quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

MANIFESTO DO RIO MARAJÓ 2

EXPEDIÇÕES: FAROL DA BAÍA DO MARAJÓ-BRASIL



Anteriormente, dialogamos com o Manifesto do Rio Negro quando o crítico de arte contemporânea francês Pierre Restany viaja acompanhado de Frans Krajcberg e Sepp Baenbereck na trilha de Stradelli a fim de perguntar à Floresta Amazônica o que ela tem a dizer aos homens da suposta era pós-industrial, no terceiro milênio. 

Não por acaso, a porta de entrada dos ditos viajantes do mundo foi a cidade de Manaus, capital do Estado do Amazonas, que ostenta a zona franca tal qual uma ilha e âncora de seu desenvolvimento sustentável. Todavia, buscando na floresta envolvente o necessário selo verde e na cultura popular marca maior, tendo o festival dos bois de Parintins como destaque, de marquetingue comercial.

O diabo é que a fama de Manaus atrai desempregados do êxodo rural vindo de várias partes, notadamente velhos “inimigos” paraenses oriundos em maior parte da região do Baixo Amazonas. O fenômeno migratório de estados vizinhos não é estranho em Belém com afluxo de maranhenses desempregados, com a única diferença de que aqui a rejeição dos nativos aos forasteiros é talvez mais discreta que em Manaus. 

A explicação, acredito, se encontrar na notável rivalidade entre amazonenses e paraenses que não é de hoje. Pesquisa do antropólogo paraense Marcio Meira sobre a “Casa das Canoas” lança luz sobre prováveis origens do entrevero. É que o Pará foi no passado colonial português comparável ao cativeiro da Babilônia para os índios do Rio Negro e a caça ao índio como escravo deu motivo à célebre revolta de Ajuricaba, cacique dos manaus. 

Para colaborar na paz entre Belém e Manaus, lá pelos idos de 70, a bordo de reuniões extraordinárias do Clube da Madrugada jogando conversa fora com o marajoara que vos fala, começou-se timidamente o ajuricabano, com Mario Rocha, Jorge Tufic, Antístenes Pinto, Max Carpentier e Arthur Engrácio. No Pará, apenas o jornalista Jaime Bevilacqua saudou a ideia, entretanto nem mesmo isto era novidade quando se lembra que o fundador da Academia do Peixe Frito, poeta Bruno de Menezes, antes já fazia embaixada em Manaus onde veio a falecer subitamente e teve lá estátua em praça pública. 

A Academia do Peixe Frito, em Belém, na década de 30 e o Clube da Madrugada, em Manaus, nos anos 50, são ecos da Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo às margens plácidas do grande Amazonas.
É dizer, o diálogo entre ajuricabas e cabanos começou antes mesmo talvez da famosa viagem de Pedro Teixeira do Pará a Quito (Equador), no século XII, conduzido são e salvo ida e volta pela valente Nação Tupinambá. A qual também guiou o bandeirante Raposo Tavares desde São Paulo até Gurupá, no Marajó; passando pelo Pantanal, Guaporé e Alto Amazonas. 

Basta lembrar que Macunaima nasceu em Roraima por arte taurepã e Cobra Norato no Xingu no parto das águas profundas do inconsciente humano, antes que os modernistas Mario de Andrade e Raul Bopp os apresentassem às letras nacionais brasileiras.

Em suma: se é para integrar, comecemos logo pelas próprias regiões amazônicas e vamos proclamar ao mundo os delírios poéticos de um Américo Antony a contemplar o pôr do sol no lago de Codajás, o sermão florestal de Max Carpentier, contos do mato de Engrácio e, sobretudo, as ressonâncias da consciência planetárias na poesia amazônida de Thiago de Mello. 

O Pará já nos deu Bruno e Dalcídio, mas não ficou só aí por aqui temos muito mais que até dá medo esquecer muita gente boa, por exemplo: Tavernad, Max Martins, João de Jesus Paes Loureiro, sem esquecer ainda Mario Faustino maranhense e paraense meio a meio; e meu mano caboco de Afuá filósofo da maré e nas horas vagas boto, o poeta ribeirinho Antonio Juraci Siqueira.

As florestas do mundo serão salvas pelas cidades que as consomem a ferro e fogo na Mata Atlântica, na Amazônia, no Congo, na Malásia, Indonésia, etc. Mas o mecanismo de sequestro de carbono, por exemplo, permitindo a poluição dos ricos a troco de alguns dólares furados e do santuarismo ecológico dos pobres é cínico e contrapruducente. 

Tal qual antigo apostolado catequético que converteu o bom selvagem em seráfico cristão desarmado, inocente e puro, porém miseravelmente espoliado, desmemoriado e pedinte de tudo, vítima preferencial de todos tráficos da pessoa humana.

O manifesto rionegrino de Restany resta inconcluso. Como o pedido de perdão do Papa dirigido aos índios e negros nos 500 anos da Conquista americana. O manifesto fala de uma segunda Renascença, mediante a planetarização da consciência da natureza através de um olhar regenerado pelo contato direto com o meio ambiente preservado dos primórdios da humanidade filha da animalidade.

Urge relembrar que o homem é natureza pensante e reflete a mãe Terra, com setenta por cento de nosso corpo feito de água como o planeta: também somos terra, ar e fogo da combustão calórica da vida cujo parto dá luz ao grande Espírito (na fórmula da complexidade de Morin: cérebro que produz mente, mente que concebe o cérebro). 

O deus de Espinoza talvez seja o elo perdido entre Natureza e Cultura (pra não dizer religião e ciência). 

Mas o que tem a ver com isto o homem simples e rude em sua lida, quando diz as palavras mágicas cheias de fé “se-Deus-quiser” no mato sem cachorro – ligando a corrente neuronal aos sentidos como o arco retesado prestes a disparar a flecha sobre a caça – em busca do comer pra matar sua fome ancestral; naturalmente herdada da física nuclear das estrelas, representada na metáfora da serpente cósmica que devora a própria cauda? Primo manjare, doppo filosofare...

Um caçador africano selvagem quando carece abater uma árvore ou animal reza para aplacar a vingança dos mortos: como me ensinou a atravessar a fronteira das culturas amazônicas um amigo maiongong quando precisamos ir a uma aldeia ianomâmi. Se acaso chegássemos lá em hora imprópria sem ter sido convidados para rito de manducação das cinzas mortuárias de algum parente, tínhamos nós que fazer teatro sob risco da própria morte. 

Sentar em roda do panelão de mingau de banana e chorar o morto junto com os presentes (dizia meu guia, não precisa chorar de verdade...). Mas, o dono do morto estaria observando se acaso algum presente, visível ou invisível; não chorasse aquela morte logo este insensível seria suspeito de ter causado a morte do parente e passível de vingança obrigatória pelos sobreviventes... 

Você pode rir da lógica absurda do outro, mas não escapa de seu próprio ridículo nem das consequências que a geografia humana esconde.

Malgrado o sagrado direito à preguiça ou à greve, não há ócio de barriga vazia nem almoço de graça: alguém tem que trabalhar ou pagar direito.

O cenário da conversão naturalista integral lembra o conde Stradelli ao deixar na civilizada Itália seu título de nobreza como o santo de Assis despiu-se de suas riquezas materiais, para o sábio enterrar seu corpo no leprosário de Paricatuba depois de ser aprendiz de pajés do Alto Rio Negro. Stradelli deveria ser visto por nós como um dos mais radicais portadores desta consciência planetária, agora mais expandida ainda pela Ciência e Tecnologia das ondas eletrônicas que sempre existiram até os limites do fiat lux cósmico ou o big bang.

Foi assim que me ocorreu escrever o Manifesto do Rio Marajó como resposta, ainda que tardia, a seu homônimo do Rio Negro tendo memória das mais antigas conexões do alto e baixo curso do rio das Amazonas e também das próprias incursões minhas parando em horas amenas em Manaus, em companhia do Clube da Madrugada, onde entre outros camaradas o poeta Max Carpentier com seu inspirado Sermão da Floresta é bem precursor do naturalismo integral avant la lettre. Com aviso prévio de Noam Chomsky: o mapa não é o território... Ou, antes, Fernando Pessoa, “minha pátria é minha língua”. Mas aí, é mátria a caminho da naturalização e você se perde no labirinto das línguas amazônicas; rio Babel donde só podemos nos aventurar sem perigo tendo guias-mateiros experientes, que nem mestre José Ribamar Freire Bessa, por exemplo.

AQUI O MARAJÓ COMEÇA

O lugar é o Itaguari ("ponta de pedras"), onde está assente a Coluna e farol avisando o perigo das pedras e o rumo do rio durante a noite. Marajó é o homem que habitou a ilha grande da boca do Amazonas. 

Este “Homo sapiens sapiens’ desde sempre era vário, como várias são as ilhas do arquipélago e terra firme ocupada pela brava gente falante de diversas línguas de tronco Aruak, tal qual o latim pariu o italiano, francês, espanhol, português, galego, romeno, sardo e a multidão de dialetos ou idiomas mesclados e derivados destas últimas. 

Cujos descendentes são ribeirinhos entre a população de 410 mil almas espalhada em três microrregiões, dezesseis municípios e mais de 500 “aldeias” (comunidades locais).

O naturalista da “Viagem Philosophica” (1783-1792), Alexandre Rodrigues Ferreira, viu no Pará uma curiosa variedade da espécie humana a qual ele classificou como “H. sapiens, var. Tapuya” mandando do Pará a Coimbra como amostra uma cabeça do dito cujo tapuia devidamente degolada e empalhada, imagino... 

Homem “malvado” (do tupi marã yu) aos olhos do inimigo hereditário, que sem conseguir entender patavina daquela diversidade reduziu-a a uma única “língua ruim”, o barbaresco nheengaíba.

O payaçu dos índios, padre Antônio Vieira, calculou por alto com sua prodigiosa imaginação e talvez algumas informações obtidas de índios cativos vindos das ilhas capturados pelos tupinambás; que ao seu tempo à frente das missões (1652-1661) deveria existir algo em torno de 50 mil “nheengaíbas” no Marajó. 

Se nos lembrar que na metade do século XIX a população do Pará era estimada em 100 mil habitantes apenas, isto causa espanto. Ainda mais quando alguns etnólogos se arriscam em dizer que existiam, aproximadamente, seis milhões de índios na Amazônia até começo da colonização.

Nas ilhas do Pará era importante a diversidade de povos Aruãs, Anajás, Cambocas, Tucujus, Mapuás, Guaianases [Guaianá], Pixi-Pixi, Mocoões, Ionas, Maruanases [Maruaná], Samanajás, etc., que foram se extinguindo no passar do tempo e se tornou na história oral paraense dos primeiros dias da colonização do Maranhão e Grão-Pará apenas uma barbaridade amorfa só sob o nome genérico odioso de Nheengaíbas.

A tradução mais comum do nome Marajó, através da “boa língua” (nheengatu) é “barreira do mar”, de Mbarayo. Sabe-se, contudo, a dificuldade antropológica de traduzir topônimos separados de seu contexto histórico-geográfico para uma língua estrangeira qualquer. No caso, o português era “grego” para a maior parte da população e somente foi adotado como língua nacional rigor de palmatória, como ensina a obra “Rio Babel”, de José Ribamar Freire Bessa, na segunda metade do século XVIII.

A tal “barreira do mar” foi antes o índio insulano barreira do rio Babel. Não a ilha propriamente dita, que na verdade é labirinto formado dentre 1700 ilhas, fora ilhotas que surgem e desaparecem de tempo em tempo na correnteza de aluvião do Golfão Marajoara na fronteira entre as Amazônias verde (florestal) e azul (marítima). 

Tudo que sabemos do passado desta gente são fragmentos semelhantes a restos de um naufrágio que o mar devolve à praia. Temos, então, uma geografia complexa misturando delta e estuário quando a maior bacia fluvial do mundo vem com tudo desde os Andes e empurra o oceano muita milhas afora para ir formar a corrente das Guianas levando sedimentos até o delta do Orenoco indo juntas estas águas se misturar à corrente do Golfo do México. E o povo das águas grandes estaria condenado para sempre ao limbo da História?

Falamos em consciência planetária e renascimentos. Os fragmentos do passado, assim como os mapas, não são o território estamos bem lembrados. 

Se a ilha não é barreira do mar (tanto que não impediu, mas facilitou a ocupação pela costa norte através do Cabo do Norte (Amapá) seja pelos primeiros habitantes quanto os primeiros colonizadores europeus), o homem marajoara sim é que foi a grande barreira à entrada do Amazonas, através de guerrilha em emboscadas com zarabatana feita de paxiúba e setas de talo de patauá envenenadas de curare, ao longo dos furos de Breves. 

A fonte desta história é jesuíta que a colheu diretamente de um lado e outro da luta entre etnias rivais, enfim, pacificadas e condenadas a se tornar a mesma massa caboca saída do mato para ser lupem proletariado amazônico ou “Criaturada grande” do romance dalcidiano.

Esta “gente malvada” montou sentinela no Itaguari (“ponta de pedras”), boca do rio Marajó-Açu. Os tais nheengaíbas matadores de invasores das ilhas eram principalmente Aruãs: povos bárbaros que, segundo as fases da arqueologia comumente aceita, vindos do Caribe pelas Guianas ocuparam as ilhas Caviana e Mexiana e finalmante a grande “Analáu Yohynkáku” (nome aruá da ilha do Marajó). Por algum motivo não entendido ainda a chegada dos bárbaros aruãs coincide com o fim da brilhante cultura marajoara (300 a 1300) desaparecida. Todavia, novos achados nos anos 90 podem ter localizado cerâmica marajoara com datação de 1600, próxima à fundação de Belém em área a oeste dos sítios antes estudados. Relato do índio sacaca Severino dos Santos, da aldeia de Joanes [Iona], em 1783, informa a antiga rivalidade de suas nação tida por mais antiga na ilha com invasores aruãs, que teria deslocado os primeiros habitantes dos centros da ilha para a margem da baía do Marajó.

Não podemos esquecer que a historiografia luso-brasileira mamou no seio da história oral dos Tupinambás do norte, quase que exclusivamente. Curiosamente, só um intelectual, nativo de Bragança, José Ubirantan do Rosário; além de mim mesmo cogita sobre as motivações das migrações tupinambás do Maranhão ao Pará e o mito da Terra sem mal (Yby marãey).

No entanto, este mito fecundador da brasilidade notado desde as primeiras cartas do jesuíta Manuel da Nóbrega somente foi explicado por Curt Nimeudajú, em 1920, depois de conviver intimamente com os Guarani de São Paulo, resolvendo assim um dos maiores enigmas da formação territorial do Brasil atribuída unicamente à capacidade extraordinária do colonizador português como povoador de terras extremas.

Um precioso documento atribuído ao mameluco Diogo Nunes, datado de 1538, portanto antes da viagem de Orellana (1542); dá conta duma importante migração de 14 mil tupinambás entre homens, mulheres e crianças partindo de Pernambuco até o Alto Amazonas (Peru), onde acabaram escravizados e dizimados pelos espanhóis. O documento diz que os índios romperam sertão adentro e chegaram ao distante Solimões numa jornada de doze anos: evidentemente caíram n’água no rio Tocantins e foram deixando troços de gente pelas paragens, fugindo do primeiro choque de escravidão para extrair pau-brasil (1530). Teriam feito os “nheengaíbas” recuar para as ilhas, donde estes teriam saído para ocupar a terra firme. O sol poente ditava o rumo da utopia selvagem? Seria esta a verdadeira origem de “Camutá-Tapera” (Cametá-PA) à semelhança da guerra contra os tapuias, em Tapuitapera (Alcântara-MA), pelo caminho do Maranhão? Neste caso, as pazes de Mapuá (Breves, 1659) segundo o padre Antônio Vieira, não colocaram fim apenas a 44 anos de guerra contra os portugueses, porém mais de 120 anos de guerra antropofágica no Pará entre o Abaeté (“homem genuíno”) e o Marajó (“homem malvado”). Entretanto, nem na “História do Futuro” a gente encontra uma história destas.

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