Gabo pegou o "Expresso Macondo" deu adeus e partiu de
volta à terra natal inventada por sua própria conta e risco.
"Ah moradores do Maranhão, quanto eu
vos pudera agora dizer neste caso! Abri, abri estas entranhas; vede,
vede este coração. Mas ah sim, que me não lembrava! Eu não vos prego a
vós, prego aos peixes." -- Padre Antonio Vieira, "Sermão aos Peixes" (São Luís-MA, 1654).
DE VOLTA A MEU ACONCHEGO
É preferível sofrer cegueira dos olhos do que do espírito. Isto é, da inteligência. Por que a burrice é uma cegueira desconforme, posto que tem cura quando o cego neste caso queira curar-se a si mesmo. Porém a pior cegueira é de quem não quer ver. Entre fezes e urina nascemos. Todo mundo nasce cego, faminto, desdentado, ignorante e não anda com as próprias pernas.
Eu nasci assim, como todo mundo, num lugar chamado o "Fim do Mundo", à ilharga do Curro Municipal na beira do rio Marajó-Açu que dá nome a toda ilha do Marajó e adjacências, suburbiozinho da antiga vila Itaguari. Sei que vou morrer não sei o dia nem a hora... Pode ser agora ou daqui a quarenta e tantos anos... Vou andando devagar e remando pela beira, passarei novamente pela velha aldeia da Magabeira, aonde um dia hei de voltar. Por que, uma certa vez, estive como asilado na Ilha do Diabo junto ao Inferno Verde e um camarada chileno exilado das diabruras da ditadura de Pinochet, naquelas bandas das Franças equinociais; me ensinou aquilo que eu já desconfiava desde quando eu era menino jito em Vilarana:
a gente, paresque, tem que deixar nossa aldeia de infância pra trás e crescer na vida para descobrir o mundo. A fim de saber, enfim, que o melhor lugar do mundo é a nossa velha aldeia natal. Pois que, a parte que me cabe neste latifúndio eu mesmo faço, com régua e compasso do Fim do Mundo.
Agora nós estamos de pé, minha aldeia e eu! Desde a primeira manhã após a primeira noite do mundo...
Fronteira entre a dura realidade e o sonho da madrugada de uma Terra sem Males feliz para todos, vizinha ao Macondo, não longe de Santa Maria de além mar, vizinha de Madinina no reino encantado do poeta Cesário amado do povo do Caribe. Entre o céu profundo e as grandes combustões do funda da terra no mar negro das Antilhas.
Desde jito quis eu saber quem inventou o mundo. Por acaso e necessidade tive que sair do Fim do Mundo a procura do mundo lá fora. Buscar pelas respostas às mais angustiantes questões que ainda me perseguem depois de tonto (sic) tempo. Agora quero armar minha rede mítica e dormir ao pé do Araquiçaua: sítio utópico onde o sol se deita esperando a lua chegar no rio invisível além do horizonte...
Plantar estacas altas da atalaia do Norte e erguer minha tenda de judeu errante no deserto, negro da terra emigrante na diáspora afro-americana acamaradado de índios pretos e crioulos caribenhos; mouro cristianizado a muque; bárbaro celtíbero romanizado pelas falanges de César, índio bom civilizado sob sete palmos de terra para fertilizar verdes campos de plantation de cana e bananas e dar meu sangue e os próprios ossos do tempo ancestral como alicerce à santa madre Civilização acidental.
De pé ao fim da madrugada, a contemplar a estrela da manhã! Desde a primeira manhã na aldeia replantada rumo a porto Caribe na rota do contrabando e das grandes falsificações da história. Pelo avesso mar da estória. De derrota em derrota até a vitória final de Vilarana contra a aldeia global e o grande esquecimento da Criaturada grande de Dalcídio.
Levei comigo guardados mitos dos começos do mundo saídos da caixa de Pandora com a primeira noite do vasto mundo. Um caroço mágico de tucumã guardado pela cobragrande Boiúna no fundo do rio por baixo da ilha chamada do Coati, no sometume da história: passagem secreta para baixo do altar-mor da igreja da senhora do Tempo, na vila que nem vila era.
Por ventura, Vilarana anda comigo aonde quer que eu vá. Que nem a imaginária Santa Maria seguiu a Juan Carlos Onetti como sua própria sombra e o Macondo se tornou carne e unha da ficcional pessoa de Gabriel Garcia Marques.
Por este autêntico princípio antropoético, creio por que é absurdo! Quem for cego e surdo que se cuide de tratar com os caruanas sacacas da ilha grande dos Marajós. Caso contrário a doidice do vasto mundo não terá remédio. E os donos do poder, pobres coitados, nunca mais hão de saber da glória insuperável de um babalorixá tal qual Bruno de Menezes, falado em verso e prosa no Ver O Peso, com certeza, nosso guia na academia do peixe frito da Terra sem Males a festejar São Benedito da Praia sob ritmos de Batuque.
Grande solenidade em Vilarana, esta semana, para homenagear o retorno de Garcia Marques ao país natal. O pai da negritude Aimé Cesaire, em grande estilo, estava lá com Édouard Glissant, Franz Fanom, Carpentier, Léon Damas, Senghor, o genro de Marx, Paul Lafargue; acompanhado de sua amada Laura companheira na vida e na morte. Com estes, muitos outros a dar boas vindas ao autor de "Cem anos de solidão"...
Com a palavra, o venerável soberano da negritude arquetípica da Martinica:
(tradução brega do caboco Zé Varela).
No fim da madrugada, poças dispersas, perfume errante, furacões naufragados,
navios encalhados, velhas chagas, ossos apodrecidos, lamaçal, vulcões acorrentados, mortos
mal enraizados, grito de amargura. Eu aceito!
E também minha original geografia; o mapa do mundo
feito para meu uso,
não pintado de arbitrárias cores acadêmicas, mas a geometria
de meu sangue espalhado, eu aceito
e a determinação de minha biologia, não prisoneira
dum ângulo facial, duma forma de cabelos,
dum nariz suficientemente achatado, duma tez suficientemente
dotada de melanina,
e a negritude, não mais um índice encefálico, ou um plasma,
ou um corpo, mas medida ao compasso do sofrimento
e o negro a cada dia mais baixo, mais acovardado,
mais estéril, menos profundo,
mais excluído, mais apartado de si mesmo, menos ligado
consigo mesmo,
eu aceito, eu aceito tudo isto
e longe do mar de palácios que desfilam sob a maré de sizígia supurante de ampolas, maravilhosamente reclinado o corpo de meu pais no desespero de meus braços,
seus ossos alquebrados e, em suas veias, o sangue que hesita
como a gota de leite vegetal na pointa cortada de um bulbo...
Eis que de repente força e vida me assaltam como um touro
e a onda de vida contorna a papila do morro, eis todas veias
e vasos que se empoderam no sangue novo e o enorme pulmão
dos ciclones que respira e o thesaurus de fogo dos vulcões
e o gigantesco pulso sísmico que bate agora
a medida de un corpo vivo em meu firme abraço.
E nós estamos de pé agora, meu país e eu,
cabelos ao vento, minha mão pequena agora
dentro de seu punho enorme e a força não está em nós,
mas acima de nós, com uma voz que gira na noite e se ouve como
penetrância duma vespa apocalíptica. E a voz diz que a Europa durante séculos nos encheu de mentiras e nos inchou de pestilências,
pois não é verdade que a obra humana está terminada
que nós não temos mais nada a fazer no mundo
que nós parasitamos o mundo
e que basta que nós sigamos o passo do mundo
mas a obra do homem vem apenas de començar
e resta a humanidade conquistar toda proibição imobilizada aos cantos de seu fervor
e nenhuma raça não tem o monopólio da beleza,
da inteligência, da força
e há lugar para todos no encontro da conquista e nós sabemos agora que o sol roda em torno de nossa terra clareando a parcela que a sido determinada por
nossa vontade unicamente e que toda estrela cai do céu em terra
a nosso comando sem limite.
(trecho original do célebre poema de Aimé Cesaire)
Au bout du petit matin, flaques perdues, parfum errants, ouragans échoués,
coques démâtées, vieilles plaies, os pourris, buées, volcans enchaînés, morts
mal racinés, crier amer. J'accepte !
Et mon originale géographie aussi ; la carte du monde faite à mon usage,
non pas teinte aux arbitraires couleurs des savants, mais à la géométrie de mon sang
répandu, j'accepte
et la détermination de ma biologie, non prisonnière d'un angle facial, d'une
forme de cheveux, d'un nez suffisamment aplati, d'un teint suffisamment mélanien,
et la négritude, non plus un indice céphalique, ou un plasma, ou un soma, mais
mesurée au compas de la souffrance
et le nègre chaque jour plus bas, plus lâche, plus stérile, moins profond,
plus répandu au-dehors, plus séparé de soi-même, moins immédiat avec soi-même,
j'accepte, j'accepte tout cela
et loin de la mer de palais qui déferle sous la syzygie suppurante des
ampoules, merveilleusement couché le corps de mon pays dans le désespoir de mes bras,
ses os ébranlés et, dans ses veines, le sang qui hésite comme la goutte de lait
végétal à la pointe blessée du bulbe...
Et voici soudain que force et vie m'assaillent comme un taureau et l'onde
de vie circonvient la papille du morne, et voilà toutes les veines et veinules qui
s'affairent au sang neuf et l'énorme poumon des cyclones qui respire et le feu
thésaurisé des volcans et le gigantesque pouls sismique qui bat maintenant la
mesure d'un corps vivant en mon ferme embrasement.
Et nous sommes debout maintenant, mon pays et moi, les cheveux dans le
vent, ma main petite maintenant dans son poing énorme et la force n'est pas en nous,
mais au-dessus de nous, dans une voix qui vrille la nuit et l'audience comme
la pénétrance d'une guêpe apocalyptique. Et la voix prononce que l'Europe nous a
pendant des siècles gavés de mensonges et gonflés de pestilences,
car il n'est point vrai que l'oeuvre de l'homme est finie
que nous n'avons rien à faire au monde
que nous parasitons le monde
qu'il suffit que nous nous mettions au pas du monde
mais l'oeuvre de l'homme vient seulement de commencer
et il reste à l'homme à conquérir toute interdiction immobilisée aux coins
de sa ferveur
et aucune race ne possède le monopole de la beauté, de l'intelligence, de la
force
et il est place pour tous au rendez-vous de la conquête et nous savons
maintenant que le soleil tourne autour de notre terre éclairant la parcelle qu'a fixée
notre volonté seule et que toute étoile chute de ciel en terre à notre commandement
sans limite.
Aimé Césaire, Cahier d'un retour au pays natal, Ed. Présence africaine
Nenhum comentário:
Postar um comentário