricos sobre antigas navegações do Atlântico favorecidas pela corrente equatorial que atravessa o Oceano entre a contracosta da África Ocidental e a costa norte-nordestina do Brasil, meteram em evidência o relato lendário da viagem do rei mandinga Abubakari II, imperador do Mali, e seus dois mil canoeiros desaparecidos nos rumos das Guianas e Antilhas. 

Por acaso, na mitologia marajoara, a Pororoca é causada ao tempo das águas vivas por três pretinhos encantados que aparecem sobre as vagas que vem do mar pelo canal da Caviana subindo o rio grande com estrondo inigualável. O tal relato mandinga fala pela primeira vez de um grande rio de água doce na margem oposta do Oceano (supondo-se o Amazonas), em cuja foz o mar revolto engoliu a primeira expedição com 200 caiaques, exceto dois que a duras penas seus remadores retornaram ao rio Gâmbia, no golfo da Guiné, donde teriam partido para aventura de além mar.

Este relato misturando lenda e história oral coletada no Cairo (Egito), quando da passagem de seu sucessor Kankou Moussa em peregrinação a Meca. Abubakari II teria abdicado no ano de 1311 e iniciado sua grande viagem marítima à frente de 2000 caiaques. Na mesma época, segundo o esquema mais aceito da arqueologia marajoara, os belicosos Aruãs vindos das ilhas do Caribe através das Guianas, começavam a invadir as ilhas Caviana e Mexiana para ocupar "Marinatambalo" (a ilha grande do Marajó) empurrando para a Costa-Fronteira do Pará velhas etnias que até então se achavam pelos centros da ilha, entre o rio Anajás e o Alto Arari tendo os famosos tesos (sítios arqueológicos) nas cercanias dos lagos Arari até próximo ao Guajará como centro de uma verdadeira civilização neotropical. 

Além da suposta travessia oceânica do imperador mandinga e sua passagem pela foz do Amazonas, é coisa certa a viagem do navegador espanhol Vicente Pinzón (piloto e sócio cristão-velho do cristão-novo Cristóvão Colombo), em 1500, mantida em sigilo durante tanto tempo e não deixa dúvidas sobre a influência da dita corrente equatorial marítima nas antigas navegações do Mar-Oceano. Nem quanto ao fato dos primeiros 36 "negros da terra" (escravos indígenas) da América do Sul ter sido arrancados, sob assalto a mão armada, da ilha "Marinatambalo" (Marajó), o nome da ilha conforme Pinzón deixou escrito, dizendo ele ter ouvido da boca dos próprios índios insulanos.

Mercadores holandeses foram os primeiros europeus a se instalar com suas famílias e escravos africanos entre as Guianas e o Baixo Amazonas. Fazendo comércio de escambo com os índios eles levantaram fortins e iniciaram plantação de cana de açúcar. Durante a guerra de expulsão (1623-1647) não há informação, mas não se pode deixar de aventar a hipótese de alguns escravos ter se refugiado pelas matas acamaradados com índios conhecidos desde a costa do Amapá. É certo, todavia, que os primeiros mocambos (quilombos) surgiram através da fronteira do Oiapoque até as ilhas do Marajó. Por exemplo, o nome da cidade de Afuá é de origem africana, em geral nome de mulher.

O romancista Dalcidio Jurandir (Ponta de Pedras-PA, 10/01/1909 - Rio de Janeiro-RJ, 16/06/1079), começa em Gurupá-PA a esboçar o romance seminal "Chove nos campos de Cachoeira" e vai refazê-lo completamente na vila de pescadores de Salvaterra (então distrito do município de Soure), em 1939 onde também escreveu o romance "Marinatambalo" publicado com título de "Marajó". 

O Chove ganha o prêmio Dom Casmurro e "Marajó" foi recebido pela crítica como primeiro romance sociológico brasileiro. Segundo Vicente Salles, o escritor marajoara chamado "índio sutil" por Jorge Amado, toma para elaboração deste último o romance tradicional ibérico Dona Silvana e o reinventa abaixo do equador: um tema de incesto, onde o pai e senhor atormentando pelo desejo escraviza sua própria filha

A inventiva do romance marajoara transforma o isolamento da ilha num latifúndio único, onde a corte do reino é a fazenda "Marinatambalo" (nome indígena inventado ou mal compreendido da língua do índio escravizado por Pinzón). Na ficção dalcidiana, o coronel Coutinho é reizulo contemplado das sesmarias dos barões de Joanes (1665-1757), ele deseja ardentemente sua filha bastarda, mestiça tentadora; Orminda. Ela foge ao incesto, mas se entrega a outros homens levando o pai-coronel à beira do desespero. Enquanto rola o drama do fazendeiro com sua filha Orminda, Missunga o filho legítimo vive amasiado com a caboca Alaide no rio Paricatuba. O herdeiro de Marinatambalo idealiza um simulacro de "reforma agrária", onde faz assentamento de cabocos ribeirinhos como se fosse um divertimento de rapaz rico... 

Começa o romance iberiano com a voz em quibundo Missunga (senhorzinho, senhorito; Nhorito no falar marajoara).  "Missunga, ó Missunga...". É um longo chamado de uma criada invisível, como se fosse a mãe África ou talvez uma ama de leite angolana, adentrando à trilha escura da floresta amazônica em busca de sua cria. A deflorestação da mata virgem equivaleria a uma relação incestuosa entre o homem filho da animalidade e sua mãe natureza? Sim, com certeza. A devastação resta sendo um desequilíbrio entre a natureza e a humanidade, um "pecado" em suma; que leva às ruínas idílicas ou o paraíso perdido.

A verdadeira história do Marajó resta a ser escrita e melhor ainda, compreendida. Tudo que se tem são periclitantes historiografias segundo a visão dos colonizadores e uma pletora de lendas maravilhosas ao gosto dos colonizados conforme suas utopias. Todavia, o romance dalcidiano é aquela voz que vem do interior e mistura muitos sons e histórias diferentes, vem de casas de Mina com a antropologia de Nunes Pereira nas entrelinhas; resgata o drama do índio catecúmeno promovido a civilizado no Diretório dos Índios (1757-1798) na figura desajustada de Eutanazio; testemunha, com infinita paciência, a decadência da civilização europeia às margens da baía do Guajará no naufrágio da belle époque da Borracha. Aí está: a geografia escondendo as consequências. E onde a história não consegue avançar, a imaginação literária reinventa rios, rumos, estradas e mares...

Pela data e circunstâncias do local da "Marinatambalo" pinzoniana, inclusive tendo registro na cartografia histórica amazônica de origem hispânica da época, uma certa "punta de los esclaus" [ponta dos escravo] faz suspeitar que o acidente geográfico em questão tem algo a ver com a captura daqueles primeiros 36 "negros da terra". A ser verdade, então, se pode dizer que o fato histórico indocumentado ocorreu, provavelmente, na Contracosta da ilha do Marajó, na aldeia dos Aruãs, onde hoje talvez se ache o município de Chaves. Trata-se de uma arqueologia das ideias ou talvez psicanálise da história...

Viajar é preciso nas águas profundas da Viagem Philosophica e nos prístinos caminhos da Viagem a Portugal a fim de descobrir o antigo país amazônico que se chama Pará e seu porto Caribe.

Na revista iberiana, este caboco que vos fala escreveu o ensaio "Novíssima Viagem Filosófica" seguindo a reboque do sábio de Coimbra e a trilha de Saramago, em 1999,  Por acaso, um relato anônimo sob título de "Notícia da Ilha Grande de Joanes", datado de 1754, encontrado na Real Biblioteca do Porto (Portugal) [apud Nelson Papavero] abre pistas importantes sobre a biogeografia do arquipélago do Marajó e a memória mais antiga da Criaturada grande de Dalcídio Jurandir, a partir da ocupação do rio Arari, em 1680, com a construção do primeiro curral de gado em confronto com os índios bravios, desertores e escravos fugidos que existiam nos centros da ilha...  Numa palavra, Quilombos! (para adotar o termo oficial na Constituição-Cidadã, de 1988, refúgio que a gente paraense chama mocambos).

Já em 11/01/1660 o Padre Antônio Vieira, preparando-se a regressar definitivamente a Portugal, prestando contas das missões do Pará em carta à dona Luísa de Gusmão, viúva do rei Dom João IV e regente do reino na menoridade de Dom Afonso VI; informa sobre a rebeldia invencível dos "nheengaíbas" (confederação de diversas etnias nuaruaques nas ilhas do Marajó). Dentre as quais os mais temidos eram, precisamente, os Aruãs e Anajás: aqueles chamados "índios bravios" que mais retardaram a ocupação da ilha pelos portugueses até cerca de 1680... 

Depois de muitas peripécias dos portugueses do Pará e seus aliados Tupinambás, indo de ataques armados de surpresa a tentativas de paz, no dia 27 de agosto de 1659, logrou o dito "payaçu dos índios" estabelecer a paz com a então "ilha dos Nheengaíbas". Para isto Vieira contou com a prestimosa ajuda de dois "embaixadores" do convento de Santo Alexadre (índios cativos, certamente, falantes da "língua ruim" dos marajoaras) e do aliado inesperado, cacique Piié dos Mapuás, "o mais ladino de todos" dentre os sete caciques dos Aruãs, Anajás, Pixi-Pixi, Cambocas, Mamainás e Guianases [Guaianá], parente dos tais "embaixadores".  

Estes personagens, por suposto, haviam aprendido a falar a língua do inimigo tupi e dos brancos durante o cativeiro, podendo-se imaginar que pelo costume eles também soubessem das manhas com que os catequistas se aproximavam dos índios e as crueldades dos colonos. Se de fato, tais embaixadores não existiram em muito menos a tal "carta-patente" enviada aos bárbaros, seria preciso inventá-los... Pois é evidente, com apoio no índio Severino dos Santos, sargento-mor de Monforte (aldeia dos Iona, hoje vila de Joanes), que índios tomados como escravos pelos tupinambás na ilha do Marajó foram intérpretes e mensageiros entre as duas margens do Pará velho de guerra, laborando as pazes. Como foi o caso de um certo João Sapatu, da aldeia Iona, nas tratativas entre seus parentes e portugueses, para dar fim à guerra dos Aruãs.

Não carece dizer, que estas e outras mais nações habitantes do Marajó foram grandes fornecedoras de "negros da terra", caçados pelos bravos Tupinambás aliados aos portugueses. Estimavam-se em, aproximadamente, 50 mil índios a população das ilhas do Marajó, mais os seus parentes Tucujus, da costa de Macapá. De modo que não era de desdenhar o esforço dos jesuítas em fazer as pazes, quando os tupinambás -- repentinamente desanimados com o sucesso da entrada de Pedro Teixeira com seus 1200 índios de arco e remo, em viagem de Belém a Quito (Equador), ida e volta, em 1637/39; pareciam ostensivamente esgotados pelas correrias a serviço das "tropas de resgate" (eufemismo para caça de escravos) e canoas de "drogas do sertão", além de epidemias de sarampo, varíola e gripe.

Em 1783, o naturalista da Universidade de Coimbra, Alexandre Rodrigues Ferreira começa no Marajó sua monumental "Viagem Filosófica" da qual publicou como separata a "Notícia Histórica da Ilha Grande de Joanes, ou Marajó". A incrível semelhança do texto com o relato anônimo de 1754, supracitado; sabendo-se que o inspetor da Ilha, capitão Florentino da Silveira Frade, foi guia da viagem do naturalista; aponta fortemente em sua direção como sendo o autor anônimo. Diz Alexandre Ferreira, que o capitão descobriu o teso Pacoval no dia 20 de novembro de 1756. E que o rio Anajás era a "menino dos olhos" do dito inspetor. Sabe-se ademais que em torno da demarcação do Tratado de Limites de Madri, de 1750, estalou o conflito entre o governo português e a Companhia de Jesus levando a expulsão desta e desapropriação de seus bens. Florentino Frade foi comissionado a fazer o inventário das fazendas dos jesuítas na ilha do Marajó. Eis um bom motivo para elaborar relatório confidencial. Cujos trechos de interesse geral para a geografia, provavelmente, foram copilados com autoria anônima. Neste, fala-se do uso de azeite de tucumã como sucedâneo do azeite de dendê. Acresce que o tucumã era "comida da pobreza". Daí virá talvez a canhapira elogiada no romanceiro de Dalcídio Jurandir e já se sabe quem usava azeite de dendê na comida.

Gurupá do Arari se torna símbolo da resistência marajoara

A superintendência do INCRA no Pará começou a regularizar territórios quilombolas a partir do Decreto 4.887/2003 e a Secretaria do Patrimônio da União (SPU), pelo mesmo ano de 2003, com a eleição do primeiro operário na Presidência da República Federativa do Brasil dando uma guinada de cento e oitenta graus, deixava de ser um simples órgão de arrecadação imobiliária para passar atuar na regularização fundiária de terras de marinha existentes desde a fundação e independência do Império do Brasil... já o IBAMA, sucedido pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), havia criado a Floresta Nacional de Caxiuanã (Flona Caxiuanã) em 28/11/1961, através do Decreto nº 239/61 ainda sob a filosofia preservacionista na qual o Homem é exilado do jardim do Éden pelo "pecado original", condenado a sobreviver comendo o pão com o suor do próprio rosto, quando não com desgosto amassado pelo Diabo.  


Aí a Estação Científica Ferreira Penna, vinculada ao Museu Paraense Emilio Goeldi; possui base edificada em 33.000 hectares da Floresta Nacional de Caxiuanã, no município de Melgaço, a 350 km a oeste de Belém. Esta estação doi inaugurada em 1993, após a Rio-92, com a finalidade de apoiar programas de pesquisa de curto, médio e longo prazos, do Museu Goeldi e da comunidade científica nacional e internacional.


Até fins de 2012 tramitavam no órgão 29 processos de regularização para emissão do documento regulatório Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID). Dentre as comunidades identificadas àquela altura figuram Gurupá, em Cachoeira do Arari; Narcisa, em Capitão Poço; e Bacabal, em Salvaterra. 

Treze anos depois do início do processo do INCRA em meio a luta permanente inclusive em parceria com a Secretaria do Patrimônio da União (SPU), com obtenção de Termo de Autorização de Uso (TAU); verificou-se momento histórico em audiência pública em Cachoeira do Arari promovida pelo Ministério Público Federal para tratar dos impactos de plantio mecanizado de arroz, com a comunidade de Gurupá recebendo oficialmente do INCRA o esperado documento de RTID. 

Todavia, nem mesmo assim com a presença federal -- depois de séculos de ausência e abandono --, os remanescentes de mocambo (quilombo) marajoaras em Gurupá cessram de ser discriminados e ameaçados por antigos latifundiários aos quais vieram se somar novos para plantio de arroz mecanizado e construção de porto arrozeiro. Como se recorda por notícia da imprensa, produtores do agronegócio em Roraima, onde promoviam invasão da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol, foram atraídos pela Federação da Agricultura do Estado do Pará (FAEPA) para a ilha do Marajó sob alegação de vir contribuir no combate à pobreza mediante criação de empregos e geração de renda local. Além disto tudo a comunidade de Gurupá denuncia diversas vezes ocorrência arbitrária de prisões de membros da comunidade por coletar açaí em seu próprio território, contestado por fazendeiro antes considerado como proprietário daquelas antigas terras.


Em 1961 estive em Gurupá como por acaso. Na verdade a viagem se destinava à comunidade de Crairu, igarapé da margem direita do rio Arari, no município de Ponta de Pedras. Ainda tenho lembrança de uma aldeia africana como a gente vê alguma vez em filme. Muitas crianças e jovens acompanhavam com atenção a conversa dos mais velhos e particularmente a presença da matriarca se destaca entre todos. Semelhante a Gurupá só me recordo de Tartarugueiro, na ilha Sant'Ana, no lado de Ponta de Pedras, onde estive diversas vezes.

A presença afrodescendente no rio Arari começou com os frades das Mercês, em 1689, com doação da sesmaria da ilha de Santa'Ana onde foi constuído o primeiro engenho de açúcar. Como se sabe, os índios catequizados pelos padres jesuítas não sabiam trabalhar nos engenhos, pelo que onde havia canavial e alambique a presença do escravo africano, dito "negro da Guiné" era infalível. Assim como o "negro da terra" (escravo indígena) era indispensável para o trabalho das canoas, caça e pesca, pastoreio de gado nas fazendas das missões. O Pará foi um grande cativeiro onde colonos e missionários disputavam mão de obra sem a qual as semarias não valeriam nada.

2 comentários:

  1. Sensacional esse artigo. Bom demais.

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  2. Ficarei muito feliz e agradecido se esse texto de enorme valor for a mim disponibilizado, ou em PDF ou no formato Word, pois quero fazer ele chegar a mais pessoas, principalmente as que serviram de instrumento para que pudesse escrever esse artigo. Aqui meu endereço de e-mail: adilson.barbosa@itec.ufpa.br

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