terça-feira, 3 de março de 2015

NOTÍCIAS DA GRANDE "ILHA-REGIÃO" DOS MARAJÓS.



Urna funerária marajoara, c. 1000-1250 d.C.,
Museu Americano de História Natural, Nova York - EUA.
(retirada, provavelmente, do sítio PA-JO-01: Pacoval).


Cartas do rio Carioca e Belém do Grão-Pará


Apesar de sua antiguidade, desde o século V, sob ponto de vista da pobre gente do Marajó de IDH ratuíno a cerâmica marajoara só começou a ser percebida como alguma coisa de real valor depois da modesta criação, em 1972, do "Museu do Marajó", em Santa Cruz do Arari, a partir de um punhado de "cacos de índio" ironicamente oferecidos pelo caboco Vadiquinho ao padre Giovanni Gallo, para se juntar a outras "coisas que não prestam" naquela invenção de ecomuseu no lugar mais imprevisto do mundo para tal acontecimento. O desconhecimento e desapreço deste milenar patrimônio marajoara pelo seu próprio herdeiro natural era tão grande que a caseira do pároco, ao ser consultada sobre eventual serventia da coisa, não vacilou em dizer que deveria servir sim para "aterrar o quintal" da casa paroquial, invadido pelas chuvas. 

No entanto, logo que o primeiro recorte de jornal paraense com artigo do inconveniente padre italiano, refugiado no Jenipapo como um jebrista aculturado e letrado, chegou ao Rio de Janeiro para o escritor Dalcídio Jurandir ler em seu auto asilo em Laranjeiras, bairro antigo do vale do Rio Carioca onde com o tempo misturaram-se escravos, operários e ricos burgueses; remetido através de fiel correspondência por Maria de Belém Menezes, filha do poeta Bruno de Menezes. O autor marajoara percebeu logo que algo importante havia acontecido em seu Marajó velho de guerra para começar a devolver à Criaturada a história roubada pela escravidão e colonialismo. Então, pelo mesmo portador, no caso mensageira Maria de Belém o romancista mandou recado a Giovanni Gallo: "selecione alguns artigos e publique um livro". Da "impossível" camaradagem entre um escritor agnóstico e um padre jesuíta saiu o contundente livro-reportagem "Marajó, a ditadura da água", até hoje a espera de documentarista de tino para um filme, realmente, fora de série. 

Havia, todavia, uns 3500 anos que as ilhas foram ocupadas por seus primeiros habitantes e já a ditadura da água, na sucessão de chuvas e verões abrasadores, castigava essa brava gente saída do barro do princípio do mundo e do mito da primeira noite.

Já se deve saber, todavia, que o "homem do Pacoval" foi descoberto por acaso -- no dia 20 de novembro de 1756, pelo mesmo fundador da freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Cachoeira do rio Arari (1747), origem da atual cidade de Cachoeira do Arari, Florentino da Silveira Frade -- e que foi do teso do Pacoval [sítio PA-JO-01: Pacoval, no registro oficial do IPHAN] a cerâmica marajoara a que Hartt e Ferreira Penna se referiram.  

Em 1871, o mineiro de nascimento Domingos Soares Ferreira Penna, fundador do Museu Paraense Emílio Goeldi; e Charles Frederick Hartt, geólogo canadense-americano discípulo de Louis Agassiz; revelaram a cerâmica marajoara -- encontrada em 1756, com a mesma naturalidade com que um vaqueiro topa "igaçada" exposta, hoje ainda por acaso, pelo pisoteio dos bichos ou enxurrada de chuva nas ilhargas do teso tantas vezes arrombado e saqueado --; para curiosidade acadêmica do Brasil e do mundo. Mas, a brava gente da amazônica leseira até hoje malmente escutou falar do assunto. Noves fora quem, por acaso, teve sorte em conhecer o Gallo ou é morador de Cachoeira do Arari com tempo para saber pra que servem "cacos de índio", que dantes não serviam nem de enfeite em casa de caboco ou aterro de quintal alagado pela chuva.

O diabo dos estudos sobre a grande e complexa "ilha-região" Amazônia Marajoara é o vício do segredo colonial antigamente guardado para fidalgos, legítimos herdeiros dos descobrimentos marítimos; com que a colonialidade e o apartheid social persistem e cada sábio tem a tola satisfação de guardar só pra si e a corte de áulicos esclarecidos que cerca seus augustos saberes acadêmicos. 

Assim, o analfabetismo impera e a criaturada fica eternamente por fora para vanglória das sesmarias caducas. Dalcídio, participante de proa da academia do peixe frito e Gallo com seu singular museu feito para o povinho aprender a ver com a "ponta dos dedos" eram tremendamente contrários à privatização dos conhecimentos científicos ou tradicionais. A Lista Bibliográfica organizada por Eidorfe Moreira, por exemplo, integrando e consolidando fontes para a história natural e científica sobre Marajó parou no tempo com a morte do grande pesquisador da Amazônia: com a possibilidade de criação da universidade federal do Marajó, a atualização e continuidade da lista de Eidorfe poderia ser um dos projetos universitários prioritários da nova instituição. E sua popularização dentre outras coisas de interesse das comunidades, através de rede de extensão, poderia ser objeto de parceria entre a Casa de Dalcídio e Museu do Marajó.
 
Quando se sabe que a cerâmica do Pacoval, recolhida por Ladislau Neto, diretor do Museu Nacional; foi representar o Brasil na Exposição Universal de Chicago de 1893 e que o Museu Americano de História Natural (Nova York) e Museu Field de História Natural (Chicago) conservam coleções de peças de cultura marajoara (este último criado expressamente para conservar as coleções da exposição mundial de Chicago em 1893), donde o nome de Anna Roosevelt sela a ligação da Amazônia, e Marajó especialmente; com a arqueologia americana, já não deveria causar espanto tal sugestão de estudos comparativos entre história natural e literatura no chão de Dalcídio. A respeito do monumental Museu do Quais de Branly (Paris), para onde foram transferidas coleções de cerâmica marajoara que se achavam no Museu do Homem (Louvre), já sabemos oficiosamente que está de portas abertas ao estado do Pará, com vistas ao Museu do Marajó notadamente, para intercâmbio e cooperação. 

Não acham, portanto, que está passando da hora de uma significativa iniciativa política, sublinhamos, de parte de nossos representantes com relação à antiga Cultura Marajoara? Em 2006, devem estar lembrados, o Museu Americano de Nova York foi cenário do filme "Uma Noite no Museu", se por acaso o mundo marajoara desencantar, dentre outras artes; o Museu do Marajó, quem sabe, também poderia ser palco com a casa de Dalcídio em parceira na invenção de um turismo literário inteligente inspirado em Paraty-RJ, talvez, com teatro e cinema na temática da Primeira Noite do Mundo donde o caroço de tucumã é chave para o desenvolvimento humano da criaturada grande. Quem viver verá.

Pelos fins da década de 40, o casal de norte-americano Betty Meggers e Clifford Evans chegou ao Pará e deu impulso aos estudos do passado marajoara. É claro que apesar do sucesso acadêmico e divulgação na mídia nacional e regional, o povo continuou a "boiar" que nem bosta de marinheiro no mar... Já, então, a elite local abriu os olhos para algumas possibilidades da cerâmica marajoara. Infelizmente, nem todos com os melhores propósitos. Assim, velhos marajós os mais velhacos viram aumentar chance deles "ganhar" alguma coisa e inteirar os trocados da lida no saque dos tesos e contrabando de cerâmica. Masporém, no geral, o povinho sem eira nem beira continuou na "santa" ignorância de sempre, na pesca e na lida dos campos, quando não uma ou outra "mucuagem" (roubo de caça ou gado em terra de fazenda), conforme vontade de Deus, paresque. 

Foi a bisneta do presidente Roosevelt, dos Estados Unidos, Anna Roosevelt quem promoveu uma verdadeira virada de mesa no tocante à arqueologia amazônica, com ênfase na Cultura Marajoara. A Prelazia de Ponta de Pedras com o bispo Angelo Rivatto (depois diocese), através da qual o padre Gallo chegaria a Jenipapo; criou uma cooperativa mista rural de feição kibutziana e outra, também mista, urbana especializada em cerâmica, marcenaria e construção artesanal naval e pretensão turística. Foi esta última cooperativa que, a partir da vinda de mestres artesãos italianos e oficinas em parceria com técnicos do Museu Goeldi, deu formação à artesãos locais dando curso a um verdadeiro renascimento da velha cultura marajoara. Daí em diante, entrou Icoaraci e viram-se desenhos marajoaras revitalizar a paisagem cultural do Pará avante.

Pena que o imperioso bispo de Ponta de Pedras (já falecido) e o teimoso padre de Jenipapo (idem) -- "que Deus bote ambos os dois em bom lugar e não lhe sirva de pena", como diz o caboco --, ajudados, como sempre, de costumeiros intrigantes e compulsivos fuxiqueiros da vida se desentenderam feio: com prejuízo daqueles pobres que eles queriam proteger pelo amor de Jesus Cristo na terra dos tapuias. Esta gente inocente, como sempre, que pagaram o pato da briga entre os sumanos eclesiásticos e, até hoje, nem desconfiam de nada. 

Pois, a verdade é que, se ambos soldados de Cristo, filhos de Loyola e irmãos de Vieira não fossem eles tão "cabeças quentes", como se diz no popular. Tivessem pela graça do santo Espírito, lido, antes e depois da homilia na igreja; com atenção e humildade no coração a perspicaz correspondência entre Maria de Belém e Dalcídio, viriam que o consagrado Prêmio Machado de Assis de 1972 (ano de criação do Museu do Marajó, lembram-se?), primeiro para autor amazônico na história das letra brasileiras; viu com entusiasmo logo à primeira vista as evidentes sinergias das "cooperativas do bispo" com o "museu do padre". 

Com efeito! O padre dos pescadores e o bispo dos cabocos marajoaras não leram Dalcídio, nem se lembraram do Sermão aos Peixes, de Vieira (1654), no Maranhão a caminho de Portugal em busca do socorro da lei de abolição dos cativeiros (1655): dez anos depois, o sucessor de Dom João IV doava a troco de nada a Ilha dos Nheengaibas ao seu secretário de estado Antonio de Sousa de Macedo, feito de mão beijada donatário da capitania hereditária da Ilha Grande de Joanes (1665) e patriarca dos barões de Joanes... O resto é história das sesmarias e exclusão social de amargar.

Mas, Deus escreve certo por linhas tortas, tem mais pra dar que o Diabo pra levar. Depois da bisneta do presidente americano vir a Marajó ensinar que aqui existiu uma verdadeira civilização do barro, apareceu a gaúcha mais marajoara do Brasil, Denise Schaan que meteu pés e mãos no barro do princípio do mundo de Dalcídio. Ela aprofundou a pesquisa, trazendo ao debate a questão do conhecimento científico da região aplicado ao desenvolvimento socioambiental da população. 

Denise nos diz não ter sentido estudar o passado sem aplicação ao presente, que ela percebeu isto com clareza no pensamento de Giovanni Gallo no mesmo propósito. A necessidade da missão fez dele antropólogo por acaso. Então, o Museu do Marajó poderia exercer papel de ponte entre a comunidade acadêmica e a população desletrada, caso as autoridades concernentes saíssem de sua zona de conforto para meter pés e mãos no barro do princípio do mundo. 

Em vez disto, a leniência de décadas facilitou a vida de arrombadores de tesos achados ao acaso; ver em arquivos da imprensa regional a Carta do Marajó-Açu com reivindicações do décimo Encontro Em Defesa do Marajó, realizado em Ponta de Pedras, em 30/04/1995. Daí saiu demanda dirigida à SECULT-PA atendida sem demora, por acaso, pelo mesmo secretário que lá está de novo e que agora se esqueceu do museu do Gallo depois que o padre morreu (2003). Uma séria reunião com presença do Ministério Público, Polícia Federal, Museu Goeldi, Museu do Marajó (Giovanni Gallo) e outras instituições. Boa cobertura da imprensa para tomar conhecimento de denúncia e deliberar a respeito de medidas a ser tomadas sobre guarda e conservação do patrimônio arqueológico. 

Até aquela data o entendimento geral, a despeito de leis vigentes e da Constituição Federal de 1988; era de que sítios arqueológicos por ventura encontrados dentro de terra de fazenda pertenciam ao proprietário rural. O roubo de cerâmica era consuetudinário, não era consuetudinário, porém, o abigeato que de tanto ser combatido com mãos de ferro, injustiça e truculência desde a lei do Viramundo acabou por sair de controle social, virando problema de polícia sem mais solução. 

Dizem as más línguas que para encurtar caminho entre crime e castigo, o governo que esqueceu o museu do Gallo e a cerâmica pré-colombiana nos tesos taperas do Marajó, quer agora construir presídio no Caldeirão (Salvaterra), que é terra onde quilombola antigamente se salvou e era paraíso cobiçado pelos índios da Terra sem males. Em vez do São José Liberto abrir caminho a esta gente, querem trazer pra perto o velho São José carcerário, onde Dalcídio pagou pelo que na verdade não fez e veio a Salvaterra começar a saga de Alfredo sem medo de lutar pela felicidade de todos e todas... Se esta gente desnorteada fosse até a praia do Pesqueiro ouvir a sereia cantar nas ondas do mar, será que entenderia que está na hora da Reserva da Biosfera e não mais tontas inglesias?

Com a desculpa esfarrada do costumeiro roubo de gado, desde que a pecuária começou a invadir terras e roças de índio e mocambos (quilombo); a destruição de sítios arqueológicos e retiradas de "igaçabas" recaía automaticamente sobre as costas largas de "invasores" de fazenda, não importa quem de fato tirasse cerâmicas e destruísse esqueletos de dentro de urnas funerárias furtando, no futuro, pesquisas científicas importantes. 

Pelas circunstâncias históricas da conquista e colonização do rio das Amazonas, o caso da Cultura Marajoara recorda um pouco a civilização Maya (Guatemala), no que concerne a seu inexplicado "desaparecimento" e posterior achado. Resulta ser a arqueologia americana em geral um descobrimento tardio, que ainda não terminou de causar surpresas pelo progresso da ciência e desenvolvimento dos direitos humanos que reclamam identidade e território de povos tradicionais pré-colombianos.

Neste tópico, porém, o Turismo aparece como uma esperança e ao mesmo tempo uma ameaça: é por isto que, talvez, um possível casamento entre Museu do Marajó e Casa Dalcídio Jurandir seria desejável, todavia a desavença entre supostos "herdeiros" do padre cai como luva para desculpa das autoridades que não querem se imiscuir em querela "local". Se já não bastasse o purgatório da literatura "regional" de Dalcídio... Enquanto não há consenso Deus é por todos e cada "amigo" do Gallo por si; o tempo passa e a conservação deste raro patrimônio fica entregue aos búfalos. Na verdade, a "herança" dos afilhados do Gallo é uma falsa questão, quanto o patrimônio em foco não é exatamente a coleção Giovanni Gallo em Cachoeira do Arari, nem a exposição de materiais que ele deixou. Mas é muito mais que isto tudo, pois que é bem coletivo do povo brasileiro.
 
Trata-se de um equívoco insistir nesse cavalo de batalha sem fim em torno do museu do padre. É claro que o museu em Cachoeira é indicador de um ecomuseu bem maior que a ilha propriamente dita e matriz histórica de tudo quanto se vier a fazer neste campo. Mas o que se deveria ter em vista é o conjunto de ecologia cultural maior, que patrimônio da Amazônia Marajoara representa, inclusive Belém em decorrência da ativa comunidade marajoara residente na Capital, para além da famosa "ilha-região". 

O principal patrimônio material são centenas de sítios arqueológicos em, praticamente, todos municípios (época pré-colonial e colonial) e coleções de cerâmica marajoara na posse de terceiros, inclusive exterior, que precisam de outra estratégia de governo, seja ele estadual ou federal, de preferência federativa com participação de consórcio de municípios turísticos. A repatriação, por exemplo, é desejável dentro de tempo razoável porém a cooperação e intercâmbio em parceria com a UNESCO (donde a reserva da biosfera seria oportunidade extraordinária) seria extremamente útil. Para começo de conversa, nossos representantes políticos devem se manifestar. Sem esta providência vamos continuar, como o padre Vieira, a fazer sermão aos peixes.

A pergunta que não quer calar: como o jebrista (ladrão de gado), por exemplo, o marginal marajoara mais marginalizado da história pode escapar de sua sina se ele não sonha sequer em se tornar cidadão? Se ele não é índio, nem preto, branco ou nem mesmo um caboco de verdade (posto que nunca lhe tiraram do mato e nem o deixam lá tranquilo)? Se ele foi excluído da sociedade antes mesmo de nascer? De que serve ao pobre e analfabeto ribeirinho uma linda urna marajoara exposta no Louvre ou no Museu Nacional do Rio de Janeiro? Certamente, não serve absolutamente a nada. Por outra parte, uma solução populista apressada, se fosse possível, para trazer de volta ao Marajó sob fanfarra e foguetório coleções que foram mandadas para fora no passado, sem organização local de uma infraestrutura democrática e sem capacidade técnica e financeira profissional sustentável seria pior emenda que o soneto.

Logo, o bom caminho para todas e todos marajoaras se enxergarem num projeto sociocultural de futuro tendo a revitalização de seu passado milenar, seria aquele em que todas as partes interessadas fossem convidadas a contribuir no sentido da inclusão socioambiental das comunidades tradicionais. Começando pela educação patrimonial das mesmas a fim de capacitá-las a defender o patrimônio que lhes foi deixado por seus antepassados.  Mas, justo o barro abundante e desvalorizado poderá ser uma promessa para além da arte cerâmica? Vejamos bem. Aqui vou eu alinhavando ideias em um computador e para melhorar e atualizar informações, desde correções ortográficas e de nomes e datas histórias uso a internet exaustivamente, tudo isto com o desejo de formatar um hipertexto para e-book.

Como seria possível, inclusive o telefone móvel chamado celular, sem o humilde e durável barro do princípio do mundo? O insubstituível barro que aguenta calor capaz de derreter o aço em minutos em plataforma de lançamento de foguetes que levam ao espaço satélites artificiais de comunicação? O barro como metáfora. O barro fundamental de inúmeras civilizações, como o império Mandinga, na África Negra, entre outros na Mesopotâmia e na China. O trem-bala no Japão usa semicondutores cerâmicos. A cerâmica não é apenas passado, mas também futuro da humanidade. Para isto, devemos nos orgulhar de nosso passado e nos mirar na audácia do Gallo em transformar "cacos de índio" em um museu destinado a criar caso.

Claro que, necessariamente, o museu do padre Giovanni Gallo teria parte de honra indispensável em quaisquer conjuntos museológicos de respeito sobre Marajó. Mas, finalmente, não se pode tapar o sol com peneira acreditando que a instituição comunitária cachoeirense tal como se encontra no presente poderá pretender representar a complexidade de todos Marajós. Pois lhe falta meios necessários até mesmo para expressar, completamente, Cachoeira do Arari em toda sua grandeza arqueológica, antropológica, histórica, cultural e econômica que não é pequena.   



O MUSEU DO MARAJÓ Pe. Giovanni Gallo




NOTÍCIAS DA ILHA GRANDE


A arte marajoara, segundo esquema de fases arqueológicas Meggers-Evans, entrou em decadência por voltas de 1400. Não se sabe exatamente o que causou tal declínio aparentemente súbito. Supõem-se que está associado à invasão através da costa do Amapá e ilhas de fora (Caviana, Mexiana e outras menores) dos Aruãs e outras etnias menos conhecidas e menos desenvolvidas. Vestígios da fase Aruã revelam uma cerâmica utilitária despida de interesse estético.  

A fase Aruã, corresponderia ao período histórico para antropologia social dos chamados, pejorativamente, falantes da "lingua ruim" (Nheengaíbas), diversas etnias de língua e cultura nuaruaque (aruãs, anajás, mamaianás, guaianás, mocoões, pixi-pixi, mapuás e outros) que confrontaram, inicialmente, os antropófagos tupinambás (ver, pelos menos, "A função social da guerra na sociedade Tupinambá", de Florestan Fernandes) vindos do Nordeste brasileiro pelo litoral do Maranhão e sertão de Pernambuco em direção ao rio dos Tocantins; e depois europeus (holandeses, franceses e britânicos), dispondo de superioridade tecnológica bélica e náutica, recém-chegados ao Pará. 

Cumpre observar que, do ponto de vista geopolítico colonial, a posse portuguesa pelo Tratado de Tordesilhas (1494) até o Tratado de Santo Ildefonso (1777) se limitava ao Norte do Grão-Pará e Maranhão pela a "linha de Tordesilhas" (nunca determinada exatamente, mas a cartografia histórica admite dividiria a ilha do Marajó, de maneira que a ilha grande para oeste ficaria inteiramente na posse castelhana: por isto, até fins do século XVIII a faixa litorânea entre Soure e Ponta de Pedras era chamada de Costa-Fronteira do Pará (do Rio Pará, melhor dizendo, ou seja, a baía do Marajó).

O estudo antropológico dos Aruak do Caribe, mostra de uma parte um conflito antigo com os Kalina (Karib) praticantes de antropofagia e, com a chegada dos espanhóis (1492) a destruição das Índias Ocidentais (Las Casas), fato que motivou migração em massa de povos de língua e cultura aruaque, através da ilha de Trinidade para o continente. A constelação do Cruzeiro do Sul (chamada Arapari, pelos antigos tapuias) foi a baliza de tais migrações de norte para o sul: o centro de dispersão dos povos Aruak se encontra do Rio Negro, dali eles passaram ao mar do Caribe através do rio Orenoco; subiram até o Acre e chegaram ao Pantanal, com os Terenas. Os Aruãs mostraram ser parentes próximos dos Palikur, do Oiapoque. Com isto quero frisar interesse permanente dos "nheengaibas" em recuperar aparentes posições perdidas na Terra-Firme (Tocantins, Guamá) para o inimigo Tupinambá, o que explica a relativa facilidade que os Jesuítas encontraram em obter a suposta pax com os Nheengaíbas, sem outra coisa a oferecer em relação ao comércio que esses índios faziam com mercadores e traficantes holandeses, ingleses e franceses. De fato, a conquista amazônica se deve a arcos e remos Tupinambás, enquanto a colonização é portuguesa com certeza.

Durante o primeiro período missionário jesuítico no Marajó (1645-1661) a partir da morte do padre Luiz Figueira (1645), nas praias de Joanes, até início do Diretório dos Índios (1757-1798) não tenho informação de registro sobre cerâmica indígena ou sítio arqueológico. A primeira menção bibliográfica por mim encontrada refere-se ao "teso do Pacoval do rio Arari" [sítio PA-JO-01: Pacoval; cf. inventário de sítios arqueológicos no Marajó pelo IPHAN]:

"...se tem achado muitos Pacovaes, mas nunca nenhum maior, que o que se descubrio em 20 de Novembro de 1756, o qual tem o comprimento de 200 braças e 30 de largo...". ("Notícia da Ilha Grande de Joannes dos rios e igarapés que tem na sua circumferencia...", autor anônimo, metade do séc. XVIII).


Esta notícia consta do "Novo Éden" de Papavero et al.no qual se diz que a obra anônima foi encontrada nos arquivos da Real Biblioteca do Porto (Portugal). Já em 1783, o naturalista de Coimbra Alexandre Rodrigues Ferreira viaja ao Marajó guiado pelo Inspetor da Ilha, Florentino da Silveira Frade; nomeado pelo capitão--geral e governador do Grão-Pará e Maranhão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado; para inventariar os bens da Companhia de Jesus em preparativo para a expropriação e expulsão ocorrida em 1760.

Alexandre Rodrigues vai quase na metade de novembro e retorna nos inícios de dezembro do mesmo ano. Quase tanto tempo quando Wallace ficou na ilha Mexiana e na Contracosta, no século seguinte. Se as observações de Wallace tiveram interesse na elaboração da teoria de evolução das espécies a ponto dele, hoje, ser visto como co-autor com Darwin; a "Notícia Histórica da Ilha Grande de Joanes ou Marajó", certa de trinta anos depois da primeira Notícia, apresenta a curiosidade de revelar, com grande probabilidade de acerto, ser Florentino da Silveira Frade
o autor anônimo e confirma a data de achado do teso do Pacoval atribuído já claramente ao dito inspetor. Chama atenção a coincidência, em grande parte, das informações relatadas em ambas Notícias e a exiguidade de tempo para o naturalista verificar de visu próprio tamanha quantidade de dados referente a maior de todas as ilhas do arquipélago.

Compreende-se, enfim, a confidencialidade da missão do capitão Florentino e seus escrúpulos em não revelar aquele trabalho, provavelmente, extraído de relatório secreto endereçado por Mendonça Furtado a seu poderoso irmão, Marquês de Pombal, secretário de estado de Dom José I. Resta aos historiadores do presente verificar a hipótese para reconhecimento de Florentino da Silveira Frade como autor do primeiro relato biogeográfico da Ilha do Marajó; como pesquisadores da história natural fizeram justiça a Alfred Russel Wallace, pai da biogeografia, como descobridor da evolução das espécies a par de Charles Darwin.

Os "pacovaes" são bananais de banana pacova ("costela de vaca", "banana d'água", "banana grande", etc.) cultivados pelos índios. Nome dado pelos novos ocupantes, mas na divisa entre os municípios de Muaná e Ponta de Pedras existe o "rio Paruru" que a toponímia local explica como provável nome aruaque de certa espécie de banana. Os pacovais se achavam juntos a roças de "maniba" (no relato em tela), mandioca. A mandioca plantada pelos índios no teso Pacoval foi reputada de melhor qualidade que a das roças do brancos, pela precocidade e produtividade. Este é um dado interessante, pois no entorno do lago Arari a salinidade não possibilitava aos moradores fazer nenhum plantio.

Ora, o teso na verdade era aldeia sobre aterro artificial. De maneira que além da engenharia hidráulica os índios praticavam agroecologia, como pesquisas realizadas por Anna Roosevelt na ilha revisaram noção anterior sobre a insustentabilidade da mesma para suportar população humana extensa. Sem esquecer o manejo de peixe em pequenos tanques e represas, como eu mesmo vi em Santa Cruz, cerca dos anos 60, uma família tendo apaiaris em cativeiro. O caso da atual cidade de Santa Cruz do Arari chama atenção pelo fato de que, no mesmo terreno de entorno do lago, a salinidade não permitir cultivo de plantas e legumes. Raras famílias de criadores de gado descendentes de imigrantes costumavam construir jiraus para plantar verdura.

Tinha eu 19 anos de idade, quando com um vizinho de mesma idade fiz uma longa viagem de marretagem (comércio de escambo) a remo desde o Rio do Canal, em Ponta de Pedras, até Jenipapo, no lago Arari. Em poucas horas trocamos tudo que levamos por peixe seco e salvado para revender rio abaixo. Fui a Santa Cruz já como repórter, em duas ocasiões, e lá voltei depois de 1999 para acompanhar escritor francês em viagem de estudo e em setembro de 2003, participando de exposição do Museu do Marajó em homenagem a Giovanni Gallo, falecido em março do mesmo ano. Digo isto para contar de minha surpresa em ver uma nova Santa Cruz, primeiro pela solução do abastecimento de água para a população, com poço profundo abaixo da lage geológica que suporta o aluvião impregnado de sal do antigo solo marinho. Mais que isto, com material de dragagem do fundo do lago, desapareceram as "casas caneludas", a cidade hoje é ela mesma um teso moderno. Exemplo de que engenheiros e máquinas poderão, à exemplo do modelo holandês, harmonizar modernidade e antiguidade.

O que é que impede? O "apartheid" social que cega as pequenas elites latifundiárias e mercantis para o fato de que longe de ser problema as populações tradicionais são a parte mais importante da solução para pressionar a União e o Estado a colocar a Amazônia Marajoara em pauta.

Face à resistência dos índios insulanos, os colonizadores da ilha do Marajó não a conseguiram ocupar antes de 1680 com a construção do primeiro curral de gado no rio Mauá, tributário da margem esquerda do Arari (município de Cachoeira do Arari) e ainda assim com missionários (Jesuítas, no Marajó-Açu em 1686; e Mercedários, na ilha Sant'Ana, margem direita do Baixo Arari, município de Ponta de Pedras).





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