sábado, 16 de janeiro de 2016

ARTE MARAJOARA CONVERSA COM O MUNDO.





Segundo Dalcídio Jurandir, o caboco marajoara é cidadão do mundo. Todavia, o cidadão em questão já se queixou ao bispo, pediu socorro ao presidente da república e só falta agora levar os seus protestos junto ao Papa e à ONU na última esperança da Agenda 2030, pra valer! O 'índio sutil' Dalcídio e o marajoara que veio de Turim fazer no Marajó o museu mais improvável do mundo, padre insubmisso ao bispo mandão, Giovanni Gallo, já morreram. Porém, toda vez que o dilúvio cai em cachoeira sobre os campos do Marajó a vida renasce em todo o maior arquipélago de rio e mar do planeta: mas, infelizmente, não recobra a memória ancestral desta pobre gente sem eira nem beira, espoliada secularmente pelo orgulhoso império da cristandade.

Pena que no Golfão Marajoara dispartido em ilhas e terra firme entre o grande rio Amazonas e o Atlântico equatorial, mais de meio milhão de brasileiros não sabem nada desta antiga conversa escrita em cerâmica, há coisa de mil anos aproximadamente, quando Colombo e todos mais supostos ou verdadeiros descobridores das Américas ainda não haviam eles saído dos cueiros. Não são apenas cem anos de solidão, mas cinco milênios que o Homem tapuia aprendeu a lição do barro e cerca do ano 400 até 1400 mandou recado ao mundo inteiro. Por necessidade e acaso, o encontro da fome com a vontade de comer inventou na ilha grande do Marajó a primeira cultura complexa da Amazônia e, sem sombra de dúvida, a arte primeva do Brasil.

Como dar agora esta notícia desprezada desde a Viagem Filosófica (1783-1798), do sábio de Coimbra, Alexandre Rodrigues Ferreira, na curiosa separata Notícia Histórica da Ilha Grande de Joanes ou Marajó (1783)? A Notícia Histórica devia estar atualizada e comentada por educadores da própria região, disponível pelo menos nas bibliotecas dos dezesseis municípios no território estadual maior que Portugal. Trata-se do vestibular do naturalista de Coimbra ao alto curso da Amazônia... E se, agora, Boaventura de Souza Santos, armado cavaleiro andante com o projeto da Universidade de Coimbra "Conversas dos Mundo", sonhasse viajar na Viagem Filosófica?

A Notícia Histórica nos informa muitas coisas: a teoria do índio arariuara sobre a abertura e dragagem do rio Arari por muitas cobras grandes e pequenas que viviam no lago; a primeira notícia do Rio dos Anajás e sua estupenda biodiversidade; a perigosa travessia das correntadas da baía do Marajó; o tucumã como substituto de azeite de dendê ("comida da pobreza"), isto é: a canhapira marajoara casando cultura alimentar do índio com a do preto a caminho do apogeu gastronômico guianense chamado bouillon d'Awara (que se poderia traduzir, mais ou menos, como "cozido de tucumã"). 

A Notícia Histórica dá uma dica para descobrir o autor anônimo da anterior "Notícia da Ilha Grande de Joanes" (provavelmente, o fundador da freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Cachoeira do rio Arari (1747), Florentino da Silveira Frade, que disse ter achado o teso do Pacoval (primeiro sítio arqueológico de Cultura Marajoara que se teve notícia) no dia 20 de Novembro de 1756. Por acaso, dia nacional da consciência negra. Forte coincidência, quando se sabe que Vicente Pinzón em janeiro de 1500 atacou e levou da ilha do Marajó os primeiros 36 "negros da terra" (escravos indígenas) da América do Sul...

Falar em tucumã (Astrocarium vulgare) é como pegar uma chave que abre a porta do passado na mitologia da Primeira Noite do Mundo e do futuro com a pesquisa da canhapira e do "óleo de bicho", por exemplo. Sem esquecer o famoso "caroço de tucumã" da literatura do maior romancista da Amazônia. Assim como o ciclo das águas com a piracema atraiu nômades de diversos horizontes da região a levantar do chão encharcado o teso para, ao longo do tempo, edificar aldeias suspensas. Estes mesmos sítios exóticos atraíram naturalistas e arqueólogos para adivinhar a charada do homem amazônico "primitivo"... Começa aí a destruição formidável da antiga Cultura Marajoara, fruto da ignorância e da arrogância. Não que, cerca de 1300, a barbaridade Aruã não tivesse aparentemente feito o tempo recuar pelas bandas do Norte com a invasão das Ilhas de Fora (Bailique, Viçosa, Caviana, Mexiana) até deslocar e destroçar as mais velhas etnias para a Costa-Fronteira do Pará, onde elas vieram se refugiar tal qual a nação Iona ou Sacaca (Joanes, na corruptela em língua portuguesa). Alexandre Ferreira lastimou a sorte destes índios escravizados na pesca no Pesqueiro Real que, pelo relato do sargento-mor de milícias da vila de Monforte (aldeia velha de Joanes), índio sacaca Severino dos Santos; poderiam ser descendentes dos famosos artistas ceramistas "marajoaras". Quem sabe? Quando o padre Vieira caiu em desgraça diante da Inquisição os mais prejudicados foram os seus protegidos índios "nheengaíbas" (marajoaras) que tiveram as suas terras tomadas pelo monarca português para doação a seu secretário de estado e criação da capitania hereditária da Ilha Grande de Joanes (1665) - vésperas do apocalipse de 1666, vaticinado por Vieira para volta de Cristo à terra - o mundo não acabou. Porém, de fato, muita coisa mudou por aqui, inclusive a babel das línguas amazônicas no entrechoque do Iluminismo aux bàs fonds da amazonidade com o Diretório dos Índios (1757-1798) operando o milagre brasileiro da hegemonia da língua portuguesa falada do Oiapoque ao Chuí, extinção dos "índios" por decreto elevados em súditos do rei de Portugal juntos a suas rústicas aldeias que passaram a ser vilas e lugares lusitanos migrados a Amazônia colonial. Tais quais Chaves, Curralinho, Melgaço, Portel, Oeiras. Salvaterra, Soure...

Dentre as diversas histórias dos Marajós, a história dos "Joanes" é caso exemplar da destruição dos índios do maior arquipélago fluviomarinho do mundo no contexto geral da destruição das Índias |Ocidentais. Pois é disto que se trata, quando o Marajó quer conversar com o mundo. A "ilha" do Marajó está no mundo desde quando o padre grande Antônio Vieira com a sua utopia evangelizadora escreveu a famosa carta a el-rei dom Afonso VI, em 1659, publicada em folheto em 1660; na pessoa de sua mãe e regente de Portugal, a espanhola dona Luísa de Gusmão... Me lembro que a Viagem a Portugal de Saramago inspirou minha estúrdia Novíssima Viagem Filosófica a bordo da Revista Iberiana (1999). Seguiu-se a Amazônia latina e a terra sem mal (2002) onde abracei a utopia selvagem dos Tupinambá como efetiva conquista do rio Babel (tiro chapéu ao mestre José Ribamar Bessa Freire), e tenho inédita a Breve História da Amazônia Marajoara... Trabalho agora num texto apimentado chamado 1835 - As classes miseráveis na beira da História onde procuro parentescos da revolução paraense nas sete guerras da Regência (1835-1840) e na luta universal contra o trabalho escravo desde os quilombos originais, na África, dos Jagas e Bijagós em luta contra caçadores de escravos.

Hoje somos meia dúzia de quixotes fazendo das tripas coração a fim de dar voz a tantos outros que não sabem ler nem escrever, com que por certo saberiam o que o autor de Chove nos campos de Cachoeira por sua Criaturada grande dedicou toda sua vida em dar testemunho do homem aí largado em plena maré. Quem saberá a história do Pesqueiro Real com os índios Joanes escravizados para pescar e defumar peixe que era o dinheiro com que se pagava o soldo dos militares, os vencimentos dos servidores e a côngrua dos padres? Eis os banco social das comunidades àquele tempo com a tainha ovada em lugar de moeda corrente até quase fins do século XVIII.

Atualmente o Pesqueiro é uma unidade federal de conservação ambiental (Resex Marinha de Soure), a primeira reserva extrativista marinha da Amazônia. E deve-se saber que as Resex são invenção histórica de Chico Mendes: de Xapuri, no Acre, até Soure, no Pará; passando por Santa Catarina a luta popular venceu muitos obstáculos e estirões.

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