sexta-feira, 25 de março de 2016

VELHO SONHO DA TERRA DE DALCÍDIO JURANDIR: CULTIVAR A PAZ, PRATICAR A EDUCAÇÃO PELO BARRO E REVIGORAR A CULTURA MARAJOARA






Gosto de São Francisco por causa de meu pai caboco, filho de índia da aldeia da Mangabeira com descendente português; ele se vangloriava de ter sangue cabano a correr em suas veias e se pegava com o santo dos pobres nas horas de necessidade... Na juventude, deixei de lado a igreja católica por causa de minha pobre mãe descendente galega fanatizada pelo catolicismo apostólico romano, em grande parte culpado pela colonialidade e misérias da América latina

Gosto da inculturação (pra não dizer dialética, tu me ensinas a fazer renda e eu te ensino a namorar...) no diálogo sincero entre religiões, ecumenismo supimpa para além da grande família do velho Abraão envolvendo também outras grandes famílias da mamãe Terra; a boa paz e convivência entre crentes e não-crentes com a complexidade de Edgar Morin. Gosto do Deus de Baruch de Espinoza a fazer a ponte entre Emoção e Razão ou conexão nervosa entre os hemisférios direito e esquerdo do cérebro humano, por exemplo, da filosofia militante de Antônio Gramsci, do jovem Marx e o velho Engels, no que tange a evolução da animalidade à humanidade... Gosto da ecocultura da pajelança marajoara temperada com o catolicismo popular e crenças afro-amazônicas sem nenhum pecado. 

Dirão os pobres de espírito, é presepada. Pois que seja... Certo dia, jogando conversa fora na cela duma antiga cadeia por acaso transformada em secretaria de cultura; encomendei ao escultor Ismael (Ismaelino Ferreira), então secretário municipal de cultura de Ponta de Pedras, meu saudoso amigo; que ele esculpisse em madeira a imagem do santo de Assis que hoje em minha casa está em riba da estante de livros à ilharga de Dom Quixote de La Mancha, num arranjo feito a propósito (foto acima).

Meu São Francisco marajoara não é santo de igreja, mas simplesmente uma obra de arte neotropical com o 'Poveretto' rodeado de plantas e bichos da Floresta Amazônica. Por causa de São Francisco e da encíclica ecológica "Louvado Seja" fiquei fã do Papa Chico argentino humilde, 'pero no chico'... Muito pelo contrário, grande sábio jesuíta e valente guerreiro da Paz. E a boa gente marajoara, depois de se queixar ao bispo, já convidou o sucessor do Pescador a visitar a ilha grande do Marajó, ano que vem. A ver Bergoglio se Deus quiser onde o padre grande dos índios Antonio Vieira "andou" a remos a fim de fazer as pazes entre índios e portugueses, ou melhor entre índios das ilhas e índios da terra-firme...  Esta gente descendente dos antigos nheengaíbas a ver se, com ajuda de Francisco sob a benção do Espírito Santo, o Brasil e o mundo tratará melhor a Criaturada grande de Dalcídio.

"Índios cristãos" (tupinambás catequizados) e "nheengaíbas" (pagãos falantes da bárbara língua ruim) mataram-se mutuamente, com agravante daqueles caçarem estes para ser escravos dos colonos. Na verdade, o que mais houve nestas paragens foi guerra entre índios, entre civilizados católicos e civilizados hereges; entre colonos, negros da terra(escravos indígenas) e negros da Guiné (escravos africanos). Começando desde a altura dos anos de 1300, pelo menos, quando belicosos Aruãs começaram a chegar pela costa norte a fustigar as mais velhas aldeias nas ilhas Caviana, Mexiana, Marajó grande... 

Pela costa-fronteira do Pará, vindos do Maranhão através do Salgado e do Tocantins, os canibais da Terra sem mal (yvy marãey) também começavam a aperrear esta gente antes mesmo dos europeus aparecer por estas bandas.  E, todavia, desde 1492 com a chegada dos primeiros cristãos no Caribe nunca mais os povos originais americanos tiveram paz até o presente. Mas, de repente, na boca do maior rio do mundo, numa modesta "ponta de pedras" - onde o rio Marajó começa -, o milagre da paz poderá, renovada 357 anos depois das pazes dos Nheengaíbas!

Não é por acaso que a gente diz que o Marajó começa no velho Itaguari ("ponta de pedras"). Marãyu ("gente malvada", marajó) é o destemido aruã, guerrilheiro de zarabatana em punho e dardos envenenados do mortal curare para repelir e matar o antropófago invasor. Portanto, a ilha grande é do Marajó. Assim, os marajós falantes da "língua ruim" foram barreira viva que brecou a marcha avassaladora dos Tupinambás desde o Nordeste, antigamente, Amazonas acima no rumo do Araquiçaua (sítio sagrado onde o Sol ata rede para dormir). 

A cabo de quarenta e tantos anos de guerra, as pazes pouco a pouco deitaram raízes ao longo da trilha do padre João de Souto Maior e sua tumba na terra dos Pacajás, como uma parruda samaumeira que começa por germinar no seio de uma semente 'jitinha' carregada pelo vento; com as gentes outrora inimigas de parte a parte pelas margens dos rios. A começar de Aricará (Melgaço) e Arucará (Portel) onde, primitivamente, os Aruak e os Tupi mediram forças violentamente. Por fim, juntos e misturados inventaram a etnia dos cabocos... Mas, apesar de tudo, ainda continuam a guerra velha por novos meios de assalto e pirataria nos rios.

Para quem tem preguiça de pensar ou não sabe ler, como os tantos quantos marajoaras analfabetos, infelizmente, estas coisas antigas e não sabidas, não passam de ser muitas suposições face a rebatidas historiografias da província... Entretanto, está tudo na crônica antiga dos padres jesuítas do século XVII, que o historiador da obra rara "História da Companhia de Jesus no Brasil" compilou nos arquivos do Vaticano. 

Da parte que me toca, o ponto de partida para as pazes entre os sete caciques do Marajó e os portugueses do Pará - ver carta do pe. Antonio Vieira ao rei dom Afonso VI, de 28/11/1659, publicada em 11/02/1660, acessível pela internet - teve início na homilia do bispo de Ponta de Pedras, dom Angelo Maria Rivatto S.J., durante missa campal na agrovila Antônio Vieira, antigo povoado Pau Grande; dia do produtor rural e de São Tiago, 25 de julho de 1995. Nós tínhamos acabado de realizar o décimo e último Encontro em Defesa do Marajó e de celebrar a Carta do Marajó-Açu, em Ponta de Pedras, no dia 30 de abril do mesmo ano (117° aniversário de emancipação do município), a dita carta foi guia de vinte anos de militância do Grupo em Defesa do Marajó (GDM), continuado ultimamente pelo Movimento Marajó Forte (MMF), notadamente com a campanha pró-criação da Universidade Federal do Marajó.

Confesso nunca antes ter escutado falar das pazes dos Nheengaíbas... E parece que dom Angelo havia lido o palimpsesto de Serafim Leite apressadamente: ele acreditava que o lugar de encontro de Vieira com os bárbaros Nheengaíbas havia acontecido ali mesmo, antigo povoado chamado Pau Grande, depois agrovila Antônio Vieira: às ilhargas do igarapé da antiga aldeia dos "Guaianases" [Guaianá], que foi porto de pesca na costa-fronteira da ilha servindo também à velha aldeia das Mangabeiras, a meia légua de distância [cerca de 3 km] em terras da primeira sesmaria dos Jesuítas e fazenda São Francisco Xavier [Malato] (1686). 

Quem tiver curiosidade e paciência de ler a prolixa carta de Vieira ao rei, verá que o cacique dos "Guaianases" (grafia de Vieira, em 1659) ou "Guaianazes" (grafia do naturalista Alexandre Rodrigues, em a "Notícia Histórica da Ilha Grande de Joanes ou Marajó", 1783), com uma comitiva teria estado presente à inusitada cerimônia da igreja do Santo Cristo (simples barraca de palha "ad hoc", levantada pelos índios), juntamente com os anfitriões Mapuás, Aruãs, Anajás, Pixi-Pixi, Cambocas, Mamaianás e Tucujus, a fim de receber os padres com escolta de portugueses e remadores tupinambás vindos de Cametá até o rio Mapuá (Breves).

Na verdade, o sítio da Paz dos Nheengaíbas se acha no "rio dos Mapuaises" [Mapuá, município de Breves], segundo a supracitada carta do pe. Antonio Vieira. Hoje na Reserva Extrativista de Mapuá, que aliás mereceria ser declarada nos termos da legislação das unidades de conservação do meio ambiente Monumento Natural de relevante interesse histórico, caso a comunidade não fosse tão displicente e as autoridades desinteressadas,

Com a expulsão dos Jesuítas do Pará, em 1759, a velha "aldeia das Mangabeiras" (1686), depois freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Ponta de Pedras (1737), passou a se chamar Lugar de Ponta de Pedras e a aldeia dos Guaianases foi chamada Lugar de Vilar sob orago de São Francisco, com o tempo ambos povoados fundiram-se na atual vila de Mangabeira e os antigos Lugares deram espaço para emancipação do município de Ponta de Pedras (30/04/1878), com sede na margem esquerda do rio Marajó-Açu; hoje nem mesmo o "igarapé do Vilar" existe mais, extinto que foi pelo assoreamento...   

Como eu sei de todas estas coisas? Primeiro ouvindo os senhores da praça da igreja matriz contar história na boca da noite, aprendendo com a minha avó Sofia e por campos e rios escutando o povo contar. Meu ecomuseu da memória... Depois a escola, os livros e a curiosidade insaciável em descobrir se a história contada confere com a história escrita e vice-versa. Coisa parecida à penitência de um frade velho. 

Direto ao ponto: 

AS PEDRAS QUE SOMOS


Os conterrâneos da antiga Itaguari não se esquecem de conservar a velha igreja de Nossa Senhora da Conceição de Ponta de Pedras e sempre avivar no frontespício os dizeres, atribuídos à madre Olvídia Dias; do velho sonho de fraternidade pontapedrense: 

Bem Vindos e Vejam Que As Pedras Que Somos Não estão de Ponta Mas Ligadas Entre Si. Eu que dentre outros sonhos, amaria ver convertido em ecomuseu o rio da minha infância - o Marajó-Açu, que no porto da Casa da Beira não fosse meu colega preto apelidado Niquelado, filho do preto Camilo compadre de meu pai; que quase me matou afogado quando criança eu aprendia a nadar -, considero a velha igreja de Ponta de Pedras pedra angular da memória e ecocultura do lugar onde o Marajó começa. 

O velho relógio ainda marca as mesmas horas da maré, quando outrora as canoas faziam velas para travessia da baía rumo a Belém do Grão Pará com suas histórias tremendas. Cada viagem uma odisseia a ser eternamente recordada à boca da noite por senhores sisudos, sentados nos bancos da praça a contar o tempo. Pena que eu não tenho dom para sensibilizar meus conterrâneos com minhas quixotescas ideias! Mais sorte houve meu finado padrinho Antonico Malato ao abraçar a Banda, que tomou fama e se tornou a obra coletiva mais feliz de nossa gente: a AMAM (associação musical Antônio Malato) com seus belos feitos, numa terra de vocação e tradição musical a toda prova. Sem esquecer jamais o tio nascido no Campinho, consagrado escritor com o prêmio nacional "Machado de Assis" (1972), da academia brasileira de letras (ABL), apelidado carinhosamente "índio sutil" por seu camarada de letras e sonhos Jorge Amado, autor do seminal "Chove nos campos de Cachoeira" donde o menino Alfredo saiu para conquistar o mundo.

A sacristia da antiga matriz guarda lembrança de casamentos e batizados da vila, ao tempo do padre Navegantes; pouco depois da mudança da freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Ponta de Pedras, da velha aldeia da Mangabeira para a beira do rio Marajó. Aí nasceu, pois, a lenda risonha dos passeios noturnos da virgem mãe dos pescadores, com saudades de sua humilde capela na beira da praia da Mangabeira. Alguém na passagem do Campinho pelo caminho do Belém ao Santo Lenço viu sob pálido luar um vulto branco caminhando rumo à velha aldeia da praia. E o sacristão, pela manhã ao abrir a igreja como um presépio onde ovelhas e cabritos se abrigavam às vezes, se espantava ao ver no altar vestígios de areia da praia na barra do manto sagrado da santa ainda úmida de orvalho. Tempos maravilhosos eram aqueles, onde o divino habitava a casa dos homens, tal qual o profeta Isaías prometeu a paz universal, vacas e cavalos mansos soltos pelas ruas não assustavam crianças nem os adultos maltratavam os animais. Mas já se sabe que o paraíso existe realmente, no tempo da infância e a terra sem males depois da velhice na recordação.

É certo que não esquecemos de reproduzir a frase feliz de madre Olvídia, mas nos olvidamos de ligar entre si as pedras que nós somos. Sim, apesar do desejo manifesto da educadora católica a verdade é que ainda "estamos de ponta" e desligados uns dos outros... Não podemos esperar a paz dos cemitérios, ou somente a esperança de após a morte, um dia estar no céu com nossa mãe. Nós devemos ter coragem de viver em paz e reconhecer a longa história de rixas e desavenças no maior arquipélago de rio e mar do planeta.  Fazer acontecer, aqui e agora, o paraíso na Terra: refazer a aldeia comum e cultivar nosso jardim.

Marajó, Marajó! Quando concluirás a paz de Mapuá? Ou, na correspondência de Dalcídio Jurandir a sua fiel amiga Maria de Belém de Menezes, "quando Marajó desencanta?" Isto é, quando quebrará o velho fado (sina, carma...) ou quando a gente marajoara irá,de fato, deixar de estar "de ponta" entre si para se empoderar da paz, do desenvolvimento e da felicidade?...






No verão de 1999, pela primeira vez, Ponta de Pedras entrou nos telejornais em rede nacional. Naquela boca da noite os senhores contadores de história não estavam abancados na praça da Matriz a tecer a rede das recordações. Mas, a população corria atônita para ver a Prefeitura pegar fogo... E lá se foi o vetusto Palácio Municipal que a revolução de 1930, com a mudança do nome do município de Ponta de Pedras para Itaguari; fez o prefeito major Djalma da Costa Machado levantar (inaugurado em 1938, tinha eu um ano de idade e morava com meus pais no Fim do Mundo, perto do Curro velho em frente à ilhinha encantada do Quati e começo da avenida 30 de Abril, onde o paço municipal está situado). 

O major Djalma ficou célebre com a construção da Prefeitura a par da Estrada da Mangabeira interligando a antiga aldeia da praia à vila na beira do Marajó-Açu. Com a abertura da estrada o prefeito Fango cuidou de trazer refugiados da seca do Nordeste para os assentar na colônia agrícola da Mangabeira. Começava assim uma nova história na velha Ponta de Pedras que, no ano de 1999, impactava com o motim popular e destruição criminosa do patrimônio público dilacerado no incêndio das contrariadas paixões partidárias.

Até parece que as queimadas de canaviais da antiga encrenca que fez remover a freguesia da Mangabeira para a margem do rio Marajó-Açu, com engenhos de "águas ardentes" e fazendas de gado; se alastrou pelos campos lavrados de sol e atingiu o coração da pacata cidade... É uma metáfora incendiária. Quero dizer na verdade que o zinabre do tempo atiça velhos ressentimentos e rancores. Nossos filhos e netos vem ao mundo despidos de maldade, mas nem sempre nossas mulheres e filhas os amamentam com leite puro da fraternidade; cedo as crianças são contaminados do antigo mal da colonialidade. Nós mesmos e nossos filhos, muitas vezes, sem querer, atiçamos preconceitos e ódio à alteridade...

Como depois, da casa para a rua e da igreja ou da escola para a sociedade, vamos interligar as pedras que nós somos? Foi assim que dois bandos contrários ao fim de não resolvidas desavenças em outras eras atacaram-se para, enfim, tocar fogo à Prefeitura como num antigo rito de guerra e vingança coletiva. Durante anos as ruínas da Prefeitura queimada acusava a consciência da cidade e afastava visitantes como um fantasma que grita decifra-me ou devoro-te!... Uma luta para evitar a ruína final com a descaracterização do patrimônio histórico ou derrubada total dos paredões para fazer do lugar, quem sabe, um puta supermercado...

Mas, não, felizmente o prefeito Pedro Paulo Boulhosa Tavares, herdeiro de antigos senhores da terra; levou a peito reconstruir o prédio lhe conservando as principais linhas arquitetônicas. E lá está de novo orgulhoso Palácio Municipal, resgatado do incêndio das águas ardentes e da louca fumaça do bicho folharal. Seria melhor se, acima de nomes e partidos, o paço renovado fomentasse a paz em toda a municipalidade. Ainda há tempo, todavia, de reconciliar as famílias e passar adiante com a restauração geral do patrimônio histórico e cultural de todos e todas pontapedrenses.

PAZ, EDUCAÇÃO E CULTURA

Para que haja o progresso carece um pacto de sinceridade e tolerância mútua pelo diálogo em busca da paz. Sem a premissa da paz a educação se torna frustração e a cultura uma mercadoria sem nenhum valor. Sim, nós poderemos ligar as pedras que somos! Não é fácil e nem será por decreto presidencial nem encíclica papal. Somos nós mesmos que venceremos ou seremos derrotados no caminho para a paz e o desenvolvimento humanos sustentável.

Se temos já a experiência da reconstrução do palácio incendiado. Se o exemplo de união e perseverança da Banda que se tornou Banda Sinfônica e leva o nome de Ponta de Pedras para todo Brasil e quiçá, em breve, ao mundo todo. Que nos falta para ousar? Aí está a ruína do Chalé dos Ramos que diz a quem passa, salve-me!... E a sede da AMAM a poucos passos poderia se engajar num projeto integrado capaz de restaurar o chalé e ocupá-lo como Conservatório de Artes do Marajó dando espaço, também, em sua sede à implantação um centro para a Paz, Educação e Cultura em parceria público-privada nacional e internacional.

Por que não? Estou delirando? Candidatando-me a mecenas? Prometendo fazer milagre? Dizendo que é fácil? Absolutamente, não. Eu apenas estou dando uma ideia factível e mostrando a experiência local e alhures para quem quiser e puder, o caminho das pedras. Vamos?







Nenhum comentário:

Postar um comentário