MANIFESTO
DO RIO MARAJÓ
A década de 70 no século passado foi especialmente
traumática para a América Latina, originalmente recalcada pela conquista e o
largo genocídio da destruição das Índias Ocidentais logo complexadas e
mestiçadas à força de estupro pelo colonialismo europeu. Sobre esta brutal e
universal alienação nutriram-se as aristocracias e burguesias de uma margem a
outra do Atlântico, inclusive hemisfério Sul. As Américas Latinas – dentre
estas a Amazônia, declarada “celeiro do mundo”, estrategicamente deixada em
reserva para “futuras” gerações sob suposto argumento cientifico de ser esta
região equatorial sul-americana o “pulmão do mundo” –, envolvidas pela voragem
da Guerra-Fria foram elas tidas e havidas como últimas fronteiras da Terra a ser
ocupadas e exploradas pelo deus-Progresso ao ronco de tratores e motosserras
sob as botas da Ditadura salvacionista anticomunista.
Tais acontecimentos na periferia do mundo industrializado
vieram a reboque das duas guerras mundiais motivadas pela disputa entre
potências industriais de “espaço vital” para o crescimento de capital mediante
suprimento de matéria-prima barata e mercado de consumo cativo. O longo século
XIX fazendo estragos mundo afora acabou como bumerangue atingindo e devastando
a velha Europa deixando-a em cinzas e sangrando com as chagas vivas do
Holocausto. Ao mesmo tempo, o orgulhoso império do Japão seguindo o mesmo
caminho da indústria militar foi humilhado sob as bombas atômicas de Hiroxima e
Nagasazi.
O novo império ianque, emergente sobre as velhas potências, queria
mostrar sua força e aterrorizar o mundo: escolheu como cobaia populações civis
desavisadas e indefesas. Deste crime de guerra, com poucas exceções, o povo
norte-americano submetido a enorme propaganda bélica nacionalista não se
arrepende até hoje. O resultado imediato foi desconfiança mortal no seio da
antiga aliança contra a hegemonia do Nazi-Fascismo levando a União Soviética a
desviar recursos humanos e materiais para competir com os EUA em todos os
campos, numa luta de vida ou morte, num mundo bipolar completamente sem
sentido, cujo manifesto mais ostensivo é ainda hoje a corrida nuclear com seu
absurdo arsenal de ogivas atômicas capaz de aniquilar a vida na Terra três
vezes. Assim que, apesar do “fim da História” – ou por isto mesmo –, a fim de
manter o sistema global em funcionamento e crescimento contínuo seria
necessário esgotar mais dois planetas. Numa palavra, isto é insustentável!
Os horrores de todas as guerras do mundo deviam ensinar
os povos a trabalhar unidos na construção comum de uma cultura de Paz. A indispensável
cooperação entre EUA e URSS, dois mundos de visões e realidades diferentes; foi
possível na guerra pelo suicídio da velha Europa enlouquecida pela revolução
industrial a cabo da pirataria e o saque do resto do mundo desde as acumulações
primitivas suscitadas pela viagem de Marco Polo. Desgraçadamente, no pós-guerra
os dois blocos vencedores do III Reich reincidiram nos mesmos erros do inimigo:
a recíproca intolerância entre os dois lados inatos da mesma revolução
industrial – o capitalismo e o socialismo – acaba sendo o triunfo final de
Hitler.
Então, a maldição do mito fundador de Roma com os gêmeos
inimigos alimentados pela loba matando-se em luta pelo poder da tribo acaba se
repetindo contra advertência de Marx dizendo este que a história só se repete
como farsa. Mas, alguns profetas do apocalipse moderno anunciam o fim do mundo
para breve... Filósofos pós-modernos, pelo contrário, dizem que é começo de uma
nova humanidade. E esta está nascendo a partir da periferia das cidades e dos
extremos do mundo ainda, felizmente, bárbaro.
Seja como for a milenar cultura chinesa parece estar
mostrando através da “cortina de bambu” uma nova China onde contradições e
crises, longe de constituir uma tragédia grega; é sempre oportunidade para
inventar o futuro sem renegar o passado: Mao não aboliu o Tao, a nova China
neocapitalista pra inglês ver; não aposentará Mao.
Não tenho cabedal para afirmar, todavia acho que se os
seguidores de Lenin tivessem tido maior apreço pela abordagem cultural do
italiano Antonio Gramsi a Rússia de hoje poderia estar mais próxima da China do
que ora se acha no BRICS e a história contemporânea seria outra menos rápida
certamente, porém mais segura para todo mundo. Não existiria hegemonia dos EUA
para bem, principalmente, do povo dos Estados Unidos tributário de guerras
assassinas e alvo permanente da ira dos povos atormentados pela indústria da
guerra e da morte para lucro de poucos. A espiral evolutiva não dorme nunca
sobre os louros da vitória. A dialética é seu motor e, parece, as lágrimas de
Heráclito sobre o riso de Diógenes (segundo a polêmica do padre Antônio Vieira
na corte de Cristina da Suécia) é prova cabal de que nunca mesmo se mergulha
duas vezes no mesmo rio. Lincoln estava certo: não se pode enganar toda gente
todo empo... Os povos de todas as Américas estão despertando para a verdade e a
verdadeira democracia democrática (digamos assim, para fazer contraponto à
plutocracia que tomou o sistema de representação parlamentar e fez refém o
presidencialismo meramente simbólico do imaginário popular).
Agora, com a emergência do bolivarismo renovado pelas
urnas e a voz do Brasil dizendo que a esperança venceu o medo; chegou a hora e
a vez da integração da América do Sol (tropical) dizendo ao mundo com quantos
paus se faz uma canoa boa.
Já tínhamos ecocivilização há mais de mil anos antes do
“descobrimento” de Colombo: sendo impossível retroceder no tempo, assim mesmo o
dedo fraturado da História (discurso concreto de Oscar Niemeyer no monumento da
Cabanagem) poderá ser consolidado para indicar o norte amazônico. Cacos de
índio (sermão de Giovanni Gallo à criaturada grande de Dalcídio Jurandir) podem
produzir o milagre dos peixes contra a ditadura da água, além de uma renascença
inesperada quando todo mundo julgava extintos os índios da ilha do Marajó.
CONVERSANDO COM O
MANIFESTO DO RIO NEGRO
No ano de 1978, em pleno “milagre econômico” da ditadura
no Brasil; três sobreviventes da segunda guerra mundial, Frans Krajcberg,
Pierre Restany e Sepp Baenbereck, no Alto Rio Negro talvez sem saber que seguiam
a trilha de Ermano Stradelli; lançam o manifesto chamado do Rio Negro.
Acontecimento que supõe um diálogo Norte-Sul. Dez anos depois da rebelião
estudantil de Paris e do AI-5 de Brasília, esses quixotes da pós-modernidade estavam
perscrutando a Floresta Amazônica como se esta, verdadeiramente, fosse a sibila
de Delfos. Um ano antes, por acaso, um caboco marajoara fazia seu curso
diletante no alto Rio Branco na fronteira com a Venezuela e mais tarde haveria
de concluir este simples descobrimento na região amazônica da França que, como
todo mundo sabe, é o centro espacial europeu encravado no lendário país do
El-Dorado, meio antilhano e meio africano.
Assim, depois de assistir pelo milagre da revolução
industrial em sua mais recente macumba, as telecomunicações; o diálogo
franco-brasileiro para o crescimento econômico e o desenvolvimento social, no
quais os presidentes da República Francesa François Holande e da República
Federativa do Brasil, Dilma Rousseff convergiram em muitas coisas, inclusive em
impulsionar a conferência mundial sobre o meio ambiente, na França em 2015.
Ouvi a presidenta Dilma saudar o ministro da cultura de Mitterrand, Jack Lang,
ali presente no auditório; e o presidente Holande informar que irá se encontrar
com sua colega brasileira na fronteira do Oiapoque para, enfim, inaugurar a
ponte binacional projetada ainda nos mandatos de Fernando Henrique Cardoso e
Jacques Chirac, passando por Lula e Sarkozy. Não pude esquecer a tentativa
paraense de inserir nesse diálogo as relações entre o norte do Brasil e as
Guianas com a provocação, em 2004 em Paris, da vinda de um grande formador de
opinião francês como Lang através de Caiena, Belém e ilha do Marajó. O que
aconteceu entre o natal de 2005 e ano novo de 2006, numa viagem despretenciosa que acabou sendo digna de filme
e reflexão.
A ecologia informa: Marajó são 1700 ilhas filhas da pororoca aos embates do rio com o mar. O ex-ministro e então presidenciável não imaginava quanto poder tem as chuvas naquelas paragens, em frente ao Museu do Marajó em Cachoeira do Arari, centenas de crianças com badeirinhas do Brasil e da França às mãos esperavam o figurão, afrontando a maré uma nutrida comitiva de jornalistas e convidados de Belém a Salvaterra vieram ouvir o ilustre visitante até então maravilhado. Foi então que a mãe natureza resolveu pelo contrário, helicóptero no chão sem poder decolar, todo mundo ilhado, protocolo que já não era grande coisa foi pras cucuias... Eita chuvarada que só foi passar quase à boca da noite. E o caboco da história recordando tiradas filosóficas da turma das demarcações de fronteira: "na Amazônia a única certeza é que tudo é incerto"... Adeus Cartesius!
Krajcberg se tornou brasileiro por amor à Mata Atlantica
como Nimuendajú se tornou brasileiro por amor aos índios. Então, esta
antropofagia cultural está acontecendo com dificuldade, mas mesmo assim devagar
ela vai em frente. Cumpre, além dos índios e dos negros, agora depois de
quinhentos anos de mestiçagem física e mental; que a etnia dos cabocos tirados
do mato quem nem madeira extraída para
se transformar em móveis caros e imóvel de luxo; também mostre a cara e tente
pelo menos se vender caro numa embalagem menos vagabunda, tipo assim a viagem
filosófica para o século XXI.
Pierre Restany depois de
experimentar diversas formas de vanguarda artística, foi beber as águas
amazônicas para denunciar a "tirania do objeto" e seu clímax como
linguagem sintética da sociedade de consumo. Diz ele que a arte duvida de sua
justificação material, que ela se desmaterializa e se conceitua. A arqueologia
marajoara está aos poucos mostrando fragmentos da primeira cultura complexa da
Amazônia. A crítica de Restany poderia se aplicar talvez ao modo como estamos
habituados a contemplar objetos exóticos de civilizações pré-coloniais ou
pré-históricas, quando ele escreve: “Os andamentos conceituais da arte
contemporânea só têm sentido se examinados através dessa ótica autocrítica. A
arte é ela mesma colocada numa posição critica. Ela se questiona sobre sua
imanência, sua necessidade, sua função”.
Fala em naturalismo integral como uma resposta àquelas inquietações dos três sobreviventes das guerras na Europa. E busca inventar ou descobrir diretamente da natureza “sua virtude de integracionista, de generalização e extremismo da estrutura da percepção”. Ou seja, a planetarização da consciência. Autocrítica, desmaterialização, tentação idealista, percursos subterrâneos simbolistas e ocultistas: essa aparente confusão se organizará talvez um dia, a partir da noção do naturalismo - expressão da consciência planetária”. Vê-se, então, a velha Europa cansada de guerra vem a Amazônia aprender a ver o peso da natureza na vida de suas criaturas, sejam elas vegetais, animais ou seres da cultura através da existência humana na diversidade do meio ambiente.
Fala em naturalismo integral como uma resposta àquelas inquietações dos três sobreviventes das guerras na Europa. E busca inventar ou descobrir diretamente da natureza “sua virtude de integracionista, de generalização e extremismo da estrutura da percepção”. Ou seja, a planetarização da consciência. Autocrítica, desmaterialização, tentação idealista, percursos subterrâneos simbolistas e ocultistas: essa aparente confusão se organizará talvez um dia, a partir da noção do naturalismo - expressão da consciência planetária”. Vê-se, então, a velha Europa cansada de guerra vem a Amazônia aprender a ver o peso da natureza na vida de suas criaturas, sejam elas vegetais, animais ou seres da cultura através da existência humana na diversidade do meio ambiente.
Todavia, o limite crítico do
crítico de arte contemporânea, quando Rostany fala em “preâmbulo operacional à
nossa Segunda Renascença” como etapa necessária a uma “mutação antropológica
final”; está na exclusão psicológica de outras artes não enquadradas no plano
civilizatório judeu-cristão. O outro
não-ocidentalizado também terá ele desejos de renascenças. No caso americano, a
renascença antes implica na libertação mental do colonialismo, após a
independência.
“Um contexto tão excepcional como o do Amazonas suscita a ideia de um retorno à natureza original. A natureza original deve ser exaltada como uma higiene da percepção e um oxigênio mental: um naturalismo integral, gigantesco catalisador e acelerador das nossas faculdades de sentir, pensar e agir”. Assim, Pierre Restany escreveu as linhas finais do manifesto do Alto Rio Negro, numa quinta-feira, 3 de agosto de 1978, na presença de Sepp Baendereck e Frans Krajcberg.
“Um contexto tão excepcional como o do Amazonas suscita a ideia de um retorno à natureza original. A natureza original deve ser exaltada como uma higiene da percepção e um oxigênio mental: um naturalismo integral, gigantesco catalisador e acelerador das nossas faculdades de sentir, pensar e agir”. Assim, Pierre Restany escreveu as linhas finais do manifesto do Alto Rio Negro, numa quinta-feira, 3 de agosto de 1978, na presença de Sepp Baendereck e Frans Krajcberg.
Hoje nós nos lembramos de
outras datas à margem do rio Marajó-Açu, rio modesto se comparado ao grande
Amazonas; mas o maior rio do mundo como diria o poeta Fernando Pessoa, por que
é o rio da minha aldeia de infância. Toda criança tem uma aldeia e um rio em
sua imaginação por toda vida: ali mora o imperador deste mundo num castelo de
sonho. Quando pequeno o rio Marajó quis matar-me afogado talvez por encanto da
mãe d’água, salvou das águas um colega pretinho que nadava na correnteza que
nem peixe. Acredito que devo um tributo ao rio e sua gente ribeirinha, que
desta maneira eu possa falar a sua história e quando exalar o último suspiro meus
amigos possam lançar à mare da reponta as minhas cinzas para se misturar ao
tijuco e habitar a lenda dos igarapés. Acredito, que todos somos descendentes
das estrelas e cada partícula de poeira tem vida para sempre. Quanta arte a
natureza faz! Aqui um ramo animado pelo vento acena ao olhar, ali a colunata do
miritizal na beira; uma garça que passa com a graça do voo e o homem em sua
canoa não tem pressa. Pra quê? Que todo mundo venha ver: o paraíso é aqui (ou o
inferno verde), como pode ser aí em qualquer lugar onde não existir mais a
exploração do homem pelo homem. A idade áurea na utopia do profeta ou poeta
Isaías, enquanto o povo de Israel sofria no cativeiro da Babilônia. Somos todos
no mundo as tribos perdidas: juntos nos acharemos e nos libertaremos ou juntos
vamos nos perder para sempre. Mas a escolha é livre e de cada um.
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