meu encontro com Giovanni Gallo deu-se tardiamente, em Belém ano de 1995, através de Camillo Vianna e por causa de um projeto para criação de fundação que deveria se chamar Dalcídio Jurandir e ter um "museu do homem marajoara", que queria ser extensão do Museu do Marajó com cara e temática do município pontapedrense. A proposta era a fundação ter sede em Ponta de Pedras voltada ao desenvolvimento sócio-econômico em parceria com a AMIM (atual AMAM) enquanto o Museu do Marajó, em Cachoeira do Arari, continuaria sendo a principal estrutura cultural de todo Marajó que sempre pretendeu ser. Como os cabocos dizemos, uma mão lava a outra...
eu me encontrava então no serviço ativo do Ministério das Relações Exteriores, depois de trabalhar cinco anos como vice-cônsul em Caiena (1985-1990), e desta maneira se pretendia junto à Associação de Municípios (AMAM) fazer algo para melhorar as relações transfronteiriças na área do Calha Norte, da qual as ilhas do Marajó fazem parte como todo mundo sabe.
mas, a simples notícia da proposta pontapedrense na imprensa causou arrepios na comunidade cachoeirense vizinha. Gallo estava prevenido contra tudo que saísse de Ponta de Pedras como se fosse maquinação do bispo Rivatto, conforme se lê na autobiografia "O homem que implodiu". Para pacificar os ânimos, careceu longa conversa, sob as bênções de são Camilo e santa Sônia Viana, mostrando que estávamos todos no mesmo barco nas águas profundas de Dalcídio Jurandir, que além de tudo era agnóstico mas não se furtou de elogiar o padre dos pescadores do Jenipapo nem faltou com o devido reconhecimento da importância das cooperativas e agrovilas do bispo de Ponta de Pedras.
desde então, eu e o Gallo além de ficarmos velhos amigos vimos que tínhamos muitos mais coisas que nos aproximava do que a nos separar. Parece até que eu e o camarada Emíle Faiet, da França, fomos dos poucos hóspedes a desfrutar dos dotes culinários do Gallo anfitrião inigualável com sua verve sarcástica e dotes de poliglota. Creio que ele nos fez exceção para pernoitar na sua residência à ilharga do museu.
a "ilha" do Marajó mais que arquipélago é um mundo. Mundo de biodiversidade e diversidade cultural, quem vive numa costa da ilha não faz ideia da contracosta e vice-versa. Os "centros" são o reino do nunca imaginado: ali só vai quem precisa e nunca há de ter pressa nenhuma se quiser sair por bem. Os cabocos chamam de jebre a esse lugar indevassável. Disse-me um experto que naquelas ermas paragens os jebristas são senhores do pedaço. Estes são verdadeiros párias, com escassa chance para fugir da fome sem a pesca predatória, caça clandestina ou roubo de gado. E, portanto, dizia o entendido do lugar: "os cabocos sabem que os brancos não sabem"... Forte coisa! Os pobres são conservados na peia da ignorância do mundo lá fora; em compensação os ricos não sabem de fato o que eles "possuem" lá no mais oculto centro da ilha guardado em mistério. Os campos altos não imaginam o que sejam os Mondongos; e a terra-firme na microrregião de Portel é floresta densa e maior do que todas ilhas reunidas.
Eu conheço muita gente que fala sobre Marajó de boca cheia de sabedoria só porque passou uns dias de veraneio ou foi vender algum bagulho ou prestar serviço numa sede de município. Outros sabem de fato, profundamente, uma dada ciência como médico cardiologista conhece esqueleto, ou o contrário. Poucos na verdade podem dizer que conhecem razoavelmente tudo sobre todos 16 municípios do "arquipélago". Eu, por exemplo, apesar de ser veterano aprendiz de pajé(reprovado por falta de fé) e considerado "sabichão" em marajologia nunca estive em Afuá, Anajás, Gurupá, Melgaço e Bagre: embora tenha vivido muito tempo pelos meandros de campos, várzeas, lagos e igarapés que banham iseparavelmente Cachoeira e Ponta de Pedras. O "meu" Marajó não é igualzinho ao dos outros, por isto ele carece de todos os Marajós juntos para vencer o ilhamento congênito. Aliás, não obstante o que eu não sei e até já esqueci aqui debaixo do meu próprio nariz, o Marajó que eu falo está no mundo e não tem acanhamento nenhum de se mostrar com todas suas grandezas e misérias ao mesmo tempo.
Dalcídio Jurandir, nascido em Ponta de Pedras e criado em Cachoeira, viajou por Gurupá e Breves, escreveu em Salvaterra que então era distrito de Soure: ninguém vivenciou tanto o Marajo inteiro, transbordando-o sobre os subúrbios de Belém e o Ver O Peso até as Guianas, como ele fazendo de seu chão um universo inigualável que levou na bagagem para o Rio de janeiro e viajou com ele mundo afora. Porém, o romancista de "Chove nos campos de Cachoeira" era um tipo de "flaneur" que não experimentou a aventura de ir "empregado" na salga do peixe como o Gallo numa safra de pesca no Anajás Mirim, por exemplo.
a rigor, o Gallo nunca passou da hidronavegação do Arari nem me consta que ele "andasse" sozinho pelo rio metido num casquinho de piquiá que nem eu, muitas vezes, às horas mortas. Ou soubesse varar por furos ignotos por onde eu aprendi encurtar caminho com risco de perder a maré e ficar "ilhado" no mato sem cachorro. Não tenho dúvida nenhuma de que lá, meu quartilho de sangue indígena me levou e trouxe seguro. No entanto, Gallo captou o espírito do marajoara como ninguém: quando digo ninguém, quero dizer eu mesmo e o mestre de todos, Dalcídio Jurandir. Digo isto tranquilamente como quem sabe do que está falando.
eu, por minha vez, conhecia Cachoeira e o Lago (assim com letra maiúscula) como um sonho, um lugar mítico aonde se deve ir nem que seja uma única vez na vida: quando, finalmente aos 19 anos de idade, encostei com a montaria a remo no trapiche de Cachoeira.A dita cuja foi um dia uma simples laje de terra, que no estio fazia uma queda, mas terrimou enterrada sob o barro da erosão das margens. Era uma fria madrugada e eu me sentia como o velho Ulisses de volta à Ítaca depois da guerra de Troia (pena que não havia em terra a me esperar nenhuma Penélope nem Irene, ainda que fosse na Rua das Palhas àquelas horas).
ledo engano! A jornada não estava acabada, na verdade a aventura estava só a começar - três dias e três noites rio Arari acima e abaixo numa canoa pequena com meu camarada, vindos a cabo de remo lá de baixo, rio Curral Panema. Mortos de sono e fadiga dois dias depois entramos pela boca do Anajás Mirim adentro, clara lua no céu dava um verniz de grafite às água silenciosas: por engano as casas caiadas na beira entraram a correr pelo campo quando ouviram estrondo dd remadas, dispararam aluadas como vila fantasma. Não era ainda Jenipapo nunca dantes visto na vida. Era só um rebanho de gado nelore que pastava... Oh noite de pesadelo e iniciação! Dois neófitos sem mestre a bordo perdidos no labirinto do Minotauro (noves fora o susto da noite passada em noite ferrada frente à fazenda Pindobal, quando um lote de búfalos rolou ribanceira abaixo e coalhou o rio... Nem um nem outro remador jamais tinha visto tantos búfalos de perto, mas vivia-se com estórias da cabeça de búfalos brabos que viravam canoas e pintavam a saracura).
Oh, por Deus! Se arrependimento matasse eram dois corpos boiando numa canoa de bubuia na correnteza. Um farol de bordo numa geleira dormindo no outro lado apontou o rumo da boca do lago. Era a salvação, paresque... Lá fomos nós a bom remar na ilusão de que já iríamos chegar. O rio do sono é o maior rio do munto e as suas voltas são incontáveis. E nada de aparecer o Lago e porto do Jenipapo: ouvimos então zoada de barco-motor que parecia vir em sentido contrário. Todos sentidos alertas, pois numa canoa pequena em rio estreito carece perícia para não ir ao fundo no banzeiro que os barcos boieiros fazem na passagem. Já se via o mastaréu iluminado e as mil e uma voltas que o tal barco aparentemente fazia. E nada dele passar pela proa da humilde montaria dentro da noite escura. Súbito, a zoava do motor chegou ao máximo. Pensamos calados: É agora! Abriu-se a cortina do mato escuro sob o pálido luar da madrugada: o temido barco estava bem ali à proa da canoa... parado e amarrado no demandado porto do Jenipapo. Puta merda! disse o camarada, recolhendo o remo d'água num misto de raiva e contentamento. E foi um encanto danado (danado como se há de ver). Um galo despertou no poleiro sobre estivas e a manhã lá em terra deu sinal de vir a furo. Então, este canto do galo solitário se multiplicou em mil e tantos galos arquitetando a matinada. O Lago de poderosas recordações e histórias pelas quais dois caboquinhos de baixo se passaram por marreteiro pra ver de perto e contar de certo; estava ali logo diante. Foi só tempo para calar a vara naquele barro no fundo dos começos do mundo e desmaiar sob a tunda medonha de carapanãs e muriçocas. Na descida, dois um dia depois, dentre rumas de peixe-seco e estórias meu velho conhecido Plasmódio iria comigo produzir mais um surto de paludismo. Mesmo assim, o destino quis que o pirralho salvo de se afogar nas águas do Marajó-Açu e depois de morrer de malária do Arari, voltasse outras vezes para aprender outras histórias e até escrever carta ao Presidente Lula, dia 7 de setembro de 2003, em exposição do Museu do Marajó seus meses depois da morte de Giovanni Gallo, gritando socorro Lago Arari! Também em Jenipapo, trazendo o escritor e jornalista Sébastien Lapaque, do jornal francês "Le Figaro", para dar notícia do fim deste mundo. Em Cachoeira, por acaso, a última entrevista de Giovanni Gallo foi para a equipe de Alain Dayan para o Discovery Chanel... E, com humor, Giovanni encerrou a entrevista dizendo "ne vous inquiete pas, Varella connais tout çà...". Mal sabiamos àquela que era uma despedida e que nunca mais iamos nos encontrar.
agora é a vez da saudade e relembrar que vinte e tanto anos depois daquela primeira viagem a remo ao Arari, por sorte, o caboco em vez de fazer contrabando nas Guianas como outros mais arremediados, havia virado funcionário federal e dessa maneira motivei vinda de delegação intermunicipal da vizinha Guiana francesa para vir conhecer "le musée du Père Gallo" em Cachoeira e, reciprocamente, com a AMAM levar o Gallo em pessoa como estrela do Marajó numa imponente delegação de meia centena de pessoas, contando prefeitos, vereadores e representantes do IPHAN, UFPA e Museu Goeldi. Lá o prefeito municipal de Sinnamary convidou o Gallo como consultor a fim de organizar no lado francês um museu com o mesmo conceito da invenção museológica marajoara. O que acabou não acontecendo devido ao notável fenômeno da perda de memória e desunião que persegue a gente marajoara há séculos...
digo isto, primeiramente, para lembrar que Marajó é useiro e vezeiro de deixar de montar em cavalo selado e perder oportunidades de ouro. Segundo, para dizer que o Gallo não precisou morar noutro lugar que não fosse as margens do Arari para "pegar o espírito da coisa", como ninguém. Tal foi o espanto de Dalcídio Jurandir quando as cartas da fiel correspondente Maria de Belém Menezes começaram a chegar na mansarda de Laranjeiras, no Rio, com recortes de jornal levando as reportagens do padre Giovanni. Logo o grande escritor marajoara mandava recado ao padre para selecionar as reportagens e publicar em livro. Coisa feita! Hoje o clássico, "Marajó, a ditadura da água". Por que Dalcídio reconhece sua "criatura grande" nas páginas tensas de Giovanni Gallo? Porque aí se encontra o melhor testemunho do ciclo romanesco Extremo-Norte, elogiado por Jorge Amado e premiado pela Academia Brasileira de Letras (ABL) pelo conjunto da obra.
quando, cerca de 1971, desconhecido estrangeiro padre Giovanni Gallo chegou pela primeira vez ao Marajó, para ser pároco da isolada Santa Cruz do (lago) Arari, eu já tinha ido embora e estava chegando como mais um migrante nortista em Brasília. Eu me restabelecia de séculos de gerações no "inferno verde" e, individualmente, de dois anos de doenças (1968 e 1969) que nem pajé dava jeito: recidiva de malária mal tratada, fadiga de muita labuta "sem carteira assinada" e depressão medonha impediram-me, por acaso, de virar herói do povo acompanhando jovens camaradas chamados a dar força à revolução lá pelas matas do Araguaia nos prologômenos da guerrilha, que só ouvi falar quando afinal de contas Inez era morta.
E já no papel de vice-cônsul em Caiena entrevistando ex-combatente da repressão militar de 1973, ele também vítima de um sistema perverso do qual um magistrado patriota, quando passavam caçambas de empresa construtora levando tropa dos quarteis não se sabe para onde; comentou comigo falndo baixo para não sermos escutados por terceiros. Pois naquele tempo o medo pairava sobre bares e lares da cidade das mangueiras: "lá vai o filho da lavadeira lutar contra o filho da lavadeira"... Meu avô Alfredo dizia, "para bom entendedor meia palavra basta". Reinava pesado silêncio pelas portas do Comércio em torno ao Fórum e os dois palácios da praça D. Pedro II com a estátua do general Gurjão ao centro para nos lembrar dos "voluntários" da pátria levados a muque para pelejar na Guerra do Paraguai, onde meu bisavô Raymundo Pereira foi dar com os costados. Até os urubus do Ver O Peso bateram asas em retirada àquela hora e só se ouvia o ruído sinistro de pneus dos caminhões da tropa rodando sobre o asfalto escuro. Que tem a ver isto agora com os 84 anos de nascimento do Gallo, caso ele estivesse vivo para ver como vai passando o museu inventado a partir dos "cacos de índio" que o camarada Vadiquinho levou num embrulho para dentro da paróquia?
tem a ver que o padre não sabia da guerra aonde ele se meteu e eu ainda não sei direito o que fazer de minha vida para achar paz justa e verdadeira neste latifúndio onde vim ao mundo. Entre o pirralho tonto do Fim do Mundo, na ilha do Marajó; e o "ballila" de Turim (Itália) há pelo menos uma passagem curiosa. Giovanni Gallo foi, compulsoriamente, membro da "Opera Nazionale Balilla", órgão estudantil e paramilitar do Partido Nacional Fascista, fundado na Itália de Benito Mussoline um ano antes do nascimento do fundador do Museu do Marajó. O nome "Balilla" foi tirado de Giovan Battista Perasso, chamado "Ballilla", um jovem nacionalista que, em 1746, teria dado início à revolta contra a ocupação da Itália pela Áustria. Ballila se tornou ícone do revolucionário do regime fascista. Só para a gente lembrar a linha do tempo, convém notar que por essa época, no Marajó, Florentino da Silveira Frade acabava de fazer doação de terreno da sua sesmaria do Ananatuba para criação da freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Cachoeira do rio Arari (1747) e nove anos depois achou o teso do "Pacoval do Arary", primeiro sítios arqueológico que se teve notícia na ilha do Marajó (cf. Alexandre Rodrigues Ferreira, em "Notícia Histórica da Ilha Grande de Joanes, ou Marajó", Lisboa, 1783).Gallo a inventar o incrível museu com "cacos de índio" e nós a praticar arqueologia histórica com fragmentos de historiografia mal cosida.
antes que o Gallo respirasse o primeiro fôlego de ar fresco na antiga ilha pacificada pelo padre grande Antônio Vieira (27/08/1659)já o caboquinho de Ponta de Pedras, analfabeto político de pai e mãe tangido pelo êxodo rural em busca de emprego e estudo na cidade grande, por via do futebol amador caiu nas malhas de um certo "movimento Águia Branca" e logo depois num denominado "Movimento Estudantil Patriótico", ambos atrelados ao "Partido de Representação Popular (PRP), afinal extinto por falência múltipla. Crente de que estava em boa companhia e mesmo já tendo lido, muito por cima, o romance "Marajó" do tio Dal; só abri os olhos de que, de fato, havia caído num ninho de "galinhas verdes" (integralistas), quando a velha guarda fascista mostrou a cara e passou a doutrinar a juventude tecendo loas ao "chefe" Plínio Salgado. Talvez o antigo "ballila" de Turim não tivesse a dimensão exata que era passar a ser soldado de Cristo aos 29 anos de idade, como o descendente de Dalcídio Jurandir aos 19 ignorava por completo o que se havia passado durante a perseguição fascista de Vargas aos revolucionários de 1935, a prisão do tio e condições penosas em que ele reescreveu com ajuda da esposa o "Chove nos campos de Cachoeira", ganhador do prêmio Dom Casmurro. Gallo deveria ser avisado logo, que nas praias de Joanes (Salvaterra) o primeiro jesuíta a pisar em Marajó, Luiz Figueira com seus companheiros foi massacrado, em 1645, supostamente pelos Aruãs acusados de ter comido os padres (o que não pode ser verdade pois a gente aruaque muitas vezes foi vítima de antropofagia por parte de inimigos hereditários, Galibi e Tupinambá, mas repudiava visceralmente o canibalismo).
Gallo na Europa não imaginava o que lhe esperava no Maranhão e depois no Pará.O caboquinho de Ponta de Pedras ainda tinha muito a aprender na cidade grande, além de ser um grande "perna de pau" nas tardes de futebol suburbano. No loteamento do governo JK estabeleceu-se co-existência mineira entre integralistas e comunistas. Esta baderna infiltrava-se pelo serviço público e redações de jornal. E, felizmente para o caboquinho bisonho, na eleição da sucessão de JK foi lançada a chapa do general Teixeira Lott (senhor da espada que garantiu a posse de Juscelino) para presidente e Jango Goulart,fazendeiro dos Pampas, herdeiro político de Vargas e inteligente bastante para ver que sem reforma agrária a industrialização levaria rapidamente as cidades a virar praça de guerra e atear fogo à guerra-civil num contexto mundial mortalmente bipolarizado.
No Pará velho de guerra, o PSD de JK e Lott teve como candidato ao governo estadual, pelos herdeiros do déspota populista Magalhães Barata; o jovem advogado marajoara Aurélio do Carmo: foi a bordo de tais candidaturas, com a contradição viva de comunistas e integralistas no mesmo palanque, que minha ingenuidade se foi com a maré vazante lavando a pedra do Ver O Peso.
para encurtar a conversa que já vai longa: no debate entre "ballilas" do MEP e a juventude comunista, tive a coragem suicida que só um caboco marajoara pode ter. Desafiei a rapaziada vermelha a visitar, na boa; o ninho da tal águia branca (na verdade, "galinha verde" no choco) e discutirmos abertamente nossas questões de juventude aloprada - espantosamente comuns, malgrado os cercamentos teórico-ideológicos impostos pelos mais velhos. Resultado da falseta: tive a honra de ser expulso do diretório municipal do caricato PRP classificado, diz-que, vieram me dizer, como "perigoso agitador do comunismo internacaional"...Grande piada! Se não fosse perigoso num mundo caduco. Onde muitos, só por achar isto ou aquilo, nunca mais foram achados em canto nenhum...
puxa vida, eu era comunista e não sabia! Melhor que ser galinha verde sabendo ou não... Até então, a única viagem "internacional" que eu fizera fora em direção a Abaetetuba e Bragança, a primeira por simples excursão estudantil, a outra como vendedor de fotografia por necessidade de ganhar alguns trocados. Cada viagem destas daria uma novela se eu tivesse tempo e engenho para tanto.
Depois dessa revirada, em plena ditadura, fiz que nem o conselho que o pai do camarada Neuton Miranda o aconselhou na cladestinidade: "faça que nem tralhoto". (peixinho esperto da beira da praia, com quatro olhos para ver longe predador do fundo e da superfície ao mesmo tempo). Até então eu estivera crente de que a arma requerida da revolução pelo Sul do Pará era tão-só cartilha de ABC, tabuada e informação política para tirar da servidão da terra irmãos camponeses que gemiam ao cabo da enxada sob sol à espera do Godot da reforma agrária...
Claro está que tinha que ser assim o recrutamento de novos cabanos ardentes de justiça social. Espécie de vestibular para, depois de aprovados na labuta e batizados na luta passar a enfrentar "de vera" a guerra suja da Ditadura militar. Me lembro bem de um camarada, trabalhador corpulento, no "aparelho" mais óbvio que podia haver em Belém, um escritório de representação comercial na avenida Presidente Vargas; todo ele dia vinha perguntar, nervoso; "quando vai começar a revolução"?... A gente tinha pressa e sede de justiça, mas vai lá saber quando chegaria ordem de quebrar o pau!...
quanto custou a Constituição-Cidadã de 1988 e ainda irá custar sua garantia e continuou aperfeiçoamento constitucional? Só quem ainda não perdeu de tudo a inocência cultivada pela Censura pode acreditar que bastariam apenas greves, passeatas e discursos cívicos pela liberdade para abalar o moral do sistema autoritário de matriz fascista e retornar à democracia dantes, morta pelo golpe de estado de 1964 no bojo da Guerra Fria entre os EUA e a URSS.
em 1956 já tinha passado em Jenipapo em canoa a remo com meu camarada Ovídio Araújo Freitas em figura de "goiaba" (marreteiro das bandas do rio Marajó-Açu, em Ponta de Pedras, trocando mercadorias em espécie por peixe-seco e outros frutos da pesca lacustre conforme o velho costume do escambo). Sou dez anos mais moço do que o falecido criador do Museu do Marajó, nasci em Belém do Pará por necessidade médica de minha mãe e me criei em Ponta de Pedras desde tenra infância: quando abri meus olhos e dei os primeiros passos, minha familia morava numa casa modesta no Fim do Mundo (costumo dizer que minha história de vida começa pelo fim: bom começo para alguém que a cada dia vive como se a História estivesse apenas no começo).
quando eu entro ao Museu do Marajó nao vou lá feito turista admirar a arte exótica de um povo extinto. Na verdade, o vejo como minha casa ancestral - o bem e o mal lá confundidos, inseparáveis, muitas vidas e mortes entrelaçadas numa teia sem fim. O Gallo se fez parente da gente, grande cacique marajoara, e o que eu não conseguir trazer de volta de nosso antigo tesouro saqueado e levado embora sem dizer adeus, alguém mais competente e mais adiante há de levantar a bandeira invísel das "tribos extintas" desfraldada sobre tesos ao deus dará há mil anos atrás. Quem viver verá.
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