segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Velas e igarités da Ilha do Marajó no mar de Joanes.


bela imagem do vento captada pela vela da igarité na lente sensível do fotógrafo Ronaldo Rosa, magia da travessia do tempo nas recordações da baía do Marajó.


A presente era tecnotrônica das comunicações juntando máquina, homem e biosfera tem arte e poesia também que nem nas eras precedentes desde que bicho virou gente. Além de poder não só conectar a rede neuronal de diferentes gerações humanas à parafernália feita de chips, computadores, satélites artificiais e, sobretudo, fazer arqueologia sentimental comunicando mentes e corações entre passado e presente no invento da história do futuro. 

A inteligência coletiva na internet já tem seus gerentes tecnocratas e reprodutores doutores PhD. O centro moderno da relatividade do espaço curvo, não faz tanto tempo; migrou às periferias da antiga Terra plana e estas ultimas se desenrolaram dentre as últimas partes do mundo planetário e migraram para os centros do mundo doravante multipolar, desperto e disperso no resto do mundo: deste modo pós-apocalíptico el-rei dom Sebastião descoberto no Mar Portuguez numa manhã nebulosa; o cacique Piié Mapuá a mariscar nas eiras e beiras do Tejo; Padre Antonio Vieira pregando a História do Futuro aos peixes na borda dos canais de Amsterdã em companhia de Espinoza a fim de revogar a excomunhão do filósofo heterodoxo e levar de volta judeus expulsos de Portugal; poeta Fernando Pessoa a bordo da jangada de Saramago; seres encantados do Rei Sabá de Pirabas em reunião ecumênica com os Turcos encantados; o filósofo do quinto império Agostinho da Silva em conferência no conselho de segurança das Nações Unidas... Vários e diversos pontos de luz no Caminho do leite grego ou Via Láctea, para povos ibéricos o chamado Caminho de Santiago e para os Tembés do Pará caminho da Anta e sabe-se lá mais o quê; uma galáxia brilhante fazendo parte da memória transatlântica, onde paresque a consciência da humanidade vem à tona desde imensidões existenciais profundas. 

Para uns neomilenaristas esta nova ferramenta eletrônica das sete maravilhas do mundo moderno seria sinal do fim da História propriamente dita (lembrando que átomos, elétrons e mais partículas atômicas existem desde sempre, somos o que podemos ser graças ao barro original de que somos feitos). Isto é, no que tange à última finalidade da dita cuja História... Muito além da risível fantasia monetarista de Fukuyama contra a economia real e orgânica da organização internacional do trabalho. 

A net, um tremendo potencial a operar a esperada revolução do santo espírito. Quando, paresque, a cabo de uma longa volta da espiral evolutiva de vidas e mortes sucessivas todas criaturas deste vasto mundo drummoniano estarão interligadas, face a face, ricas de conhecimento da vida eterna enquanto a divina comédia dura e muda de figura minuto a minuto no rio de Heráclito. 

Ainda que, como sempre, o mal enrabichado ao Homem como sua própria sombra com a qual ele haverá de lutar a vida inteira até a morte, continue a fazer das suas para atrapalhar e desviar o caminho da humanidade filha da animalidade rumo às estrelas ou ao paraíso encantado yby marãey ("terra sem mal"), assim chamado por nossos avoengos tupi-guaranis do Peabiru ancestral. Carece cultivar nossas aldeias, chácaras e quintais: biodiversidade e descolonialidade oblige.

O diabo desta gente é que no Marajó velho de guerra não se sabe que o diabo são os outros. Nem se ouviu falar de Sartre na costa-fronteira do Pará, onde o capeta chamado Berto vai mijar no açaizal de varja no dia 24 de agosto a cada ano desde 1659 para o fruto do açaí pretejar no cacho e dar vinho grosso ao povão; quando outrora o Tinhoso no rio dos Mapuás esteve a pique de infernizar e estragar a missão de paz dos padres da Companhia de Jesus aos bárbaros Nheengaíbas reacendendo a velha rixa entre estes uns e os Tupinambás canibais do Grão-Pará: desde a primeira noite do mundo a brava gente marajoara nunca ouviu falar da noite de São Bartolomeu em Paris, quando o Demo no meio do redemoinho foi responsabilizado da matança entre os bons cristão e, por isto, degredado pelo Papa sem apelação aos baixios da zona tórrida. 

Se, por acaso, alguém ouviu certo dia estas coisas já o povo esqueceu o grande segredo dos pajés devotos do Jurupari noutro lado do "mar de Joanes", na Ilha do Sol ou Ilha dos Tupinambás que ficou sendo Colares; confronte à velha aldeia dos Joanes (Ionas, melhor dizendo) como a velha mátria dos Sacacas virou Salvaterra por força do famigerado Diretório dos Índios (1757-1798). 

Como foi, então, que fiquei sabendo eu destas coisas estúrdias se não adivinhei nem as inventei? Admito minha ignorância e deficiência em disciplinas tradicionais da história oral, usos e costumes do "tempo da vela de jupati" no dizer consuetudinário da avó de minha avó mangabeuara que Deus a tenha na santa paz da Terra sem males, dito e repetido muitas vezes pelo arco do tempo na boca dos seus descendentes cabocos até hoje aqui e agora. Provavelmente, foi por causa dessa falha minha de comunicação intergerações que nenhum caruana me veio diretamente contar os mistérios que habitam as águas, matas e campos deste vasto mundão. Drama ribeirinho da expulsão do paraíso na terra dos Tapuias pela extinção de línguas e culturas indígenas do rio Babel...

Masporém aquela coisa medonha que me dá e será a que chamam Jurupari, cuíra, desassossego, intuição, insight, etecetera e tal pode ser já o tal caruana danado, vódum, orixá, todos os santos? Aquilo outro maluco misturando lucidez que fala e ri pela boca do pajé em transe ou embala sonhos de pescador panema e pesadelos de caboco assombrado de bicho do fundo, dá inspiração a poetas presepeiros e cantadores de chula, siriá, carimbó e lundum: inteligência instintiva e natural ancestral que assiste a todos seres vivos sejam eles planta, animal ou principalmente o bicho-homem. E diz, sai do mato sem cachorro e vai procurar teu caminho no vasto mundo, caboco!

Bom, se o senhor e a senhora a isto tudo resumir dizendo simplesmente foi um caruana que te deu ponta pé pra cair fora do igarapé panema ou um grande professor doutor de faculdade pesquisar e publicar tese sob apelido de resiliência eu não terei a menor saliência em dizer o contrário e lhes contestar nadinha, sobretudo, por que eu não conheço a verdade verdadeira das coisas. Só sei que, lá no fundão, a coisa paresque é o que é. E não é sem assim que a vida se governa a ela mesma e o mundo recria-se a toda hora por moto próprio. Masporém, no fim da história, sua própria consciência é seu maior juiz. 

Só os bárbaros e os estúpidos sem remissão são completamente felizes sem nenhuma ponta de culpa ou remorso. Mas estes sempre foram e serão para sempre destinados ao limbo do Limbo. Ou seja, não pertencem de fato ao reino da História no futuro nem do passado, posto que passaram na vida em brancas nuvens que não eram de algodão.

O fado é que esta gente que vive dentro do mato tem fome de saber e forte necessidade em descobrir o mundo pelo avesso e por fora: daí que já dizia o poeta profeta, navegar é preciso, viver não é preciso... Agonia do tempo é cuira de ter que ir embora sem dizer adeus, ainda mais quando passa a chuva e se vive jururu numa ilha grande ou pequena ilha panema, a ver navios, sem passado nem futuro. Posto que ambos os tempos foram perdidos por qualquer motivo incerto e não sabido: quando a gente vive aperreado por não saber voar com as aves do céu ou nadar em alto mar ou até as cabeceira do rio grande com os cardumes da piracema. Não ter canoa boa e nem vontade suficiente de fazer a grande travessia a novos continentes.

O caso aqui é particular de um certo caboquinho que, desde jitinho, queria saber quem inventou o mundo e terminou ele assim contador de causos a escrever blogues e-books que, paresque, não são de jogar fora sem alguma leitura capaz de separar o que presta do que não presta. Tenho eu grande afeição pelo casamento da necessidade com o acaso donde o fado foi padrinho. Todo mundo sabe que a necessidade é mãe de todas invenções: se não há necessidade, por que inventar moda ociosa? Masporém, depois da mãe das coisas o acaso é pai da fortuna e do azar de achados e perdidos, descobrimentos antigos que velhos navegadores e piratas sabiam, por experiência própria, mais do que ninguém.

Certa manhã, por exemplo, estava eu maçariquinho da beira da praia a ver a maré quando levanta a barra da saia, mariscando na rede, vulgo net nesse inglês aportuguesado de garotos celebrados pelos Engenheiros do Hawai na canção Somos Quem Podemos Ser, quando por acaso a jornalista Franssinete Florenzano chama minha tímida atenção para a supimpa imagem da canoa à vela no mar de Joanes que linhas acima vai no clique encantador do fotógrafo inspirado Ronaldo Rosa. Raro é o dia que a blogueira do Uruá-Tapera não começa cedo a dar bons-dias e imagens alegres para animar seus muitos seguidores e seguidoras de notícias. Foi aí que eu viajei na viagem fotográfica a bordo de igarité até meu passado distante que jazia na memoria do tempo da vela de jupati. Aí de mim, pegado pelo pé por um brabo caruana da maré de sigígia!


primeira travessia

Naquele tempo, o jardim do Éden existia no Fim do Mundo, meus pais não eram Adão e Eva mas simples moradores da beira do rio. Eu estava ainda na barriga de minha santa mãe afilhada de Santo Antônio casamenteiro, encontrava-me que nem o cacique Cucuí no bucho da Boiúna, cobragrande-canoa, mãe lá dele, a fazer a primeira viagem pelo grande rio do mito a caminho da história dos homens na terra dos tapuias. 

Deitada ternamente com o caboco sonso que foi meu pai, em rede esplêndida lavada com banho de cheiro de priprioca pelas tias pretas amorosas, minha mãezinha branca de olhos azuis celeste ficou grávida, paresque, entre cantorias de sapos alegres e som de rabeca de jias e violino de rãs raspa-cuia vindas da lenda da primeira noite do mundo festejar aquela extravagante concepção celtico-marajoara durante espichadas chuvas de lua entre janeiro e fevereiro do ano de 1936, na vila de Itaguari (Ponta de Pedras), sito à margem esquerda do rio Marajó-Açu. 

Meu pai para se casar com a filha do dono do Serrame arrumou emprego de administrador municipal do Curro e Mercado com seus padrinhos de casamento, assim com emprego garantido ele conseguiu um dinheirinho bom pra comprar uma casa pequena coberta de telhas de barro, não longe do Curro e da ilhinha do Quati localizada quase em frente. Até aí o filho da índia morta em seu próprio nascimento estava socialmente elevado à pequena burguesia do município que fora um dia, no passado, simples aldeia de catequese na praia das Mangabeiras, graças ao rábula da vila, meu avô Alfredo, mestre escola da vila onde minha avó e suas duas irmãs minhas tias-avós indígenas aprenderam a ler e escrever. 

Mais abaixo pelo rio da cidade em direção ao igarapé Arapinã, com economia do magro ordenado da prefeitura e investimento de muitos sonhos, seu Rodolpho também adquiriu uma nesga de tijuco na beira da varja muito engraçada que não tinha nada: nem casa, morador, pari, porto ou canoa não tinha ali perto do Itaguari. Só sarará no buraco, umas ralas touças de açaí e muita imaginação de um sítio plantado no terreno do pensamento ao qual ele chamava, com muito acerto e gosto, de sítio 'Ideal'... Desse ideal ribeirinho pequenino colhemos de longe na cidade a paisagem dadivosa, família reunida quase todos dias a bom sonhar a bordo de redes dormideiras armadas na varanda. Muitas safras imaginárias donde ainda hoje em dia por herança esta saudade tamanha.

A ilhinha do Cuati no rio Marajó era deveras encantada, pelo menos desde priscas datas locais até certo tempo quando foi substituída a velha iluminação à gás de carbureto para dar lugar à moderna Uzina de Luz movida a vapor em caldeira de lenha com que a vila foi servida de eletricidade pública nas suas três únicas ruas. Foi aí, paresque, quando a cobragrande bateu em retirada ofendida em seus orgulho natural pelo repelente progresso marajoense. Antigamente, a Boiúna morava debaixo da igreja num sumetume imaterial que varava por baixo da dita ilha para o seio do rio. 

Em certas luas a ilha virava navio encantado e viajava pra fora, era fado da própria ilha-cobra Boiúna descer pela boca do rio em direção ao mar de Joanes, dobrar a ponta do Maguari afora, para ir embora com a vasa lodosa da corrente das Guianas rumo ao velho porto do Pará no distante Caribe dos tempos antigos da vela de jupati que não voltam mais, donde voltava a dita em comboio de barcos de contrabando carregadinhos de ritmos musicais caribenhos em quantidade e variedade: mambo, rumba, salsa, merengue, cumbia, calipso, zouk e não sei mais quê...  Tudo pra passar pelo sarilho da reinvenção da terra em supimpas lambadas, guitarradas etecetera e tal.

Diz-que, mais de um pescador cansado da lida na espera de peixe graúdo no espinhel foi amarrar canoa na beira da tal ilhinha do Cuati famosa e acabou adormecendo sentado no banco. Quando viu, estava a reboque de um paquete todo iluminado em alto mar... Meu tio Cici certa vez saindo do rio Curral Panema pra fora pela boca do rio da Fábrica, perto de meia noite, a caminho de Belém a bordo da igarite Araci, pilotada pelo fiel Amaro, viu sair do ventre da noite escura aquela coisa enorme e brilhosa que, na hora, era o tal de navio encantado. 

Forte coisa de muita extravagância, nunca vista naquelas bandas, dizendo ele. Já o bom preto Amaro emendava e jurava ter visto aquilo outras vezes: havia música, cantar de galo, latido de cachorro, festa à bordo e eram paresque as almas dos afogados da extração da borracha no Amazonas... Sabiam os navegantes que não se tratava de navio de verdade por que o encantado vinha fora do canal de navegação, passando pelo baixio em riba de pedras. Mais tarde, quando a navegação mercante invadiu e tomou conta do Rio Pará, não se ouviu mais falar de navio encantado. Masporém, deu de aparecer disco voador lá nas bandas da Baia do sol e ilha de Colares: a ver que nem o tempo mágico sujeita-se a ficar encalhado no passado.


Pelas diretas contas da gravidez de mamãe andávamos lá pelo nono mês e eu chutava-lhe o vazio já querendo vir a furo, o dia do parto estava próximo. Menino ou menina? Ninguém saberia até a parteira anunciar. Mas não faltavam adivinhações e suposições... Meu pai teria escolhido canoa boa para levar a mulher a Cidade a fim dela descansar na Santa Casa. Ela morria de medo do primeiro parto e ele traumatizado da lembrança da morte de sua mãe e do irmão gêmeo natimorto durante seu nascimento. Teria sido escolhida a viagem do meu nascimento em Belém a igarité Caripirá, de propriedade do senhor Domingos dos Santos, pai do Dico, Joaquim e do Flávio jogadores de bola no Clube do Remo e no Paysandu de Belém? Isto eu não sei dizer. Poderia ter sido a Africana, do seu João Ramos, comerciante português dono da Casa Beira. Ah, a Africana! Bem que poderia ter sido. Tenho tanto pra contar sobre esta canoa das minhas lembranças de outrora.

Era pra sair um barco e tanto, mandado construir a capricho em madeira de lei por meu avô Francisco, no sítio dele no Serrame no tempo das vacas gordas, obra encomendada aos reconhecidos cuidados do mestre carpinteiro seu Maximino Vieira. Assim foi feito conforme a vontade do dono o veleiro de carga San Thiago. Mas, desgraçadamente, o fado do barco saiu caro na história da família e eu tenho que pedir tempo pra contar direito tudo que aconteceu. Por enquanto, basta dizer que o destino não quis que o San Thiago fizesse nenhuma viagem para meu avô. Acabou sendo vendido no estaleiro para a família Fontes, se já não me esqueci do nome do comprador, este trocou o nome do barco rebaixado a canoa depois revendida ao dono da Casa da Beira. Consta que, por fim, a Africana foi comprada por Renato Machado para ser geleira já com nome de São Judas Tadeu sendo encontrada a fazer contrabando para as Guianas como tantas outras embarcações daquelas doidas travessias. Coisas da lida do extremo-norte da Criaturada grande de Dalcídio...

Bem que eu teria gostado de saber que fiz minha primeira travessia da baía -- mare nostrum Marajoara -- a caminho de Belém ainda na barriga de minha mãe a bordo do antigo veleiro San Thiago, barco dos sonhos de meu avô feito com esmero por mestre Maximino Vieira, custando por capricho uma fortuna. De qualquer jeito, fica assim nesta lembrança como sendo a Africana a canoa escolhida por meu pai, no trapiche de Itaguari, para nos levar a Cidade. Finalmente, nasci de parto normal na maternidade da Santa Casa de Misericórdia do Pará, pela manhã do dia 30 de outubro de 1937. E logo estávamos nós três de volta ao Fim do Mundo antes de cair-me o coto do umbigo, não sem antes o batismo do pirralho na igreja da Santíssima Trindade.

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