sábado, 26 de abril de 2014

CACOS DE ÍNDIO E FRAGMENTOS DE MEMÓRIA: O MARAJÓ PARA OS MARAJOARAS QUE NÃO SABEM LER OU NÃO CONSEGUEM VER O PESO DA ANCESTRALIDADE.

ruína da antiga aldeia de Joanes, vila de Monforte (1758),
na visita de Alexandre Rodrigues Ferreira, em 1783.


Giovanni Gallo (Turim, Itália 27/04/1927 - Belém, Brasil 07/03/2003).




Neste 27 de abril, o padre Gallo completaria 87 anos de idade se ainda estivesse entre nós.  Com esta modesta postagem rendo tributo ao marajoara que veio de longe para se naturalizar, de tal modo, que enterrou os próprios ossos na terra que o acolheu. Quando a história claudica, a memória fabrica lendas como senhas que levam ao mapa de um tesouro escondido. É verdade que, no plano humano, nenhum criador pode prever aonde vai a criatura. Boa parte de meu ensaio "Novíssima Viagem Filosófica" (Revista Iberiana: Secult, Belém, 1999), com fictício convite a Saramago para visitar cidades no Pará com nomes portugueses, segue o roteiro da "Viagem Philosophica", de autoria do sábio Alexandre Rodrigues Ferreira, este naturalista começou sua viagem à ilha do Marajó por Joanes (Salvaterra) e a terminou em Cachoeira do Arari.

Com isto, era minha intenção estimular nosso incipiente turismo cultural e eu pensava àquela altura que a "Novíssima" iria servir para apressar a viagem do socorro à obra de Giovanni Gallo. Talvez alguns viajantes do mundo tivessem a notícia do Museu do Marajó e quisessem vir até Cachoeira conferir o potencial do turismo como instrumento de desenvolvimento humano para o povo do velho Marajó. Como também acreditei, ingenuamente, que com informações copiladas de obrar raras, sem demora, o turismo literário iria salvar a casa de Dalcídio Jurandir da perdição em vista. 

Mas, desgraçadamente, a morte do Gallo deixaria órfão o projeto e os herdeiros do padre não conseguiram mais se entender provocando desistência de importantes aliados sem paciência ou humildade suficiente para manter o dialogo com a parte oposta. A ideia de unir esforços em torno dos dois maiores nomes da cultura marajoara foi para o brejo no inferno verde das boas intenções. 

Assim a velha casa de Dalcídio foi ao chão e virou fantasma como os olhos mortos de Eutanazio vagando na escuridão da noite, depois da chuva, nos campos de Cachoeira... O lendamento do padre dos pescadores também não faltou, segundo alguns relatos jamais confirmados, certo dia um estranho visitante entrou mudo e saiu calado do museu só abrindo a boca diante do retrato do falecido padre no salão de reunião. Dizendo ele, alto e bom som: "este padre noutra vida foi um grande cacique marajoara"... Feita a mágica revelação que faria inveja a Garcia Marques, o viajante desconhecida desapareceu da cidade sem adeus ou deixar endereço.

Além destas fantásticas notícias, começaram timidamente especulações populares sobre poderes milagrosos atribuídos ao "homem que implodiu", o que faz dele um potencial beato a modo do padre Cícero Romão Batista no sertão de Juazeiro. Nada mal para quem em vida gostaria de ser santo depois de morto. Visto pelo ângulo da merecendência do céu, acho até que são Giovanni marajoara ficaria melhor na foto canônica que são José de Anchieta aos olhos dos descendentes de índios cristãos feitos presas fáceis de bandeirantes medonhos.

São Giovanni do Arari, pelo menos, fez o milagre de criar O Nosso Museu do Marajó a partir de simples coleção de objetos bizarros, como o bezerro de duas cabeças, por exemplo, na pequena e distante Santa Cruz do Arari à beira do lago plantada junto ao berço da extinta civilização marajoara de 1500 anos de idade. Aí, por acaso, "cacos de índio" que o caboco Vadiquinho lhe confiou a título de provocação, conforme se lê na obra "Motivos Ornamentais da Cerâmica Marajoara", viraram patrimônio material e imaterial do nascente museu. Além do criativo "Motivos Ornamentais", que salvaguarda o grafismo original copiado dos ditos cacos de índio para aplicativo de artesãos locais como incentivo a geração de renda familiar; o padre dos pescadores do Arari escreveu também o livro-reportagem "Marajó, a ditadura da água" e a autobiografia "O homem que implodiu". 

O diabo é que as pessoas que mais carecem ler o que o índio sutil Dalcídio e o padre Gallo dos pescadores escreveram, são analfabetos de pai e mãe e ninguém se lixa para os ensinar a ler e escrever. Como, por exemplo, Paulo Freire faria. É dizer a boa gente curte o admirável Dalcídio Jurandir e o extraordinário Giovanni Gallo, mas a criaturada grande que lhes deu inspiração fica na mão quando de trata de educação.

Todavia a trilogia do Gallo explica as razões excepcionais pelas quais o incrível museu foi criado no lugar menos indicado para a museologia. Ela é uma obra necessária à introdução a um ecoturismo educativo com base na comunidade. O qual, incontornavelmente, se deve praticar no polo Marajó a partir de Cachoeira do Arari tendo por guia principal Alexandre Rodrigues Ferreira, o naturalista de Coimbra, famoso pela "Viagem Philosophica" (1783-1792) iniciada exatamente pela "Notícia Histórica da Ilha Grande de Joanes, ou Marajó" (separata da Viagem Filosófica, cujo fragmento se lê adiante).

É fato que "o homem que implodiu" na ilha do Marajó, para ser fiel à missão humanitária que sua consciência ditou, teve que pisar no pé de muita gente cega daquela grave cegueira, que outro incompreendido jesuíta da época da invenção da Amazônia portuguesa, no século XVII, o célebre payaçu dos índios, Antônio Vieira, verberou no Sermão aos Peixes, em São Luís do Maranhão (1654), a caminho de Lisboa onde foi suplicar ao rei a lei de 1655, abolindo os cativeiros dos índios do Maranhão e Grão-Pará.

Se nós dissermos que, ainda hoje, no Brasil e notadamente no Pará; não são poucos os casos de trabalho escravo, com municípios ultraperiféricos vegetando em mísero IDH, enquanto a pequena burguesia local com sua oligarquizinha e seus representantes eleitos são geralmente acusados de má gestão e dilapidação da coisa pública. Por outro lado o número de analfabetos é alarmante em contraste com o aumento galopante da violência e do crime organizado que aproveita a necessidade casada com ignorância.

Então, se explica por que poucos cabocos se reconhecem descendentes de velhos Nheengaíbas e sabem eles ler e escrever, razoavelmente tal qual o índio sacaca Severino dos Santos, sargento-mor de Monforte; que Alexandre Rodrigues Ferreira encontrou naquela dita viagem filosófica. A leitura atenciosa da obra de Dalcídio mais os livros do Gallo mostra o por quê do sui generis museu causar tanta admiração a visitantes, mas não ser contemplado pelas políticas públicas como deveria ser, e também os motivos pelos quais tão interessante trabalho com caráter inegável de ecomuseu não consegue atravessar o rio Arari e chegar às mais comunidades ribeirinhas, em mil e tantas ilhas, dos dezesseis municípios da mesorregião.

É claro que o mundo acadêmico ouviu falar deste museu estranho inventado por um diletante, mais aprendiz que professor. Muitas vezes, o pesquisador diplomado ouviu o Gallo cantar mas não sabe donde. O melhor intérprete que o povo marajoara já teve, com reconhecimento de ninguém menos que o "índio sutil" Dalcídio Jurandir, em intensa correspondência entre as cidades grandes de Belém e do Rio de Janeiro, graças à fiel amizade da filha de Bruno de Menezes, Maria de Belém Menezes.

O museu do padre é para se "ver com a ponta dos dedos": estamos todos cegos de tanto ver e não entendemos grande coisa... Por isto, através de Maria de Belém, Dalcídio sugeriu a Giovanni Gallo: selecione suas reportagens publicadas nos jornais e faça um livro (cf. "Marajó, a ditadura da água"). Vá que, agora, o azar que aflige a brava gente leve a leniência das autoridades a tombar, ao pé da letra, o museu do Gallo da mesma maneira como foi tombado o chalé de "Chove nos campos de Cachoeira" e de "Três casas e um rio"! ... O glorioso São Sebastião nos livre e guarde!

Salvou-se, virtualmente, o chalé de Alfredo da incúria dos homens e do rigor do dilúvio cachoeirense graças ao romance dalcidiano. Mas, se o museu do Gallo for entregue à própria sorte sobrecarregando a uns poucos abnegados voluntários até esgotá-los? Serão, Deus não queira, o chalé e o museu como repetição da destruição dos tesos entre chuvas e esquecimento? Último recurso de sobrevivência: a leitura dos livros de Giovanni Gallo e romances de Dalcídio Jurandir, completados por João Viana e outros mais que beberam na mesma fonte. Turismo literário pra que vos quero?

Antes que tudo, uma cartilha de Alfredo para iniciar a meninada das escolas a trilhar os caminhos da hospitalidade e da boa convivência pela leitura dos livros a servir de guia do descobrimento do mundo marajoara biodiverso culturalmente original. Segundo, a fim de provocar analfabetos políticos a abrir os olhos sobre a tragédia do IHD deste povo descendente da primeira cultura complexa da Amazônia, herdeiro dos criadores da arte primeva do Brasil (a cerâmica marajoara pré-colombiana espalhada em grandes museus nacionais e estrangeiros, que poderiam nos ajudar caso estivéssemos capacitados a receber esta ajuda técnica, com possibilidade até de sonhar com algum repatriamento).

Mas, o turismo qualquer que seja a modalidade, sem o devido preparado e educação tecnológica é, por certo, morte certa da galinha dos ovos de ouro. 

Eu sou apenas um engajado da causa da Criaturada grande de Dalcídio... Sei, por isto, que o romancista agnóstico e o jesuíta insubmisso fazem parceria eterna pela recuperação da memória desta gentinha. Quando Marajó desencanta? A resposta aguarda nossa ação. O Marajó pode desencantar o turista que vem esperando maravilhas e bate de cara com uma realidade chocante... Ou o Marajó desencantado de mitos e lendas da cobragrande, poderá encantar os visitantes desde a descoberta iniciática do portal do Museu do Marajó: onde cada um, ao descobrir a antiguidade da Amazônia marajoara, desperta para o afeto desta terra molhada de suor e chuva tornando-se dela a mais nova peça de coleção dos amigos do Marajó profundo. (José Varella Pereira).


fragmento da
NOTÍCIA HISTÓRICA DA ILHA
GRANDE DE JOANES OU MARAJÓ
Alexandre Rodrigues Ferreira (1783)


Chama-se Ilha de Joanes porque, havendo sido povoada de diversas nações de índios, como foram os aroans, mucoans, ingaíbas, mariapans e cariponás, entre estes a povoou também a nação iuioanas. Eis aqui o nome que depois, com o tempo, se reduziu ao que hoje tem de Joanes, como se disséssemos Ilha de Iuioanas.
Tal é a informação que dá sobre diversas perguntas minhas o sacaca Severino dos Santos, sargento-mor da ordenança dos índios da vila de Monforte. É um índio, pelo que dele alcancei, suficientemente versado nas cousas do país, civilizado já pelo menos com a civilidade de haver aprendido a ler e escrever. Fala expeditamente a língua portuguesa, que entende como os nacionais. Conta de idade 70 e tantos anos e, portanto, nenhum escrúpulo faço em subscrever as suas informações.
Como eu disse acima, que esta era a informação do sacaca Severino dos Santos, para não deixar suspensos os juízos sobre a palavra sacaca, devo advertir desde agora que sacaca se ficou chamando a nação iuioana depois do caso seguinte. Trabalhavam na fortaleza da Barra da Cidade, não só os iuioanas, mas com eles outras nações.
Presidia ao trabalho dos primeiros certo espírito muito ativo que, dentre eles havia sido escolhido para feitor. E, como a palavra que, pela sua gíria, pronunciava para animar os seus era necessariamente sacacon, que vale o mesmo que “aviar com o trabalho”, as outras nações que a ouviam sem aperceberem, porque era gíria para ser entendida dos iuioanas, entravam a chamá-los sacacas, e sacacas ficaram [a]té o dia de hoje.
Habitaram sempre os sacacas de hoje (que então eram iuioanas), continua o sargento-mor, pelos centros da ilha, nos lugares que hoje chamam Laranjeiras, Figueiras, Três Irmãos, Curuxis e por outras ilhas mais, que ainda existem no meio dos campos em cabeceiras dos rios ou junto aos lagos, enquanto os não obrigou a perseguição dos aroans, seus inimigos, e juntamente a dos topinambás, a descerem deles para a costa em que ao presente se acha a vila de Monforte. Pela nação caripuná, que eram de parte a parte camaradas, foram informados os iuioanas que na parte em que ao presente está a cidade do Pará, se achava gente branca valerosa pelas suas armas e que faria timbre de os proteger. Continuavam as violências dos aroans, a fama do valor português os animava, o interesse do seu sossego e segurança veio a acabar com eles que
atravessassem a baía. Atravessaram-na, com efeito, para o lugar da cidade, e,
tendo logo a fortuna de nela encontrarem um parente seu que, em rapaz havia sido cativado pelos topinambás nos campos da ilha, batizado depois com o nome de João e, por alcunha, o Sapatu, deste se serviram como seu intérprete para pôr na presença do capitão-mor que então governava o Pará, a representação seguinte: 

Que as violências dos aroans os consternavam de modo que nenhum outro recurso lhes deixavam para a vida e liberdade mais que o que ousavam tomar de se abrigarem debaixo das armas portuguesas, de cujo valor e sucessos militares estavam bem informados. Que de boa mente se sujeitavam ao domínio d‘El-Rei de Portugal, protestando serem seus leais vassalos, se o capitão-mor os auxiliasse com soldados e oficiais que os ajudassem a vencer na guerra os aroans.
Foi aceita a sua fala e o sinal menos equivocado que levaram da sua boa aceitação foi o destacamento de soldados comandados por um capitão e mais oficiais, debaixo de cuja proteção se retiraram para a ilha e se apresentaram na aldeia que presentemente é a vila de Monforte. Ignorantes como estavam os aroans do reforço dos iuioanas, não tardaram em os assaltar. Incorporados com os soldados, saem-lhes ao encontro os iuioanas, baralham-se no conflito uns e outros. Os aroans, que querem escapar da morte, fogem para a praia do rio de água doce, distante da aldeia meia légua, costa abaixo; aqui são mortos os mesmos que fugiram. O que fica na praia são cadáveres. Apenas salvam as vidas os poucos que guardavam as canoas em que tinham vindo os aroans.
Estavam as tais canoas no rio Jovim, onde se tinha feito o desembarque. Daqui fugiram tão intimidados do que viram os aroans que as vigiavam, e tais notícias levaram aos poucos que as esperavam, que jamais intentaram outro combate. Tal foi o termo das violências que faziam os aroans da contracosta da ilha aos iuioanas, já há muito tempo retirados para a aldeia da costa fronteira. Conservou-se o destacamento de soldados até o tempo do Senhor Capitão-General Manoel Bernardo de Melo e Castro, em que ainda se nomeava o comandante da fronteira de Joanes, e foi o último nomeado Matias Paes de Albuquerque, que também era oficial maior da Secretaria do Estado do Pará.
O mesmo Senhor Capitão-General mandou recolher a última peça de artilharia que lá existia em um reduto de que apenas se percebem as ruínas. (En)quanto aos sucessos das nações na aldeia de Joanes, ficaram os iuioanas, por outro nome sacacas. Os seus inimigos aroans repartiram-se por várias aldeias, como eram a de Najatuba, na contracosta, hoje vila de Chaves; a aldeia da Conceição, hoje vila de Salvaterra; a aldeia de São José, hoje lugar de Mondim, todas da administração que foi dos capuchos. Os ingaíbas ainda existem nas duas vilas de Conde e de Beja, algum dia aldeias de Sumaúma e Murtigura, ambas da administração que foi dos jesuítas. Dos mocoans, mariapans e caripunás, por acaso existem alguns dos seus descendentes...
Até aqui a informação do sargento-mor pelo que respeita às antiguidades da ilha.
Eu a considero, no tocante a sua extensão, fertilidade e produções, rios, situações como o embrião, pelo menos, de uma vasta província. Corria o ano de 1757, quando ordenou o Senhor Capitão-General Francisco Xavier de Mendonça Furtado que para a Ilha Grande de Joanes partissem o ouvidor Pascoal de Abranches Madeira, o juiz de fora Feliciano Ramos Nobre Mourão e o inspetor geral que é da dita ilha, Florentino da Silveira Frade, para na ilha executarem as reais ordens de Sua Majestade, que mandava abolir o governo temporal e espiritual que tinham os missionários de Santo Antônio e São Boaventura nas aldeias chamadas missões, da sobredita ilha. Havia, no ano de 1756, descoberto o inspetor a contracosta do norte, por ordem que para isso teve do mesmo Senhor Capitão-General, como também atravessado o centro, depois de haver descoberto, no ano de 1754, o Camotim. Havia sido esta ilha da Baronia da Casa de Mesquitela no dia de hoje pertencendo-lhe de jure e herdade, e pondo nela como de alguns documentos consta o barão Luís de Souza de Macedo de Aragão Vidal, tanto ouvidor como as outras justiças, nomeado capitão-mor, ajudante, sargento-mor e criando a muitos desses capitães-mores seus lugartenentes; até nomeava o barão um juiz das demarcações, a quem pertencia demarcar as terras que em nome do barão dava o capitão-mor e o barão depois as confirmava. Havia Sua Majestade, em conseqüência das representações do seu capitão-general resolvido que era conveniente ao seu serviço entrar na propriedade da ilha, dando em seu lugar o viscondado de Mesquitela e, parece que, segundo ouvi, três mil cruzados mais, ficando Sua Majestade com o pleno domínio das suas terras.

[copia da internet, cf > http://www.filologia.org.br/pereira/textos/noticia_historica_da_ilha_grande_de_joanes.pdf ]

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