sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Educação Ribeirinha: depoimento em busca de um conceito

Escola Estadual Dalcídio Jurandir
Escola Estadual de Ensino Médio "Dalcídio Jurandir", em Ponta de Pedras (Marajó), Pará.


Nos dias próximos passados, Brasília esteve agitada pela discussão no Congresso da partilha federativa dos royalties sobre exploração do petróleo do Pré-Sal. Cedo a União Nacional dos Estudantes (UNE) defendeu 100% destes recursos para a Educação e o governo federal encaminhou projeto de lei neste sentido, enquanto os chamados estados produtores puxam a brasa para sua sardinha, os mais estados e municípios armaram cabo de guerra reclamando rateio igualitário e distribuição por outros setores da despesa sem exclusividade para a Educação. A Presidenta Dilma aprovou o projeto encaminhado pelo Congresso, entretanto vetou artigos sobre os ditos royalties e se preparou para reabrir a questão através de Medida Provisória, segundo os jornais.

A polêmica nacional sobre o financiamento público da Educação interessa sobremaneira à Educação Ribeirinha da criaturada grande de Dalcídio Jurandir, populações tradicionais das ilhas do estuário do maior rio do planeta Água. O golfão equatorial por onde escoa continuamente cerca de 20% da água doce superficial da Terra, Amazônia Marajoara, entre as Amazônias verde (florestal) e azul (marítima). Nesta região amazônica insular, no Estado do Pará, 410 mil brasileiros em 16 municípios, contando mais de 500 comunidades rurais agroextrativistas, num território de 104 mil km², dos quais 65 mil km² são constituído de 1700 ilhas, o IDH denuncia a pobreza da gente marajoara com índice de analfabetismo beirando a 25%.

Ninguém precisaria ser pajé para adivinhar nem PhD para comprovar, que no espaço ribeirinho do rio-mar a Educação deve ser tábua de salvação da Criaturada para que aconteça de fato o tal desenvolvimento sustentável do grande Pará a par da segurança da União numa região-chave como esta na fronteira lateral marítima Norte.


EM BUSCA DE UM CONCEITO HUMANO DE EDUCAÇÃO FUGINDO DE PRECONCEITOS UNIVERSALIZADOS

Poucas pessoas dispõem de informação suficiente a respeito da história da educação na "ilha" do Marajó. Dentre raros pesquisadores que podem ser encontrados, talvez um ou dois destes concordariam em ultrapassar a catequese dos índios pelas missões religiosas como sendo o horizonte extremo desta educação, situada a partir da segunda metade do século XVII. 

Nós, porém, com as vantagens e desvantagens de todo e qualquer "presepero" (pra não dizer diletante), queremos nos arriscar às piores críticas para defender ponto de vista segundo o qual, bem o mal, todo mundo tem lá a sua educação. Ainda que seja ela rude e particular aprendida a três porradas à margem do aparelho oficial. Desta maneira, a "educação ribeirinha" que a brava gente marajoara reclama tem uma história mais longa do que se poderia imaginar.

É obvio que o paleo-índio amazônico, depois de vagar cerca de 5 mil anos atrás de comida pela beira de rios, lagos e igarapés em busca de frutos e peixe do mato; fazendo valer sua própria natureza humana teve ele com os animais da fauna regional excelentes mestres de sobrevivência e arte simbólica. A caba caçadeira, segundo Gastão Cruls em "Hileia Amazônica", teria ensinado ao índio a arte da cerâmica e o japiim com o trançado de seus ninhos pingentes de galhos de árvore dado inspiração à supimpa invenção da rede de dormir. Enquanto a jararaca com seu mortal veneno foi sugestão do curare atirado de emboscada com setas de talo de patauá e zarabatana feita de braço de paxiúba. A lista não é pequena, a começar da palafita por simples imitação do mutá feito sobre árvores de mangue... 

A herança genética dos mais adaptados fez desta privilegiada gente titular do direito de primogenitura do Trópico Úmido neotropical. Aos eleitos do sol e da chuva o Éden selvagem a seus inimigos invasores o Inferno Verde... Então, como a arqueologia de Anna Roosevelt e Denise Schan demonstram, a ecologia de um bioma bipolar assim no fluxo e refluxo da maré sob ditame da Lua e império do Sol oscilando, de seis em seis meses, entre a ditadura da chuva e a pobreza da seca no fim do estio; criou o cenário desafiador das condições extremas entre fartura e penúria onde a primeira "ecocivilização" da Amazônia nasceu, no ano 400 da era cristã aproximadamente, por invenção humana.

Admito que chamar de "arquitetos" e "engenheiros" àqueles ribeirinhos primitivos causa escândalo às mentalidades 'high tech' de nossos dias. Pior é a suprema presepada em dizer que a velha Cultura Marajoara de mil e quinhentos anos, "extinta" (sic) segundo opinião geral; é comparável a uma "universidade pés descalços"... Mas, olhando sem preconceito, "cacos de índio" de que Giovanni Gallo fez o primeiro ecomuseu do Brasil (não reconhecido oficialmente até hoje) avant la lettre, certamente tem o significado cultural de uma ressurreição. O discurso do silêncio nos tesos isolados, quando se contemplam os ossos do passado envelopados pela arte primeva deste mundo, quer nos dizer talvez alguma coisa que ainda nós não entendemos.

O fundador do "Museu Paraense", Domingos Soares Ferreira Penna; era um diletante tal qual o criador do Museu do Marajó, Giovanni Gallo. Raimundo Morais, autor de "O homem do Pacoval", idem. Dalcídio Jurandir e João Rodrigues Viana, autodidatas. Quer dizer, o Marajó  ("homem malvado" ou "barreira do mar") ensina naturalmente a Criaturada grande ribeirinha. Portanto, a educação ribeirinha nestas ilhas filhas da Pororoca já existia, quando o padre e educador jesuíta Luís Figueira (1645) naufragou na Baía do Sol com seus companheiros massacrados e "devorados" (supostamente, pelos bárbaros Aruãs; segundo informação dada pelos Tupinambás, inimigos destes últimos e que se propagou como verdade difundida pelos jesuítas) nas praias de Joanes.

CARTA DE PORTEL: EDUCAÇÃO RIBEIRINHA

Antiga aldeia Arucaru, fundada em 1659, junto com a aldeia irmã Aricará (Melgaço) pelo padre Antônio Vieira no contexto da Pacificação dos Nheengaíbas (rio Mapuá, Breves, cf. carta de 11/01/1660); a cidade de Portel reuniu a sociedade civil a fim de discutir a "Educação Ribeirinha", convocada pelo Colegiado do Programa Território de Cidadania - Marajó (CODETEM), concluindo a reunião pela assinatura da Carta de Portel, de 30 de março de 2012.

A Carta de Portel coincide, em linhas gerais, com a Carta do Marajó-Açu, celebrada em Ponta de Pedras em 30/04/1995, décima e última "Reunião em Defesa do Marajó" no bojo da educação ambiental promovida pela Pro-Reitoria de Extensão da UFPA através dos campi de Breves e Soure. Significa dizer que, pedagogos que desejarem se especializar em "educação ribeirinha" nas ilhas do Marajó, já têm por onde começar suas pesquisas.

A provável criação da "Universidade Federal do Marajó" (UnM) representará o coroamento exitoso do programa de interiorização da Universidade Federal do Pará (UFPA), iniciado no Marajó em 1986, no campus de Soure. Todavia, há que se considerar na historicidade do processo além dos campi atuais da UFPA, outros como a Universidade Estadual do Pará (UEPA), Instituto Federal de Educação Tecnológica do Pará (IFPA) e Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA); assim como a Estação Científica Ferreira Penna, vinculada ao Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG); centro de germoplasma animal da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA), unidades de conservação do  Instituto Chico Mendes da Biodiversidade (ICMBIO). Uma constelação de órgãos federais com representação no arquipélago do Marajó que poderiam passar a atuar em sintonia uns com outros; caso surja uma nova universidade, exatamente, vocacionada para promover a formação universitária, pesquisa e extensão do território federativo (Municípios, Estado e União) das ilhas.

A Universidade Federal do Pará (UFPA) atravessou a baía do Marajó desde fins da década de 60, pelo menos, com ações do CRUTAC¹ em Ponta de Pedras quando os nomes de Ana Rosa Bittencourt e Camilo Viana se inscrevem nesta história. O programa de extensão em apreço, como se sabe, foi inventado no Rio Grande do Norte e adaptado com criatividade no Pará para fazer face às peculiaridades amazônicas.

Permitida licença poética, no mesmo Nordeste do CRUTAC a necessidade foi mãe da invenção da educação pela pedra, segundo o poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto. Já no Norte a educação ribeirinha haveria de fazer concessão à maré, à chuva e ao barro dos começos do mundo... Então, aqui educação ribeirinha seria antes educação pelo barro. Conforme ensina a literatura do "índio sutil" e se pode ver com as pontas dos dedos no extraordinário Museu do Marajó, em Cachoeira: na verdade, ecomuseu da Criaturada grande (criado por necessidade e acaso pelo padre Giovanni Gallo às margens do emblemático Lago Arari, município de Santa Cruz, no ano de 1972).

Brasília é longe e Belém cresceu de voltas para o rio. Os ribeirinhos tiveram que lutar para conquistar eira e beira na História, terão mais ainda que se redobrar se de fato quiserem, sem esmola, a escola que precisam. É claro que a escolhinha mato adentro depende de um conceito educativo maior. Não é certo que primeiro a cartilha de abecê com a estranha lição "Eva viu a uva" fará a revolução das mentalidades conformadas à fatalidade do destino do povo ribeirinho. Antes, serão professores libertados de suas antigas amarras que poderão modular o ensino requerido. Falamos de universidade multicampi atuante em todos os municípios e irradiando-se para o interior mediante a educação permanentes de mestres e pais de alunos. Claro está que para isto se tornar realidade há de precisar de vontade política coletiva e uma base cooperativa de sustentação financeira. Logo, uma fundação mantenedora envolvendo todos os atores e gestão com muita coordenação para evitar desperdício de recursos escassos.

Sem educação não há solução. Porém é preciso saber se a "solução" procurada será o fim do longo ciclo da colonização ou a última pá de cal sobre cacos da história do "homem do Pacoval".

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NOTA¹
"O médico potiguar Alexandre Aquino de Andrade, que reside em São Paulo, diante do artigo do ex-ministro Adib Jateneque propõe a criação no Brasil de programa universitário semelhante ao CRUTAC (Centro Rural Universitário de Ação Comunitária), implantado na Universidade Federal do RN (UFRN) em 1966, pelo então Reitor-fundador Onofre Lopes, enviou a carta abaixo ao jornal “Estado de São Paulo” para publicação no espaço de leitores.

Eis a carta do Dr. Alexandre Aquino de Andrade:

“Na Edição de 3.12.12  lemos “Uma proposta” do Prof. Jatene , figura de grande credibilidade pela valorização que deu a Medicina Brasileira.
Só que sua proposta é muito semelhante ao projeto criado pelo Prof. Dr. Onofre Lopes , reitor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte com o nome de : PROJETO CRUTAC ( Centro Rural Universitário de Treinamento Avançado das Comunidades ) que obrigava o aluno ao terminar o último ano da faculdade a fazer um treinamento obrigatório em Hospitais e Centros comunitários do interior do Rio Grande do Norte .
“Caso não tivesse o treinamento ficaria impedido de receber o diploma .
“O CRUTAC foi criado em 02 de agosto de 1966 . A proposta do Prof. Jatene não seria “Uma nova proposta ” e sim uma adaptação do projeto que deu certo , criado pelo dr. Onofre .
Alexandre Andrade
Rua João Álvares Soares 1330 apto.81
Fone 999753591 – São Paulo (SP)
CARTA AO FORUM DOS LEITORES ".

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