Crescemos juntos na mesma vila ilhada porém apartados por uma estreita fronteira invisível (Itaguari, Ponta de Pedras, antes e depois): em meus melhores delírios poeticos transformei cada pedra, cada pedaço de pau naquele chão na metáfora de Vilarana: a vila que nem vila era http://vilarana.blogspot.com/. Por um destino cruel, meu salvador não teve mesma sorte que a minha: cedo ele partiu com outros conterrâneos em busca de trabalho, consta que rodou de seca a meca até arranjar trabalho como peão de plantação de pimenta do reino na colônia japonesa de Tomé Açu. Mas, invariavelmente, rente como pão quente; como tantos embarcou certo dia no contrabando das Guianas: larga porta de males para muitos e rara chance para poucos bafejados pela sorte...
Passado tempo ele voltou a terra natal, já era outro. Aparentemente estava bem na vida. Que é estar "bem na vida"? Nas circonstâncias, é ter algum dinheirinho no bolso, saúde, não ter ficado velho ainda, nem haver responsabilidade nenhuma com rabo de saia e filhos... Ali todavia, o cara viajado arrumou mulher e com ela vieram os "barrigudinhos" para dar sustento... Então, a sorte lhe desertou. Culpa da famosa "caveira de burro" enterrada, a qual atrasava a vida de todo mundo ali e lhe consumiu o último dinheiro ganho lá fora (sabe deus como), a saúde minguou e o ânimo foi embora. Lá, havia diversos desempregados e alcólatras, não era para menos... Do naufrágio final, no entanto, salvou-lhe um diligente pastor evangélico e a Bíblia, eu não duvido que ainda virão me dizer que o cara chegou ele também a ser pastor: tal qual meu finado compadre Panga, que de vaqueiro sem eira nem beira passou proprietário de terra e comerciante. Não sem antes se converter ao protestantismo e virar marreteiro na feira do Ver O Peso. Pra gente não duvidar do poder da fé e da capacidade humana quando quer juntar dinheiro (amém).
Iguais ao meu salvador do rio das crianças afogadas, outros tantos ribeirinhos foram salvos das águas ardentes de alambique e da sina dos canaviais onde os avós mourejaram até o fim de seus dias, pelo senhor Jesus. Caramba... Porém, infinitamente maior é o número das vítimas da pobreza do IDH local onde, por segunda sorte, eu escapei também em direção e caminho diferente todavia na mesma rota do Oiapoque e Cabo do Norte (Amapá) da nossa vida insulana. O diabo é que pastores salvadores de cabocos bebedores de cachaça e cerveja, desgraçadamente, insistem pelo mesmo consequinte do velhos padres católicos em amaldiçoar a antiga religião de índios e negros outrora acorrentados pelos brancos à pior Miséria deste mundo.
Antes que eu vos diga que carece "palé kréol" (falar crioulo guianense) e entender um pouco de "taki taki" (dialeto Nèg marron, quilombola do Suriname), além de ler a tese "Guyane française" de Ciro Flamarion Cardoso; para saber o que se passou e o que se passa agora na outra margem do Oiapoque, convém concluir os entretantos:
A bem dizer, eu nasci no Fim do Mundo embora o parto da galega - minha saudosa mãe - tenha acontecido sob cuidados médicos na maternidade da Santa Casa na cidade grande. O outro moleque nasceu no confinado bairro do Campinho em casa mais pobre do que a minha, gente preta descendentes de escravos do engenho do português Bernardino Santos. Meu pai era filho do rábula capitão da guarda nacional Alfredo Nascimento Pereira e da índia catequizada Antônia Silva, da aldeia da Mangabeira. O pai dele era compadre do meu, o carpinteiro Camilo, homem valente porém vitimado pelo alcoolismo, naturalmente depois de ser lesado desde o berço pela injustiça social. Aqui as diferenças entre duas vidas vizinhas pelo tempo e o espaço na fronteira social do extremo-norte brasileiro.
Estou para o historiador como o cão está para o caçador. O instinto e o faro do animal levam o homem à presa e ambos são movidos pela Fome. Na filosofia caboca (nascida do mato sem cachorro)tudo tem mãe (causa), inclusive a Fome... Mas, o que seria então a mãe da Fome? A Vida!Quem nasce chora logo e quer mamar: quem descuida do econômico e mora na filosofia fala de barriga cheia. A fome pois é o motor de tudo na vida e na morte. Uma vez saciado de comida e bebida, haja a sonhar e cogitar ("primo mangiare dopo filosofare, dizem os italianos). As ilhas do mundo sonham conquistar novos continentes e os velhos descobrir ilhas desconhecidas.Assim se engendra a história e a estória geral deste mundo.
Deste os primeiros dias de minha vida, no Fim do Mundo, despertei com as vozes dos canoeiros e ruídos das igarites no porto na partida para a Cidade. O rio se confunde à baía e esta leva ao vasto mundo para além do futuro e do mar profundo. Hoje são caminhos pelo ar que fazem meu despertar: o avião da madrugada, partindo de Val-de-Cães para Brasília, me tirou da cama às cinco horas da manhã.Ontem as igarites me suscitando imaginações do mundo lá fora; hoje os aviões sobrevoam meus sonhos e pesadelos... Não sei se deuses da Mina com seus tambores sagrados a batucar-me a memória ou caruanas a bulir com o inconsciente tocaram-me para fora do leito para ligar a internet. Algo me diz que, mais que nunca, está na hora de religar os conhecimentos do passado ao futuro (merci, Edgar Morin!). Devo afastar a preguiça e terminar de escrever a "Breve história da Amazônia Marajoara" ver in http://academiaveropeso.
Dizem que Sócrates havia um demônio particular. Menos que anjo da guarda, meu espírito pessoal deve ser afilhado do mal afamado e excomungado herói civilizador da terra dos Tapuias, o Jurupari que fala e ri pela boca do pajé. Por esta parte não tenho muito que reclamar, embora por arte do dito cujo tenha me metido em boas enrrascadas... Todo mundo sabe ou devia saber que foi o Bom Selvagem tupinambá conquistador das "amazonas" amazônicas (europeus inventaram e colonizaram a Amazônia; falta agora descolonizá-la e nacionalizar pelos respectivos paíse amazonicos na Organização do Tratado de Cooperação Amazônica - OTCA). Mas, o rio Oiapoque é um museu a céu aberto onde a história e a estória fazem uma fronteira muito permeável e, portanto, um dos melhores lugares do mundo para discutir a relação Norte-Sul...
Quando junho chegar vai se inaugurar a ponte prometida por Jacques Chirac e Fernando Henrique Cardoso, reprojetada por Lula e Sarkozy; esperada longamente pelas gentes locais duas margens. Também há de se terminar de fazer e começar a funcionar o Instituto Binacional da Biodiversidade. Diante disto tudo, nós outros os cabocos, crioulos, índios e quilombolas mesmo sem entender patavina de geopolítica nem história de branco precisamos despertar e assumir nosso lugar para que a história não se repita como farsa.
Algo me diz que nomes de lugares, plantas, bichos, índios, negros, crioulos, cabocos são fragmentos e peças de quebra-cabeça - com exemplo dos "cacos de índio" refugados pelo saque dos tesos (sítios arqueológicos) da bacia Anajás-Arari, que deram a Giovanni Gallo a formidável intuição de inventar o MUSEU DO MARAJÓ http://www.museudomarajo.com.br - donde o presente poderá resgatar a grande dívida colonial para invenção do futuro que todos desejam, do Oiapoque ao Chuí, do Ártico à Antárdida, dos extremos Oriente e Ocidente confundidos na foz do Amazonas.
Meu medo é que se inaugure a ponte em concreto sem construir jamais a imaterial que deveria ligar as duas beiras do Atlântico equatorial. Que se ensine tudo sobre a biodiversidade amazônica e nada a respeito da diversidade cultural do circum Caribe... Que a Europa e a América continuem ignorando a sociologia latino americana de Ciro Flamarion Cardoso, esquecido lá pelo distante Rio de Janeiro. Que pode mais um caboco apenas alfabetizado com suas poucas viagens fora do Fim do Mundo? Para consolo dos parentes e parceiros deixo a seguinte http://viagemphilosophica.blogspot.com/2010_07_01_archive.html .
Algo me diz que, na área geocultural das Guianas, arquipélago do Marajó e ilha de Trinidad inclusive; o controvertido "rio de Vicente Pinzon", Oiapoque/Oyapoc, tem parentesto linguístico certo com o antigo povo "Yona"/Iona/Joane... Como se chamou algum tempo a "Capitania de Ilha Grande de Joannes" (1665-1757) ou Marajó, doravante Amazônia Marajoara.
UM RIO ONDE O TEMPO FAZ MORADA E UMA PONTE SOBRE O MAR-OCEANO
Escrevi no ensaio "Amazônia latina e a terra sem mal" (Belém-PA, 2002) que o Oiapoque é uma "universidade" aberta. O tempo ainda poderá mostrar que isto é verdade, se os mestres que lá estão há várias gerações há mais de um milênio não forem tomados por neófitos da mesma doutrina colonial de 500 anos.Não tenhamos ilusão, nem Brasília nem Paris estão conscientes de suas responsabilidades sobre a peculiar fronteira do Oiapoque. Por outra parte, Belém e Macapá no lado brasileiro ou Caiena e Paramaribo no outro lado não conhecem tão bem aquele microcosmo como deviam. Talvez a ponte com todas suas contradições e esperança venha a ser sinal de alguma coisa mais interessante do que tem sido estes confins entre o velho e o novo mundo.
Segundo o senador Randolfe Rodrigues (PSOL-AP), a inauguração da ponte sobre o rio Oyapock está prevista para junho vindouro.Tal informação teria sido obtida junto a embaixada da França em Brasilia, onde ele foi solicitar presença de representantes da Comissão de Relações Exteriores do Senado (Brasília) por ocasião da dita inauguração. Ele encontrou-se também com o embaixador do Suriname com a ideia de reforçar a cooperação do Amapá com os vizinhos mais ao norte da área das Guianas, da qual o Amapá e Pará fazem parte ( fonte: www.brasilyane.com/ ).
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