teso da ilha dos Bichos: monumento que Wallace não viu.
Os "donos" não o viram também, se vissem maior a ruína seria.
Os "donos" não o viram também, se vissem maior a ruína seria.
Ó venerável acaso, meu amado mestre!
Eu te saúdo a fim de render homenagem à tua caprichosa companheira, a necessidade; mãe de todas invenções. Tu me fizeste ousar um dia no convite louco ao augusto Saramago para comigo tomar a barca do sábio de Coimbra e juntos subir o Amazonas na novíssima viagem filosófica seguindo a antiga rota da Viagem Philosophica. Então, que nem Alexandre Rodrigues Ferreira a caminho da Ilha Grande de Joanes ou Marajó fez parada imprevista na ilha do Mosqueiro para esperar maré; na novíssima por conta e risco da falta de melhor tempo de viagem fizemos escala absurda na serra Paytuna. O que havia ali na Pedra do Pilão para um garimpeiro de letras mortas que nem eu acompanhado, virtualmente, dum naturalista do século XVIII e de um laureado escritor português do século XX? Nada. A não ser, naturalmente, tal e qual a antiguidade de Portugal considerar a idade paleolítica do Homem amazônida, taxado lindamente pelo sábio como "Homo sapiens variedade Tapuya", que é um equivoco biológico e ao mesmo tempo tremendo acerto da antropologia cultural amazônica.
O paleo tapuia -- descoberto por acaso pelo sábio e cuja cabeça degolada foi remetida depressa a Coimbra --, depois de dois séculos passados da Philosophica, parecia estar à nossa espera na novíssima viagem entre vetustas pinturas rupestres da idade da pedra a par de vestígios da tua prodigiosa obra casada sempre com a inseparável madre necessidade. Que nos diz ainda hoje nos museus como se fossem templos do deus Tempo (Cronos), entre multidões desnorteadas, o Tapuya (tamu, tamoio, avô) de 10 mil anos atrás?
Sempre restará alguma coisa a saber do Paleolítico amazônico e americano em geral do alto de seus enigmáticos garranchos estampados sobre a pele da pedra, grimpando paredões da aba das serras; que nem na arquitetura indígena das casas coletivas de Tumuc-Humac, discos armoriais no teto pintados com traços da pele de Tuluperê; que fala do cosmo infinito como a pintura corporal do índio ancestral sobrevive na arte marajoara do presente e restará para sempre pelo arco das novas gerações que ainda hão de vir junto a auroras que ainda não brilharam.
Talvez um índio descendente de Paytuna pudesse nos dizer, pela boca e escrita talvez de um caboco Pinta-Cuia qualquer; com mais propriedade que um viajante apressado, o que é exatamente a "última fronteira da Terra". Ou discorrer melhor, sem sofisma nem teorias conquistadoras do "espaço vital", sobre a responsabilidade de todos não só quando ao território de cada um, mas também e principalmente a respeito do tempo ancestral de toda gente do mundo.
Pedra do Pilão, serra Paytuna - Monte Alegre_PA
Quem há de decifrar o amazônico mistério? Tudo ainda são suposições, especulações na pletora de rascunhos e ensaios de novas viagens... Os tolos não sabem que a busca é tudo e que a conquista é nada. Mas, exploradores e piratas tem muita pressa em descobrir tesouros e cair fora da barbaridade para morrer na praia das civilizações sem jamais pegar o espírito das viagens. Por isto, tem razão o poeta, navegar é preciso. Hoje, ó divino acaso: tu me obrigas novamente a mim como ao rabiscador do passado no tempo da pedra lascada a dar conta do recado no elogio da idade do barro. Forte encargo, acima das forças do surara e da ínfima capacidade do jamaxi que me pertence por herança.
Pra que servem cacos de índio e montes de terra em ilhas cercadas de campos por todos os lados, escondendo caveiras dentro de "igaçabas" com grafismos de muita antiguidade? Primeiro, o público do Louvre não faz ideia do Marajó... E os marajoaras de hoje somos todos analfabetos nesta velha "escrita" extinta, como cerca da metade da população é cega para ler e escrever na língua oficial brasileira. Que nem, no tempo da colônia portuguesa do Maranhão e Grão-Pará, antepassados falantes da "língua ruim' (nheengaíba) não entendiam patavina de nheengatu (a "boa língua' catequista) nem do português colonizador...
Para o pobre e espoliado povo do Marajó de mísero IDH, vale mais o nosso estúrdio museu inventado, por acaso em estado de necessidade, pelo padre da paróquia de Santa Cruz do Arari, do que dez museus ricos e famosos no estrangeiro e grandes capitais do Brasil sétima economia mundial. A humilde amostra de "cacos de índio" e computadores feitos de pau e corda, tudo para gente da terra "ver com a ponta dos dedos", em Cachoeira do Arari, vale dez vezes mais que a célebre exposição universal de Chicago, no século XIX, onde cerâmicas do teso Pacoval foram parar; tiradas sem bilhete nem foguete para a gente ver e que nunca mais voltaram nem mandaram notícias.
De modo que o roubo do tempo arqueológico espelhado nas pinturas rupestres e na arte neolítica da cerâmica, faz parte integrante da pérfida expropriação da terra dos índios, na Ilha dos Nheengaíbas (Marajó), com a mentira da abolição dos cativeiros indígenas na iludida intenção do Padre Antonio Vieira, com que os sete caciques marajoaras deram termo à guerra de guerrilhas dos 44 anos de conquista da Amazônia lusitana.
Assim sendo, a pax do Marajó de 1659 acabou sendo para nós que nem a de Troia. Terminaram as pazes em dois breves anos, com a violenta expulsão dos padres pelos emburrecidos colonos eles também enganados com falsas promessas de riquezas fantásticas e infalível continuação das tropas de resgate (caçadores de escravos), para final doação da capitania hereditária da Ilha Grande de Joanes (1665-1757), ao fidaldo secretário de estado português; patriarca dos barões de Joanes jamais vindos ao Pará e seus sucessores através das imorredouras sesmarias ganhas de mão beijada. Portanto, nossa infame história pesa sobre o roubo do tempo arqueológico, o sequestro dos "negros da terra" inaugurado em 1500, por Pinzón; e a expropriação da ilha dos Nheengaibas, tudo isto levando à miséria dos cabocos que hoje a história do IDH do Marajó conta.
Sem dúvida, muitos antes de mim e com mais propriedade já cumpriram esta honorável tarefa melhor do que eu poderia fazê-lo. Entretanto, o império da necessidade para não deixar morrer de todo a Arte primeva de meus ancestrais me tem consumido tempo a criar coragem para levar avante esta extraordinária façanha. Dentre outros, o incomparável marajoara adotivo Giovanni Gallo com sua criativa pesquisa, além da magistral invenção de "O Nosso Museu do Marajó", reunida nos "Motivos Ornamentais da Cerâmica Marajoara" da qual o poeta João de Jesus Paes Loureiro, na primeira edição da obra em 1990, diz como vaticínio: "... é como o pólen que se desprega das flores. Flutua, dança nas mãos do vento, e ninguém pode prever o alcance de sua fecundação."
Com o próprio testemunho do autor, "aproveitando coisas que não prestam", ficamos sabendo da prestimosa contribuição de Vadiquinho nesta aventura coletiva. Cada um a seu modo e seu tempo tem papel restaurador, assim ocasionais restos do desastre são para a gente do lugar "cacos de índio". Enquanto, ao padre vivendo dilema íntimo de sua missão no fim do mundo, extasiado diante do miserável pacote de fragmentos cerâmicos, achados por acaso junto a tesos saqueados; era verdadeiro tesouro e para a ajudante de limpeza da casa paroquial um material que servia para aterrar quintal...
Já o poeta viu nos grafismos da cerâmica marajoara recuperados o pólen fecundador de outras recriações fazendo eco a uma arte de 1800 anos de idade. Enquanto a arqueóloga Denise Schaan, com mais cabedal, pôde atestar no prefácio da terceira edição em 2005. "Estudar o passado não faz muito sentido se não se coloca esse conhecimento a serviço do presente. Gallo sabia disso, e entendeu muito cedo que a herança arqueológica do Marajó, junto com sua bela natureza e seu povo digno e trabalhador são as maiores riquezas da Ilha". Em poucas linhas, pode-se dizer, ela resumiu o que se tem dito com rios de tinta sobre montanhas de papel.
"O conhecimento gerado pelas sociedades amazônicas não foi registrado em livros, e muita coisa foi então perdida para sempre. A cerâmica Marajoara, por isso, é um dos poucos registros de uma cultura vibrante e original, que em sua precocidade e complexidade caracterizou uma das mais importantes sociedades pré-colombianas das Américas (Denise Pahl Schaan, obra citada, XXIX).
Agora tu, venerável mestre, me convocas a dar início ao cumprimento deste dever de escriba desterrado viajando na memória do espaço e no lombo do tempo desta vida ribeirinha: já vou eu, de novo, tímida e reverentemente botar o pé sobre o velho e arrasado teso da Ilha dos Bichos, nos campos da velha Cachoeira do rio Arari. Esta "ilha" afortunada ou oásis da biodiversidade campestre onde as mães dos bichos vem parir, imersa na inóspita paisagem cultural de "savana". Que é, em realidade, lugar de memória duma milenar cultura com tapera de aldeia suspensa sobre o aterro de barro em campo alagado prenhe de priscas eras.
Quem saberá dizer, então, dos antigos engenheiros pés descalços que levantaram os tesos do barro do chão carregado com as próprias mãos ao galgar a antiga aldeia no alto do aterro com cultivar de bananeiras e roça de mandioca, como no sítio do Pacoval, à ilharga do cemitério fazendo morada aos parentes mortos na vizinhança dos viventes? Quem há de pensar nos pretos escravos fugidos da senzala e da horrível tortura do Viramundo, que se vê num canto no museu do Gallo para escarmento do tempo da iniquidade; almas penadas a errar pelos campos na escuridão da grande noite de escravidão a gritar na voz do vento entre urros de vacas paridas clamando pelas crias aos ermos da assombração: "me mostre o caminho, me mostre o caminho"?... Tarde se levantou o primeiro curral de gado no Arari, vindo de Cabo Verde ao Pará, temendo o "perigo dos índios bravios, desertores e escravos fugidos que existiam pelos centros da ilha", lembre-se.
Na lição de Saramago, na Viagem a Portugal, viajar é também o que se adivinha para além do que se vê. A viagem ao Marajó carece de iniciação e o Museu do Marajó o melhor curso para tal. Maior ecomuseu do mundo aberto sobre o maior arquipélago fluviomarinho do planeta, sito ao delta-estuário do maior rio da terra.
Masporém, carece adivinhar a complexa geografia marajoara para além do que se vê, como pessoas de todo mundo vão ao museu do Cairo para saber do tempo dos faraós e por que o historiador grego Heródoto sentenciou ser o Egito uma dádiva do Nilo. Tal qual uma múmia em seu sarcófago de barro, a velha "cachoeira" do rio Arari está morta como os índios enterrados no topo da "ilha" dos Bichos. Na verdade, a cachoeira foi no passado distante um simples salto d'água sobre laje de arenito do fundo do rio que só aparecia ao fim do estio. Hoje a extinta cachoeira está enterrada sob montanhas de barro da erosão acelerada pelo desmatamento da mata ciliar e o pisoteio de manadas de búfalo andejos, mais aquilo que antigamente foi carreado pelas águas grandes do gigante Amazonas para a foz. De modo que, depois que as arariúnas bateram asas e voaram para longe, assim que muitas aves e bichos selvagens como jacarés e cobras grandes que no passados mítico abriram rios, igarapés e lagos e depois desapareceram das margens plácidas do antigo "rio das araras" da velha língua aruaque, também ela extinta; também o rio e lago Arari vão morrendo inapelavelmente na lenta agonia da ecocivilização pré-colombiana de 1800 anos de idade.
Sem exagero nenhum, primeira cultura complexa da Amazônia e Arte primeva do Brasil, com simplicidade a ilha dos Bichos manda dizer ao povo brasileiro que o abandono da Cultura Marajoara é uma vergonha cravada na consciência nacional. Pelo menos, a quem vai lá no alto escutar a voz do vento sob sol lavrado o teso é, paresque, que nem uma inconveniente mutuca cabo-verde a fustigar cavalo e cavaleiro que se arriscam a franquear a solidão dos campos-gerais da ilha do Marajó. Sem jamais esquecer dona Heloísa Alberto Torres em sua quixotesca peleja a favor do barro dos primeiros dias do gigante Brasil frente à pedra dura da ignorância brasileira e ditadura do barroco colonial.
No entanto, quisera eu puder dar o primeiro passo nesta nova caminhada de mil léguas a partir do sítio original da engenharia da necessidade com o acaso que pariu nossa ancestral Cultura Marajoara... Mas, quem saberá dizer com certeza onde está o dito cujo? Talvez simples lombo de terra depositada por acaso pela mão da necessidade de matar a fome, ao pé do poço de costumeira gapuiação aonde a piracema foi plantar novos cardumes de peixe do mato. O teso número um a chuva arrasou, talvez, em pouco tempo. Então, fostes tu junto com a necessidade que me foram traçar a rota desta prosa.
Bem que eu queria, então, ter ido ao Pacoval à ilharga do igarapé do Severino para rememorar o achado de 20 de novembro de 1756, do primeiro teso encontrado por homem branco, no caso, o capitão Florentino da Silveira Frade, dono da fazenda Ananatuba e fundador da freguesia que depois foi a vila da Cachoeira. Me lembrar, mais uma vez, que a data 20 de Novembro é dia nacional da consciência negra e que em janeiro de 1500 Pinzón inaugurou a escravidão sul-americana de "negros da terra" na ilha Marinatambalo... Por acaso Dalcídio Jurandir escreveu o "primeiro romance sociológico brasileiro" segundo Vicente Salles, em Salvaterra com título de "Marinatambalo", depois publicado como "Marajó", não por acaso.
O homem do Pacoval talvez me dissesse a razão da gente chamar o igarapé do teso como tendo sido de um certo Severino. Por que o igarapé não ficou conhecido como do Pacoval ou o teso do Severino? Já me dá cuira em adivinhar o acréscimo da viagem: o porquê do capitão Florentino ter ido, depois de uma dificultosa travessia entre Mosqueiro e Joanes, primeiro à velha aldeia sacaca elevada em vila de Monforte, apresentar quanto antes o índio Severino dos Santos, aliás Iona; no papel de sargento-mor de Ordenança da vila ao naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira e deixar o Arari para o fim da viagem ao Marajó.
Alexandre Ferreira elogiou Severino, dele registrando minuciosamente uma provecta história oral de gerações de guerra entre velhos habitantes Iona (Joanes ou Sacacas) deslocados dos centros da ilha para a costa-fronteira do Pará e os belicosos invasores Aruãs vindos através do Cabo do Norte para a ilha Caviana e Mexiana e, finalmente, dominar Marinatambalo, aliás Analau Yohykaku, em língua aruã. Com o privilégio da internet banda larga e download grátis de sítios da Biblioteca Nacional eu ou qualquer outro viajante do mundo poderíamos acampar na beira do igarapé do Severino, se os donos permitissem, para ler em e-book a "Notícia Histórica" comparando o relato com o caminho das águas e trilhas de verão, mais o tempo que seguiu esta velha guerra interna marajoara do século XVII e o conflito não resolvido, já no século XVIII, entre tupinambás, marajoaras e portugueses de que trata a devassa contra Guamã, cacique dos aruãs e mexianas; que resultou no furto do café de Caiena.
Com tantas histórias emendadas pelas águas do Severino, eu iria querer atravessar a boca do lago direto à vila do Jenipapo e de lá sair com estas mal escritas, pronto a dar a penúltima notícia da Ilha Grande dos Joanes (melhor dizendo, dos Iona). Digo penúltima, como quem fala das horas: todas ferem e a última mata... Mas o fado que, antigamente, levou a esmo os primeiros marajoaras em busca do de comer a criar o camuti original -- quem sabe, na beira do rio dos Camutins, numa paragem perdida -- meteu-me recentemente a bordo de avioneta direto a Cachoeira do Arari a serviço da companhia estadual de turismo; e lá por acaso nós pisar a lama do Dilúvio escalando abas escorregadias do teso dos Bichos em risco de cair feio.
Quando contei a amigo pequisador sobre a aventura, ele me perguntou se estivera preparado para possível ocorrência das tantas cobras venenosas que costumam se refugiar com outros bichos, não por acaso, no teso dos Bichos. Mas eu já sabia, por experiência própria noutras ocasiões parelhas, que a santa ignorância é padroeira dos heróis. Há tempos eu queria visitar um sítio arqueológico, pelo menos desde 1995, quando denúncia de saque e contrabando de peças arqueológicas extraídas ilegalmente nos levaram a pedir providências às autoridades concernente. Basta ler jornais regionais da época que se achará o caso registrado.
Até aí pouca gente sabia, na verdade, que cerâmica encontrada em sítios arqueológicos tem dono, a União federal. O povo desconhece como se fazem as leis e as salsichas. A ausência de poder público nas periferias das cidades é um fato, calcule você então o que acontece nos desconhecidos extremos da antiga costa-fronteira do Pará. Se esta augusta senhora de nós não cuida como de direito, aí a história é outra. Para pesquisadores é difícil ir lá nos feudos dos Camutins, imagina à gente inxirida e abelhuda pé rapado... Tinha que ser como o padre Giovanni se empregando para "tratar" e salgar peixe em feitoria, lá pras bandas do Anajás Mirim.
Por sorte fui "goiaba" (marreteiro), no ano de 1956, no lago Arari, pena que naquela idade de dezenove anos eu estava ignorante pra burro...Voltei mais duas vezes, nos anos 60, já como repórter da imprensa. Mas ainda assim meu conhecimento era perto de zero. Melhor, quando depois de cinco anos tratando com "refugiados econômicos" na Guiana francesa, donde muitos marajoaras se passando de amapaense; fui convidado a trabalhar na assessoria da companhia estadual de turismo. E, ainda assim, havíamos sido praticamente impedidos de entrar em terras de fazenda para ver sítio arqueológico.
Claro, ninguém estava pensando em levar turistas para ver tesos que nada mais são que aterros artificiais em sítios isolados e de difícil acesso por estratégia de seus primitivos engenheiros, em nada comparáveis a pirâmides da Guatemala, palácios astecas ou a cidade sagrada dos Incas... Um fotógrafo camarada, entretanto, com artimanha conseguiu enturmar-se com cabocos danados e passar junto desses uns que habitualmente estão na mira de capangas contratados por fazendeiros para combater roubo de gado... O marginal remanescente dos aruãs marginalizados é chamado, na exclusão social da Ilha, "jebrista", refugiado na "jebre", a porção mais agreste e hostil dos centros e da contracosta da Ilha. Esta gente explorada desde a barriga da mãe nasce sabendo que os brancos não sabem o que de fato o Marajó ("homem malvado") é. Rezam eles pela cartilha que diz, ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão...
Então, em várias fotografias do alastrado saque tiradas em horas mortas no retiro de fazenda, vimos na cidade à luz do dia a soberana razão dos senhores herdeiros dos contemplados do Marquês de Pombal para manter turistas doidivanas e jornalistas abelhudos longe dos sítios arqueológicos. Com paciência e senso de oportunidade visitamos primeiramente o teso dos Bichos e depois um amável convite de um herdeiro da fazenda deu-nos oportunidade também de rápida visita ao teso Guajará.
Já tínhamos estado próximos ao teso Macacão e vimos algumas peças retiradas dele, em terras da fazenda Tapera, por gentileza da senhora sua dona, por acaso durante filmagem de uma das piores edições do "Globo Repórter", que teve tudo para ser, como dizem, um verdadeiro "show". Não sei dizer o motivo de tanto azar do Marajó com grandes reportagens para televisão. Uma certa telenovela com suposto tema do Marajó não deixou saudade. Falta de material e assunto para TV não é, nem boa vontade dos nativos, nem interesse dos repórteres e de autoridades locais... Será talvez, como a obra de Dalcídio Jurandir e Giovanni Gallo explicam, que a criaturada costuma ir na contramão da civilização dita nacional e mundial.
Logo, o que o distinto público quer ver não é exatamente o que a gente marajoara é, nem o que a sua verdadeira história e cultura tratam. Mas, os cabocos sabem por instinto que os brancos não sabem (já falaremos de Wallace na ilha Mexiana e inícios da teoria da evolução das espécies descoberta na Amazônia) ... Deste velho conflito dialético entre as Ilhas dos bárbaros Marajós e a cidade grande do Pará nós já deveríamos saber desde o tempo do padre grande Antonio Vieira, entretanto, no que diz respeito aos outrora chamados "nheengaíbas" (falantes da "língua ruim") cujos descendentes são os marajoaras de agora; os doutos declaram do alto de seu castelo que, noves fora os sermões e as cartas do "imperador da língua portuguesa", não há interesse acadêmico que justifique mais nada. Tudo mais retórica sebastianista inverossímil.
Mas quando a gente tanto fala em cerâmica marajoara e não sabe como tudo começou e nem nunca viu um sítio arqueológico de perto pra contar de certo, como é que tanta gente está pronta a discorrer sobre o povo, a cultura e a Ilha? Ilha que, na verdade, são mais de duas mil ilhas grandes e pequenas; mais a parte continental da microrregião Portel maior do que o arquipélago propriamente dito. É um espanto, quando se sabe que a "ilha" do Marajó (uns chamam de Marajó) é maior que um país do tamanho da Holanda, por exemplo, e tem população equivalente a do vizinho Suriname.
Agradeço a oportunidade que a prefeitura de Cachoeira do Arari nos deu ao oferecer à ex-empresa pública paraense de turismo embarcação e guia para ir ao teso dos Bichos, enquanto ainda havia água nos Igarapés dando passagem, mas a efêmera vegetação fluvial ainda estava viva e os verdes campos do Marajó esperavam pelos começos do verão. Para fazer o mesmo trajeto em jipe nós, a exemplo dos campos ainda encharcados; teríamos que aguardar talvez até fins de setembro pelo menos... Mas, como se sabe, há o Marajó da água grande e o Marajó dos campos queimados pela força do verão. O resto é mitologia, e mitologia é a primeira noite do mundo.
1800 anos de arte e cultura marajoara nos contemplam.
"cacos de índio" no teso da Ilha dos Bichos.
trabalho de campo em pesquisa da arqueóloga Denise Shaan sobre cultura marajoara.
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