quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

MANIFESTO DO RIO MARAJÓ









MANIFESTO DO RIO MARAJÓ

A década de 70 no século passado foi especialmente traumática para a América Latina, originalmente recalcada pela conquista e o largo genocídio da destruição das Índias Ocidentais logo complexadas e mestiçadas à força de estupro pelo colonialismo europeu. Sobre esta brutal e universal alienação nutriram-se as aristocracias e burguesias de uma margem a outra do Atlântico, inclusive hemisfério Sul. As Américas Latinas – dentre estas a Amazônia, declarada “celeiro do mundo”, estrategicamente deixada em reserva para “futuras” gerações sob suposto argumento cientifico de ser esta região equatorial sul-americana o “pulmão do mundo” –, envolvidas pela voragem da Guerra-Fria foram elas tidas e havidas como últimas fronteiras da Terra a ser ocupadas e exploradas pelo deus-Progresso ao ronco de tratores e motosserras sob as botas da Ditadura salvacionista anticomunista.

Tais acontecimentos na periferia do mundo industrializado vieram a reboque das duas guerras mundiais motivadas pela disputa entre potências industriais de “espaço vital” para o crescimento de capital mediante suprimento de matéria-prima barata e mercado de consumo cativo. O longo século XIX fazendo estragos mundo afora acabou como bumerangue atingindo e devastando a velha Europa deixando-a em cinzas e sangrando com as chagas vivas do Holocausto. Ao mesmo tempo, o orgulhoso império do Japão seguindo o mesmo caminho da indústria militar foi humilhado sob as bombas atômicas de Hiroxima e Nagasazi. 

O novo império ianque, emergente sobre as velhas potências, queria mostrar sua força e aterrorizar o mundo: escolheu como cobaia populações civis desavisadas e indefesas. Deste crime de guerra, com poucas exceções, o povo norte-americano submetido a enorme propaganda bélica nacionalista não se arrepende até hoje. O resultado imediato foi desconfiança mortal no seio da antiga aliança contra a hegemonia do Nazi-Fascismo levando a União Soviética a desviar recursos humanos e materiais para competir com os EUA em todos os campos, numa luta de vida ou morte, num mundo bipolar completamente sem sentido, cujo manifesto mais ostensivo é ainda hoje a corrida nuclear com seu absurdo arsenal de ogivas atômicas capaz de aniquilar a vida na Terra três vezes. Assim que, apesar do “fim da História” – ou por isto mesmo –, a fim de manter o sistema global em funcionamento e crescimento contínuo seria necessário esgotar mais dois planetas. Numa palavra, isto é insustentável!

Os horrores de todas as guerras do mundo deviam ensinar os povos a trabalhar unidos na construção comum de uma cultura de Paz. A indispensável cooperação entre EUA e URSS, dois mundos de visões e realidades diferentes; foi possível na guerra pelo suicídio da velha Europa enlouquecida pela revolução industrial a cabo da pirataria e o saque do resto do mundo desde as acumulações primitivas suscitadas pela viagem de Marco Polo. Desgraçadamente, no pós-guerra os dois blocos vencedores do III Reich reincidiram nos mesmos erros do inimigo: a recíproca intolerância entre os dois lados inatos da mesma revolução industrial – o capitalismo e o socialismo – acaba sendo o triunfo final de Hitler.

Então, a maldição do mito fundador de Roma com os gêmeos inimigos alimentados pela loba matando-se em luta pelo poder da tribo acaba se repetindo contra advertência de Marx dizendo este que a história só se repete como farsa. Mas, alguns profetas do apocalipse moderno anunciam o fim do mundo para breve... Filósofos pós-modernos, pelo contrário, dizem que é começo de uma nova humanidade. E esta está nascendo a partir da periferia das cidades e dos extremos do mundo ainda, felizmente, bárbaro.
Seja como for a milenar cultura chinesa parece estar mostrando através da “cortina de bambu” uma nova China onde contradições e crises, longe de constituir uma tragédia grega; é sempre oportunidade para inventar o futuro sem renegar o passado: Mao não aboliu o Tao, a nova China neocapitalista pra inglês ver; não aposentará Mao.

Não tenho cabedal para afirmar, todavia acho que se os seguidores de Lenin tivessem tido maior apreço pela abordagem cultural do italiano Antonio Gramsi a Rússia de hoje poderia estar mais próxima da China do que ora se acha no BRICS e a história contemporânea seria outra menos rápida certamente, porém mais segura para todo mundo. Não existiria hegemonia dos EUA para bem, principalmente, do povo dos Estados Unidos tributário de guerras assassinas e alvo permanente da ira dos povos atormentados pela indústria da guerra e da morte para lucro de poucos. A espiral evolutiva não dorme nunca sobre os louros da vitória. A dialética é seu motor e, parece, as lágrimas de Heráclito sobre o riso de Diógenes (segundo a polêmica do padre Antônio Vieira na corte de Cristina da Suécia) é prova cabal de que nunca mesmo se mergulha duas vezes no mesmo rio. Lincoln estava certo: não se pode enganar toda gente todo empo... Os povos de todas as Américas estão despertando para a verdade e a verdadeira democracia democrática (digamos assim, para fazer contraponto à plutocracia que tomou o sistema de representação parlamentar e fez refém o presidencialismo meramente simbólico do imaginário popular).

Agora, com a emergência do bolivarismo renovado pelas urnas e a voz do Brasil dizendo que a esperança venceu o medo; chegou a hora e a vez da integração da América do Sol (tropical) dizendo ao mundo com quantos paus se faz uma canoa boa.

Já tínhamos ecocivilização há mais de mil anos antes do “descobrimento” de Colombo: sendo impossível retroceder no tempo, assim mesmo o dedo fraturado da História (discurso concreto de Oscar Niemeyer no monumento da Cabanagem) poderá ser consolidado para indicar o norte amazônico. Cacos de índio (sermão de Giovanni Gallo à criaturada grande de Dalcídio Jurandir) podem produzir o milagre dos peixes contra a ditadura da água, além de uma renascença inesperada quando todo mundo julgava extintos os índios da ilha do Marajó.

CONVERSANDO COM O MANIFESTO DO RIO NEGRO

No ano de 1978, em pleno “milagre econômico” da ditadura no Brasil; três sobreviventes da segunda guerra mundial, Frans Krajcberg, Pierre Restany e Sepp Baenbereck, no Alto Rio Negro talvez sem saber que seguiam a trilha de Ermano Stradelli; lançam o manifesto chamado do Rio Negro. 

Acontecimento que supõe um diálogo Norte-Sul. Dez anos depois da rebelião estudantil de Paris e do AI-5 de Brasília, esses quixotes da pós-modernidade estavam perscrutando a Floresta Amazônica como se esta, verdadeiramente, fosse a sibila de Delfos. Um ano antes, por acaso, um caboco marajoara fazia seu curso diletante no alto Rio Branco na fronteira com a Venezuela e mais tarde haveria de concluir este simples descobrimento na região amazônica da França que, como todo mundo sabe, é o centro espacial europeu encravado no lendário país do El-Dorado, meio antilhano e meio africano.

Assim, depois de assistir pelo milagre da revolução industrial em sua mais recente macumba, as telecomunicações; o diálogo franco-brasileiro para o crescimento econômico e o desenvolvimento social, no quais os presidentes da República Francesa François Holande e da República Federativa do Brasil, Dilma Rousseff convergiram em muitas coisas, inclusive em impulsionar a conferência mundial sobre o meio ambiente, na França em 2015. Ouvi a presidenta Dilma saudar o ministro da cultura de Mitterrand, Jack Lang, ali presente no auditório; e o presidente Holande informar que irá se encontrar com sua colega brasileira na fronteira do Oiapoque para, enfim, inaugurar a ponte binacional projetada ainda nos mandatos de Fernando Henrique Cardoso e Jacques Chirac, passando por Lula e Sarkozy. Não pude esquecer a tentativa paraense de inserir nesse diálogo as relações entre o norte do Brasil e as Guianas com a provocação, em 2004 em Paris, da vinda de um grande formador de opinião francês como Lang através de Caiena, Belém e ilha do Marajó. O que aconteceu entre o natal de 2005 e ano novo de 2006, numa viagem despretenciosa que acabou sendo digna de filme e reflexão.

A ecologia informa: Marajó são 1700 ilhas filhas da pororoca aos embates do rio com o mar. O ex-ministro e então presidenciável não imaginava quanto poder tem as chuvas naquelas paragens, em frente ao Museu do Marajó em Cachoeira do Arari, centenas de crianças com badeirinhas do Brasil e da França às mãos esperavam o figurão, afrontando a maré uma nutrida comitiva de jornalistas e convidados de Belém a Salvaterra vieram ouvir o ilustre visitante até então maravilhado. Foi então que a mãe natureza resolveu pelo contrário, helicóptero no chão sem poder decolar, todo mundo ilhado, protocolo que já não era grande coisa foi pras cucuias... Eita chuvarada que só foi passar quase à boca da noite. E o caboco da história recordando tiradas filosóficas da turma das demarcações de fronteira: "na Amazônia a única certeza é que tudo é incerto"... Adeus Cartesius!

Krajcberg se tornou brasileiro por amor à Mata Atlantica como Nimuendajú se tornou brasileiro por amor aos índios. Então, esta antropofagia cultural está acontecendo com dificuldade, mas mesmo assim devagar ela vai em frente. Cumpre, além dos índios e dos negros, agora depois de quinhentos anos de mestiçagem física e mental; que a etnia dos cabocos tirados do mato quem nem  madeira extraída para se transformar em móveis caros e imóvel de luxo; também mostre a cara e tente pelo menos se vender caro numa embalagem menos vagabunda, tipo assim a viagem filosófica para o século XXI.

Pierre Restany depois de experimentar diversas formas de vanguarda artística, foi beber as águas amazônicas para denunciar a "tirania do objeto" e seu clímax como linguagem sintética da sociedade de consumo. Diz ele que a arte duvida de sua justificação material, que ela se desmaterializa e se conceitua. A arqueologia marajoara está aos poucos mostrando fragmentos da primeira cultura complexa da Amazônia. A crítica de Restany poderia se aplicar talvez ao modo como estamos habituados a contemplar objetos exóticos de civilizações pré-coloniais ou pré-históricas, quando ele escreve: “Os andamentos conceituais da arte contemporânea só têm sentido se examinados através dessa ótica autocrítica. A arte é ela mesma colocada numa posição critica. Ela se questiona sobre sua imanência, sua necessidade, sua função”. 

Fala em naturalismo integral como uma resposta àquelas inquietações dos três sobreviventes das guerras na Europa. E busca inventar ou descobrir diretamente da natureza “sua virtude de integracionista, de generalização e extremismo da estrutura da percepção”. Ou seja, a planetarização da consciência. Autocrítica, desmaterialização, tentação idealista, percursos subterrâneos simbolistas e ocultistas: essa aparente confusão se organizará talvez um dia, a partir da noção do naturalismo - expressão da consciência planetária”. Vê-se, então, a velha Europa cansada de guerra vem a Amazônia aprender a ver o peso da natureza na vida de suas criaturas, sejam elas vegetais, animais ou seres da cultura através da existência humana na diversidade do meio ambiente.

Todavia, o limite crítico do crítico de arte contemporânea, quando Rostany fala em “preâmbulo operacional à nossa Segunda Renascença” como etapa necessária a uma “mutação antropológica final”; está na exclusão psicológica de outras artes não enquadradas no plano civilizatório judeu-cristão. O outro não-ocidentalizado também terá ele desejos de renascenças. No caso americano, a renascença antes implica na libertação mental do colonialismo, após a independência.
 

“Um contexto tão excepcional como o do Amazonas suscita a ideia de um retorno à natureza original. A natureza original deve ser exaltada como uma higiene da percepção e um oxigênio mental: um naturalismo integral, gigantesco catalisador e acelerador das nossas faculdades de sentir, pensar e agir”. Assim, Pierre Restany escreveu as linhas finais do manifesto do Alto Rio Negro, numa quinta-feira, 3 de agosto de 1978, na presença de Sepp Baendereck e Frans Krajcberg.

Hoje nós nos lembramos de outras datas à margem do rio Marajó-Açu, rio modesto se comparado ao grande Amazonas; mas o maior rio do mundo como diria o poeta Fernando Pessoa, por que é o rio da minha aldeia de infância. Toda criança tem uma aldeia e um rio em sua imaginação por toda vida: ali mora o imperador deste mundo num castelo de sonho. Quando pequeno o rio Marajó quis matar-me afogado talvez por encanto da mãe d’água, salvou das águas um colega pretinho que nadava na correnteza que nem peixe. Acredito que devo um tributo ao rio e sua gente ribeirinha, que desta maneira eu possa falar a sua história e quando exalar o último suspiro meus amigos possam lançar à mare da reponta as minhas cinzas para se misturar ao tijuco e habitar a lenda dos igarapés. Acredito, que todos somos descendentes das estrelas e cada partícula de poeira tem vida para sempre. Quanta arte a natureza faz! Aqui um ramo animado pelo vento acena ao olhar, ali a colunata do miritizal na beira; uma garça que passa com a graça do voo e o homem em sua canoa não tem pressa. Pra quê? Que todo mundo venha ver: o paraíso é aqui (ou o inferno verde), como pode ser aí em qualquer lugar onde não existir mais a exploração do homem pelo homem. A idade áurea na utopia do profeta ou poeta Isaías, enquanto o povo de Israel sofria no cativeiro da Babilônia. Somos todos no mundo as tribos perdidas: juntos nos acharemos e nos libertaremos ou juntos vamos nos perder para sempre. Mas a escolha é livre e de cada um.

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