sexta-feira, 23 de agosto de 2013

A árvore de Dalcídio achada por acaso no arboreto do Gallo


pé de Folha-Miúda plantada no Arboreto do Museu do Marajó, em Cachoeira do Arari, ilha do Marajó, Pará.


Quinta-feira, 22 de agosto, no cair da tarde Marli Braga Dias me fez uma bela surpresa. Pela internet ela me mandou notícia do achado da árvore procurada e duas fotografias digitais como prova, que vão aqui reproduzidas. O acontecimento merece comentário detalhado. Como os espanhóis, eu não acredito em bruxos ou pajés, mas eles existem... 

Já disseram que a obra de Dalcídio Jurandir, em seu contexto sócio-biográfico, é um milagre. Ruínas idílicas que resgatam a Criaturada grande descendente do famigerado Diretório dos Índios e da escravidão... E que dizer, por exemplo, da invenção do Museu do Marajó e da odisseia do padre Giovanni Gallo na alquimia de cacos de índio que se transformam na ressurreição duma cultura pré-colonial extinta? 

Aliás, tudo em Marajó parece rebento do prodigioso casamento da necessidade com o acaso: inclusive, em fins do século XIX, a inesperada viagem do naturalista Alfred Wallace à ilha Mexiana e Soure, donde saíram sizudas observações a respeito da teoria da evolução das espécies em troca de cartas com o célebre Darwin.

Muitos acreditam em predestinação e que, portanto, não existem coincidências. Eu, porém, como agnóstico pé de chinelo não acho nem deixo de achar coisa nenhuma... O certo é que, se meu pai fosse vivo, hoje ele completaria 109 anos de idade e o achado da árvore Folha-Miúda que eu procurava acaba sendo, por acaso, um presentão para mim numa data que jamais esquecerei. E o dia 22 de agosto também é Dia do Folclore...

Cachoeira do Arari é um incontornável lugar de memória a quem se mete a atravessar a baía do Marajó para o Norte. Meu pai e seus irmãos Otaviano, Flaviano e Dalcídio nasceram em Ponta de Pedras, mas para desagrado de seus conterrâneos, o romancista de "Chove nos campos de Cachoeira" e seus dois irmãos referidos tomaram a cidade vizinha como terra adotiva e meu velho pai, Rodolpho; não esquecia Cachoeira dentre suas melhores lembranças de juventude. 

O caso de amor da família pontapedrense pela antiga Vila de Cachoeira começou com a morte de minha avó Antônia, índia catecúmena da aldeia da Mangabeira; e o segundo casamento de meu avô Alfredo Nascimento Pereira com dona Margarida Ramos, mulher negra e batalhadora (paradigma de dona Amélia no romance), cujos parentes ainda hoje se repartem em Ponta de Pedras e Cachoeira, como o Lino Ramos, por exemplo. 

Como sabem, o romanceiro dalcidiano é uma longa narrativa do alter-ego Alfredo, a partir do chalé de Cachoeira até as ruínas da época da borracha, em Gurupá, onde o ciclo se encerra com o romance "Ribanceira". 

No espaço virtual personagens de carne e osso se transformam em povoadores do romance: há uma tensão entre a teoria literária e a leitura pé no chão dos contemporâneos do escritor em Cachoeira e Ponta de Pedras. No chão de Dalcídio a Criaturada grande da vida real se confunde com a invenção: tudo é mentira para revelar a mais profunda verdade.

No meu caso particular de velho pontapedrense de quatro costados, há muito tempo, resolvi o complicado problema de vizinhança entre municípios "elevados", por decreto, de antigas aldeias indígenas rivais. Na geografia das minhas memórias Marajó não tem fronteiras e além de ser a minha pátria, também é para mim o melhor lugar do mundo. Claro que estou falando de um Marajó encantado, semelhante àquele que Dalcídio levou na bagagem para o Rio de Janeiro e transformou em literatura.  Ai de mim! O que faço é um arremedo bisonho, o resto é sonho duma história do futuro.


uma carta do escritor enquanto jovem

Do exílio carioca de Dalcídio veio-me a primeira notícia da árvore Folha-Miúda.  A pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa, Soraia Reolan Pereira, esposa de meu primo Ruy; achou no acervo do escritor marajoara ali depositado, uma nota do autor no tempo da juventude, dizendo: mais ou menos (cito de memória) Quando eu morrer me enterrem debaixo da árvore Folha-Miúda em frente ao chalé na beira do rio... Aquela árvore fora companheira de sua infância, o castelo se seus sonhos onde estrelas e pássaros se entrelaçavam nas ramagens subindo ao céu. Quando Dalcídio morreu, em 1979, no Rio de Janeiro ninguém sabia da existência daquelas anotações, licença poética da mocidade. Ele foi sepultado na cripta da Academia Brasileira de Letras no cemitério São João Batista. Tempos depois, Bernardino Ribeiro foi eleito prefeito de Ponta de Pedras e quis de boa intenção prestar homenagem ao filho da terra construindo mausoléu para receber os restos mortais do escritor. Felizmente a família reunida no Rio de Janeiro agradeceu a homenagem, mas não aceitou a proposta de remoção dos restos mortais de Dalcídio Jurandir para Ponta de Pedras, inclusive por ter em mente apego do autor de "Chove" por Cachoeira.

Então, quando li aquelas anotações que Soraia me enviou foi como uma bomba e logo saí a procura da tal árvore da memória de infância do nosso escritor. Eu pensava conhecer muitas coisas do Marajó, mas nunca tinha visto um pé de Folha-Miúda. Lembro-me vagamente, certa vez em setembro de 2003, estar descendo pelo rio Arari desde Santa Cruz do Arari e ao avistar um árvore frondosa de intenso verde sob os raios do sol na beira do rio em meio à paisagem seca e amarelada do verão, perguntei que árvore era aquela e me disseram, acredito ter escutado, "folha miúda"... Não me pareceu haver nada de especial além do fato de se conservar alta e verdejante enquanto a mata ciliar definhava no estio.

Até aí eu não sabia daquela precoce manifestação de vontade de Dalcídio. Primeiro acreditei que se tratava de qualquer árvore de folhas folhas miúdas. Eu também tive minha folha miúda de infância, um parrudo pé de tamarindo ao lado de casa; onde sob suas sombras e no alto dos galhos inventei muitas bravatas. Então pedi ajuda para achar a tal Folha-Miúda e, se possível, identificar-lhe o nome científico. Em João Viana, romance "Fazenda Aparecida", aprendi que não se tratava de qualquer árvore de folhas pequenas, mas exatamente uma espécie de nome popular Folha-Miúda. É só uma passagem, creio agora pela página 40, que relata a subida das geleiras e um tripulante amarra o cabo da embarcação no tronco de uma Folha-Miúda... Pedi ajuda à Ima Vieira, botânica do Museu Goeldi, mas ela não tinha informação sobre a tal árvore pelo nome vulgar. Pediu para coletar flores, frutos e folhas a fim de identificar a planta. Mas, poucos puderam ajudar até agora. 

O prestimoso primo Lino Ramos foi lá no bairro de Petrópolis, onde se achavam os restos mortais do Chalé à procura da velha Folha-Miúda e já não a encontrou mais. Ao que parece a erosão do rio desbarrancou a margem e a correnteza engoliu a árvore de infância do escritor, tal qual a "cachoeira" (salto d'água, no fim do verão), formada pela laje que o assoreamento sepultou. Havia apenas a tronqueira no fundo das águas, daquele monumento vegetal e imaginário de outrora.

resiliência
Resiliência é a saliência da vida enquanto dura. A jura inocente da gente pela fé da mucura (jura pela "fé de Deus" é ou deveria ser coisa muito séria)... Mucura esta que é o Animal Monstrosum da ignorância biogeográfica de Vicente Pinzón, capturado com filhotes e os 36 primeiros "negros da terra" (índios escravos) da América do Sul, na memória da chamada ilha Marinatambalo [Marajó]; é festa de improviso pelas barracas de palafita na beira do rio e dança popular chamada gambá. Por acaso, tudo isto lembrado hoje, aqui e agora, no Dia do Folclore. 

Assim é se lhe parece. Paresque, a Folha-Miúda às margens plácidas do rio das araras e da gente Arari, que não existem mais; é metáfora que se renova no Arboreto do museu à ilharga da campa d'O homem que implodiu, seus ossos enterrados no chão de Dalcídio dão frutos novos. Por acaso, o chalé com a árvore da infância de Alfredo se perderam na voragem do rio do tempo. Todavia, hoje revivem na lembrança pela graça da matéria eletrônica, que reside na rede mundial de computadores e satélites artificiais de comunicação, vulgo internet; que faz uso do recurso natural planetário e cósmico que aí está desde a primeira noite do mundo. 

Mas, -- por acaso ou milagre -- no Marajó as pessoas, os bichos e as plantas da paisagem cultural extinta renascem na primeira manhã duma nova história. Não muito longe, no Xingu, os mortos visitam os vivos na festa do Kuarup mágico, revividos no tronco da árvore sagrada e o reflorestamento das matas devastadas. A lição dos povos originais serve também a seus descendentes amazônidas. Por que não? Por aí vem o tratamento e cura da leseira amazônica que deixou caboco desterrado de suas próprias raízes.

Não será chegada a hora de se declarar a Folha-Miúda como árvore símbolo da mata ciliar do Arari? Isto seria senha para ampla revitalização...

Momento de atacar a erosão do rio, refazer as "três casas" do romance-fluvial dalcidiano e perenizar o Lago, revitalizar a Cultura Marajoara, transformar em fundação o Museu do Marajó, como Giovanni Gallo deixou escrito no livro "Motivos Ornamentais da Cerâmica Marajoara". Tendo, se Deus quiser, a nova Universidade Federal do Marajó (UnM) implantada, a exemplo do Museu Nacional que foi incorporado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); o Museu do Marajó poderá ser campus da universidade marajoara multicampi em Cachoeira do Arari, a ser devidamente estruturado para receber repatriamento peças e coleções de cerâmica pré-colombiana. 

Se, de fato, todo mundo está de acordo em promover o IDH do povo marajoara, por que desqualificar a obra do Gallo e deixar entregue às calendas gregas a moção de Muaná de 08/10/2003 (no ano da morte do criador do Museu do Marajó) que pede (com base na área de proteção ambiental prevista na Constituição do Estado do Pará) a reserva da biosfera do Marajó, no programa O Homem e a Biofesta (Mab), da UNESCO? O búfalo não nos representa! Quem nos representa é o Homem marajoara, de mais de mil anos de idade.

Que nem a reconstrução ritual do esqueleto com caveira, no camoti sagrado enterrado no teso é esperança, no passado longínquo; de ressurreição no futuro da Cultura Marajoara morta com seus antigos cacicados. E assim simples cacos de índio encontrados a esmo pelos campos do saque e contrabando de sítios arqueológicos se transformam em novos tempos pela resistência e luta da brava gente descendente dos índios bravios, desertores e escravos fugidos, que existiram nos mocambos (quilombos) nos centros da ilha.


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