terça-feira, 23 de dezembro de 2014

MINHA MELHOR HISTÓRIA DE NATAL


uma bela laranja na ceia de natal



"Sou um caboco marajoara que teve sorte de ser bem alfabetizado pela Professora Alda Natália Gonçalves dos Santos, no "Grupo Escolar Professora Aureliana Feio", de Ponta de Pedras-PA. Muito curioso em saber quem inventou o mundo". Desta maneira singela gosto de me apresentar aos amigos da blogosfera, mas devia dizer que na verdade minha mãe foi quem me ensinou as primeira letras, como acontece naturalmente a quase todo mundo antes de entrar na escola.

Foi assim que, por defeito de reforma agrária e falta de desenvolvimento rural que preste, embarquei certo dia na canoa furada do êxodo da ilha do Marajó para a cidade grande de Belém do Pará. Era, paresque, velho fado dos nossos antepassados sempre a buscar vida melhor. Liso e leso na capital, pra começar fiz estágio de marreteiro no Ver O Peso e tive inútil experiência de comerciário fumado e mal pago, assim que de office boy em escritório de advogado sem carteira assinada. Com um pouco mais de sorte, acabei por acaso nos idos da década 60, me tornando repórter do novato Jornal do Dia

Diário paraense que não teve vida longa, no qual fiz algumas poucas reportagens que valeram a pena e escrevi uma breve série intitulada A Face Oculta do Ver O Peso, na tímida pretensão de revelar o invisível drama quotidiano da maior feira da América Latina, onde mais de 4000 trabalhadores sobrevivem com suas famílias a morar nas baixadas insalubres de Belém, salvo exceções; e suas desconhecidas conexões com o outro lado do rio e o resto do mundo. Era uma incipiente imitação do famoso folhetim de Nelson Rodrigues "A Vida Como a Vida É", que marcou época na imprensa nacional. 

Nessa temporada fui bisonho auxiliar do jornalista Angelo Giusti, que era responsável pela impopular coluna Inferninho do Contrabando. Digo impopular porque, naquela época, o contrabando reinava absoluto desde a fronteira do Oiapoque até as trinta e tantas baias da região do Salgado, passando pelo Baixo Amazonas e Tocantins, provendo emprego informal e renda mínima a tanta gente no mato sem cachorro que, sem este ilícito, não arranjaria grana nem para o peixe frito e açaí de cada dia. 

A então decadente cidade de Belém do Grão-Pará, tal qual o romance homônimo de Dalcídio Jurandir; não havia recurso para sacudir a poeira da falecida belle époque de Paris n'América. Sua boa gente era mais vítima que transgressora da legislação protecionista da florescente e invejada indústria de São Paulo, a qual chegou ao Norte de caminhão pela rodovia Belém-Brasília e atropelou a claudicante indústria paraense que ainda restava do fracasso da Borracha. 

Como vimos, mais tarde, no Estado do Amazonas a leseira amazônica foi mitigada com a criação da Superintendência da Zona Franca de Manaus (SUFRAMA) e, malmente remediada, na Zona de Processamento para Exportação (ZPE) de Santana e Macapá. No ponto de vista do eixo neocolonial instalado nas regiões Sudeste e Sul, o Pará podia dar-se por satisfeito com as sedes da SUDAM e do BASA, mas nem isso passava de lambança pra inglês ver. O que responde pela estúpida devastação da Floresta Amazônica e a empobrecida superpopulação da área metropolitana de Belém mais que qualquer coisa.

Já sabemos como a história do Pará é deveras complicada. Com o racha do Baratismo, a família Carneiro embarcou com armas e bagagem ao PTB pós-Vargas e fundou o inovador Jornal do Dia destinado a fazer oposição à velha oligarquia do PSD, onde a dita família oriunda de Goiás se arrimou, como tantos outros paraenses por adoção que cercaram o antigo Interventor Magalhães Barata.

Parada indigesta enfrentar aguerridos herdeiros do espólio político da revolução de 1930 no Pará. O antigo O Liberal, velho órgão oficial do baratismo, apesar de não ter poder de fogo diante da ferina Folha do Norte já no ocaso, de vez enquando fazia ferida. Enquanto isto, a provecta A Província do Pará lutava pela sobrevivência desde o fim da época de Antônio Lemos e da Borracha.  Foi assim que o JD, como relâmpago em noite sob batuta de Cláudio de Sá Leal, apesar de breve existência, sacudiu o marasmo da imprensa regional descendente do panfletário O Paraense, de Felipe Patroni. 

Na verdade, o mesmo Leal egresso de A Província e contratado por Pedro e Armando Carneiro, pai e filho; em luta política contra o PSD no poder, para fundar o Jornal do Dia; terminou contratado por Rômulo Maiorana para modernizar e transformar velho O Liberal em verdadeiro jornal. Rômulo foi um "contrabandista" diferente da maioria que apareceu para se dar bem e ficar na sombra. Ele evitou a máscara de político e acabou botando os políticos da terra no chinelo. Como muitos outros se capitalizou no comércio "clandestino" do Pará com as Guianas, porém sem hipocrisia parece-me que compreendeu logo que o contrabando no Norte do Brasil era consequência e não causa do federalismo torto que impera no país. 

Enquanto o PSD foi hegemônico, o "forasteiro" Maiorana era motivo de fofocas requentadas nas rodas elegantes da elite; na desgraça baratista, de repente ele foi tábua de salvação. Porém, longe de tentar a política pisou fundo na lama do atraso econômico e meteu a cara na renovação do comércio lojista onde a mesma elite arruinada se abastecia de produtos da moda. Deu banho de loja ao velho casario do comércio e saiu na chuva dando cara a tapas, conciliando-se discretamente com o poder militar na região emergente do golpe da ditadura contra o PTB de Jango. 

Enfim, um pragmático paraense adotivo sem querer ser santo, moralista ou famoso político; que aguentou o rojão quando o baratismo entrou em parafuso e no comando do jornalismo comercial levou a outrora inimiga "Folha do Norte" a pique, matando-lhe o temido título e arrematando no final o histórico prédio de tantas batalhas: hoje a sede da "Fundação Rômulo Maiorana". Uma notável referência na história política do Pará que ainda não se escreveu com necessária imparcialidade.

Então, como eu estava dizendo, o Inferninho do Contrabando era um agulhão feito sob medida para fustigar o governo de Aurélio do Carmo e desbancar o velho PSD estadual, mais que para moralizar o comércio do Pará com as Guianas. Giusti era um cara sério e tranquilo, observador arguto da cena paraense. Com ele não aprendi muita coisa, mas pelo menos seu jeito civilizado de fazer jornalismo pisando terreno minado no pântano das máfias locais de diferentes calibres: o JD foi para mim um precioso aprendizado, sobretudo, quando vinte anos mais tarde fui a serviço do Itamaraty trabalhar como vice-cônsul do Brasil em Caiena para cuidar da chamada "imigração clandestina". A Guiana Francesa e o Suriname ocupavam a maior parte do noticiário do Inferninho; lá por ironia da história fiz ex-officio, por assim dizer, "PhD" em malandragens e patifarias que até Deus duvida. 

Além disto, como vestibular da carreira, no currículo pregresso eu havia pisado a lama do dilúvio nas paragens do purgatório das Ilhas e Cabo do Norte, lugares marginais onde andar certo é praticamente errado. Onde todo sujeito honesto, visto pela maioria da canalha ululante, não passa de bestalhão...  Tivera eu rica experiência social no Marajó velho de guerra, todavia mais ou menos como cego em meio ao tiroteio... Quando me mudei definitivamente a Belém, fustigado pelo derradeiro surto de malária e crise de desemprego; estava beirando já aos vinte anos de idade. Enfim, contava 23 anos quando fui ser foca de reportagem policial, nesse tempo eu lia tudo que caia ao meu alcance em letra de forma e escrevia, mais ou menos, com os erros de praxe de quem não havia concluído o curso primário. 

Até então eu escrevia versos de pé quebrado para matar o tempo e tinha horrível pretensão de vir a ser romancista. Devorei resmas de papel almaço e gastei milhares de canetas Bic a ponto de me fazer calo nos dedos da mão como se fosse o diploma que não tive. Li Dalcídio aos dezesseis anos de idade: eu era tapado que nem uma pedra, quando virei a última página caíram-me as escamas dos olhos... Danei-me a rabiscar papel. Muito tempo depois, já em Brasília, levei susto tremendo ao entrar em contato com a obra de Guimarães Rosa: pareceu-me familiar ao pessoal do Curral Panema meu vizinho por um par de tempo nos centros do Marajó, povoado provavelmente com alguns casais dos Açores, que ao longo do tempo perderam memória de suas origens, mas não a fala e alguns costumes insulanos.

Em nossa província àquele tempo não havia curso de jornalismo e se houvesse creio que não me interessaria, pois nem eu tinha preparo para ingressar em tal curso. Mas, se a gente tivesse queda pra bancar repórter era o que bastava para entrar no jornal. Se a notícia fosse 'quente', podia-se escrever "caxorro", "autofalante", estar "afim" de ganhar dinheiro no jogo do "bixo" ou assassinar concordância verbal, sem medo do leitor descobrir nossa "crasça" ignorância. Por que toda redação que se prezava havia bons revisores, não raro membro da academia de letras. Então, redação e oficina de jornal além de escola prática acabavam também a ensinar carentes das letras pátrias a se comunicar sem grandes traumas. 

Hoje sou grato à minha mãe e à primeira professora que me ensinaram o bê-á-bá, mas também ao saudoso amigo Claúdio de Sá Leal e ao corpo de redatores do extinto JD que me ensinaram a fazer jornal. Com que hoje me atrevo a embalar meus blogs estúrdios na rede. Aposentado de direito desde 1998 e de fato em 2007, acabei de completar setenta e sete anos de idade e gostaria agora de escrever umas linhas a respeito da primeira noite de natal e da melhor que tive dentre todos natais de minhas recordações. 

Nasci na maternidade da Santa Casa de Misericórdia do Pará, em Belém, mas toda minha infância distante transcorreu na pacata vila de Itaguari (Ponta de Pedras), na beira do rio Marajó-Açu, ilha do Marajó. Papai Noel lá não chegava, talvez por que o saco de presentes se esgotava na cidade grande antes mesmo de atender o subúrbio. Ou por que o trenó do tal velhinho com as renas fatigadas desde o Polo Norte não aguentassem maresia de verão na perigosa travessia da baía sob forte vento geral. O certo é que a gente só tinha natal de presépio na igreja matriz e as pastorinhas do Campinho. Nosso natal, de verdade, era São João no meio do ano.

Foi aí que mamãe resolveu nos engambelar com a velha estória de Papai Noel, a mim e à minha irmã pequena que teria ainda três ou quatro anos de idade. Acho que meu ceticismo sem graça puxou a meu pai. Eu queria pegar o velhinho em flagrante na hora que ele fosse deixar presentes debaixo da rede de dormir... Detalhe importante, pois não se conhecia cama em Itaguari, a não ser alguma rara casa de rico. E olhe lá!... Sapatos também não eram pra todo mundo, de modo que nossos tamanquinhos estavam prontos debaixo da rede a receber presentes naquela noite estranha, enquanto eu fingia dormir desconfiado da demasiada patranha materna.

Não me lembro bem, mas penso que minha mãe estava mais ansiosa que toda população naquela primeira noite de visita de Papai Noel à vila de Itaguari. Minha irmãzinha, cansada da espera e sonhando com as Pastorinhas dormia profundamente enquanto eu 
de sentinela vigiava para desmascarar a farsa natalina em terra de Curupira. Altas horas, percebi certo movimento suspeito... Levantei-me súbito e vi minha mãe correr quase caindo sobre o penico ao sair do quarto. Então, foi que vi sobre meus pobres tamancos o mais formoso guará jamais feito, artesanalmente, em papel crepon pelas amorosas mãos de mamãe. Qual criança da paróquia poderia ganhar presente igual naquela noite misteriosa? Dias mais tarde, deixado ao canto pela bola e a peteca lá se foi meu guará de natal a voar para o vasto mundo da saudade.

Anos depois já não sou mais um pirralho ingênuo metido a esperto. Outro natal, desta vez em Belém do Pará, estou sozinho com minha mãe numa velha casa de madeira alugada numa baixada triste. Era só o que meu magro salário de repórter sem carteira assinada permitia. A ceia desta feita foi uma única laranja repartida em gomos para mãe e filho. Nada mais... Mas, que rica foi aquela abençoada ceia! Eu estava orgulhoso do bendito fruto de meu trabalho e via minha mãe feliz de seu único filho. Pois ela saberia dali em diante que seu rebento não se corromperia por ouro ou prata... 

Aquela pobre barraca suburbana parecia-me naquela noite mais confortável que a manjedoura de Belém, onde santa Maria pariu o Menino Deus. E o motivo de alegria fora a reportagem que eu fizera, publicada na íntegra pelo amigo Leal; denunciando um mirabolante plano de empresários de torrefação de café para supostamente acabar o contrabando... Se a matéria saísse conforme o ditado eu receberia gorda propina de presente de natal, dissera o contato dos contrabandistas que me procurou a fim de plantar a notícia. 

Contei ao Leal, secretário do jornal, a malandragem e lhe disse que ao contrário do esperado iria denunciar na reportagem a tentativa do cartel do café em barrar a arraia miúda dos barquinhos de contrabando para concentrar a muamba em mãos de poucos. Leal limitou-se a rir da minha cara, dizendo ele do alto de sua experiência que eu ainda era "puto novo"... Ou seja, que na profissão o jogo de verdade era muito mais bruto do que eu imaginava.

De fato, aquela manobra seria apenas simples balão de ensaio. Uma isca para botar repórter noviço no bolso... Por acaso, o golpe militar de 1964 veio surpreender e abortar algo bem mais sofisticado que seria, com auxílio da própria Receita Federal, fechar as portas de entrada do Amazonas ao tráfico de barcos de contrabando. A máfia, todavia, com a barra cerrada passaria a "comer a paca" sozinha passando a operar hidroavião com deposito de muamba em alguma fazenda com pista aérea no centro da ilha do Marajó. Dali, em horas mortas, sairia a muamba a diversos pontos próximos à costa da ilha com barracão cheio de caixas de uísque, sandálias japonesas, peças de carro para montadora de automóvel "cotia" dentro do mato do 40 Horas, armas e munição, etc. através de canoas de pesca que, "sem dar na vista", fariam remessas para cercanias de Belém. 

O grande plano do cartel falhou. Mesmo assim, a Alfândega com ajuda da "Burra Preta" (lancha patrulha de velocidade, emprestada pela Petrobras) passou a dar combate ferrenho a pequenas embarcações suspeitas de praticar contrabando miúdo. Queixas de violência e corrupção de policiais não faltaram, casas ribeirinhas invadidas e revistadas sem mandato, casos de espancamento para forçar caboco a abrir o bico e vomitar tudo que sabia sobre movimentação de contrabandistas na área. 

Um tal teatro dos horrores ribeirinhos servia de cortina ao tráfico ilegal onde pontificava a imigração clandestina de "refugiados econômicos" para as Guianas -- donde o capitão Palheta furtou o café que foi prosperar em São Paulo --, e que só fazia aumentar dia após dia. Em compensação, pelo mesmo caminho vieram dentre costumeiros contrabandos ritmos e músicas do Caribe para se aculturar no Pará. Prova de que é bandalheira todo bloqueio econômico e fiscal para beneficiar apenas a poucos espertalhões. E outras histórias e outras maldades com ou sem consentimento oficial... Agora toda noite de natal em minha casa quanto vejo a mesa arrumada para ceia, a grande família reunida, eu me lembro daquela curiosa história duma laranja só para mãe e filho comemorem a Natividade da cristandade. 
 

 Othilia Varella Pereira, minha mãe, cerca de 1967 em Brasília-DF.

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