tema para mural "Os Nheengaíbas", pintura emblemática da Paz de Mapuá de 1659.
Quem se habilitará a ser nosso novo Cândido Portinari?
EM CARTA ESCRITA NO CONVENTO DE SANTO ALEXANDRE (ATUAL MUSEU DE ARTE SACRA DE BELÉM DO PARÁ), DATADA DE 11 DE FEVEREIRO DE 1660, O PADRE ANTÔNIO VIEIRA PRESTOU CONTAS DA MISSÃO DO MARANHÃO E GRÃO-PARÁ CONFORME A LEI DE 1655 À REGENTE DE PORTUGAL, DONA LUÍSA DE GUSMÃO (VIÚVA DE DOM JOÃO IV E, DURANTE A MENORIDADE DE DOM AFONSO VI, TUTORA DO FUTURO REI QUE DOARIA A ILHA DOS NHEENGAIBAS AO SECRETÁRIO DE ESTADO ANTÔNIO DE SOUSA DE MACEDO). A LEI DE ABOLIÇÃO DO CATIVEIRO INDÍGENA, ARRANJADA POR VIEIRA EM LISBOA; DELEGOU PODERES DE ESTADO À COMPANHIA DE JESUS PARA TUTELA E GOVERNO DOS ÍNDIOS: FATO QUE, NA HISTÓRIA DA AMAZÔNIA PORTUGUESA, DEU PAPEL INSTITUCIONAL SEMELHANTE AO QUE HOJE DESEMPENHA A FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO (FUNAI) AOS JESUÍTAS.
Esta controvertida carta do superior dos Jesuítas à regente do reino de Portugal atualmente pode ser encontrada na internet. Mas, por muitos tempos, não se encontrou com facilidade, nem se vê no conjunto histórico Feliz Lusitânia, notadamente no Museu de Arte Sacra alguma referência à vinda de índios do Marajó chamados ao convento de Santo Alexandre tratar do fim da guerra que já durava mais de 40 anos. Contudo isto é importante para a História da Amazônia brasileira sob vários aspectos, inclusive no que concerne a fundamentação do uti possidetis de 1750, defendido por Alexandre de Gusmão nas negociações do tratado de Madri para revogar o tratado de Tordesilhas de 1494. Posto que, só a célebre entrada de Pedro Teixeira até Quito (1637-1639), sem efetiva adesão dos povos indígenas ou ocupação do território por portugueses não poderia dar realidade aos argumentos do diplomata luso-brasileiro.
Para o turismo cultural, então, viajar no tempo histórico é como refazer a construção do espaço amazônico para além dos quatro séculos de Belém do Pará. Neste documento, entre outras coisas, o superior das missões na Amazônia portuguesa relata o estado de guerra em que viveram os povos das ilhas do estuário do grande rio Amazonas - domínio imemorial dos chamados "Nheengaíbas" (Marajoaras de diversas etnias Nuaruaques) contra portugueses e tupinambás aliados a estes últimos, na terra firme. A guerra de conquista do rio das Amazonas durou mais de 40 anos, desde a tomada do Maranhão aos franceses, em 1615 e fundação de Belém do Grão-Pará em 1616. Quando, depois de três tentativas portuguesas de ocupar a ilha grande dos Nheengaíbas (Marajó) por força militar e da fracassada missão de paz do padre João de Souto Maior (1656), finalmente, a missão de paz organizada pelo padre Antônio Vieira, no início de 1659, através de dois nheengaíbas cativos no convento dos Jesuítas; teve êxito em trazer a Belém comitiva de sete caciques liderados por Piié dos Mapuás em tratativa de paz.
A ideia para artista à altura de Portinari compor mural retratando os sete caciques do Marajó poderia memorizar esse primeiro encontro pacífico entre marajoaras e portugueses. Segundo a supracitada carta, em resposta à vinda pacífica a Belém dos ditos Nheengaíbas, durante a quaresma de 1659, descritos antes como bestas ferozes; entre os dias 22 e 27 de agosto do mesmo ano, passando antes por Cametá para embarcar remadores e soldados, Vieira e um irmão de doutrina foram à ilha dos índios rebeldes ameaçados da "guerra justa" (cativeiro e extinção, nos termos da lei) e numa simples maloca levantada para servir de igreja do Santo Cristo (hoje em algum lugar não determinado da Reserva Extrativista Florestal de Mapuá), no dia 27, Marajoaras de um lado e Tupinambás de outro; com portugueses ao meio, simbolizando equilíbrio entre as duas populações em guerra nas duas margens do Rio Pará, celebraram a paz dando por terminada a guerra.
A duração daquela guerra dos Nheengaíbas não poderia ser precisada àquela data. Porém hoje sabemos que tem a ver com a busca da Yvy Marãey (terra sem mal). Começada no Grão-Pará desde a invasão da Tapuya tetama (terra dos Tapuias) pelos Tupinambás, através do Salgado e do rio Tocantins, intensificada com a chegada dos portugueses no Maranhão (1615) e a expulsão dos holandeses do Xingu e Gurupá (1623).
Mas as "pazes" dos Marajós terão sido exatamente como as descreveu o "imperador da língua portuguesa" (na expressão de Fernando Pessoa)? Provavelmente não. É preciso entender a oculta intenção do padre grande e a situação periclitante dos Jesuítas depois da morte do rei dom João IV, amigo pessoal do padre Antonio Vieira; cujo desfecho a partir da violenta expulsão dos missionários, em 1661, e doação da capitania hereditária da Ilha Grande de Joanes (1665), o rei dom Afonso VI deu o dito por seu pai por não dito e o tribunal do Santo Oficio condenou o padre, precursor da teologia da libertação, ao silêncio por "heresia judaizante".
Os Jesuítas no papel de tutores dos índios, num "front" de conquista de território selvagem em disputa colonial estiveram metidos numa cruzada entre reinos católicos e "hereges" (protestantes holandeses e ingleses): os protegidos dos missionários em luta com bandeirantes e colonos pagaram o pato, como se lê na obra de José Ribamar Bessa Freire. O importante, é que daquelas confabulações mato adentro, saíram Nheengaíbas pacificados, evidentemente, de volta ao território que antes era deles e donde os índios insulanos saíram empurrados por invasores Tupinambás. Aí surgiram as aldeias dos tuxauas Aricará (vila de Melgaço, depois de 1758) e Arucaru (Portel), que viria a ser considerada microrregião de Portel, na parte marajoara do continente paraense.
Aquela impossível e tênue paz marajoara, depois de décadas de guerra entre o forte do Presépio (1616) e a ilha invicta (com sua civilização ameríndia a partir, aproximadamente, do ano 400 da era cristã) -- que poderia talvez harmonizar arqueólogos, antropólogos e historiadores que se ocupam em descobrir o passado da Amazônia numa perspectiva comum - ainda precisa hoje ser trabalhada e concluída: depois de 400 anos de errância, desacordos e até mesmo ódios hereditários. que não se resolveram pelo tempo e o esquecimento.
Já dissemos noutra ocasião, que é preciso operar a arqueologia das ideias e a psicanálise da história para inventar um futuro melhor para todos. Embora o padre grande dos índios não tivesse, no século XVII, as informações antropológicas que só em torno de 1920, a partir de Curt Nimuendaju e outros, nos permitem compreender a motivação ideológica da saga dos Tupinambás em busca da mítica Terra sem Males; ele intuiu o fato histórico incontornável de que sem arcos e remos da brava nação Tupinambá, não poderiam jamais os poucos e mal municiados soldados de Portugal se estabelecer na região amazônica. Então, andará mal outra vez, a história nestas paragens se não vencer sua cegueira e presunção ao fechar os olhos à literatura e a utopia evangelizadora do "payaçu" dos índios na mestiçagem do barroco sebastianista com a complexidade dialética dos pajés tupis e tapuias. E, cem anos após a suposta paz de Mapuá, a chegada da encantaria africana importada em contrabando nos navios negreiros da Companhia de Comércio do Grão-Pará através do Maranhão.
Apenas a dois anos dos 400 de Belém do Grão-Pará e já talvez Belém da Amazônia, o DIA DE ALFREDO sem medo de ser feliz na Feliz Lusitânia pela internet, Academia do Peixe Frito, em qualquer escola ribeirinha, numa tapera onde houver quem leia e ensine a ler e escrever, em qualquer lugar onde morar um sumano da Criaturada grande... O dia da morte do índio sutil Dalcídio Jurandir, 16 de Junho; passa a ser dia de renascimento do índio Mapuá, Aruã, Anajás, Mamaianá, Camboca, Guaianá, Pixi-Pixi... O kuarup xinguano reinventado pelos sumanos no teatro imaginário do Ver O Peso, Solar da Beira, feira do Açaí... Dia dos antepassados negros da terra e da Guiné... Dos avoengos desterrados dos Açores, Algarves, Madeira, norte de Portugal e da Galiza... A diáspora da ralé judia e a massagada árabe confundidas aqui com a patuléia geral das regiões amazônicas. Acima de todas as coisas: que não nos falte a dança do peixe (pirapuraceia) em memória do bom selvagem Tupinambá convertido em caboclo Pena Verde nos rituais da Umbanda; sem o qual não existiria o país chamado Pará, do Brasil sentinela do Norte, que foi além do Oiapoque, a remo e vela, estabelecer nosso velho e querido Porto Caribe.
Mas, que turismo é este no Ver o Peso? Quem quiser que venha ver o peso da Criaturada...
"Ah! é notável a influência do peixe frito na literatura paraense! Peixe frito é o peixe vendido em postas nos taboleiros do Ver-o-Peso ao lado do mercado em Belém. É a comida para quem não deixa almoço comprado em casa. Ao chegar o meio dia, o pobre se tem a felicidade de haver arranjado dois mil réis leva um embrulhinho envergonhado de peixe para casa. A vida literária do Pará tem se movimentado em tomo do peixe frito. Conheço profundamente esse drama. Sempre fui empregadinho público como me chamou certo imortal (da Academia de Letras do Pará), morando numa barraca na São João, com família e perseguido pelos camisas verdes. Vocês sabem o que era naquele tempo viver perseguido pelos camisas verdes. Acabei gramando xadrez comum, o mesmo xadrez onde os ladrões de galinhas e porristas passam vinte e quatro horas. Nele passei três meses, apenas porque a infâmia dos camisas verdes chegava a tudo naquele tempo. Me ficava bem, aliás, estar em companhia daquela pobre gente em vez de estar na companhia dos autores da infâmia. E outras histórias. E outras misérias. E a vida do chamado intelectual na província é mais trágica do que se pensa. Bancamos bobos de rei, mas de graça. A não ser a honra dum convite para uma qualquer chateação literária e mais nada. O resto é o peixe frito." - DALCÍDIO JURANDIR
Tragédia e Comédia do Turismo no maior arquipélago fluviomarinho do mundo.
Esta insólita postagem empresta título do memorável artigo do romancista Dalcídio Jurandir, "Tragédia e Comédia de um Escritor novo do Norte", em 1940, ao receber ele o prêmio "Vecchi-Dom Casmurro", traçando paralelo entre os obstáculos da vida do autor para conseguir espaço nas letras brasileiras e no Norte do Brasil as tentativas em desenvolver uma indústria do turismo aproveitando o rico potencial da natureza e cultura da região estuarina para desenvolvimento socioambiental da brava gente descendente da primeira cultura complexa da Amazônia (apud Anna Roosevelt, Denise Schaan e outros).
Na verdade, devíamos escrever tragédia e comédia do turismo literário na Amazônia marajoara. Pois é, precisamente, disto que se trata. Em contraste com a miopia de empreendedores e insensibilidade da sociedade paraense em geral, representada por políticos eleitos aos três níveis federativos (União, Estado e Municípios).
Como se deve saber, mais que nunca o Turismo hoje se apresenta como tábua de salvação na longa transição industrial em crise e a desejada economia sustentável cantada em prosa e verso, onde biodiversidade e diversidade cultural das regiões planetárias são capital numero um para o desenvolvimento humano local. E não é, por acaso, o ordinário IDH abaixo da linha de pobreza que transforma o antigo paraíso procurado na Terra numa tragédia entre choro e ranger de dentes?
Neste negócio da galinha dos ovos de ouro, o Turismo Literário tem papel fundamental de apontar o mapa da mina. No caso específico do autor de "Chove nos campos de Cachoeira", seu alter-ego chamado Alfredo flana por nove dos onze romances do ciclo Extremo Norte entre as ilhas filhas da cobragrande e a cidade grande: visitando sua criaturada, ele com o caroço de tucumã mágico desfaz bruxedos da colonialidade que habita o tempo 'bellépoquê' de nossa modernidade conservadora.
Nós não queremos, simplesmente, um turismo rural sem pé nem cabeça no Marajó ou seja lá onde for com a dança do ventre roubando a cena do lundum... Ou a dança do fogo dos índios apaches importada de terceira mão para vender gato por lebre a gringos iludidos do marquetingue... Nós queremos reedificar os tesos de camutins... A refazenda de nossas aldeias históricas, cuidar carinhosamente de O Nosso Museu do Marajó... Levar mais longe a folia do Glorioso São Sebastião e a cultura alimentar do tipiti e os gados do rio.
Não nos interessa ver na TV propaganda de erva de cheiro, se a pobre vendedora na maior feira livre da América Latina nunca leu ou mesmo ouviu falar (por que não lhe ensinaram nem podem ensinar o que não sabem...) duma certa Eneida com seu festejado, outrora, Banho de Cheiro... Até as pedras soltas da Ladeira do Castelo sabem que nossos dirigentes políticos pouco sabem do que falam durante discursos festeiros feito carimbó da vovó... Isto é ridículo! A elite se adonar do conhecimento tradicional para fazer fortuna com água de cheiro e dar trocadinhos a gente inocente da passagem dos inocentes...
Na Irlanda, o personagem de ficção da obra literária Ulisses, de James Joyce, Leopold Bloom é motivo de feriado nacional do Bloom's Day. O dia de Bloom atravessou o oceano e chegou até o Brasil: move uma poderosa economia cultural. E nós aqui nem estamos falando em feriado para um suposto Dia de Alfredo, quando a mentira histórica fez feriado da burra "data magna" do Pará, furtando a verdade do 28 de Maio, em Muaná... Para levar o povo paraense, de desengano em desengano, à Tragédia do Brigue Palhaço e ao genocídio dos cabanos... Quando, na verdade, a obra e a vida do maior escritor da Amazônia deveria ser objeto de estudo nas escolas e manifestações populares destinadas a promover a hospitalidade da população nos municípios turísticos pela memória da Paz de Mapuá e valorização patrimonial da milenar Cultura Marajoara.
Quem, no mundo inteiro, não ficaria curioso em saber do que trata tal Dia de Alfredo que, eventualmente, poderia dialogar com o famoso Bloom's Day irlandês numa aventura comparativa da linguagem entre Dalcídio e James Joyce. Ou será isto como um sacrilégio aos olhos da crítica consagrada? Como comparar o universal com o regional? Este embaraço tão grave é, sem dúvida, sintoma de nossa colonialidade que é coisa pior que o colonialismo puro.
artesão reproduzindo peça de cerâmica marajoara: a partir da invenção de O NOSSO MUSEU DO MARAJÓ, em 1972, em Santa Cruz do Arari, pelo padre Giovanni Gallo. Leia a obra "Motivos Ornamentais da Cerâmica Marajoara" do mesmo. O lago Arari foi berço da Cultura Marajoara e dos fragmentos de cerâmica pré-colombiana recolhida a esmo, muitas vezes, pelos chamados "ladrões de gado"; começou a obra que incentivou a retomada da arte marajoara. Por coincidência, no mesmo ano de 1972, Dalcídio Jurandir recebeu o maior prêmio da literatura brasileira, o "Machado de Assis", da Academia Brasileira de Letras (ABL).
Mas, infelizmente, formuladores da política cultural e turística não conseguem há, pelo menos desde os anos de 1970, quando a PARATUR e CENTUR foram planejados para uso sustentável dos nossos recursos naturais e culturais; dar respostas satisfatórias ao extraordinário potencial e a dolorosa realidade social. Algo precisa acontecer para se chegar ao paradigma de desenvolvimento regional que a teoria aponta, outrossim, desde a década de 70. Ou seja, lá se vão mais de 40 anos! Que é o tempo que levou a guerra das tribos envolvidas pelos colonialistas da Holanda, Inglaterra, França, Espanha e Portugal na cobiça do rio das Amazonas até as supostas pazes dos Nheengaíbas.
ilha do Marajó (praia de Joanes), foto de Kiki Deere
"As belezas das praias de Alter-do-Chão, em Santarém, e do Marajó, e as delícias e encantarias amazônidas encontradas no Ver-O-Peso, em Belém do Pará, figuram entre as dez coisas inesquecíveis para ser fazer na Amazônia listadas pela jornalista inglesa Kiki Deere em artigo publicado no site “Rough Guides”, um dos mais importantes guias turísticos do Reino Unido, que cobre mais de 200 destinos. A dica é para quem visitará o Brasil durante a Copa do Mundo, e edição especial será comercializada ainda este ano na Europa, EUA e América Latina." do Blog da Franssinete Florenzano.
Tragédia e Comédia de um
Escritor Novo do Norte...
Dalcídio Jurandir
Estava um pouco aperriado com a divisão do município de Itaituba em setores censitários... Tinha vindo desse município, o maior do Brasil, com uma vilazinha jogada na solidão do Tapajós, um poeta da velha escola, com rimas ricas, que é o poeta Rodrigues Pinagé e o prefeito Fortunato, patriarcal prefeito com a mesa farta, mandando buscar a banda de música de Aveiro para tocar no aniversário de sua esposa e a sua malquerença com o judeu Moisés, gordo homem que tem a única frigidérzinha da vila e um piano em casa.
Itaituba não fica muito distante das cachoeiras e dos índios lá do alto Tapajós. Tem também a febre, criatura muito conhecida na Amazônia. Há também umas sondagens de petróleo que ficaram para outra ocasião. Tomei banho, de madrugada, num poço de água sulfurosa, água morna vinda do fundo da terra, que foi uma maravilha. Cheguei a Santarém na lancha "Eulina" rebocando o seu pontão cheio de passageiros, da gente não ter um lugar para armar rede.
Dois dias assim no Tapajós, descendo. Tapajós é um grande rio, seu povo luta asperamente contra a febre, a miséria, a ignorância, a exploração comercial e vai tirando a sua borracha, o seu caucho, couros e plantando seringa na concessão Ford. Sempre dá um movimento à concessão Ford. Pena é que não deixe que os seus trabalhadores tenham garantia alguma no seu trabalho. O Instituto dos Industriários mandou seu funcionário lá e os súditos do Rei do automóvel não quiseram se explicar. Ali na concessão quem manda é Mr. Ford e isso de Caixa de Aposentadoria e Pensões é para Mr. Ford engulir. Também tem o Dr. Mac Dowel que é um grande advogado, servido por uma incomensurável cultura dentro de biblioteca tipo castelo feudal, majestosa e a pique, com a respectiva ponte levadiça por onde sua senhoria desce para o seu austero e patriótico escritório. Mas isto não quer dizer nada com o prêmio "Dom Casmurro". Estava trabalhando quando me vieram dois telegramas. Fiquei alarmado. Minha família mora em Belém e podia ser alguma notícia má. Mas era o primeiro prêmio. E o engraçado foi que em Belém deram a noticia da vitória do romance "Marinatambalo", mandado para o concurso pelo Maciel Filho e o meu querido Abguar Bastos, de São Paulo. Quando mandei o "Chove" já o outro andava no concurso. A carta de Abguar avisando, veio na hora em que se mandava o "Chove" pro Rio. Quando minha mulher mandou o telegrama de Brício de Abreu fiquei pensando em Salvaterra, onde passei a limpo, ano passado, o “Marinatambalo” e escrevi o “Chove”.
Do "Chove" tinha uma papelada velha que se pode convencionar como material todo desarrumado e roído de traças, vindo das alturas de 1929. Me lembro que fiz essa tentativa com uma literatura desenfreada e uma pretensão a fazer estilo, que era um espetáculo. Andei escrevendo em Gurupá, depois num barracão no rio Baquiá Preto nas ilhas de Gurupá, onde era empregado. Ali ensinava os dois meninos do patrão Pais Barreto, a ler, nos livros de Felisberto de Carvalho. Passou o tempo e larguei o troço sob o peso do castigo de tanta presunção literária. Em Salvaterra pensei então retirar do entulho os personagens mal esboçados, o fio de algumas impressões vagamente fixadas e fiz o romance. Nada ficou da tentativa de 1929. Estava de férias como inspetor escolar, na vila de Salvaterra, para onde me mudei de Belém, por medida de economia. E ganhando 365$000 por mês, porque 100$000 que eu podia ganhar mais, eram para pagar a prestação da máquina de escrever que tive a loucura de comprar. Sem ela não podia ir pra frente o plano de escrever o "Marinatambalo e o "Chove". E eu e Guiomarina, minha mulher. fazíamos os maiores malabarismos com os trezentos e sessenta e cinco. Não éramos somente nós dois em casa. Eu metido com os dois romances e ela vendo se os trezentos e sessenta e cinco rendiam mais. Tinha umas diárias de 150$000 mas foram cortadas porque vieram as férias escolares. Perdi as diárias magras e arrancadas com unhas e dentes do Sr. Pernambuco Filho, diretor da Educação, apesar de ter sido eu o único inspetor escolar que saiu de Belém sem temer febre, chuva, rompendo atoleiros, andando em montarias, para visitar as escolinhas auxiliares, perdidas no mato e no campo. Roemos uma chepa fazendo os romances. Depois o dinheiro custava a vir. Esperávamos as canoas de Belém. Uma era a "Antuérpia" e outra era a "Vila de Salvaterra". Esperávamos angustiados. Tínhamos, é verdade, a camaradagem do Valdemar cavando no boteco pra salvar o capitalzinho, do Veloso da mercearia, do David Paulo, de Soure, da família Bla. Sai com os dois romances mas fiquei devendo dois meses de casa, a sessenta mil por mês, e cento e quarenta mil no Veloso, que ainda não pude pagar.
Por essa época — me lembro de certa noite que dormi no chão porque a rede já não prestava mais e dinheiro não havia para se comprar uma nova. Foi nessa época que tive a honra de ser apresentado a uma senhora Nenê Macagi, que apareceu escritora em Belém, pirangando os moles no Pará, até com a Prefeitura de Soure. Esta senhora não me deu importância alguma, primeiro porque eu, caboclinho, estava de macacão e tamanco, segundo, porque a dita senhora era uma escritora. Muita gente ainda pensa que o Pará é terra de seringueiros coronéis. Aparece uma turminha de malandros metidos a literatos, cantoras, etc., e caem em cheio em cima do governo, sangrando o Tesouro. Os da terra ficam no peixe frito.
Ah! é notável a influência do peixe frito na literatura paraense! Peixe frito é o peixe vendido em postas nos taboleiros do Ver-o-Peso ao lado do mercado em Belém. É a comida para quem não deixa almoço comprado em casa. Ao chegar o meio dia, o pobre se tem a felicidade de haver arranjado dois mil réis leva um embrulhinho envergonhado de peixe para casa. A vida literária do Pará tem se movimentado em tomo do peixe frito. Conheço profundamente esse drama. Sempre fui empregadinho público como me chamou certo imortal (da Academia de Letras do Pará), morando numa barraca na São João, com família e perseguido pelos camisas verdes. Vocês sabem o que era naquele tempo viver perseguido pelos camisas verdes. Acabei gramando xadrez comum, o mesmo xadrez onde os ladrões de galinhas e porristas passam vinte e quatro horas. Nele passei três meses, apenas porque a infâmia dos camisas verdes chegava a tudo naquele tempo. Me ficava bem, aliás, estar em companhia daquela pobre gente em vez de estar na companhia dos autores da infâmia. E outras histórias. E outras misérias. E a vida do chamado intelectual na província é mais trágica do que se pensa. Bancamos bobos de rei, mas de graça. A não ser a honra dum convite para uma qualquer chateação literária e mais nada. O resto é o peixe frito.
Agora com a geração mais nova aparecem moços que felizmente, vieram de famílias mais remediadas. Mesmo assim estão fechados na província, isolados, boicotados, negados. Se na geração de Abguar Bastos há nomes como o desse Bruno de Menezes que tem poemas lado a lado com os melhores de Jorge de Lima e Manuel Bandeira, na geração mais nova temos um Ribamar de Moura, um dos grandes pensadores jovens do Brasil, Leví Hall do Moura, cronista admirável, Stélio Maroja, F. Paulo Mendes, Machado Coelho, Cecil Meira, Daniel Coelho de Souza. Novíssimos como Carlos Eduardo, o poeta de "Este rumor que vai crescendo", e Mário Couto, um contista dos maiores entre os jovens contistas brasileiros. Nomes como De Campos Ribeiro que acaba de publicar um belo livro de poemas. Oséas Antunes que tem três romances inéditos e muito bons, Jaques Flores, poeta de Cuia Pitinga, as poetisas Miriam Morais, Adalcinda e Dulcinéia Paraense, os desenhistas Ângelus, vindo do movimento Graça Aranha, o admirável Gari e o singularíssimo Mariz Filho. Agora mesmo o autor do filme "Aruanã", Libero Luxardo descobriu em Marabá um desenhista fabuloso mesmo. Chama-se Morbach. Seus desenhos têm muita coisa de "terreur", de bruto, de essencialmente amazônico. Aquele grande amigo que é Nunes Pereira, insatisfeito e vigoroso Nunes Pereira com a sua dispersão e os seus pés infatigáveis, rompendo todos os caminhos da Amazônia, metido com índios, peixes, selvas e febres, Nunes achou em Morbach aquilo que ele entendia como verdadeira interpretação da paisagem e da humanidade na Amazônia.
Quero fazer aqui uma referência especial a "Terra Imatura", a nossa pobre e querida revista fundada pelo meu amigo Cleo Bernardo, um novíssimo, uma alegria e um entusiasmo sem limites e uma das mais puras amizades que encontrei na minha vida. Com ele lutam Sílvio Braga, Rui Barata, além dos que já falei.
Antes de acabar estas notas escritas apressadamente para pegar a mala aérea, quero contar um pouco da história do "Chove".
Pensava acabar o romance um pouco antes do encerramento do concurso. Mas não acabei. Voltei de Salvaterra sabendo do adiamento. Mendes e Stélio leram o livro e acharam que eu devia mandar uma cópia mais limpa. Como, se faltavam vinte dias para terminar o prazo? Então Guiomarina, minha mulher, doente como se achava, se dispôs a datilografar o romance. Eu, desanimado, não dava conta e depois ocupado na luta do peixe frito e mesmo porque aceitara um lugar no Recenseamento oferecido pelo amigo Adelino Vasconcelos, delegado regional do Pará. Guiomarina, doente, em quinze dias passou a limpo o romance. Foi uma obstinação. Ela queria que eu mandasse a pulso o romance para o concurso. Por isso que todo o sucesso devo a ela.
Mas faltava o dinheiro para mandar o livro pelo avião. Só havia três dias de prazo. E com Mário Couto fomos cavar entre os amigos o dinheiro. Paulo Mendes e Stélio me deram dez mil. Jorge Malcher, cinco. E eu tinha vinte. Fui à Panair expedir o livro como encomenda por ser mais barato. Mas me disseram que não se fazia mais encomenda. Olhamo-nos eu e Mário, desalentados. Meu desejo era corresponder ao esforço da Guiomarina. Não queria voltar para casa com o livro debaixo do braço e vê-la triste, sabendo que todo o trabalho havia sido inútil. Ao menos o consolo de enviá-lo ao concurso, queríamos. Saímos da Panair e voltamos. Cavamos mais dez e fomos ao correio. Entrei na bicha e esperei a minha vez. Tinha o dinheiro na mão e aflito porque não sabia de certeza quanto era a taxa. Se fosse mais? Esperei meia hora na bicha para chegar ao guichet e ouvi do funcionário que a taxa era tanto e o dinheiro não dava. E me olhou com uma tal superioridade funcional que sai humilhado. E eu era a desolação em figura. Faltavam vinte mil réis e onde encontrar esses vinte mil réis? Pensei no personagem do "Chove" e sai com Mário, atrás dos vinte mil réis. Vimos na Confeitaria Central o pintor Barandier da Cunha e Osvaldo Viana. meu amigo e uma das figuras expressivas nos meios de Belém. Eles nos deram os vinte. Corremos, faltava meia hora para fechar a mala. Entrei na bicha, suando e pensando em Guiomarina, em casa, esperando o resultado do trabalho. E mandamos o volume no porte simples, sem recibo, sem nada, para um rumo incerto, podendo nunca mais chegar ao DOM CASMURRO!
Tudo isso humilha e esgota a gente. Conto tudo isso para mostrar como é que se escreve no Brasil.
Nada direi da minha vidinha literária. Nasci em Ponta de Pedras, me criei em Cachoeira. Tenho trinta e um anos, com caderneta militar de segunda categoria, etc. Cultura: estudos primários com o professor Chiquinho e Grupo Escolar Barão do Rio Branco, em Belém. Estive dois anos no ginásio. Nele desaprendi o que levara do grupo. Quase todos os professores me desanimavam, dinheiro não havia, tive sarampo, curado pela minha segunda mãe Dona Lulú, acabei perdendo os exames do segundo ano e virei vagabundo de subúrbio em Belém, morando na barraquinha de Dona Lulú que me dava comida, luz para escrever versinhos, e um sapato de quando em quando. Fui ao Rio na terceira braba do "Duque de Caxias" e acabei lavando pratos no Hotel São Silvestre, na rua Conselheiro Zacarias, passando o esfregão no corredor da pensão onde morava de favor, dormindo em cima duma colcha rota no chão e comprando para a patroa a carne no açougueiro e levando cesto feito criado quando o amante da dona ia na feira fazer compras. Tinha dezenove anos. Tinha mais dois cartões. Um para o então senador Lauro Sodré. E o outro para o doutor Gustavo Barroso. O do Dr. Lauro não dei porque não sabia a casa dele. Com o do Dr. Gustavo Barroso fui ao "Fon-Fon". E isso depois de vou-não-vou, temendo a importância do Dr. Barroso e do "Fon-Fon". Encontrei um senhorzão bem nutrido e vestido, que ao receber a minha carta me perguntou com voz sonora c confortável "sabe revisão?” ·
Me botou num caixote à espera que o revisor da revista pedisse demissão e eu ocupasse o lugar. Um dia o desânimo aumentou. Nada do revisor sair e a dona da pensão me aponta outros empregos, muito impaciente com a minha situação. E me despedi do majestoso Dr. Barroso, cujo displicente olhar caiu sobre mim com uma tranqüila superioridade e com tão solene desdém que desci a escada do "Fon-Fon" como um escorraçado.
Voltei na mesma terceira classe do “Duque". Fracasso completo. Vagabundo sempre. Papai em Cachoeira sem nada poder fazer e Dona Lulú na barraquinha me dando o que podia arranjar na sua máquina de costura. Foi então que escrevi ao Sr. Paulo Maranhão, proprietário da "Folha do Norte" uma carta floreada como página do meigo Dr. Aluízio de Castro, pedindo um cargo de suplente de revisão. Ele me respondeu de testa que "emprego era o que não havia e que fosse bater noutra porta".
A nota vai comprida demais. Escrevo apressado para não perder a mala aérea. DOM CASMURRO me lançou e nada posso dizer porque o que ele fez foi agitar a terrível questão dos pobres escritores mergulhados na província. Foi a obra magnífica de DOM CASMURRO. Nada mais posso dizer acerca do "Chove nos campos de Cachoeira", porque somente poderia dizer coisas ruins. É um livro tão meu que não sei falar bem dele, não sei explicar finalmente. Tem toda a desordem, os defeitos, as lutas dum livro sincero. Eis a coisa ruim que posso ainda dizer... Mas quero acabar que tive uma grande homenagem por causa do prêmio. Fui com o meu amigo Cronge da Silveira, em Santarém, tomar tarubá na casa de dona Ana, no bairro da Aldeia. A casa de palha, o chão batido e as moças simples e alegres cumprimentaram o "escritor premiado...” O tarubá é uma bebida fermentada de mandioca muito usada em Santarém. E naquela noite da Aldeia, num banco no terreiro, tomamos o tarubá, bebida da terra e do povo. Não me esquecerei nunca da Aldeia.
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