quarta-feira, 20 de julho de 2016

O maior erro de Marx


A fim de atender à demanda do comércio intranacional e internacional o rio Amazonas se transformou numa das hidrovias mais movimentadas do mundo. Este fluxo de produção e comércio tende a aumentar significativamente, com forte impacto social negativo nas ilhas do arquipélago do Marajó -- onde se verifica o IDH mais baixo do Brasil na atualidade -- fomentando trabalho infantil, prostituição de menores e pirataria.



em memória de Reginaldo Emílio Varella Moraes


Quando eu vim de Ponta de Pedras, definitivamente, para morar em Belém cheguei igual a todo e qualquer sumano fumado e mal preparado que deixa a terrinha marajoara em busca de emprego. Fui morar com meus pais e uma irmã numa estância de barracas de madeira que existia na travessa Ângelo Custódio, numa baixada de invasão entre o canal Tamandaré e rua de Óbidos, na Cidade Velha. Hoje tudo aquilo não existe mais, para o bem de Belém.


Encontrei-me com meus primos Varella citadinos, a maior parte deles nascidos e criados na Capital. Eu era, então, o matuto da família e cuidava para aprender as manhas da cidade e fazer amigos, o mais chegado dos primos era como um irmão para mim e ambos tínhamos o mesmo nome (eu, José Maria Varella Pereira, apelidado Zeca; e ele, José Maria Varella Vieira, o Zequita). Mais velho que eu três anos de idade, Zequita era extrovertido e boêmio, me levava pra gandaia e campos de futebol, Paysandu fanático... 

Rubilar era o mais velho de todos, muito sério e circunspecto era raro vê-lo rir ou contar piada. Raul tinha um pouco mais da idade de Zequita, este me levava a jogar futebol de quintal e pelada em campinhos de subúrbio. Já o Reginaldo era apenas um mês mais velho do que eu: foi o companheiro de aventuras do pensamento... Lia filósofos clássicos, especulativo, sério e reservado; o Reginaldo me revelou os arcanos secretos da doutrina Esotérica e os segredos Rosa Cruz... Muita areia para um carrinho de mão de um caboco que labuta numa banquinha de venda na feira do Ver O Peso.

Deixa estar que o Zequita não me deixou morrer pagão das graças da burguesia. Logo o primo me "encaixou" numa vaga na Camisaria ABC de propriedade dos portugueses Lobo e Machado (a camisaria foi comprada por Rômulo Maiorana, na expansão das lojas RM, mas eu não estava mais lá). O mesmo primo Zequita me indicou para cobrador da Sul América Capitalização e aí foi que eu conheci quase todas ruas da cidade, que nem motorista de táxi.

Deixa estar que além de cobrador eu também vendia títulos da Sul América (poupança), algo como o tal Baú da Felicidade, que o comprador concorre a sorteios. Para me ajudar a ganhar a comissão de venda, o Zequita comprou-me de mim um título da Sul América. Bingo! Ele capitalizou integralmente por sorteio, com apenas três meses depois da primeira prestação. O primo propôs dividir comigo o valor do prêmio, de um modo criativo. O dinheiro é nosso, disse ele; mas vamos gastar até acabar... Era a maneira de sermos "ricos", durante uma semana, mais ou menos. 

E assim foi, abonados, mandamos às favas o emprego. Ele a loja RM e eu a Sul América Capitalização e não sei quantos calos nos pés de tanto andar e gastar sola de sapato. Onde estourar a "fortuna"? No Marajó velho, mais que nunca um paraíso pra quem tem grana no bolso e nas mãos...
Zequita comprou um "pneu" (bola de futebol oficial) e camisas alvi-azul do Paysandu), era ele literalmente o dono da bola, com direito a escalar o time. Um vidão, pena que acabou.

De volta a Belém sem lenço nem documento. Sorte que o primo Reginaldo me esperava, há dias, guardando uma vaga de boy num escritório de advogados onde ele trabalhava e estava de saída para emprego novo na fábrica de cigarros Souza Cruz. Foi aí no escritório de advocacia que, a bem dizer, comecei a "bater" máquina datilográfica e a ver por dentro o que é a tal de política. 

Problema: Reginaldo alternava sessões esotéricas no tatwa Joana D'Arc e sábados à tarde em aulas de oratória no Movimento Estudantil Patriótico (MEP). Eu fiquei empolgado, tanto com as leituras do Almanaque do Pensamento, quanto com as reuniões cívicas do MEP onde conheci uma mocidade tão empolgada quanto ingênua, igual a mim, ansiosa para descobrir 'quem inventou o mundo'...

O MEP fazia parte do Movimento Águia Branca e havia o que a gente mais queria, um time de pelada (futebol de várzea)... Aquilo era uma porta de entrada ao Partido de Representação Popular (PRP), integralista envergonhado do enterro do Estado Novo. Fascismo anti-comunista na veia... A gente ali pastando e dando vivas ao grande chefe Plínio Salgado, eu me emocionava pra burro com tanto patriotismo. Mas, o ponderado Reginaldo que me levou já andava com a pulga atrás da orelha, tinha ali algo muito esquisito. 

Eu já era membro do diretório municipal e abri uma dissidência contra a candidatura de Moura Carvalho (PSD / PMDB atual) à Prefeitura de Belém. Foi aí que o Donato Souza me levou para fazer um teste de repórter no jornal novo chamado Jornal do Dia. Veio a eleição para presidência da república e governo do estado, o PRP e o PCB apoiaram o general Lott e Aurélio do Carmo... Integralistas e comunistas no mesmo palanque elogiavam os candidatos e se digladiavam pelas esquinas. Confuso com as modas da cidade grande, minha caboquice não me deixava ver o óbvio ululante.

Foi aí que eu desafiei a juventude comunista a nos visitar em nossa sede e debater conosco fosse lá o que fosse. O que a rapaziada queria era se expressar. Convite aceito, mocidade empolgada numa tarde memorável em que a "direita" e a "esquerda" conversou na boa. E termina a história por aqui com a minha honrosa expulsão do partido integralista como "perigoso agitador do comunismo internacional". Detalhe, até então mais longe de Belém eu havia ido de barco a Abaetetuba e de trem Maria Fumaça a Bragança. E foi assim que o primo Reginaldo continuou fiel à AMORC (ordem Rosa Cruz) e eu passei às fileiras do Partido Comunista Brasileiro (PCB).


O ERRO DE MARX

Na verdade, sou comunista desde criancinha... Comunismo marajoara (a casa, o sítio, a canoa, etc. tudinho nosso... Mas, a mulher é minha, seu FDP). Aquela passagem entre "galinhas verdes" tirando onda de águia branca foi o preço pago do analfabetismo político que persegue a Criaturada até o dia em que, graças a Deus (tem bobalhão que acredita que todo comunista é ateu e ignora que há muito ateísmo entre o alto capitalismo), nos caem as escamas dos olhos da cara e a gente fica ladina.

Quando retornei, de vez, a Belém em 1990 me reencontrei com o primo Reginaldo, matamos a saudade e falamos outra vez do "Elogio da Loucura" de Erasmo de Roterdã. Seis anos depois estava eu metido numa boa loucura, desta vez oferecendo-me a ocupar uma vaga de vereador em Ponta de Pedras, de graça (dizia eu aos eleitores se for eleito vou optar por continuar recebendo pelo MRE, como a lei faculta aos servidores públicos de carreira; durante os dois anos que faltavam para me aposentar. Uma vez aposentado abriria mão dos vencimentos da Câmara em favor de entidade que fosse indicada pelos que se declarassem meus partidários). Foi uma boa campanha, não recebi dinheiro de ninguém nem paguei nada em troca de votos. Faltou pouco para chegar lá... Mas tive que passar mais dois anos na Comissão de Limites para me aposentar, no dia 14 de Julho de 1998. Dia da Queda da Bastilha...

Foi nessa quadra que, por acaso, tive um encontro interessantíssimo com um italiano que dizia se chamar Giovanni Purgato. Era ele hóspede da Diocese, um tipo de voluntário católico que percorria o mundo estudando e ajudando a remediar a pobreza. Engraçado que Purgato não falava português e eu não entendia italiano, então o diálogo se fez através de um arremedo de espanhol com cacos de francês e inglês. Enfim, uma pândega global.

Ele ia talvez a mais de 70 anos de idade, muita vivência de mundo pela África, Ásia e América Latina e eu mais ouvia do que falava. De repente ele disse alto e bom som: "El mais grande error de Marx fue saber tudo de economia sin saber nada de comércio". Sem dúvida Giovanni Purgato me convidava a polemicar. Desviei a conversa para assuntos mais palatáveis visto a babel que se instalara e meu apreço por evitar todo conflito inútil.

Mas aquela frase não sai de minha cabeça. O erro apontado por Purgato decorre de um equívoco vulgar em querer que um estudioso fundamental da segunda metade do século XIX assuma papel de profeta para todos os tempos. Concordo que o erro atribuído ao autor de "O Capital" seja de fato um erro recorrente de muitos marxistas que sabem tudo sobre Marx, Engel e Lênin e quase nada sobre a evolução da teoria e a prática do marxismo-leninismo.

É claro que a História é uma ciência evolutiva. Que a revolução burguesa de 1789 ainda causa furor (haja vista o último 14 de Julho em Nice), que a revolução industrial está queimando seu terceiro estágio e que a revolução obreira de 1917, vem apenas de começar... Pela teoria marxista clássica a grande Rússia agrária não poderia ultrapassar a industrializada Inglaterra, nem a Alemanha ou a França no desenvolvimento político da classe operária. A velha China, então, teria que esperar no fim da fila...

Se na Amazônia o homem era um intruso, segundo Euclides da Cunha, estava já nos começos do século fXX, à margem da História. Hoje os ribeirinhos da Amazônia marajoara, a ver navios, começam a se perguntar que fado os escravizam a um colonialismo sem remissão. Eu não estou falando de comunismo nem de socialismo para esta gente espoliada da civilização marajoara original, certamente de economia comunal, antes da primeira pata de gado nos campos de Cachoeira do Arari. Mas sim da utopia possível de uma economia criativa e solidária, de uma democracia participativa integrada à República Federativa do Brasil, aberta à cooperação multilateral.

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