sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

ARQUITETANDO HISTÓRIAS COM NOSSOS ANCESTRAIS MARAJOARAS.




Jenipapo, vila de pescadores do lago Arari (Santa Cruz do Arari, ilha do Marajó - Pará).


homenagem a Neuton Miranda Sobrinho  (Marabá, 1949 - Belterra, 2010) 
aos cinco anos de sua morte no dia 20 de fevereiro de 2010.                                                    



Meu avô camponês galego Chico Varela morreu, subitamente, em seu sítio Serrame, Rio Canal em Ponta de Pedras, no ano de 1945. Eu tinha oito anos de idade e morava com meus pais na sede do município, corpo chegou inesperadamente pelo rio em canoa a remo, cerca das nove ou dez horas da manhã, após seis horas de viagem para ser enterrado no cemitério municipal. 

Não sei precisar o dia, mas presumo que era mês de novembro pois minha mãe estava grávida de minha irmã mais nova, nascida de parto normal no dia 25 de julho de 1946. Por acaso, dia de Santiago, padroeiro da Galiza e santo de devoção de meu avô Francisco.

A história oral da família diz que ele nasceu no município de Soutomaior, província de Pontevedra, na Galícia; e que chegou ao Pará praticamente como desertor fugindo de recrutamento ao exército de Espanha, mais ou menos aos dezoito anos de idade: logo, sabendo eu de certeza certa o ano da sua morte e, aproximadamente, que ele teria morrido com mais de 80 anos de idade, chego à hipótese de que o avô Francisco (aliás, Celestino) Pérez Varela nasceu em 1865, tendo desembarcado em Belém cerca de 1883.

Durante pouco tempo em Belém, quando meu avô materno chegou foi empregado de hotel e condutor de carro puxado a burros do serviço de transporte de passageiros na cidade. Para isto talvez a União Espanhola ou Centro Galaico assistisse imigrantes recém-chegados os recebendo e encaminhando para emprego. Tempo suficiente para descobrir paradeiro de seu primo mais velho Pedro Pérez de Castro, há anos emigrado ao Pará, ao qual Celestino veio recomendado em carta de sua mãe e minha bisavó asturiana Micaela contando as causas da emigração do filho (que trocaria de nome para Francisco por medida de precaução e também por que já havia no Pará um outro espanhol chamado Celestino Peres Varela, segundo dizia). Esta decisão de Micaela Rincón Varela ocorreu depois dela ter perdido marido e filhos a serviço de guerras do império espanhol, com exemplo na época da independência do Chile e descolonização de Santo Domingo (República Dominicana).

Chegou ao Marajó o jovem camponês Celestino já se chamando Francisco com, aproximadamente, vinte anos de idade a fim de morar com seu primo Pedro no sítio Fé em Deus, sito no Baixo Arari, na margem de Ponta de Pedras. A prima Maria Joana, dita Maroca; branca e bela donzela na flor da idade de seus dezesseis anos apaixonou-se pelos olhos azuis e outros atributos do primo recém chegado, inclusive o invencível sotaque galego que não abandonou até o fim da vida. 

Não duvido que as tias pretas e primas mulatas de Fé em Deus tenham incentivado a sinhazinha a cair nos braços do parente campônio como se ele fosse um príncipe de sangue azul montado em cavalo branco, seja lá o que isto signifique abaixo do equador para um colono fugindo de guerra... Reza a lenda que meu bisavô era "bom senhor" para seus não muitos escravos e escravas donde entre outras coisas cultivavam tabaco, criavam algumas cabeças de gado, pescavam e caçavam para sustentar os brancos e a si mesmos. Claro que os "maus" donos de escravos eram os outros... Logo que eu tive noção da realidade das coisas me dei conta que na história de verdade não pode haver diferença entre bons e maus senhores num injusto sistema igualmente perverso para todos.

A futura minha avó àquelas horas era uma moça que não gostava de ficar em casa aprendendo a cozinhar e bordar. Mas, ao contrário, burlando a vigilância dos mais velhos inventava artes para escapar para a lida junto com os pretos. Por isto a lenda diz que a avó Maroca era "muito querida" pelas pretas e pretos, reciprocamente amados na forma sentimental de lhes tratar como tias, tios, primos, afilhados, comadres e compadres... Tenho para mim, nas conhecidas circunstâncias de tais ilhas coloniais, muitas vezes o parentesco afetivo havia qualquer explicação biológica com que se alimentava a mina de tapuios, mulatos, cafuzos, curibocas sem eira nem beira em nossa pérfida sociedade caboca saída do mato a dentes de cachorro e catecismo.

Sem desdouro dos meus velhos, tenho grande admiração por minhas avós apesar de não ter tido chance de as conhecer, noves fora a avó postiça Sophia, na verdade tia, que era naturalmente sábia e foi mestra para mim além de criar e educar meu pai caboco, filho da índia minha avó Antônia Silva. O avô Varela era um velho galego turrão, porém cheio de afeto aos netos e netas. Quando ele chegou ao Marajó a escravidão estava nos últimos dias. Mesmo assim não há registro na memória sobre a maneira como o sítio Fé em Deus recebeu a notícia do 13 de Maio de 1888, ou da proclamação da República no ano seguinte... Quando foi abolida a Escravidão consta que os pretos do Fé em Deus não arredaram pé de perto dos ex-senhores. Mas não posso garantir que seja verdade. O certo é que alguns, como Odorica, Fábia e Amaro; por grande amizade à branca Maroca quiseram acompanha o jovem casal para o Serrame até então tapera de um retiro abandonado, onde existia apenas um único chiqueiro de ovelhas e nada mais.

Às vezes tenho impressão de que mesmo hoje, exceto a elitezinha das sedes municipais; a vasta maioria da Criaturada ainda não sabe que a Escravatura e o Império se acabaram no século XIX. Lembro-me do caixão forrado de tecido roxo como a Igreja na semana santa, meu avô dentro do ataúde tal qual imagem do Senhor Morto sob o altar-mor da Matriz, minha mãe aos prantos, a casa toda em polvorosa, os remadores pretos tristes com seus chapéus de palha abanando-se para espantar o calor, a vizinhança toda a ver o acontecido... 

O avô Chico nunca vinha a cidade nem nas festividades do círio ou do boi-bumbá, quando ele chegou estava morto e pronto para ir a sua última morada... E eu atônito sem um pingo de lágrima. Não era verdade tudo aquilo naquele novembro de 1945, os campos secos pegando fogo para amortalhar o chão. E o menino seco como o verão ardente... Me deixaram ficar em casa quando o corpo saiu para o cemitério, mamãe incapacitada para ver o enterro do pai dela, grávida de dois ou três meses... E eu nada de choro. Seco, seco como um rastro deixado no caminho que o sol bebeu a última gota d'água no fim do verão, vi o caixão se afastar levado pelos homens que o trouxeram do sítio. Mamãe dissera antes, quando eu ainda era bem menor, "beija o pé do santo"... Era semana santa e o santo no caso era a imagem do Senhor Morto em tamanho natural sob o altar-mor da igrejinha de Nossa Senhora da Conceição... Ela repetiu, "beija teu avô e te despede". Já iam fechar o caixão. A testa do velho estava fria como a chuva de madrugada naquela viagem pelo rio para ir ao sítio colher laranjas, correr pelo campo, brincar com os sapos presos sob os destroços do gramofone, tempos das vacas gordas... Mas eu não conseguia verter uma lágrima sequer na despedida.

Para não molestar minha estremecida mãe e a inocência de minha irmã pequena, face àquela secura enorme que vinha de mim com todos os estios, queimadas dos campos-gerais e coivaras da ilha; fiz um teatrinho ridículo a proclamar alto e bom som com fingidas lágrimas a grande dor da separação e saudade que deveras eu já sentia daquele avozinho do Serrame. E quando eu soube, muitos anos depois, que o tio Dal havia falecido no Rio de Janeiro, em 16 de junho 1979, após cruel enfermidade, estava eu em Manaus a serviço da Comissão de Limites vindo da fronteira com a Venezuela. Com profunda tristeza na alma também não chorei. Tampouco chorei grande coisa quando meus velhos pais, fatigados da vida, descansaram.

Estou rememorando estas coisas para dizer, afinal de contas, que rompi minhas duras represas emocionais quando Neuton morreu: chorei, chorei, chorei até sentir dó de mim. Como diz a canção... Neuton Miranda Sobrinho não era meu parente, nem mesmo um velho amigo de muitas datas; sequer tive oportunidade de conviver com ele mais que o tempo suficiente de saber que nós dois éramos do mesmo barro. Camaradas de verdade, sobretudo dois raros dalcidianos sinceros tendo em comum a fiel constância da libertação da Criaturada grande. 

Um comunismo caboco, orgânico, que não vem escrito em manuais nem desce de altas teorias para o terreno baixo de experiências inseguras. Neuton era, para mim, concretude do sonho coletivo do "índio sutil" Dalcídio Jurandir chamado assim por Jorge Amado, num discurso feliz e rico de sabedoria, ocorrido durante a entrega do Prêmio Machado de Assis (1972). Pela última vez fomos juntos ao Marajó, por ironia da história, em Cachoeira do Arari: Neuton estava inspirado e disse ele em discurso de entrega de TAU's (título de autorização de uso de terreno da União) a famílias do projeto NOSSA VÁRZEA de regularização fundiária; ser o Marajó o derradeiro reduto da tradicional cultura paraense. Dissesse ele "marajoara" poderíamos dizer que é pleonasmo...

Para encerrar a missão, lá estávamos nós no MUSEU DO MARAJÓ donde saímos com exemplar da obra "Cultura Marajoara" de Denise Schaan em mãos. Tomamos o táxi aéreo de volta a Belém e o camarada pegou o automóvel no estacionamento, deu-me carona até a porta de casa e demos adeus para nunca mais. Só o vi de novo em câmara ardente, no salão de honra do Palácio Cabanagem, sede da Assembleia Legislativa do Estado do Pará; donde ele seguiu em cortejo fúnebre para o país do além. Agora, Neuton é uma estrela do céu da Amazônia brasileira, ele é comparável à estrela Dalva que desperta os ribeirinhos, todas manhãs, para novas jornadas.


ANCESTRALIDADE PRA QUE TE QUERO?

Numa conversa boa de academia do peixe frito, Neuton contou-me que o pai dele era um caboco vivido, que nasceu na Vigia entre pescadores de gurijuba. Anos de chumbo, o filho estudante estava na clandestinidade e o preocupado pai, por experiência, deu-lhe conselho: "agora você precisa fazer que nem tralhoto"... Poucos acadêmicos festejados sabem que diabo vem a ser o tal de tralhoto. É um peixinho vulgar que vive à beira d'água e com seus quatro olhos previne-se dos perigos vindos pelo ar e do fundo, sem esquecer os que podem vir de fora ou por terra. Maravilha da natureza.

O tralhoto é pequeno e tímido, mas acaba sendo um colosso em sobrevivência. Ninguém menos que o payaçu dos índios, Padre Antônio Vieira, chamado o "imperador da língua portuguesa" pelo poeta Fernando Pessoa; fez o elogio do tralhoto no "Sermão aos Peixes" proferido em São Luis do Maranhão, em 1654. Vieira estava em luta aberta contra a escravidão dos índios do Maranhão e Grão-Pará e estava indo, meio clandestino, a Lisboa para reclamar a el-rei da "cegueira" dos portugueses numa terra onde "um peixinho do mar" tem quatro olhos... 

Voltou da viagem a Lisboa com a lei de 1655 de abolição dos cativeiros dos índios, a qual foi base da iniciativa de paz aos Nheengaíbas (Marajoaras), rebeldes aos portugueses do Pará e amigos dos holandeses; em 1656 em missão do padre João de Souto Maior, sem sucesso; e finalmente aceita em Mapuá, nas pazes de 27 de Agosto de 1659. Numa longa carta à regente de Portugal, dona Luísa de Gusmão, viúva de Dom João IV; Vieira informa que o Pará estava seguro em em paz com a amizade dos Marajós conquistada naquelas pazes, depois de 44 anos de guerra desde a tomada do Maranhão para conquista do rio Babel (Amazonas).


O sucessor, Dom Alfonso VI, reconhecidamente mentecapto e mais cego que os súditos; em vez de honrar a palavra de seu pai dá o dito por não dito para expropriar sem recompensa a antiga Ilha dos Nheengaíbas; dali em diante chamada capitania hereditária da Ilha Grande de Joannes (1665) na origem de uma longa cadeia de expropriações, abusos e injustiças. Que só recentemente com a tímida regularização fundiária ainda por consolidar está por se remediar, depois de mais de 350 anos.

Aqui está que o Sermão aos Peixes e a metáfora do tralhoto pelo pai do Neuton nos abre os olhos, a coisas óbvias que os ilustrados doutores não enxergam. Como, por exemplo, a engenharia dos tesos em campos alagados do Marajó, que a arqueologia demonstra e a arquitetura amazônica não consegue ver. E, no entanto, a cidade de Santa Cruz do Arari outrora semelhante à vila do Jenipapo, por acaso, tornou-se um teso moderno. Com a simples diferença que os índios nossos parentes fizeram suas aldeias suspensas com o barro cavado em transportado com suas próprias mãos e braços; enquanto do aterro de Santa Cruz foi feito com método e máquinas. Dois coelhos com uma cajadada: rejuvenesce o lago moribundo pelo assoreamento e a colmatagem natural, e constrói tesos modernos com inspiração da arqueologia de 1800 anos.

Podemos imaginar a perenização do lago e revitalização do rio Arari, com o potencial de cooperação da Organização dos Estados Americanos (OEA), mediante precedente dos anos 70. Quem sabe, mesmo em Belém, um "teso" de imitação marajoara de multiuso para turismo, cultura e desenvolvimento socioambiental em rede integrada ao Museu do Marajó em extensão aos mais municípios. Onde não pode faltar a restauração do museu do Marajó de Santa Cruz do Arari, sobre um teso especial.

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"Motivos Ornamentais da Cerâmica Marajoara"
Giovanni Gallo, edições do MUSEU DO MARAJÓ
Mas quem vê? Ou, melhor, quem quer saber? Até hoje não achei fonte bibliográfica sobre o lago Arari, na ilha do Marajó, com data anterior a 1756. A mais antiga informação que li de alguém que lá esteve é o relato anônimo constante da obra o "Novo Éden. A fauna da Amazônia brasileira nos relatos de viajantes e cronistas desde a descoberta do rio Amazonas por Pinzón (1500) até o Tratado de Santo Ildefonso (1777)", de Nelson Papavero, Dante Martins Teixeira, William Leslie Overal e José Roberto Pujol-Luz, ao qual se refere trecho da crônica a seguir:   

"Segundo autor anônimo da “Notícia da Ilha Grande de Joannes dos rios e igarapés que tem na sua circumferencia, de alguns lagos que se tem descoberto e de algumas couzas curiozas”, datando dos anos 50 do século XVIII (cf. Nelson Papavero et. al. in “O Novo Éden” - Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 2002, 2ª ed.) descobriu-se o teso do Pacoval do Arari “em 20 de Novembro de 1756, o qual tem o comprimento de 200 braças e 30 de largo;...”. O descobridor admirou-se muito da qualidade da banana (pacova) e da maniva (mandioca) encontrada naquela “ilha”... Todavia, muitas delas (tesos) eram habitadas por “muito Gentio da Nação Aroan, Maruanum e Sacôra [provavelmente, antepassados das atuais populações dos municípios de Chaves, Soure e Salvaterra]. Em muitas das ditas ilhas se tem achado e se acha ainda muitas Pandas, Ingassabas (que é o mesmo que Cantaros ou Potes), tudo muito bem feito, a maior parte dellas que se tem achado é debaixo da terra. Também se tem achado dentro de algumas Pandas grandes ossos de gente e caveiras, d'onde se collige ser costume daquelles índios serem sepultados daquela fórma”. (ob. cit. p. 333).

A ocupação do Marajó por fazendas de gado teve início em 1680 e até o descobrimento do Pacoval passou, aproximadamente, um século de destruição dos sítios arqueológicos. Em 1783, o naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira depois de passar breve temporada, entre novembro e dezembro, guiado pelo inspetor da Ilha e fundador da vila de Cachoeira do rio Arari (1747), Florentino da Silveira Frade; repetiu praticamente as observações do autor anônimo na primeira “notícia” transcritas na “Notícia Histórica da Ilha Grande de Joanes, ou Marajó” (separata da “Viagem Philosophica”, Lisboa, 1783). O que nos leva a pensar que Florentino Frade é, de fato, o autor anônimo. E o Barão do Marajó, ao tratar das escavações que autorizou, em fins do século XIX, para atender ao Museu Nacional e à exposição etnográfica de Chicago (EUA), na qual foi ele membro da comissão do Brasil, segundo o clássico “As regiões amazônicas”, lastima os saques generalizados dos tesos incontroláveis já àquela altura." ( ver José Varellahttp://www.vermelho.org.br/prosapoesia/coluna_print.php?id_coluna_texto=2797&id_coluna=57  )

No entanto, cresci na cidadezinha de Ponta de Pedras à margem do rio Marajó-açu ouvindo causos sobre o Arari e me alimentado de carne bovina, peixe, jacaré, capivara, marreca, etc. trazidos daquelas bandas dos centros distantes da ilha. O então Alto Arari e agora município de Santa Cruz do Arari (1960) era distrito de Ponta de Pedras, como este último foi desmembrado de Cachoeira do Arari, em 1878. Para os mais de 400 mil moradores dos dezesseis municípios da mesorregião do Marajó, além do crasso analfabetismo que aparta metade da população, mais as vítimas de analfabetismo funcional alimentando a ignorância popular, os pobres arremedos de biblioteca municipal são deserto de notícias sobre o passado dos 1800 anos da famosa Cultura Marajoara que anda pelo mundo em algo como dez museus de grande porte.

Minha mãe descendia de uma família de imigrantes da Galícia chegados no Marajó entre outros vindos de Espanha e Portugal, na segunda metade do século XIX, importados pelo governo do Pará a fim de relançar a pecuária abalada entre outros fatores pela guerra-civil amazônica chamada Cabanagem (1835-1840) e o recrutamento de "Voluntários da Pátria" para lutar na Guerra do Paraguai (1864-1870). Provavelmente, minha família materna havia laços de parentesco com velhos casais emigrados através do rio Minho (fronteira de Espanha e Portugal) para povoar as ilhas dos Açores donde alguns vieram, cerca de 1750, no diretório do Marquês de Pombal e reinado de Dom José I (1750-1777) ao Pará. Foi assim que o patriarca foi contemplado com terras, gados e escravos na ilha do Marajó e termina no século seguinte tendo diversos herdeiros em glebas de terra dividida entre o rio Marajó-Açu e o Baixo Arari.

Desta maneira, meus avós entraram na herança do patriarca Domingos Pereira de Moraes com um terço de légua (mais ou menos, 1100 metros) de frente por meia légua de fundos (3300 metros) numa tapera na beira do rio Carapanaóca, depois Rio do Canal), onde levantaram casa de comércio e tiveram cinco filhas e um filho. Quando minha mãe nasceu, em 1914, sendo ela a quarta filha do casal, teve por madrinha dona Adalgisa da Silveira Lobato esposa do rico fazendeiro Antero Augusto Lobado, dona da fazenda Diamantina, no lago Arari; e sítio-sede Porto Santo, no Baixo Rio Arari. O casal Lobato até então não havia filhos, passando a assediar os compadres para adotar a afilhada, que com grande relutância do galego foi consentido somente para "criar e educar" pois era sua lei nunca dar filho seu nem ao rei... Detalhe importante: este meu avô era o camponês supracitado Francisco Pérez Varela.

Então, minha mãe criou-se até os 16 anos de idade com seus padrinhos, vivendo oras na fazenda Diamantina e oras no Porto Santo até que uma violenta briga política entre o oligarca Antonio Lemos e o republicado Lauro Sodré contaminou todo Pará e afetou as relações entre os compadres: de um lado meus dois avós, materno e paterno, conservadores e outro fazendeiros vira-casaca lauristas de última hora... Com a desavença voltou minha mãe para a casa de seus pais verdadeiros e os padrinhos já tinham um herdeiro, que por fim, lhes foi causa de muito desgosto terminando todos personagens desta singela história na pobreza. Para o que muito contribuiu o colapso da Borracha como pano de fundo.

O Porto Santo, não longe do sítio Fé em Deus dos começos desta história; foi vendido em condições dramáticas pelos antigos proprietários num caso digno de estudo e romance e terminou sendo adquirido pela Prelazia de Ponta de Pedras (hoje diocese) onde foram alojados em sistema cooperativo diversos sem-terra, inclusive quilombolas expulsos pelo fazendeiro Liberato Castro que, segundo a imprensa regional; se diz proprietário das terra do Gurupá contestado pela associação de moradores como terra de quilombo situada na margem esquerda do rio Arari fronteiriça ao Porto Santo.

Pelo lado de minha família paterna, há vínculos claros de parentesco antigo com o lado materno. Último filho do primeiro casamento de meu avô Alfredo, meu pai tendo ficado órfão de sua mãe índia foi adotado por sua irmã mais velha, Sophia; que nasceu, viveu e morreu na vila de Ponta de Pedras. Em 1909 meu avô mudou residência com sua segunda esposa para a vila de Cachoeira do Arari e os filhos de ambos casamentos passavam temporadas nas duas vilas vizinhas, porém não tão próximas até hoje com a melhoria dos transportes e comunicações.

Desta maneira, o Arari entrou na minha vida antes mesmo de eu nascer, em 1937, na maternidade da Santa Casa de Misericórdia do Pará, na capital, por necessidade médica da parturiente em primeiro parto. As histórias de minha infância foram povoadas de pássaros, peixes, bois, cavalos, cobras e jacarés entre causos alegres e tristes que hoje só se pode imaginar visitando a literatura de Dalcídio Jurandir ou fazendo visita ao Museu do Marajó.


lago Arari, município de Santa Cruz do Arari, ilha do Marajó - Pará


            praça da Matriz, cidade de Santa Cruz do Arari.



A atual cidade de Santa Cruz do Arari é um "teso" (aterro) feito com material de dragagem do lago. Exemplo de oportunidade de estudo onde, obviamente, a cooperação internacional (em especial com a Holanda) pode contribuir de maneira surpreendente. Não consigo esquecer que o Governo estadual negligencia a candidatura da Reserva da Biosfera Marajó-Amazônia dando condições para vinda da UNESCO e que o Governo federal desde 2007 perde um tempo precioso para dialogar a sério com a gente marajoara e realizar coisas concretas que mudem o quadro de analfabetismo e pobreza que tanto nos envergonham.


Acima de vaidades pessoais e profissionais, longe do mesquinho jogo político que a todos infama; precisamos criar as condições necessárias para obter a cooperação de grandes instituições nacionais e estrangeiras que detém a posse de coleções e peças de cerâmica marajoara com a finalidade de estabelecer intercâmbio técnico, educativo e turístico inclusive para futuras repatriações. Mas, sobretudo, relançamentos de estudos em arqueologia e antropologia aplicadas à ciência e tecnologia do barro.


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