sábado, 2 de abril de 2011

a paisagem amazônica na menina dos olhos do menino ribeirinho

Hoje me lembrei de ter escutado, por primeira vez, o nome daquele tio como se falassem de um malfeitor fugido para bem longe da casa de seu pai como um filho pródigo. Com efeito! Com tristeza estampada à face, tia Armentina com catecismo do arcebispado de Belém às mãos lia para minha mãe que os livros do Dalcídio tinham ido parar no index de obras impróprias à boa consciência católica. 

Eu era muito pequeno mas logo a proibição teve efeito contrário, pois aguçava a curiosidade da gente. De todo modo, o arcebispo ficasse tranquilo pois livros do dito ou outro qualquer que não fosse catecismo capa branca, novinho em folha, trazido de Belém pela tia para presente ao sobrinho; não havia na pacata vila Itaguari (antes e depois Ponta de Pedras)nem pra remédio.

o rio era intermédio entre o tempo e o espaço, à meia maré do inferno verde e do paraíso ecológico. Único caminho da vila à Cidade grande através da baía (vasto mar de ágau doce)malmente vencida à vela.Espaçotempo do Itaguari ao sítio ancestral do Serrame: quando a genta falava "este rio" queria dizer o Marajó-Açu; e o Arari era o "outro rio". Uma geografia à margem da cartografia e da história oficial. Quisera eu agora saber quantas remadas eu dei a bordo do casquinho talhado num tronco de piquiá, quantas chuvas e trovoadas eu passei naquele canal de águas barrentas e terras caídas; doravante emendadas e costuradas pelo fio da memória na terceira margem do rio.


Mal escapei de um naufrágio besta no meio do rio, salvando a  mim mesmo e ao pirralho filho do Demétrio, a canoa emprestada pelo compadre Manduquinha e a bagagem que eu levava a bordo; saltei à terra e irrompi pelo cercado da casa de minha avó com a vela encharcada às costa pingando água saído de dentro da noite escura e da boca do rio antropófago como uma assombração de antanho.

Daquela vez, quase matei a velha de susto! Não foi a primeira vez que o Marajó-Açu queria me levar para o reino encantado da mãe d'Água: na primeira eu era jito e não sabia nadar, salvou-me o colega Niquelado; pretinho e safo que nadava que nem boto tucuxi... Outro dia, passado tempo, primo Lindolfo foi dizer à minha avó que não me deixasse mais viajar sozinho naquele rio, metido dentro de um casquinho de nada em horas mortas. 

De fato, que eu havia calculado mal e errado a virada da maré no Puxador - lugar do Canal onde as águas deste e do outro rio se contradizem pelas ilhargas da ilha do Itaguari -, peguei correnteza contra pela proa. Em vez de seis, gastei oito horas de remo. Sabe o que é uma hora de remo? Depende da precisão ou da preguiça do remador: verdade seja dita, enquanto há luz do pôr do sol diabo é quem rema ligeiro e desperdiça a paisagem, mas porém quando o verde da mata se converte em tisna, haja a remar e a remar... 

A noite me alcançou antes da boca do Tijucaquara. Desde então, até a boca do igarapé Armazém junto ao Itaguari; tenho leve impressão de ter superado o recorde olímpico de remo! Não acreditar em cobra grande é muito natural quando a gente está em terra firme em dia claro, quero ver descrença é de noite remando no meio do rio, sozinho, metido num casquinho de nada. Pois, o primo quando me viu encostando na ponte da Casa da Beira me disse: "eh, Zé! Num facilita, olha bicho do rio"... E foi logo dizer à vó Sophia, "mea madrinha, diga pro Rodolpho não deixar o filho dele andar sozinho neste rio em horas mortas...".


Depois do naufrágio no temporal eu fiquei sossegado uns dois dias antes de sair, de novo, rio acima. 'Antão', paresque pra me prender até fazer efeito o banho de ervas de tirar panema e sentar juízo; minha avó abriu o velho baú como se fora a arca do tempo perdido. Dele sacou um livro todo embrulhado em papel celofane e me disse, como voz suave porém imperativa: "lê, este menino"!... "Que é isto", perguntei. Ela me respondeu, "é o livro do teu tio"...Desembrulhei e vi que estava escrito na capa a palavra "Marajó" como se fosse um código sagrado preservado pelo tempo, só muito depois me dei conta de que o arquipélago do Marajó todinho e os subúrbios de Belém estavam dentro do romance como num museu vivo.

Era um feitiço, paresque. Comecei como quem prepara viagem a remo, pelas beiras... Assuntando o tempo e a força da maré. Antes de dobrar o primeiro estirão, digo capítulo; já não podia mais desembarcar da estória: cairam-me as escamas dos olhos. Meu caminho de Damasco. Depois foi como aquelas idas e voltas pelo labirinto das ilhas. A cada passagem o espanto: o rio nunca é o mesmo, mas o tempo não passa...


tudo isto para, novamente, falar das lembranda de família de Dalcídio Jurandir e convidar o leitor a embarcar na crítica de Pedro Maligo sobre a obra do "índio sutil":

Veja http://www.usp.br/revistausp/13/06-pedro.pdf

Um comentário:

  1. zé, obrigado por me apresentar aos meandros da cultura marajoara, muito bom!

    célio turino

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