quarta-feira, 23 de outubro de 2013

CENTRO EIDORFE MOREIRA DE ESTUDOS DA AMAZÔNIA MARAJOARA




Fiel ao meu papel de agitador de ideias, devo confessar mais uma vez que nada tenho de meu neste nem em outro qualquer campo. Tudo que sei vem de muitos mestres e mestras, malgrado a rudeza e inconstância do aprendiz. Eidorfe Moreira é um de meus ídolos da amazonidade e sua obra está entre meus livros de cabeceira. 

Por bondade do amigo e mestre, o saudoso jornalista Claudio de Sá Leal; publiquei em fins da década de 1970, "entrevista" póstuma com Eidorfe Moreira sobre o aproveitamento do igapó na paisagem cultural de Belém. A partir da célebre análise de Henri Coudreau em "L'Avenir de la capitale du Para", o geógrafo paraense elaborou seu magistral "Belém e sua expressão geográfica", obra magna que deveria ser guia político de gestores e vereadores de nossa estratégica metrópole regional. No autor também se acham importantes apontamentos sobre a formação da sociedade paraense em seus diversos elementos nativos e adventícios.

 Foi Eidorfe quem ensinou a mim e a muitos que o leram que a microrregião de Breves é o "apogeu igapóreo" do planeta. Ele redime esta formação palustre típica de trópico úmido do horror hidrofóbico com que a ignorância ecológica havia pintado o pântano com as piores visões do inferno verde.  Podemos ler na crônica colonial como o colonizador se lança contra a natureza selvagem para a desbravar e civilizar. Esta compulsão alienígena está no cerne das grandes devastações pela fobia do homem urbano em relação à floresta. No trópico úmido, governar é desmatar e aterrar. Modernamente, o triunfo supremo é o asfalto e o cimento. Mas, Eidorfe demonstrou que o igapó desmatado deixa de ser igapó e passa a ser a baixada na geografia urbana amazônica com todos os problemas sociais e sanitários que conhecemos.

De maneira que, no momento que a gente, pouco a pouco; vai despertando para a necessidade de preservação ecológica da Amazônica e descobre o tesouro socioambiental que o arquipélago do Marajó representa nesta região; entra-se em desespero com o tipo de "civilização" que os Homens Bons do Pará decretaram para "desenvolvimento" do "maior arquipelago fluviomarinho do mundo" sito no complexo delta-estuário da maior bacia fluvial da Terra. 

Como se recorda, "Homem Bom" é uma expressão da Idade Média em Portugal que passou ao Brasil colônia. São homens de lugares e vilas que tinham relevância social perante o reino por possuírem propriedades rurais ou outros bens de exercício de ofícios não manuais. Um Homem bom participava das listas de eleitores que escolhiam membros das câmaras municipais e das freguesias, podiam votar e ser votados. No Brasil um "homem bom" era comumente o proprietário de terra cristão-velho. Desta categoria se excluíam escravos, trabalhadores manuais e cristãos-novos entre outros. 

Para se ter uma ideia como eram minoritários na sociedade colonial amazônica os homens bons, lembramos que cerca de 1653 quando chegou ao Pará, o padre Antonio Vieira não encontrou mais que uma centena de "moradores", fora os padres e os escravos. É desta velha cepa portuguesa que proveio, ao longo de quase quatro séculos, o tronco oligárquico pouco acrescido por casamentos com famílias de posse ou cabedal intelectual que se acha a classe dirigente, em diferentes papeis de mando na vida social da região. A mobilidade social acontece, excepcionalmente, com a peculiariedade referida por Henri Bates, no século XIX, quando ele vindo ao Pará pela segunda vez procurou por uma pessoa de cor negra de que havia conhecido em sua primeira viagem. Para espanto do naturalista ficou sabendo que a pessoa havia se tornado um "branco". Ou seja, um "homem bom": pelo fato de ter conseguido ficar rico...


Nas condições de isolamento da ilha do Marajó o feudalismo ilhéu transplantado pelo colonialismo português à ilha da Madeira, Cabo Verde e Açores iria se apurar em contraste com o golfão marajoara. Onde tudo é grande, principalmente as dificuldades de sobrevivência da população tradicional - "Criaturada grande de Dalcídio" - , só o homem marajoara, ao longo de séculos de injustiça e opressão, resta pequeno no isolamento dos sítios entregues à servidão da gleba ao deus dará dos caprichos insensatos de seus mesquinhos senhores. Aí os Homens Bons foram donos de fazenda e engenho e seus herdeiros formam a atual classe dirigente a qual se agregam pequenas burguesias das sedes municipais.

Claro, ultimamente as coisas começaram a mudar com mais rapidez. Mas é tão pouco e incerto que a gente ainda desconfia da possibilidade de uma verdadeira mudança. O drama ribeirinho consiste na ditadura imposta pelo regime de sesmarias após a falsa pacificação de Mapuá, por exemplo, que descendentes de índios nunca ouviram falar. Como de fato nem desconfiam que são filhos e netos de índios desmemoriados... Os acontecimentos históricos passam de bubuia no rio de Heráclito, como dias e noites se sucedem sob os olhos opacos dos rebanhos... Fatos que seriam de suma importância para os direitos humanos desta gente, marginalizada pela História, não têm nenhum interesse acadêmico para a elite Paris n'América papa chibé, que reina absolutamente no conforto hereditário da oligarquia paraense. 

As diversas oligarquias das regiões amazônicas, como se deve saber, têm por patrono um certo armador de navios e aliciador de imigrantes chamado Simão Estácio da Silveira, autor de uma panfleto prometendo aos pobres de Portugal o paraíso no Maranhão. Na verdade, o que ele desejava com o subterfúgio do povoamento português era ultrapassar a famosa "linha" de limites entre Portugal e Espanha, entrando rio acima em busca de imaginários tesouros das Amazonas... Claro que estes pobres imigrantes lançados "às feras" eram casais açorianos desde priscas eras enganados pelas promessas da corte. Esquecidos do fado da pesca e da lavoura, no Maranhão e Grão-Pará foram preadores de índios e muitos morreram massacrados pelos bravos dando ensejo ao grande massacre de represália, em 1619, por tropas comandadas por Bento Maciel Parente e Pedro Teixeira. Os sobreviventes destes primeiros colonos promovidos a Homens Bons, donos de terra, escravaria, gados e fama patriarcas de famílias brancaranas (pra não dizer mamelucas ou mestiças).

Quanto a gente fala em "Maranhão", no século XVII, quer dizer Amazônia lusitana e, por conseguinte, brasileira na primeira metade do século XIX. Há 400 anos, a invenção da Amazônia pela Europa, é a história da corrida colonial entre monarcas ambiciosos respaldados por mercadores concorrentes judeus e germânicos cristianizados em torno do "testamento de Adão" (tratado de Tordesilhas, 1492-1750), que dividiu o mundo "achado e por achar" entre os Reis Católicos e Sua Majestade Fidelíssima, homologado pela papa Alexandre VI (o aragonês Rodrigo Bórgia).

Ora, tão logo Colombo anunciou o descobrimento do caminho ocidental paras as "Índias" (1492), a Europa de ponta a ponta entrou em transe. Nesta margem do Atlântico soou a trombeta do fim do mundo para antigas civilizações ameríndias. A "linha" de Tordesilhas veio repousar, por acaso, sobre a baía do Marajó: para a margem direita do Pará tudo cabia ao reino de Portugal e na margem esquerda até o Pacífico tudo ficaria então com a Espanha. Mas, não combinaram com os índios... Como, no caso do Acre, não haviam combinado com os seringueiros do gaúcho Plácido de Castro: todavia, Raul Bopp sentenciou "o Amazonas tanto embarrigou que pariu o Acre"...

Logo, a ilha do Marajó, Amapá e o restante da Amazônia nos termos de Tordesilhas pertenceria a Espanha. Embora, a viagem de Pinzón (1500) e o descobrimento do "rio grande de Orellana" (1542), depois chamado "rio das Amazonas", e a tentativa de ocupação com o Adelantado de Nova Andaluzia (1544) terminada com o desaparecimento e morte de Orellana. Somente com a França Equinocial (1613) e sua posterior tomada pelos portugueses em 1615, dentro da União Ibérica (1580-1640), começou de fato a formação territorial do estado do Maranhão e Grão-Pará (1621-1751), sucedido pelo estado do Grão-Pará e Maranhão (1751-1772). Assim chegamos hoje à região norte do Brasil chamada Amazônia, prestes a completar 400 anos.

Pelos fins do século XVII, companhias gerais de comércio holandesas e inglesas, começaram a fundar feitorias fortificadas na região com famílias de colonos protestantes e escravos africanos no Amapá, Marajó, Xingu e Baixo-Amazonas. Esta tática de ocupação contemplava o estado de guerra com o império espanhol em consequência da morte do rei de Portugal D. Sebastião e sua sucessão no trono luso por Felipe II de Espanha (1580). 

Ingleses e holandeses sabendo da truculência da conquista hispânica usaram amplamente o comércio de escambo com os indígenas, procurando conquistar-lhes a amizade e forjar dependência de produtos manufaturados, explorando rivalidades entre nações indígenas e seus concorrentes católicos. Evidentemente, foram ingleses e holandeses os primeiros colonizadores a empregar a escravidão africana na Amazônia, enquanto protestantes franceses basearam sua ocupação na região pela introdução de colonos europeus e união de armas com os guerreiros Tupinambás, também estes recentes conquistadores da região contra povos mais antigos chamados genericamente Tapuias.

É neste quadro que o nosso velho Marajó de guerra - herdeiro de uma cultura pré-colombiana milenar -, iria comparecer à história colonial da Amazônia em seu primeiro século de vida: eram os marajoaras chamados, pejorativamente, de Nheengaíba, uma federação de povos aruaques em guerra defensiva contra a invasão de suas terras frente aos antropófagos Tupinambás (pelo menos um documento de fonte portuguesa, atribuído ao mameluco Diogo Nunes, relata uma importe migração saída de Pernambuco pelos sertões chegando na Amazônia peruana em 1538; demonstra conflito inter-indígena na Amazônia antes dos europeus). Com exceção do historiador Ubiratan do Rosário, historiadores do Pará ainda não fazem conexão com o mito da Terra sem males para explicar a presença tupinambá na história da Amazônia. Segundo a historiografia brasileira plasmada no molde imperial do IHGB e afiliados, o "bom selvagem" na Amazônia não passa de um bando de comedores de carne humana e depois de batizados apenas burro de carga até a exaustão.

Marajó não é exatamente uma "barreira do mar", porém foi sim uma fronteira viva e sangrenta entre as duas margens do Pará: por acaso, sobre a "linha" de Tordesilhas... Foram 44 anos de guerra para expulsar os concorrentes de Portugal e romper a tal linha de limites jamais demarcada, se não com a zarabatana mortal e dardos envenenados dos belicosos guerrilheiros Nheengaíbas. O primeiro marco da ruptura da linha de Tordesilhas é o forte de Gurupá (1623). Mas, a consolidação da conquista e afastamento final do concorrente colonial somente poderia acontecer pelo fim daquela guerra. Acontecimento de Mapuá (27 de agosto de 1659) e fundação, no mesmo ano, das aldeias nheengaíbas de Aricará (Melgaço) e Aracaru (Portel).

O triângulo do delta-estuário amazônico com vértices no Presépio (1616), Gurupá (1623) e Macapá (1782) deixa ao centro o enorme arquipélago marítimo e fluvial acrescido da microrregião continental de Portel perfazendo 104 mil km² de superfície com 503 mil habitantes. Neste espaço a Universidade Federal do Pará quase 30 anos após implantar o campus de Soure, em1986, entra em expectativa de criar a nova Universidade Federal do Marajó.

É consensual que esta universidade autônoma que vai suceder a UFPA na região marajaora deva ser uma estrutura multicampi a fim de atuar em dezesseis municípios. E, portanto, por uma predisposição geográfica e maior concentração demográfica a cidade de Breves deverá ser a sede administrativa desta nova universidade. Então, como está claro que a UFPA é desde 1986 a instituição tronco da nova universidade do Marajó, tudo que a UFPA fizer na região doravante deve convergir com o projeto da nova universidade.

Por isto gostaria de lembrar a obra de Eidorfe Moreira sobre Marajó, notadamente o Roteiro Bibliográfico de Marajó. Poderia a Prefeitura Municipal de Breves com a reitoria da UFPA projetar um CENTRO EIDORFE MOREIRA DE ESTUDOS destinado a vir a ser integrado provisoriamente no campus da UFPA em Breves e depois à nova universidade. Aí o Roteiro Bibliográfico seria continuado como centro de documentação aberto à comunidade acadêmica nacional e internacional.


Eidorfe Moreira nasceu a 30 de julho de 1912 na Paraíba. Com menos de dois anos de idade veio para Belém, para onde sua família se transferiu. Como estudante, participou da vida cultural acadêmica e das atividades políticas do Pará. Na revolta estudantil de apoio à Revolução Constitucionalista de São Paulo (1932), foi ferido e teve um braço amputado. Em 1935, começou a publicar na imprensa diária.Formou-se em direito em 1938 e no ano seguinte iniciou carreira no magistério. Foi professor de Economia Política, contribuiu nas áreas de ciências e geografia. Ingressou no serviço público em 1945, onde permaneceu até se aposentar. Foi também professor e pesquisador da Universidade Federal do Pará onde exerceu várias funções, afastando-se em 1982. Eidorfe Moreira é considerado um dos intelectuais mais importantes de sua geração e um dos vultos mais notáveis do Pará. Faleceu aos 77 anos de idade, em Belém, no dia 02 de janeiro de 1989.

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