terça-feira, 14 de abril de 2015

DEVORANDO A PAISAGEM: no espaço-tempo pós-colonial lentamente a complexidade digere a colonialidade.


Paris, 29 de novembro 2012, o presidente François Hollande cumprimenta o cacique caiapó Raoni Txucarramãe. Um souvenir vivo da antiga camaradagem entre explorateurs franceses e índios americanos, desde o protesto de François I contra o "testamento de Adão" (bula Inter Coetera homologando o tratado de Tordesilhas de 1494) origem do mito do bon sauvage na sugestão da revolução de 1789, segundo Montaigne e Rousseau. Preâmbulo a cinco séculos de surdos diálogos Norte-Sul entre bárbaros e civilizados indiferentes a Levi-Strauss no labirinto de seus "tristes tropiques" e aos percalços de Rondon, traídos nas ingênuas esperanças do humanismo vencido pela colonialidade e o cinismo do lucro extrativista em rios de suor, sangue e lágrimas colonizados até nossos dias. Mas nós não sabíamos que o dinheiro, em lugar da economia real, é um vício escravizante como os cassinos, corridas de cavalo, o alcoolismo e outras drogas mais leves ou pesadas?




 
Ilha do Marajó, antiga Costa-Fronteira do Pará nas raias ultramarinas de Tordesilhas (1494-1750), Muaná lugar histórico da proclamação de Adesão do Pará à Independência do Brasil (28 de Maio) no movimento paraense para a Independência 14 de Abril: periferia da Periferia, mulheres do lupemproletariado saído das "tribos" extintas dos Nheengaíbas na comunidade do rio Jararaca, vítimas da leseira amazônica entre tantas outras e tantos outros cabocos descendentes de índios tirados do mato pelas tropas de resgate (caçadores de escravos) ou pelos Descimentos de selvagens para catequese cristã e proletarização até a solução final civilizatória pelo iluminismo no Diretório dos Índios (1757-1798). Aos quais juntaram-se deportados da pobreza europeia e míseros escravos africanos: amostra singela do apartheid social invisível e do impasse na mudança de paradigma embargado pelo latifúndio e a devastação ambiental entre chuvas e esquecimento. Paradoxo do antigo "paraíso selvagem" versus "inferno verde" na belle époque da Borracha...



FILOSOFIA BÁRBARA SAÍDA DO MATO NO PARTO DA ÚLTIMA FRONTEIRA DA TERRA.


Foto: Busto de Sócrates esculpido por Victor Wager

Busto de Sócrates esculpido por Victor Wager

Há 192 anos, na cidade de Belém do Grão-Pará -- significa dizer Belém da Amazônia --, dia 14 de Abril de 1823 o povo paraense se pronunciou contra o colonialismo rompendo laços com o reino de Portugal em adesão à Independência do Brasil de 7 de Setembro de 1822. Desgraçadamente, nestes quase duzentos anos de neocolonialismo interno, a colonialidade portuguesa herdada pelo Império brasileiro (1822-1889) transmitiu-se genética e culturalmente à elite da República Velha (1889-1930), fez um breve alto na revolução de 1930, criou alma nova no Estado Novo para retornar com força total na ditadura de 1964; então depois de censurar, torturar e matar durante os anos de chumbo a peste ideológica transmitida pelo racismo jurou ir embora para nunca mais, com a promulgação da constituição-cidadã de 1988. Mas, quando menos se espera, o velho diabo aí está a fazer as suas diabruras e por isto o 14 de Abril nas efemérides políticas paraenses deveria ser um dia de consciência histórica de maior importância.

O movimento amazônico 14 de Abril não foi um processo nativista, embora em seus primórdios o nativismo estivesse presente, tanto na revolta de 7 de Janeiro de 1619 dos Tupinambás do Maranhão e Grão-Pará; quanto na surda resistência marajoara desde quando a invasão da Terra Tapuia teve começo antes mesmo da chegada dos primeiros estrangeiros. Sua inspiração, evidentemente, é republicana com o retorno das tropas paraenses da ocupação de Caiena (1809-1817) trazendo notícias frescas da revolução dos escravos liderados por Toussaint L'Ouverture e da independência do Haiti: sabendo-se que "negros da terra" (escravos indígenas) "negros da Guiné' (escravos africanos e afrodescendentes), forros (libertos), cafuzos, cabocos, curibocas e o campesinato degredado para povoar a terra pelo casamento com as índias catequizadas, tudo isto ao longo de dois séculos desde a fundação de Belém do Pará dá como resultado nisto que se chama Povo Paraense. Por via da Colonização o velho território pré-colombiano ocupado cerca de 5.000 anos donde produziu a Cultura Marajoara entre as mais do rio Babel há quase 2.000 anos; se transformou em Amazônia: tal qual todas mais civilizações do mundo lá com seus biomas originais modificados por conquistas, dominações, intercâmbios ou empréstimos culturais e genéticos. Então, o nosso 14 de Abril é um momentum histórico-político -- manifesto autônomo de libertação --, um fato fundamental da identidade do Pará que resta ainda por reconhecer e estudar profundamente a fim de bem compreender o que vem a ser a amazonidade.

Na verdade, uma antiga ecocivilização tropical que luta por resistir ao colonialismo de climas frios e temperados e, ao mesmo tempo, por conquistar corações e mentes do gigante Brasil lhe devotando o futuro da Ciência e Tecnologia de assumido maior país amazônico do mundo. De modo que é, o 14 de Abril, tudo ao contrário daquilo que a arrogância e ignorância da corte imperial do Rio de Janeiro, de 1822, não conseguiu entender da Adesão do Pará em 1823 e Brasília hoje não sabe: porque São Paulo e Minas esqueceram e o Rio Grande do Sul, mesmo sendo a Cabanagem e a Farroupilha revoluções federativas contemporâneas, desconhece ainda as sutis conexões entre os extremos norte e sul do Brasil integrado pela ponte geocultural do Nordeste.

Portanto, quando em 2003 a esperança venceu o medo era como se Frei Caneca ressuscitasse no Planalto realizando o sonho de José Bonifácio, porém projeto de futuro retificado e resgatado antes pelo sangue derramado de Tiradentes -- Mártir da Independência -- a correr pelas Águas Emendadas para o São Francisco, o Prata e o Tocantins, este rio-artéria da amazonidade na utopia tupi-guarani da Yvy marãey (terra sem mal). Pois é certo que, sem a utopia selvagem da nação Tupinambá, não existiria uma Amazônia brasileira e quase certamente o Brasil não teria jamais existido, a ponto da Adesão dos povos originais brasílicos, por necessidade e acaso, à soberania lusa. Em especial no casamento da filha do cacique Jacuúna, de Jaguaribe (Ceará) com o aventureiro marroquino Martim Soares Moreno, cristão-novo: daí a literatura indigenista de José de Alencar e de Gonçalves Dias inspirando a ópera romântica de Carlos Gomes na voz do Brasil: claro está que París n'América, a Veneza amazônica e todas mais fantasias da Belle Époque para civilizar os índios e os negros que, irremediavelmente, nós somos; foi e está sendo ainda assimilado, antropofagicamente falando. Os "nossos" índios, entretanto, comeram alguns civilizados. Europeus "conheceram" nossas índias, em sentido bíblico. E, quanto mais o mundo é mundo, bárbaros e civilizados comem-se uns aos outros. O estruturalismo de Levi-Strauss foi engolido pelo progresso das ciências humanas, o existencialismo de Sartre já vai tomando novos rumos, nem o marxismo poderia ser o mesmo de Marx e Engels na revolução industrial do século XIX; Morin propõe dialogizar a dialética recorrendo a velha arte da maiêutica de Sócrates. E nós aqui, em pleno século XXI, com a Grécia lá em apuros e várias pequenas Atenas às margens plácidas do rio Babel? Para isto, também, o 14 de Abril? E Dalcídio Jurandir já morreu mas ninguém lhe respondeu: "quando Marajó desencanta?".

A arqueologia das regiões amazônicas aponta a um extremo horizonte paleolítico de, aproximadamente, dez mil anos antes da era cristã. Por suposto, no planeta Amazônia o "Homo sapiens tapuya" do naturalista de Coimbra Alexandre Rodrigues Ferreira (cf. "Viagem Philosophica") ou o "Homo sapiens sapiens demens" de Edgar Morin; chegou ainda em odor primitivo da animalidade mãe da humanidade. Vico talvez gostaria de saber que o homem amazônico, conforme a lenda de Cucuí (apud Stradelli), se considera filho da cobra grande. Isto é, da Natureza, então o "H. sapiens tapuya" além de viajar no bucho de uma cobra-canoa chamada Makará foi desovado, aos milhares, na beira do rio sob forma de peixinhos miúdos que se transformaram em gente secando ao sol sobre as pedras. O esquema de Vico talvez, avant la lettre, introduz o trado da imaginação para perfurar a crosta dura da velha pedra donde já com o barroco de Vieira o pensamento complexo acende a candeia em meio ao mito da primeira noite do mundo misturando e complexando as idades dos deuses, dos heróis e dos homens.

As várias "amazônias" ou biomas do equinócio terrestre nas terras baixas da América do Sul, que até então ainda não eram Amazônia com suas plantas e bichos selvagens receberam aquele Homem-Bicho alienígena com a mesma receptividade que, muito mais tarde; iriam receber a árvore de fruta-pão, a mangueira, jaqueira, o gado zebu e o búfalo também vindos da Ásia mas estes uns pelo Ocidente através do Atlântico e o proto-Tapuya pelo extremo-oriente do Pacífico... Isto para não falar do cachorro mastim "para aperrear a los índios" e o cavalo trazidos pelos espanhóis logo após o descobrimento de Colombo (1492).

Posto que o "H. sapiens sapiens", ao qual eu e o leitor pertencemos sem remédio, é espécie zoológica única nascida na África e dispersa sobre a superfície da Terra; o caminho da Dispersão foi e continua sendo estrada para a diversidade: o mesmo que se torna outro e o outro que se converte ao mesmo? Já a passagem do tempo da infância para adolescência e a vida adulta de um indivíduo em qualquer lugar é experiência de transformação no vir a ser. A construção do "eu" individual acontece em meio à vida social dentre inúmeros "eus" coletivos vivos ou mortos, mas sempre influentes em nossas vidas para o bem e o mal -- mesmo Robinson Crusoé precisou inventar Sexta-Feira e presume-se que ele levava consigo uma bagagem genética e cultural de muitas gerações -- ... Desmunido de garras, cornos e dentes capazes de dilacerar presas maiores; esse animal complexo ao contrário dos demais predadores, estava em grande desvantagem no passado e hoje ainda não pode cantar vitória diante de ínfimos predadores, como vírus e micróbios, por exemplo. Provavelmente, qualquer organismo e até mesmo as minhocas sentem o perigo e buscam sobreviver. Para isto contam com um cérebro ou rudimento deste órgão nos organismos unicelulares. No bicho "sapiens" as mesmas necessidades vitais podem ser satisfeitas de diversos modos considerando a economia de energia e a oferta de meios de sobrevivência. Para a vida dificuldades são oportunidades para novas adaptações e evolução da vida eterna enquanto dura.

Se o jardim do Éden da mitologia mesopotâmica existisse de fato, ou se a Terra sem mal demandada pelos caraíbas Tupinambás fosse encontrada, não haveria necessidade de ciência nem da tecnologia. Ou, como diz na história sagrada os filhos da Terra estariam plenos de espírito santo. Como as plantas e animais organizadas, reproduzidas e sobreviventes pelos sutis mecanismos inconscientes da natureza. Todavia, a necessidade é a mãe de todas as invenções e quem faz a necessidade é o organismo em luta para viver e sobreviver. Mas, a diferença é então o acaso quem faz? 


SÓ SEI DE SÓCRATES QUE PLATÃO DIZIA.

Há controvérsias. Sócrates não sabia ler nem escrever mas era filho de uma parteira com quem aprendeu a retórica e a fazer o parto das ideias por exercício dialético? Dialógico? Obrigaram-no a beber cicuta para se matar e deixar de corromper a juventude ensinando que o sol era tão somente uma pedra a arder e nada a ver com os deuses. A dialética é pré-socrática desde que Heráclito foi de encontro a Parmênides ao perceber que tudo flui, de bubuia, naquele rio onde não se mergulha duas vezes... A arte de dialogar, pois, é dialógico. Mas, no frigir dos ovos, a teoria é outra. Ou seja, assim é se lhe parece. O mapa não é o território. O rio Babel (Amazonas) para as multidões aruacas há dez mil anos vivendo às suas margens, pescando de zagaia ou a praticar a pesca de gapuia pelos baixios a pegar peixe à mão, toda esta imensidão de águas grandes se chamava, simplesmente, o Rio (Uêne, água). Cego na busca da terra encantada ou utopia selvagem onde não haverá fome, trabalho escravo, doença, velhice e morte (a Yvy marãey, terra sem mal) orgulhoso conquistador Tupinambá deu nome novo ao velho rio dos tapuias chamando-o de Paraná-Uaçu (que os lusitanos traduziram corretamente em Grão-Pará). Mas os castelhanos chamaram Marañón ao mesmo rio, cuja lenda importada da Capadócia por frei Gaspar de Carvajal para salvar o desertor Orellana da forca; terminou por imperar como rio das Amazonas. E, portanto, a antiga Tapuya tetama (terra dos Tapuias) no mapa dos portugueses acabou passado a Amazônia desde a boca até as cabeceiras. Complexidade é teu nome.

Então havia não uma mas diversas regiões 'tapuias' que jamais se reconheceram como tal, às margens da Babel fluvial, como se antes fora o Nilo deportado ao novo continente. Rio-arquipélago gerado durante dez mil anos com milhares de povos, línguas e culturas diferentes... E tudo isto se reduziu, primeiramente, pela boa língua-geral ou Nheengatu e, por fim português. Mas, não mais o português de Portugal, nem mesmo o português do Brasil, mas diversos dialetos ou falares portugueses que não terminam nunca de se reinventar. Sendo a língua com o pensamento dos lugares a mais cabal de todas mais revoluções sociais.

No cadinho amazônico-português entraram a par das neolínguas nativas falares afro-brasileiros; inglesias várias e francesismos complicados. Haja cabeça para processar tudo isto. Mais depressa se assimilam os empréstimos linguísticos, culturais e mais particularmente as modas quando não se sabe ler e escrever. Emprenhando pelos sentidos. Com a música e a conversação estrangeira, os perfumes, a comida e o modo de preparar a comida e as bebidas. Com o que se vê, sobretudo, no cinema e na TV... Hoja nas Amazônias quando se fala em fronteiras desguarnecidas pensa-se somente na linha de limites internacionais. Porém há mais fronteiras que, há bem dizer, se acham no centro das pequenas e grandes cidades das regiões. Não há como fazer muros nem se deve pensar nisso, mas sim ensinar e educar para a relação dialógica das culturas. Com que a antropofagia simbólica continua intensa como até o século XVII se praticou muitíssimo a antropofagia física pela assimilação ritual do inimigo invejado.

Depois que a geografia cultural do conquistador devorou todas as nações da Tapuirama e a massagada tapuia foi catequizada com suas aldeias  'elevadas' em vilas e lugares portugueses a antiga Grécia conquistou corações e mentes para o império de Roma reconquistar o esplendor perdido diante das invasões bárbaras e a revolução cristã do Ocidente. Foi, então, que essas vilas e lugares portugueses transplantados se arvoraram a ser elas também como Atenas, Paris, pequenas Romas e Jerusaléns de além mar. Não nos faltaram Palestinas também e até uma Nova Iorque no estado do Maranhão...

Não apenas um, mas diversos Sócrates, Heráclitos também, Aristóteles porquanto a Escolástica foi parteira de todos esses rebentos coloniais. Ovídios, Homeros, Demóstenes, Césares aos montes, Augustos, Heródotos não tantos... Da Judeia então multidões de Josés, Marias, Zacarias, Madalenas, Jesus... Os pretos também eles foram batizados e branqueados de maneira cristã não fosse o rigor escravista desumano que plantou a mais profunda contradição, no sincretismo não haveria necessidade de cortina entre santidades africanas e luso-brasileiras. Mas, o fenômeno cristão-novo já na península ibérica havia ensaiado essa complexidade tremenda que veio a ser cerne da invenção americana desde o Alasca até a Terra do Fogo. Aliás, já havia uma região chamada Amerik ("o país do vento", em língua Maya) nas montanhas próximas ao lago Nicarágua, quando os colonizadores inventaram a história do navegador Amerigo Vespucci como origem do novo continente. Caso admirável quando Colômbia ficou sendo o país bolivariano em homenagem a Cristóvão Colombo, que historiadores portugueses vem de concluir ter berço na vila de Cuba, região do Alentejo em Portugal, de seu nome cristão-novo de batismo Salvador Fernande Zarco.

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