
uma
re-visão antropoética sobre a marginalização histórica do povo marajoara.
Em
meio às águas barrentas do golfão amazônico, empurrando o azul do
mar profundo para longe da costa, a Amazônia Marajoara manda
notícias históricas ao vasto mundo numa garrafa de náufrago
através da corrente das Guianas além do Cabo do Norte e da
fronteira do Oiapoque. No extremo-norte brasileiro a grande ilha dos
Marajós parece porta-aviões ancorado no delta-estuário Pará
-Amazonas. Ou seria o navio encantado no reino das Amazonas? A bordo
o fantástico carregamento de lendas e mitos numa história incrível
remontando a mais de mil anos... Balsa de carga de contos dos antigos
caciques e matriarcas do tempo da vela de jupati ou arca de Noé
tapuia encalhada na boca do maior rio do mundo.
A ilha grande conta por alto o drama de seus tesos
pisoteados por búfalos animais ou humanos ruminantes, debaixo da
chuva da ignorância, como foi que a população de 503 mil almas
ribeirinhas em rico território de 104 mil km² nascida, cometeu a
incrível façanha de chegar aos piores níveis de pobreza da América
latina. Pobre gente ribeirinha. Ou seria a criaturada sem eira nem
beira rica herdeira de um paraíso perdido? Se os últimos serão os
primeiros, como outrora diziam os padres dos primeiros dias do
catecismo de Nosso Senhor Jesus Cristo no rio Babel: quem sabe o
futuro há de vir, neste ilhado fim de mundo, pelas beiras da
história ou pelas margens da civilização em decadência. Começo
de outro mundo menos infeliz para o povo do país, é esta mesma
gente quem diz.
Esta brava gente – “Criaturada grande de Dalcídio”
no dizer de Eneida de Moraes – há muitos séculos habita o tempo
de 500 e tantas aldeias sobre antigas palafitas e tesos
proto-históricos. Hoje ela faz contraponto à aldeia global, tal
qual a estúrdia academia do peixefrito no Ver-O-Peso foi o grito de
independência ou morte das letras amazônidas face ao augusto
cenário literário nacional. Isto é, na verdade, a terceirização
luso-brasileira da cultura universal assim chamada. Já que a
diversidade é a fada madrinha destas ilhas filhas da pororoca.
Lugares ancestrais que se perdem na memória e se desdobram em
milhares de sítios panemas por varjas, campos e matas virgens
diversas, dispartidos em mais de duas mil ilhas pelas regiões
isoladas do Arari e Furos de Breves. Assim também na terra firme,
mato adentro, na região de Portel chamada rumo aos confins do
Tocantins e do Xingu.
Quem diria? A desconhecida “Ilha dos Nheengaíbas”,
com a barbaridade de seus antigos costumes pagãos na invencível
guerrilha a peso de zarabatana de paxiúba e dardos de talo de patauá
envenenados, mais a ruindade da sua língua incompreensível;
enganados na falsa pax de Mapuá, se tornaria este vasto
latifúndio na dimensão de um país atravessado na boca do maior rio
do mundo!... Onde os donos das antigas sesmarias meteram os pés
pelas mãos e encheram a terra dos índios de currais, engenhos de
cachaça, olarias, casas de comércio, serrarias e igrejas. Masporém,
Deus paresque se esqueceu de botar a mão em riba desta gente;
zangado que nem Tupã antigamente, com sua voz de trovão, ralhando
pajé que mijava fora do caco. Segundo contam alguns velhos a lenda
explicativa da panemice geral destas ilhas, devido a praga lançada
como castigo pela expulsão dos padres e frades a rogo de
escravagistas coloniais.
Quanto Marajó desencanta de seus antigos males? Talvez
– pensando eu, aprendiz de pajé reprovado por falta de fé – ,
quando a gente resgatar com brilho a utopia evangelizadora do reino
de Jesus Cristo consumado na terra, em fraternidade com o mito
fecundador de Terra sem males: paraíso selvagem onde não existe
Fome, Trabalho escravo, Doença, Velhice e Morte... Haverá algo mais
ecumênico e planetário do que isto? Entretanto, tudo se passava
debaixo do nariz do “payaçu dos índios” e ele não viu
aonde queriam chegar os Tupinambás, nem entendeu o que os
Nheengaíbas poderiam dizer se lhes não tivessem tapado a voz na
garganta com a corda e o baraço. Os obrigando a falar a língua-geral
para, enfim, aprender português sob peso de palmatória.
Ao todo, as velhas aldeias do passado distante se
transformaram em dezesseis municípios do Marajó velho de guerra,
resultado da repartição de terra dos extintos confederados
Nheengaíbas pelo famigerado Diretório dos Índios. Eis a lista
alfabética das municipalidades marajoaras, desde 1757 (ano do édito
pombalino) até 1961 (dos mais recentes desmembramentos de
municípios):
Afuá (o mistério africano de um nome de mulher), Anajás (segredo da brava nação indígena invencível), Bagre (como um peixe vivo no rio Panaúba), Breves (a terra do cacique Piié Mapuá), Cachoeira do Arari (memória viva de Ananatuba), Chaves (a morada eterna dos Aruãs), Curralinho (aldeia de Maruaru), Gurupá (lugar de memória de Mariocai), Melgaço (aldeia de Aricará), Muaná (cidade histórica da brasilidade parauara), Ponta de Pedras (aldeia dos Guaianás), Portel (aldeia de Aracaru), Salvaterra (pátria amada dos Sacacas), Santa Cruz do Arari (o lago ancestral dos marajoaras), São Sebastião da Boa Vista (a bela das ilhas) e Soure (aldeia dos Maruanás).
Afuá (o mistério africano de um nome de mulher), Anajás (segredo da brava nação indígena invencível), Bagre (como um peixe vivo no rio Panaúba), Breves (a terra do cacique Piié Mapuá), Cachoeira do Arari (memória viva de Ananatuba), Chaves (a morada eterna dos Aruãs), Curralinho (aldeia de Maruaru), Gurupá (lugar de memória de Mariocai), Melgaço (aldeia de Aricará), Muaná (cidade histórica da brasilidade parauara), Ponta de Pedras (aldeia dos Guaianás), Portel (aldeia de Aracaru), Salvaterra (pátria amada dos Sacacas), Santa Cruz do Arari (o lago ancestral dos marajoaras), São Sebastião da Boa Vista (a bela das ilhas) e Soure (aldeia dos Maruanás).
Cada um deles um Marajó à parte. Ilhas dentro de
ilhas repartidas por furos e igarapés. Onde esta boa gente se acha
dividida deste muitas antigas rivalidades, herdadas de velhas
guerrilhas locais e pobrezas importadas de além mar. Sem exagero, o
primitivo Marajó foi mata fome de todo mundo e já deu de comer a
muita gente...
O peixe nosso de cada dia, camarão de matapi mais o pirão de açaí, roças de mandioca em quantidade e os gados do rio (peixe-boi, tartaruga e pirarucu). A piracema de peixe do mato foi chamariz e comedia de bandos de aves aquáticas e vários outros predadores: fossem eles rastejantes como a cobra grande sucuriju, andassem sobre quatro ou duas patas... Tal qual o paleo-índio mariscador que aprendeu, por necessidade e acaso, a pescar de gapuia de tanto ver lambança de guaxinim pegando peixe na maré seca no leito de igarapé.
O peixe nosso de cada dia, camarão de matapi mais o pirão de açaí, roças de mandioca em quantidade e os gados do rio (peixe-boi, tartaruga e pirarucu). A piracema de peixe do mato foi chamariz e comedia de bandos de aves aquáticas e vários outros predadores: fossem eles rastejantes como a cobra grande sucuriju, andassem sobre quatro ou duas patas... Tal qual o paleo-índio mariscador que aprendeu, por necessidade e acaso, a pescar de gapuia de tanto ver lambança de guaxinim pegando peixe na maré seca no leito de igarapé.
A gapuia será talvez a grande mestra de ofício
inventora da Cultura Marajoara cantada em prosa e verso, neste mundo
anfíbio onde as águas e o tijuco são inseparáveis. A educação
pelo barro dos começos do mundo. Infinita reivenção de ilhas-arcas
de Noé ao longo da costa, que seguem a correnteza ao sabor da maré:
divisa entre animalidade e humanidade. Pra não dizer, Natureza e
Cultura (pela fé da mucura, cá entre nós, que é nome de bicho e de festa
improvisada a cabo da faina do dia).
E quando, apesar de tudo, as aldeias da Missão
sossegavam dos tormentos iniciais da invenção da Amazônia, lá vem
o tal Diretório dos Índios! Dizendo o senhor capitão-general e
governador do estado do Grão-Pará e Maranhão que, diz-que, era
para liberdade dos índios... escravos dos jesuítas. Todavia as
mesmas promessas de liberdade dos índios e o papel histórico da
Companhia de Jesus como protetora dos índios fora invocada cem anos
antes: aqui a promessa foi quebrada mediante a primeira expulsão dos
padres e depois, para retorno ao Pará, conciliação destes últimos
com o regime das tropas de resgate (o “descimento” e “redução”
dos gentios).
Como diria Voltaire, “o mundo só terá paz quando se
enforcar o último rei com a tripas do último padre”... Porém, no
caso do Marajó, se não existisse el-rei Dom João IV e padres na
capitania-geral do Pará o genocídio teria sido total, atendendo o
pedido da Câmara de Belém ao governador do Maranhão e Grão-Pará,
mameluco André Vidal de Negreiros, a fim de levar a “guerra justa”
(cativeiro e extermínio) à Ilha dos Nheengaíbas.
Já na segunda expulsão dos jesuítas – não tão inocentes das acusações, segundo historiadores tais como o ponderado João Lúcio de Azevedo –, a declarada liberdade dos índios logo se tornaria descarada servidão em mãos de diretores de aldeias e até mesmo de vigários das freguesias; recrutados apressadamente para substituir os missionários expulsos e recolhidos à prisão em Portugal.
Já na segunda expulsão dos jesuítas – não tão inocentes das acusações, segundo historiadores tais como o ponderado João Lúcio de Azevedo –, a declarada liberdade dos índios logo se tornaria descarada servidão em mãos de diretores de aldeias e até mesmo de vigários das freguesias; recrutados apressadamente para substituir os missionários expulsos e recolhidos à prisão em Portugal.
Claro que os cabocos (índios recentemente "extintos" por decreto) já declarados novos súditos portugueses,
iguais perante às leis do reino a todos mais súditos da coroa; com a
estúpida notícia cairam no mato sem cachorro: caminho do feio é
por onde veio...
E, por isto, a imigração clandestina e o contrabando na rota do Oiapoque também teve forte incremento com o Diretório dos Índios dentre a longa série de acontecimentos históricos, escritos e não-escritos, que costuram as regiões amazônicas às ilhas do Caribe desde tempos imemoriais.
E, por isto, a imigração clandestina e o contrabando na rota do Oiapoque também teve forte incremento com o Diretório dos Índios dentre a longa série de acontecimentos históricos, escritos e não-escritos, que costuram as regiões amazônicas às ilhas do Caribe desde tempos imemoriais.
Na luta entre o iluminismo e a escolástica índios,
negros e mestiços pagaram o pato, conforme conta Alejo Carpentier,
no romance “O Século das Luzes”. Eu acho, ademais, que
por conta da 'obra' (sic) do Diretório dos Índios, se acaso
existisse vida além túmulo, o primeiro ministro de Dom José I estaria a
pé queimando no quinto dos infernos...
Ou não. Pois, segundo uma santa senhora curandeira em Icoaraci, o Marquês converteu-se no Purgatório das capitanias hereditárias do outro mundo. Agora ele é um espírito de luz montado no "cavalo" mediúnico e trabalha, que nem carola de igreja, numa seara de umbanda lado a lado com caruanas, cabocos de arco e flecha e pretos velhos. Para resgate de sua dívida histórica, cuida ele zelosamente dos destinos da antiga terra Tapuia. Aonde, paresque, queria transferir a Família Real para fundar no Pará o Quinto Império do Mundo, conforme profecias sebastianistas do Padre Antonio Vieira.
Ou não. Pois, segundo uma santa senhora curandeira em Icoaraci, o Marquês converteu-se no Purgatório das capitanias hereditárias do outro mundo. Agora ele é um espírito de luz montado no "cavalo" mediúnico e trabalha, que nem carola de igreja, numa seara de umbanda lado a lado com caruanas, cabocos de arco e flecha e pretos velhos. Para resgate de sua dívida histórica, cuida ele zelosamente dos destinos da antiga terra Tapuia. Aonde, paresque, queria transferir a Família Real para fundar no Pará o Quinto Império do Mundo, conforme profecias sebastianistas do Padre Antonio Vieira.
Se não é vero, espero que por artes políticas deste
e outros mundos ainda seja possível fazer alguma coisa neste
sentido, embora a irremediável contradição entre pajelança,
jesuitismo e iluminismo não deixe margem à concretude das utopias. Quem quer saber de coerência numa terra
onde gente vira bicho e bicho vira gente, plantas mágicas se
transformam em guardiões de caminhos e guardadores de casa? Aqui o
realismo mágico fez capital.
No
mundo pós-moderno já se fala em inventar, na Amazônia "celeiro do mundo" pra variar;
uma tal ecocivilização. Mas a gente sabe que ecocivilização
existia aqui antes dos civilizados chegar e estragar a ecologia
humana com as suas inglezias, matanças e viagens philosophicas,
que estão na origem da biopirataria.
Não
ria, mano velho, o caso é serio... As esperanças dos Marajós são
agora que a gente mesma possa converter, na terra, os malfeitos do
diretório pombalino e seus seguidores no “desenvolvimento”
insustentável da Amazônia. Como no céu dos terreiros e casas de
Mina das populações tradicionais o avatar do Marquês está a dar
serviço a fim de curar a estória, sem pé nem cabeça, da
“elevação” de antigas aldeias indígenas em vilas e lugares com
nomes tirados por acaso de Portugal, tais quais: Aricará
(Melgaço), Aracaru
(Portel), Maruaru
(Curralinho), Aruans
(Chaves), Guaianazes
(Vilar), Joanes
(Monforte), Maruanazes
(Soure), Cayá
(Monsarás), Jaburuacá
(Condeixa) e outros que já não me lembro.
Deste modo, o Homem marajoara por ele mesmo libertado
de tantas libertações estranhas, achará caminho para o futuro de
seu próprio desenvolvimento humano. Por exemplo, 500 aldeias
marajoaras autossustentáveis – como, no passado, aldeias suspensas
em tesos sobre campos alagados –, na prancheta dos sonhos,
configuram o amanhã da Ciência & Teconologia que precisamos.
Por que não?
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