minha senhora dona Palmira de Nazaré, companheira de fé e de muitas jornadas, e o caboco que vos fala curtindo o Natal de 2014 com a família em Belém do Pará, aldeia Marambaia. [*]
obra da necessidade com o acaso
Neste blogue, no post anterior, contei a estúrdia história do meu primeiro natal, ocorrido por acaso na vila de Itaguari [Ponta de Pedras], e ao comentar amigos levaram a conversa para as bandas do Rio Canal, interior do município de Ponta de Pedras. A construção do canal do Ourém a braços de escravos, pelos idos dos anos 70 do século XIX; criou uma ilha a mais no arquipélago do Marajó e encurtou o tempo de viagem fluvial, por dentro, entre a vila de Cachoeira, na margem esquerda do rio Arari, e a nova vila de Ponta de Pedras, na margem esquerda do rio Marajó-Açu, sede do recém criado município, em 30/04/1878, desmembrado do primeiro.
Até então, as viagens entre as duas vilas irmãs costeando a baía em canoa à vela, ditas por fora; eram difíceis e perigosas. Enquanto por dentro, em canoas a remo, demoravam muito mais atravessando paragens ermas e desabrigadas em meandros de corrente vagarosa tomada pela vegetação, quase já nos campos baixos alagados da ilha grande. Masporém, aquela providencial passagem nova criada pela geografia humana, a custo de suor de escravos e lágrimas por suposto devido a algumas mortes acidentais da escavação braçal das terras cortadas pelo canal; deu uma ilha sem nome: tanto que poderia ter sido chamada com propriedade ilha do Canal, ilha de Ponta de Pedras ou quiçá ilha da Ponta. Por referência ao lugar chamado deste último nome, sito à confluência do rio da Fábrica com o furo das Laranjeiras, entre as ilhas de Santana e da dita ilha nova de que ora estamos falando, na antiga Costa-Fronteira do Pará, beira da baia do Marajó.
Fato histórico e geográfico a toda prova, mas que ainda não teve o merecido destaque, sobretudo no que concerne ao ecoturismo de base na comunidade na doravante Costa do Sol onde o Marajó começa tendo por referência a antiga aldeia indígena que deu origem ao município de Ponta de Pedras e atual vila de Mangabeira, florão da primeira sesmaria dos Jesuítas no Marajó (1686), de um lado. E, por outra parte, também a primeira sesmaria e engenho dos Mercedários (1696), em Santana e Tartarugeiro, ambas banhadas pelo antigo Igarapé Puca e hoje rio da Fábrica supracitado.
No Canal e Curral Panema estão minhas raízes marajoaras e um haver de recordações das tantas e quantas vezes, em priscas datas, passei naquelas paragens a bordo de canoa a remo, igarité motorizada, barco motor ou lancha voadeira. Fui passageiro, às vezes, da lancha vapor Santa Maria da prefeitura, pilotada pelo senhor Raimundo Teixeira e noutras ocasiões remei solitário em montaria ou no meu casquinho maneiro feito de um tronco de piquiá, que minha mãe me deu de presente comprado ao afilhado dela Satuca Moraes, filho da Bita e do Anísio Aires, rapaz trabalhador que andava embarcado numa geleira na Contra-Costa.
Pelo caminho do Ourém também andei a pé e fui a cavalo rumo a Arapiranga e Oriente, que era fazenda central e na verdade ficava a ocidente. Para oriente, propriamente dito, pelos lados do Curral Panema também andei em boa caminhada até Cachoeirinha, a comprar farinha em companhia de seu Ciro Moraes, já às ilhargas da beira da baía. Há uma geografia secreta nessas duas mil e tantas ilhas grandes e pequenas da Amazônia Marajoara, delta-estuário do Pará-Amazonas, onde muitas gerações de índios, pretos e brancos entrelaçaram suas vidas e mortes num rosário de acontecimentos felizes e outros nem tanto.
Terá sido talvez ao tempo do Barão do Marajó, José Coelho da Gama e Abreu; no governo da província do Pará (ano de 1879 até 29/03/1881) que foi escavado o tal canal que virou rio. Por que eu penso desta maneira? Na conhecida obra "As regiões amazônicas" o Barão deixa claro seu interesse pela abertura de canais artificiais na ilha do Marajó a fim de melhorar a indústria pecuária. Fala ele no canal das Tartarugas e do Mocoões como coisa para o futuro, mas nada sobre Ourém. Certamente ele conhecia a história da construção do canal de Igarapé Miri que, em 1821, reabriu o Furo Velho que estava impraticável à navegação e poderia com esta experiência autorizar tentativa para tentar fazer coisa parecida a fim de encurtar o longo percurso fluvial entre as vilas da Cachoeira e de Ponta de Pedras.
Mas, não estou dizendo que foi o Barão de Marajó quem de fato mandou fazer o canal do Ourém, apenas aventando uma hipótese. Sem máquina de dragagem confiados tão-só em pás, enxadas e alvião para trabalho braçal escravo o fatal acidente do canal de Igarapé Miri acabou se repetindo na tragédia de Terras Caídas com seus mortos soterrados debaixo de camadas de barro e lama que desabaram dos taludes na obra temerária. A criação do município, em 1878, terá sido incentivo para pedir autorização e recursos ao governo da província na obra que não poderia ser executada com trabalho escravo depois de 1888. Enxergo, então, na década de 1878 a 1888 a construção do Canal em tela.
O terreno que deu lugar ao canal era um lombo de terra amarelada, latossolo, cujos vestígios geológicos ainda se podem ver nos barrancos erodidos no sítio Meia Noite e no Serrame cuja erosão nunca termina a escavação, ano após ano. Como se por acaso fantasmas dos escravos mortos e soterrados de Terras Caídas não terminassem o canal e mudança da correnteza que se formou desde que as águas do Marajó-Açu e do Arari se confundiram com a baía adentro pelo entorno da nova ilha.
Consta que antepassados do casal Amâncio e Rosa Costa receberam as terras de Enseadinha em recompensa pelos trabalhos de escavação do canal, talvez por parentes morto, lágrimas de dor e o suor derramados tenham eles recebido também carta de alforria até, finalmente, com a Abolição de 1888 ver todas famílias afrodescendentes livres para sempre. Quem sabe?
O canal dividiu o antigo sítio Ourém em duas bandas fronteiriças: do lado direito em direção ao Curral Panena, ficava o sítio do sumano Zecão (José Maria do Livramento), dono da igarité "Nossa Senhora de Fátima" (apelidada "Jiboia", muito bojuda, por erro de construção) chamava-se Ourém. Ele foi para mim como meu irmão mais velho: acho que seus antepassados podem ter vindos do arquipélago dos Bijogós, na Guiné-Bissau, que eram negros muito valorizados pelo vigor físico e estatura, servindo a seus senhores escravagistas e feitores como capangas e reprodutores para melhoria do plantel de cativos: estas não são coisas fáceis de dizer, mas a verdade é o primeiro passo para a justiça e a paz.
A história não é para os mortos, mas para os vivos das presente e futuras gerações... O mesmo nome Ourém ficou para o sítio do lado esquerdo do Canal, onde seu Dário Cabral Noronha teve casa de comércio, porto da igarité "Fé em Deus" e umas poucas cabeças de gado. Tempos depois, Francisco Rodrigues, filho de João Rodrigues, que foi morador do Serrame adquiriu a dita canoa dos herdeiros de Dário Noronha.
Na peculiar sociologia marajoara, morador é categoria de trabalhador sem terra que faz barraca (palafita) em terreno alheio com consentimento do dono legítimo ou tido como tal; mediante pagamento costumeiro de "meia" em espécie. Ou seja, se o terreno for várzea de açaizal, por exemplo, metade da colheita fica com o "dono" e este ainda tem preferência de compra da parte do morador a ser paga de acordo com o "apurado": resultado do preço da feira. Resulta na prática num subsídio imposto pela servidão da gleba ao morador em benefício do patrão que acumula, em geral, papel de fornecedor de mercadorias de primeira necessidade num regime latifundiário de superexploração da terra e da mão-de-obra. Por longos anos, terras da União foram exploradas por supostos donos através de "moradores", recentemente reconhecidos como usuários de terras de marinha isentos de quaisquer pagamentos. A extração de açaí, por exemplo, gera conflito entre supostos donos dos sítios e antigos moradores. Uma situação que está a mudar por uma parte, e por outra trás novas ameaças jurídicas à permanência da "Criaturada grande de Dalcídio" (populações tradicionais ribeirinhas) em seu habitat nativo.
No infinito trabalho do Canal, tal qual a cobra grande Boiúna a dragar o rio Arari na galante teoria do índio arariuara a que o sábio de Coimbra se refere na "Notícia Histórica"; as margens novas da Ilha da Ponta acrescidas de aluvião avançam continuamente sobre a beira alta de terreno antigo da ilha grande, comida pelas bordas, que recua no espaço aberto pela erosão sem fim. É bonito ver e compreender o moto-contínuo de destruição e reconstrução das águas na lição hidrológica de José Ferreira Teixeira: universidade da maré no delta do maior rio do mundo, vida e morte do maior arquipélago fluviomarinho do planeta.
De tal modo, que o velho trapiche do Serrame aluído pelos invernos chuvosos e as marés vivas, o estaleiro arruinado, casa grande tuíra pelo ostracismo, comércio falido, o laranjal fanado, cacoalzinho triste plantado dentro da paliçada que defendia o orgulho do casarão como uma muralha; currais desertos, campos cerrados, bacurizeiros, tudinho engolido pelo rio...
Meu finado avô Chico Varela com seu bigodão ruço de tabaco e café, olhos azuis de safira; a bronquite crônica e a viuvez fechada, a hérnia escrotal mitigada pela funda; sua rede larga na varanda entre vastas sestas e sonhos grandes, surdo às novidades da cidade e mergulhado em leituras de jornais retrasados da Galiza distante para sempre até morrer no exílio, em retiro no Curral Panema.
Na cômoda de cedro vermelho com tampo de mármore branco, arca das vacas gordas; a gaveta de alarme com dicionário galego-português surrado e o cofre vazio dos lendários 50 contos de réis, fechamento de conta-corrente na casa aviadora de Antônio Silva, na Marquês de Pombal, aviso final da quebra da Borracha (última vez que o velho pisou em terra firme).
O gramophone quebrado servia de viveiro aos sapos que ele criava para controlar formigueiros do coqueiral; o grande candelabro de porcelana leitosa lembrava o tempo perdido, relógio de carrilhão parado. O barco dos sonhos não viajou jamais, o San Thiago; naufragou com a morte de minha avó Maroca. Só a igarité Araci com o preto Amâncio de alma branca, chegando do Ver O Peso com os jornais de sempre e lenço encarnado ao pescoço anunciando a revolução de 1930 às margens plácidas do Curral Panema. Onde todavia a Lei Áurea de 1888 tardava e como, paresque, tarda ainda hoje... Apesar da igarité com a maré da noite e debaixo de ventania, ao sair da boca do rio Fábrica para fora, ter cruzado por acaso com o navio encantado e escapar, por um triz, de ser abalroado pelo paquete iluminado com música, festa, risadas e conversas da belle époque da Borracha a bordo.
Tudo, tudo em ruína. Mas, apesar de não se mergulhar duas vezes no mesmo rio, o rio do tempo não devora minhas recordações de menino currupio a correr pelo pasto do Serrame seguido do fiel Tigre e dos gritos severos de mamãe. Enquanto houve bom tempo fui herdeiro de um pequeno paraíso em decadência, mas feliz e meu pai caboco me sagrou cavaleiro andante da Boicana na demanda do santo açaí com camarão do Bacurituba: ele Quixote da coleção de revista Chácaras e Quintais e eu seu Sancho Pança a ambicionar a ilha Barataria... A malária, às vezes, dava azo a visões estranhas com batalhas épicas na casa dos quarenta graus de febre contra moinhos de vento e reinos de cupim que brilhavam na borda do campo, à meia noite, numa estranha iluminação que minha comadre Didi acreditava ser a luz dos encantados. Cadê que eu tinha coragem de desdizer tamanhas sabedorias? Besta era quem destruía fé alheia e a natureza de todos.
Um belo dia, havia eu pouca idade, chegaram de Belém em igarité à vela em Ponta de Pedras, tia Armentina, Osmarina e Lila para saber se era verdade que meu avô Varela estaria doente no Serrame. Meus pais não sabiam, então foi decidido que as três iriam subir o rio para visitar o velho que não viam a par de tempo... Eu fiz berreiro para acompanhar a excursão e acabei vencendo a parada, aos cuidados da tia. Papai foi contratar seu Papa Osso para fazer a viagem em montaria com mais dois remadores. Era costume viajar a noite para fugir ao sol escaldante numa viagem que, dependendo da maré, gastava seis ou oito horas: quando eu embarquei na aventura, saindo da ponte da Casa da Beira foi como mergulhar de cabeça num formidável mural de nanquim. Cada árvore da beira do rio era um castelo de sombras que a imaginação fazia maior.
Foi aí que despencou o dilúvio da lenda da primeira noite do mundo e não era só imaginação. Papa Osso no jacumã fechado como uma porta e os dois remadores calados se pegavam aos remos como se a chuva e a noite grande fossem castigos antigos daqueles buscadores do caroço de tucumã mágico, que a cobra grande deu de presente à filha dela que ia se casar. Lila e Osmarina nem um pio. Só o conforto do colo quente de tia Armentina me salvava naquela canoa engolida pela noite e a chuvarada. Mamãe dissera a tia, quando chegar no Ourém pede ajuda ao José... José do Ourém era descendente de antigos escravos de meu bisavô, cuja lenda de bom amo, fazia-nos crer que tudo aquilo era um conto de fadas onde pretos, brancos e pardos viviam com irmãos. Ledo engano! Custou-me muito saber dos males da civilização ocidental-cristã e que a parte escura da família branca era que mais pegava no pesado e mais sofria injustiças e necessidades.
Chegando ao Puxador a maré vazou, bem calculada a passagem, seu Papa Osso era o cara. A correnteza ligeira rio acima nos levara ao Puxador e agora na vazante em continuação da viagem começava a puxar mais rápida para baixo, ao contorno da ilha nova formada pelo Canal... Ali o famoso Puxador quem errasse a maré ia se ver com correnteza pela proa. Se calhasse do vento soprar contra também era o diabo... A força da vazante abria redemoinhos perigosos que o piloto procurava evitar com certo esforço, já no Ourém havia um remanso e a chuva, por encanto, passou.
Madrugada fria e úmida nem um galo no poleiro se atrevia a abrir um olho e cantar para acordar o sol, eu tremia de frio feito vara verde insistindo com a tia para chamar o pobre José a deixar a rede para vir remar de graça naquela desnorteada canoa. Era assim que a gente pensava que Deus fez o mundo para nosso regalo... Quando a inocência faz mal, mas felizmente José não ouviu coisa nenhuma ou se ouviu meus rogos infantis fez ouvido de mercador. Em compensação, quanto o dia clareou estávamos no Serrame, onde o velho Varela são e forte deu risadas de tonta preocupação.
O Canal divide e separa marés do rio Marajó-Açu através do Puxador e a cabeceira do rio Carapanaoca (depois Rio do Canal) comunicando o Curral Panema ao Rio Fábrica, que desagua na baía do Marajó e ao Furo das Laranjeiras, contornando a ilha de Santana antes de confluir com o Arari. Tudo aquilo, me parecia, antes da abertura do canal era chamado pelos antigos, Igarapé Puca, que quer dizer igarapé comprido até então despovoado e caminho de índios bravios Aruãs vindos da Contra-Costa pelo lago Arari para incursionar até as ilhargas de Belém através do Carnapijó.
Então, me prometi a aprender e contar o que eu porventura aprendesse a respeito do canal que virou rio. Assunto também de curiosidade de outros interessados em preservar a memória das igarités e antiga navegação de "goiabas", comerciantes fluviais de Ponta de Pedras praticando escambo no rio e lago Arari geralmente em montarias (canoas a remo).
O falar marajoara guarda reminiscências da antiga geografia humana da região das ilhas do delta-estuário do grande rio Pará-Amazonas. Celeiro de "gados do rio" (peixe-boi, tartarugas e pirarucu), naturalmente o índio e depois seus descendentes em suas necessidades de comunicação com o colonizador traduziu seu modo de vida ao mundo em transformação pela dominação dos brancos. A canuá indígena virou canot em francês e canoa em espanhol e português: se o caboco falar 'canua' ou não dizer 'caboclo', está errado... Portanto, quem vai aos 'gados do rio' por necessário irá montado no cavalo da água a que chamamos, lindamente, 'montaria'.
Até então, as viagens entre as duas vilas irmãs costeando a baía em canoa à vela, ditas por fora; eram difíceis e perigosas. Enquanto por dentro, em canoas a remo, demoravam muito mais atravessando paragens ermas e desabrigadas em meandros de corrente vagarosa tomada pela vegetação, quase já nos campos baixos alagados da ilha grande. Masporém, aquela providencial passagem nova criada pela geografia humana, a custo de suor de escravos e lágrimas por suposto devido a algumas mortes acidentais da escavação braçal das terras cortadas pelo canal; deu uma ilha sem nome: tanto que poderia ter sido chamada com propriedade ilha do Canal, ilha de Ponta de Pedras ou quiçá ilha da Ponta. Por referência ao lugar chamado deste último nome, sito à confluência do rio da Fábrica com o furo das Laranjeiras, entre as ilhas de Santana e da dita ilha nova de que ora estamos falando, na antiga Costa-Fronteira do Pará, beira da baia do Marajó.
Fato histórico e geográfico a toda prova, mas que ainda não teve o merecido destaque, sobretudo no que concerne ao ecoturismo de base na comunidade na doravante Costa do Sol onde o Marajó começa tendo por referência a antiga aldeia indígena que deu origem ao município de Ponta de Pedras e atual vila de Mangabeira, florão da primeira sesmaria dos Jesuítas no Marajó (1686), de um lado. E, por outra parte, também a primeira sesmaria e engenho dos Mercedários (1696), em Santana e Tartarugeiro, ambas banhadas pelo antigo Igarapé Puca e hoje rio da Fábrica supracitado.
No Canal e Curral Panema estão minhas raízes marajoaras e um haver de recordações das tantas e quantas vezes, em priscas datas, passei naquelas paragens a bordo de canoa a remo, igarité motorizada, barco motor ou lancha voadeira. Fui passageiro, às vezes, da lancha vapor Santa Maria da prefeitura, pilotada pelo senhor Raimundo Teixeira e noutras ocasiões remei solitário em montaria ou no meu casquinho maneiro feito de um tronco de piquiá, que minha mãe me deu de presente comprado ao afilhado dela Satuca Moraes, filho da Bita e do Anísio Aires, rapaz trabalhador que andava embarcado numa geleira na Contra-Costa.
Pelo caminho do Ourém também andei a pé e fui a cavalo rumo a Arapiranga e Oriente, que era fazenda central e na verdade ficava a ocidente. Para oriente, propriamente dito, pelos lados do Curral Panema também andei em boa caminhada até Cachoeirinha, a comprar farinha em companhia de seu Ciro Moraes, já às ilhargas da beira da baía. Há uma geografia secreta nessas duas mil e tantas ilhas grandes e pequenas da Amazônia Marajoara, delta-estuário do Pará-Amazonas, onde muitas gerações de índios, pretos e brancos entrelaçaram suas vidas e mortes num rosário de acontecimentos felizes e outros nem tanto.
antes carecia uma volta enorme através do Moirim e Arapiranga para ir do Arari ao Marajó-Açu: antiga via de índios e mocambos.
Antigamente, pelo Ourém quem vinha por terra desde a beira da baía podia passar de pé enxuto aos campos gerais do Marajó. Claro que levaria dias e dias de caminhada. Caso houvesse cavalo poderia ir até ao Lavrado, entre Muaná, Cachoeira, Anajás e Santa Cruz. Para ir por fora, costeando a baía, só se fosse pescador acostumado à maresia ou embarcado em igarité grande ou barco à vela afeito ao banzeiro. Naquele tempo para ir pelo rio de Ponta de Pedras a Cachoeira carecia fazer rancho, contratar bons remadores, alugar montaria grande, armar panacarica e pernoitar no meio do caminho em casa de conhecidos, fosse no Serrame, Fé em Deus ou no Araquiçaua conforme o tempo da maré. Terá sido talvez ao tempo do Barão do Marajó, José Coelho da Gama e Abreu; no governo da província do Pará (ano de 1879 até 29/03/1881) que foi escavado o tal canal que virou rio. Por que eu penso desta maneira? Na conhecida obra "As regiões amazônicas" o Barão deixa claro seu interesse pela abertura de canais artificiais na ilha do Marajó a fim de melhorar a indústria pecuária. Fala ele no canal das Tartarugas e do Mocoões como coisa para o futuro, mas nada sobre Ourém. Certamente ele conhecia a história da construção do canal de Igarapé Miri que, em 1821, reabriu o Furo Velho que estava impraticável à navegação e poderia com esta experiência autorizar tentativa para tentar fazer coisa parecida a fim de encurtar o longo percurso fluvial entre as vilas da Cachoeira e de Ponta de Pedras.
Mas, não estou dizendo que foi o Barão de Marajó quem de fato mandou fazer o canal do Ourém, apenas aventando uma hipótese. Sem máquina de dragagem confiados tão-só em pás, enxadas e alvião para trabalho braçal escravo o fatal acidente do canal de Igarapé Miri acabou se repetindo na tragédia de Terras Caídas com seus mortos soterrados debaixo de camadas de barro e lama que desabaram dos taludes na obra temerária. A criação do município, em 1878, terá sido incentivo para pedir autorização e recursos ao governo da província na obra que não poderia ser executada com trabalho escravo depois de 1888. Enxergo, então, na década de 1878 a 1888 a construção do Canal em tela.
O terreno que deu lugar ao canal era um lombo de terra amarelada, latossolo, cujos vestígios geológicos ainda se podem ver nos barrancos erodidos no sítio Meia Noite e no Serrame cuja erosão nunca termina a escavação, ano após ano. Como se por acaso fantasmas dos escravos mortos e soterrados de Terras Caídas não terminassem o canal e mudança da correnteza que se formou desde que as águas do Marajó-Açu e do Arari se confundiram com a baía adentro pelo entorno da nova ilha.
Consta que antepassados do casal Amâncio e Rosa Costa receberam as terras de Enseadinha em recompensa pelos trabalhos de escavação do canal, talvez por parentes morto, lágrimas de dor e o suor derramados tenham eles recebido também carta de alforria até, finalmente, com a Abolição de 1888 ver todas famílias afrodescendentes livres para sempre. Quem sabe?
O canal dividiu o antigo sítio Ourém em duas bandas fronteiriças: do lado direito em direção ao Curral Panena, ficava o sítio do sumano Zecão (José Maria do Livramento), dono da igarité "Nossa Senhora de Fátima" (apelidada "Jiboia", muito bojuda, por erro de construção) chamava-se Ourém. Ele foi para mim como meu irmão mais velho: acho que seus antepassados podem ter vindos do arquipélago dos Bijogós, na Guiné-Bissau, que eram negros muito valorizados pelo vigor físico e estatura, servindo a seus senhores escravagistas e feitores como capangas e reprodutores para melhoria do plantel de cativos: estas não são coisas fáceis de dizer, mas a verdade é o primeiro passo para a justiça e a paz.
A história não é para os mortos, mas para os vivos das presente e futuras gerações... O mesmo nome Ourém ficou para o sítio do lado esquerdo do Canal, onde seu Dário Cabral Noronha teve casa de comércio, porto da igarité "Fé em Deus" e umas poucas cabeças de gado. Tempos depois, Francisco Rodrigues, filho de João Rodrigues, que foi morador do Serrame adquiriu a dita canoa dos herdeiros de Dário Noronha.
Na peculiar sociologia marajoara, morador é categoria de trabalhador sem terra que faz barraca (palafita) em terreno alheio com consentimento do dono legítimo ou tido como tal; mediante pagamento costumeiro de "meia" em espécie. Ou seja, se o terreno for várzea de açaizal, por exemplo, metade da colheita fica com o "dono" e este ainda tem preferência de compra da parte do morador a ser paga de acordo com o "apurado": resultado do preço da feira. Resulta na prática num subsídio imposto pela servidão da gleba ao morador em benefício do patrão que acumula, em geral, papel de fornecedor de mercadorias de primeira necessidade num regime latifundiário de superexploração da terra e da mão-de-obra. Por longos anos, terras da União foram exploradas por supostos donos através de "moradores", recentemente reconhecidos como usuários de terras de marinha isentos de quaisquer pagamentos. A extração de açaí, por exemplo, gera conflito entre supostos donos dos sítios e antigos moradores. Uma situação que está a mudar por uma parte, e por outra trás novas ameaças jurídicas à permanência da "Criaturada grande de Dalcídio" (populações tradicionais ribeirinhas) em seu habitat nativo.
sem jamais parar a cobra grande faz dragagem do Rio Canal
No infinito trabalho do Canal, tal qual a cobra grande Boiúna a dragar o rio Arari na galante teoria do índio arariuara a que o sábio de Coimbra se refere na "Notícia Histórica"; as margens novas da Ilha da Ponta acrescidas de aluvião avançam continuamente sobre a beira alta de terreno antigo da ilha grande, comida pelas bordas, que recua no espaço aberto pela erosão sem fim. É bonito ver e compreender o moto-contínuo de destruição e reconstrução das águas na lição hidrológica de José Ferreira Teixeira: universidade da maré no delta do maior rio do mundo, vida e morte do maior arquipélago fluviomarinho do planeta.
De tal modo, que o velho trapiche do Serrame aluído pelos invernos chuvosos e as marés vivas, o estaleiro arruinado, casa grande tuíra pelo ostracismo, comércio falido, o laranjal fanado, cacoalzinho triste plantado dentro da paliçada que defendia o orgulho do casarão como uma muralha; currais desertos, campos cerrados, bacurizeiros, tudinho engolido pelo rio...
Meu finado avô Chico Varela com seu bigodão ruço de tabaco e café, olhos azuis de safira; a bronquite crônica e a viuvez fechada, a hérnia escrotal mitigada pela funda; sua rede larga na varanda entre vastas sestas e sonhos grandes, surdo às novidades da cidade e mergulhado em leituras de jornais retrasados da Galiza distante para sempre até morrer no exílio, em retiro no Curral Panema.
Na cômoda de cedro vermelho com tampo de mármore branco, arca das vacas gordas; a gaveta de alarme com dicionário galego-português surrado e o cofre vazio dos lendários 50 contos de réis, fechamento de conta-corrente na casa aviadora de Antônio Silva, na Marquês de Pombal, aviso final da quebra da Borracha (última vez que o velho pisou em terra firme).
O gramophone quebrado servia de viveiro aos sapos que ele criava para controlar formigueiros do coqueiral; o grande candelabro de porcelana leitosa lembrava o tempo perdido, relógio de carrilhão parado. O barco dos sonhos não viajou jamais, o San Thiago; naufragou com a morte de minha avó Maroca. Só a igarité Araci com o preto Amâncio de alma branca, chegando do Ver O Peso com os jornais de sempre e lenço encarnado ao pescoço anunciando a revolução de 1930 às margens plácidas do Curral Panema. Onde todavia a Lei Áurea de 1888 tardava e como, paresque, tarda ainda hoje... Apesar da igarité com a maré da noite e debaixo de ventania, ao sair da boca do rio Fábrica para fora, ter cruzado por acaso com o navio encantado e escapar, por um triz, de ser abalroado pelo paquete iluminado com música, festa, risadas e conversas da belle époque da Borracha a bordo.
O Puxador, onde a maré se divide no Canal
Tudo, tudo em ruína. Mas, apesar de não se mergulhar duas vezes no mesmo rio, o rio do tempo não devora minhas recordações de menino currupio a correr pelo pasto do Serrame seguido do fiel Tigre e dos gritos severos de mamãe. Enquanto houve bom tempo fui herdeiro de um pequeno paraíso em decadência, mas feliz e meu pai caboco me sagrou cavaleiro andante da Boicana na demanda do santo açaí com camarão do Bacurituba: ele Quixote da coleção de revista Chácaras e Quintais e eu seu Sancho Pança a ambicionar a ilha Barataria... A malária, às vezes, dava azo a visões estranhas com batalhas épicas na casa dos quarenta graus de febre contra moinhos de vento e reinos de cupim que brilhavam na borda do campo, à meia noite, numa estranha iluminação que minha comadre Didi acreditava ser a luz dos encantados. Cadê que eu tinha coragem de desdizer tamanhas sabedorias? Besta era quem destruía fé alheia e a natureza de todos.
Um belo dia, havia eu pouca idade, chegaram de Belém em igarité à vela em Ponta de Pedras, tia Armentina, Osmarina e Lila para saber se era verdade que meu avô Varela estaria doente no Serrame. Meus pais não sabiam, então foi decidido que as três iriam subir o rio para visitar o velho que não viam a par de tempo... Eu fiz berreiro para acompanhar a excursão e acabei vencendo a parada, aos cuidados da tia. Papai foi contratar seu Papa Osso para fazer a viagem em montaria com mais dois remadores. Era costume viajar a noite para fugir ao sol escaldante numa viagem que, dependendo da maré, gastava seis ou oito horas: quando eu embarquei na aventura, saindo da ponte da Casa da Beira foi como mergulhar de cabeça num formidável mural de nanquim. Cada árvore da beira do rio era um castelo de sombras que a imaginação fazia maior.
Foi aí que despencou o dilúvio da lenda da primeira noite do mundo e não era só imaginação. Papa Osso no jacumã fechado como uma porta e os dois remadores calados se pegavam aos remos como se a chuva e a noite grande fossem castigos antigos daqueles buscadores do caroço de tucumã mágico, que a cobra grande deu de presente à filha dela que ia se casar. Lila e Osmarina nem um pio. Só o conforto do colo quente de tia Armentina me salvava naquela canoa engolida pela noite e a chuvarada. Mamãe dissera a tia, quando chegar no Ourém pede ajuda ao José... José do Ourém era descendente de antigos escravos de meu bisavô, cuja lenda de bom amo, fazia-nos crer que tudo aquilo era um conto de fadas onde pretos, brancos e pardos viviam com irmãos. Ledo engano! Custou-me muito saber dos males da civilização ocidental-cristã e que a parte escura da família branca era que mais pegava no pesado e mais sofria injustiças e necessidades.
Chegando ao Puxador a maré vazou, bem calculada a passagem, seu Papa Osso era o cara. A correnteza ligeira rio acima nos levara ao Puxador e agora na vazante em continuação da viagem começava a puxar mais rápida para baixo, ao contorno da ilha nova formada pelo Canal... Ali o famoso Puxador quem errasse a maré ia se ver com correnteza pela proa. Se calhasse do vento soprar contra também era o diabo... A força da vazante abria redemoinhos perigosos que o piloto procurava evitar com certo esforço, já no Ourém havia um remanso e a chuva, por encanto, passou.
Madrugada fria e úmida nem um galo no poleiro se atrevia a abrir um olho e cantar para acordar o sol, eu tremia de frio feito vara verde insistindo com a tia para chamar o pobre José a deixar a rede para vir remar de graça naquela desnorteada canoa. Era assim que a gente pensava que Deus fez o mundo para nosso regalo... Quando a inocência faz mal, mas felizmente José não ouviu coisa nenhuma ou se ouviu meus rogos infantis fez ouvido de mercador. Em compensação, quanto o dia clareou estávamos no Serrame, onde o velho Varela são e forte deu risadas de tonta preocupação.
O Canal divide e separa marés do rio Marajó-Açu através do Puxador e a cabeceira do rio Carapanaoca (depois Rio do Canal) comunicando o Curral Panema ao Rio Fábrica, que desagua na baía do Marajó e ao Furo das Laranjeiras, contornando a ilha de Santana antes de confluir com o Arari. Tudo aquilo, me parecia, antes da abertura do canal era chamado pelos antigos, Igarapé Puca, que quer dizer igarapé comprido até então despovoado e caminho de índios bravios Aruãs vindos da Contra-Costa pelo lago Arari para incursionar até as ilhargas de Belém através do Carnapijó.
Então, me prometi a aprender e contar o que eu porventura aprendesse a respeito do canal que virou rio. Assunto também de curiosidade de outros interessados em preservar a memória das igarités e antiga navegação de "goiabas", comerciantes fluviais de Ponta de Pedras praticando escambo no rio e lago Arari geralmente em montarias (canoas a remo).
O falar marajoara guarda reminiscências da antiga geografia humana da região das ilhas do delta-estuário do grande rio Pará-Amazonas. Celeiro de "gados do rio" (peixe-boi, tartarugas e pirarucu), naturalmente o índio e depois seus descendentes em suas necessidades de comunicação com o colonizador traduziu seu modo de vida ao mundo em transformação pela dominação dos brancos. A canuá indígena virou canot em francês e canoa em espanhol e português: se o caboco falar 'canua' ou não dizer 'caboclo', está errado... Portanto, quem vai aos 'gados do rio' por necessário irá montado no cavalo da água a que chamamos, lindamente, 'montaria'.
Era assim que a gente trabucava levando mercadorias a troco de peixe seco e salgado, jacaré, muçuã, marreca, capivara e tudo mais a cabo dos antigos gados do rio, no comércio entre Ponta de Pedras e o Arari distante, tinha necessariamente que cruzar o "Canal do Ourém", depois, Canal e finalmente Rio Canal. Há muito tempo, vivi naquelas paragens e minhas raízes familiares com minha mulher se misturam àquelas águas remansosas, que confluem entre as bacias do Arari e do Marajó-Açu. Meus amigos sabem que tenho a mania da história e agudo interesse da geografia do vasto mundo. A saber quem nós somos, donde viemos e aonde estamos indo agora.
Contemplados
O primeiro Domingos Pereira de Moraes foi contemplado pelo Marquês de Pombal em reconhecimento a serviços prestados à coroa de Portugal com a fazenda São Francisco, conforme se lê na relação de Contemplados (cf. Alexandre Rodrigues Ferreira, "Notícia Histórica da Ilha Grande de Joanes ou Marajó", 1783), que foi da primeira sesmaria dos padres da Companhia de Jesus: esta fazenda hoje é a Malato e a sesmaria (1686) deu origem, primeiramente, à 'Aldeia das Mangabeiras', depois freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Ponta de Pedras (1737); Lugar de Ponta de Pedras (1758) e município de Ponta de Pedras (1878).
O segundo Domingos Pereira de Moraes em nossa árvore genealógica aparece na história paraense como diretor da Santa Casa de Misericórdia do Pará, pelos meados do século XIX. O terceiro Domingos Pereira de Moraes, avô de minha mulher e primo em primeiro grau de minha mãe. Era filho de minha tia avó Emília de Castro Moraes e de João Pereira de Moraes, dono do sítio "Taberebá" (hoje Boa Vista, que foi casa de comércio de Teodolino Cabral Noronha), no rio Curral Panema. Segundo ouvi de dona Branca Moraes, esposa de Ciro Moraes, o nome "Curral Panema" de deve à maldição lançada por um frade que, há muito tempo, pelejava para criar gado no lugar e indo embora lançou aquela praga, dizendo ele num momento de fúria: "fica-te aí curral panema!".
O certo é que ao tempo que morei naquelas bandas, pela margem direita do rio não criavam gado, que só havia e mesmo assim umas poucas cabeças de boi punga (cabo-verdiano) pela margem esquerda. A história verdadeira é que, no ano de 1760, os Jesuítas foram expulsos do Pará e seus bens acabaram expropriados pela Coroa portuguesa, o mesmo para os frades das Mercês e do Carmo depois, donde na versão popular aquela lenda. O povoamento do Curral Panema foi feito com casais dos Açores, que ainda hoje tem descendentes dentre os quais de família Aires e Moraes, parentes dos Martins e Mendes entre outros. Quem mais sabia dessas coisas era o primo de minha mãe e meu em segundo grau, o finado Altamiro Martins.
Com o Canal interligando o Marajó-Açu ao Arari, naquela ilha nova ficou que nem jangada de terra onde se sustentam a cidade de Ponta de Pedras, vila da Mangabeira e povoados de Praia Grande, Vila Nova, Cajueiro, Cachoeirinha, Vilar (que foi lugar de aldeia dos índios Guaianá, nativos do Marajó); Antônio Vieira e Jaguarajó.
O naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira não falou do "Rio Canal" por que o que havia era o Igarapé Puca depois rio da Fábrica chamado e não varava rio acima para o Marajó-Guassu, como era a grafia antiga... E José Ferreira Teixeira, em "O Arquipélago do Marajó" (1953) diz que a antiga ligação entre os ditos Marajó-Açu e Arari era feita através de uma longa volta, passando pelo igarapé do Arapiranga até as cabeceiras do igarapé Moirim, já pela margem direita do Arari acima da ilha de Santana e boca do Furo das Laranjeiras.
A vegetação palustre, pouco a pouco, tapava a velha passagem do tempo dos índios. Por causa desta inconveniência, as autoridades da época deliberaram abrir um canal através do lombo de terra que existia, entre as bocas do igarapé do Deserto e do Inajazal, pelo lado do Marajó-Açu. Pela parte do Curral Panema, o rio Carapanaóca que afinal passou a ser o chamado "Rio do Canal" ou, simplesmente, "Rio Canal" de nossos dias.
um velho sonho marajoara
Eu tenho um sonho: me hospedar um dia, comodamente, em companhia de minha senhora dona Palmira de Nazaré em linda fazenda-hotel comunitária, casando tradicionalidade e modernidade; em lá chegando a bordo de hidroavião, antes de eu morrer (se é que morrerei posto acreditar que irei me encantar de volta ao infinito entre caruanas da avifauna do Marajó) para ver o sol nascer de novo no velho e maternal lago Arari ancestral, ninhal de "mães" da natureza (que nem Maiandeua, na costa do Salgado).
Para isto tenho pressa em ver o bioma fluviomarinho do arquipélago do Marajó reconhecido como uma das mais interessantes reservas da biosfera da rede amazônica. Acredito no diálogo entre homens e natureza: daí que me dói o descaso das três esferas de governo e da sociedade brasileira com respeito ao Museu do Marajó criado por Giovanni Gallo, noves fora os voluntários e amigos que lutam para o sonho do padre insubmisso não acabar.
O titubeante Plano de Desenvolvimento Territorial do Arquipélago do Marajó (PLANO MARAJÓ) deveria deixar de lado o discurso técnico-burocrático para assumir algo mais concreto como uma agência de cooperação para o desenvolvimento socioambiental participativo, onde a criação da Universidade Federal do Marajó, desde já, passe a ser a ideia-força de realização do sonho de muitas gerações desta região insular desde o passado pré-colonial.
Como dizem meus parentes, o futuro a Deus pertence. Todavia, Deus criou o homem para dormir e sonhar a Terra sem males... Assim o sonho pode inventar o parto da primeira manhã de um mundo futuro menos duro e desigual.
[*] NOTA AUTOBIOGRÁFICA
Meu nome completo é José Maria Varella Pereira, filho de Rodolpho Antonio Pereira e de Othilia Varella Pereira, casado com Palmira de Nazaré Moraes Pereira (foto acima), filha de Emílio Fernando de Carvalho Moraes e Maria das Dores Nascimento Moraes; minha prima em terceiro grau. O casal tem uma filha e três filhos, os quais já nos deram cinco netas. Eu e minha mulher nascemos numa família marajoara que teve origem em Portugal, vinda provavelmente das ilhas dos Açores com casais (famílias) de colonos a partir do sargento-mor (major) da força militar portuguesa Domingos Pereira de Moraes, que acompanhou o capitão-general e governador do estado do Grão-Pará e Maranhão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, no ano de 1751.
Ao longo de quatro gerações, pelo menos, o nome atávico Domingos Pereira de Moraes repetiu-se em quatro pessoas de nossa família, segundo costume familiar em dar, geralmente, nomes de avós aos netos como modo de lembrar nossa história. Fato que sugere antiga devoção a São Domingos, fundador da Ordem dos Pregadores (Dominicanos) notável na propagação do catolicismo nas Américas: mais curioso ainda quando se sabe que os Pereira foram originalmente judeus e Moraes ou Morales, mouros do Marrocos; convertidos ao cristianismo na Península Ibérica, no complexo fenômeno ibérico denominado "cristão-novo" em Portugal e "marrano" (porco, infiel) na Espanha.
No Brasil nomes cristãos-novos Pereira e Moraes, variação Morais; se propagaram a descendentes indígenas e afrodescendentes através do batismo católico, quanto estes receberam nome de família dos padrinhos. Desta maneira, o catolicismo se tornou mais que uma religião para assumir uma cultura colonial no início e, enfim, civilização transcontinental dialeticamente formada no complexo processo de dominação e resistência entre povos conquistadores e conquistados, que acabam por se mestiçar trocando genes e costumes entre si.
Somos, portanto, pequeninos grãos "dotados de razão e consciência" -- como reza o preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos --, num vasto mundo disperso pela diversidade de diferentes tempos e lugares. Por parte de mãe assumi o nome Varella, grafado com dois "ll" no cartório de registro civil de Raimundo Malato, em Ponta de Pedras. Mas, na origem em Espanha, se escrevia Varela, no berço celtíbero donde parece foi vertido ao sermo vulgaris (latim popular da região ibérica) no sentido de "varinha". Ou seja, a temida vareta mágica da antiga religião pagã dos magos Celtas que terminou por mandar muitos bruxos e bruxas à fogueira da Inquisição. Não se pense que a cristianização da Ibéria foi menos violenta que a evangelização da América...
Na história oral de minha família, a primeira pessoa que adotou nome Varela foi minha bisavó Micaela Varela Rincón, da região das Astúrias; que se casou com o marrano (judeu cristianizado) Pero Rincón Pérez, natural de Sotomaior, província de Pontevedra, na Galiza, fronteira com Portugal. As guerras entre reis da península mataram meu bisavô, o tio avô José e outro que não me lembro o nome. Então, Micaela mulher asturiana de sangue quente; disse que o mais moço de seus filhos -- Celestino Pérez Varela, aliás Francisco -- não serviria de bucha de canhão a ninguém mais... Foi assim que ele, quase desertor, por volta de 18 anos de idade chegou ao Marajó com carta de recomendação a seu primo, Pedro Pérez de Castro, dono do sítio Fé em Deus, no Baixo Arari, e se casou com sua prima Maria Joana Castro Varela: foram eles meus avós maternos, começando a vida numa sorte de terra desabitada, chamada Serrame, no rio Carapanoca, mais tarde Rio do Canal. Ajudado por ex-escravos de meu bisavô meus avós levantaram casa no Serrame e prosperam até que com o colapso da borracha e morte de minha avó Maroca o sítio entrou em decadência.
Enquanto foram remediados o Serrame foi um sítio notável frequentado pelos mais ricos fazendeiros que passavam, inclusive meu outro avô, Alfredo Nascimento Pereira, que tinha filhos do primeiro casamento em Ponta de Pedras como minha avó indígena, Antônia Silva (Sophia Tautonila, Raimundo, Laudelina Diva, Otaviano Celso e Rodolpho Antônio, que foi meu pai). Depois de enviuvar meu avô Alfredo foi morar com sua segunda mulher, dona Margarida Ramos, em Cachoeira e os filhos desta (Flaviano, Dalcídio José, Ritacínio, Lindinha e Alfredina). Uma segunda viuvez levou meu avô a se casar com dona Isabel Trindade, com quem teve meus tios e tias Anaspito, Mimi, Vivi e Adeflorindo Belasi Pereira.
Quando acabou, em 1840, a guerra-civil do Pará conhecida como Cabanagem, o Marajó é outras regiões estavam devastadas. Quarenta por cento da população de 100 mil almas havia perecido e a criação de gado praticamente estava inviabilizada com uns índios libertos já sem passado nem futuro, vítimas da "liberdade" do Diretório dos Índios (1757-1798); e poucos negros escravos. Foi aí que o governo da província do Pará mandou buscar imigrantes do norte de Portugal e da Galiza (Espanha), que são regiões fronteiriças e viviam crise econômica profunda com emigração em massa, para recomeçar a pecuária. Desde então, aparecem nomes de família tais como Pamplona, Gaia, Beltrão, Fontes, Boulhosa, Lobato... .
O segundo Domingos Pereira de Moraes em nossa árvore genealógica aparece na história paraense como diretor da Santa Casa de Misericórdia do Pará, pelos meados do século XIX. O terceiro Domingos Pereira de Moraes, avô de minha mulher e primo em primeiro grau de minha mãe. Quando criança foi dado como tuberculoso e assim foi levado ao Serrame, onde minha avó Maroca e sua tia materna com ajuda de minha tia avó Sinhá, que recebia visitação do espírito de um tio padre e mago da Galiza, chamado Baltazar; deram tratamento com remédios de tias pretas Bonifácia, Fábia e outras mais onde uma rica dieta de turu...
Domingos era filho de minha tia avó Emília de Castro Moraes e de João Pereira de Moraes, que foi dono do sítio "Taberebá" (hoje Boa Vista, que foi casa de comércio de Teodolino Cabral Noronha), no rio Curral Panema. Filho deste João Pereira de Moraes, meu tio Zito (de mesmo nome) marido de tia Maria do Pilar Varella Moraes, dizia ter visto a Yara (mãe d'água) num igarapé: era assim, aquele tempo e lugar, onde se misturavam sem grande contradição milagres de santos católicos e encantados indígenas e africanos. Vicente Moraes escapou de morrer nos dentes de um jacaré-açu para se tornar rezador de ladainha e contador de estórias, enquanto descansava da guerra que ele movia contra toda espécie de jacarés... Foi de Ciro Moraes que ouvi a versão tropical de Sherazade numa noite encantada do Curral Panema. Segundo ouvi de dona Branca Moraes, esposa de Ciro, o nome "Curral Panema" se deve à maldição lançada por um frade que, há muito tempo, pelejava para criar gado no lugar e indo embora lançou aquela praga, dizendo: "fica-te aí curral panema!". O certo é que ao tempo que morei naquelas bandas, pela margem direita do rio não criavam gado, que só havia e mesmo assim umas poucas cabeças de boi punga (cabo-verdiano) pela margem esquerda.
Teodolino era dono da igarité "Mirasselva" e comprou o sítio Serrame, dos herdeiros de meu avô galego Francisco Pérez Varela; sito no Rio Canal (outrora Carapanaoca); seu irmão Dário Cabral Noronha foi dono do sítio Ourém e da igarité "Fé em Deus". Outro irmão do senhor Teodolino, João Cabral Noronha (Janja) foi prefeito de Ponta de Pedras, pelo extinto Partido Social Democrático (PSD) nos anos 50. Janja casou-se com Semíramis de Moraes Noronha, filha de Antônio Pereira de Moraes, primeiro presidente da Câmara de Vereadores de Ponta de Pedras, que assinou a ata de instalação da nova Vila (município), juntamente com seu irmão João Pereira de Moraes, eleito para a mesma Câmara, e dono do sítio "Taperebá", no Rio Curral Panema como já vimos. Os irmãos Domingos, Zito, Vijoca e Lili eram primos de Semirames, Boanerges, Tonho (Antônio) e Aspásia. Todos descendentes do primeiro Domingos Pereira de Moraes, contemplado da fazenda São Francisco.
O quarto Domingos, foi irmão mais velho de minha mulher, Domingos Pereira de Moraes Neto; com o falecimento de meus sogros viveu em nossa casa até a idade de 58 anos, vitimado por meningite em terra infância sempre foi como uma criança.
Rodolpho Antonio Pereira, meu pai; minha avó Sophia (sentada) e tia Lodica, foto dos anos 50 no quintal de sua casa na cidade de Ponta de Pedras; onde hoje se acha a sede da Associação Musical Antonio Malato (AMAM).
poxa :( n da pra ver a foto...
ResponderExcluirAo ler essa historia, fiquei muito emocionado,essa história fala tambem de minha familia. Meu avõ se chamava. Teodolino Cabral Noronha e meu pai se chamava Teodolino Loila de Noronha
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