quarta-feira, 20 de novembro de 2013

A CABO DE REMO EM MONTARIA A FIM DE CONHECER O LAGO (5).


... "Masporém, a viagem estava só no comecinho. Era dia 4 de outubro, segunda-feira, talvez, pouco mais ou menos cerca das oito horas da manhã". A gente largou da feitoria na Jutairana e, rio acima, passando do meio-dia encostamos a Favorita numa beira da margem esquerda onde amarramos a canoa num tronco. Desembarcamos a ver se o lugar em terra era bom pra passar o tempo até o sol sentar. Procurar lenha, armar o fogão, estender a coberta de palha ao chão, tratar o peixe ganho pra boia, salgar o resto, acender fogo, cozinhar, encher o bucho e descontar o sono perdido no cabo do remo em riba do chão debaixo da sombra duma ramagem na borda do campo. Daí há pouco tempo, acordamos ouvindo tropel dum cavalo bufando quase na cara da gente... Quando eu abri um zolho tinha um vaqueiro montado no animal, dizendo ele pra gente se levantar e cair fora. Pensei que era bandalheira pra meter medo, mas o cara falava sério.


A PARTE QUE ME TOCA NESTE LATIFÚNDIO


Cedo a gente aprendemos, quem vem de baixo pelo rio não pode chegar ao Alto Arari e meter a cara sem consentimento em terra de fazenda. Apesar da grandeza de tantas terras, no Marajó tudo tem dono: o mundo em geral é de Deus nosso senhor, mas Ele tem ilustres representantes na terra e grandes proprietários contemplados, o resto é posseiro e forasteiro... 

Se o fazendeiro de costume mora na cidade, tem feitor em seu lugar e se o feitor mora longe no corpo da fazenda, antão tem vaqueiro no retiro que é, a modo, vigilante do campo que nem Quiriru; pássaro a tudo atento ao que se passa ao redor e que dá alarme ao menor sinal de animal ou gente estranha, com seu grito estridente que diz "quero, quero"... É certo que o passarinho defende o ninho, enquanto o sumano vaqueiro, com sua pobreza galopante, tem medo de perder lugar de sustento da sua gente e não encontrar mais outro lugar no mundo. Noutra viagem ao Lago, conheci um homem chamado Pedrão, afilhado de São Pedro Pescador; era um cabocão fiel ao taberneiro que lhe aviava a pescaria. Se ele desse um tapa num mamote era capaz de quebrar o cangote do animal: masporém, se ele encontrasse um capanga de fazenda, carecia depressa tomar um gole de cachaça pra passar o nervoso... 

Certo dia alguém lhe perguntou, "Pedrão, se tu por acaso encontrasse com Deus nosso senhor e ele te dissesse, Pedrão, meo filho pede arguma coisa e eu te ajudarei... Que tu pedias?". Pedrão, arrespondeu: "Ah, sô home; se eu topasse por aí com Deus nosso senhor, pedia um pução, com um trilhão de jacaré dentro". O pobre Pedrão na vida só sabia arpoar jacaré e imaginava "um trilhão" como quantidade infinita. Assim se repete esta desinfeliz história, desde o tal diretório dos índios e os Contemplados, por toda eternidade...

Na verdade, a viagem da canoa Favorita se passou em 1955 e hoje é 20 de novembro de 2013: dia da Consciência Negra. E a gente não sabe ainda que os primeiros negros da terra do Brasil foram tirados, no pisão, da ilha do Marajó pelo espanhol Pizón, no ano de 1500, antes de Pedro Álvares Cabral. A gente também não sabe que no dia 20 de novembro de 1756, foi achado no igarapé do Severino o teso do Pacoval do rio Arari, pelo capitão Florentino da Silveira Frade, dono da fazenda Ananatuba e fundador da freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Cachoeira do rio Arari. O Pacoval é o primeiro sítio que se teve notícia da milenar cultura marajoara. Primeiro cacicado das regiões amazônicas: portanto, por acaso, esta simplória viagem ao passado acaba sendo, de alguma maneira, uma incursão do presente à história do futuro casamento da Consciência Negra com a resiliência da antiga Cultura Marajoara. Quem viver verá...

O HOMEM DA JEBRE É UM SOBREVIVENTE

Hoje aquela estúrdia excursão da canoa Favorita vem em busca do tempo perdido, tropicando pelo incerto caminho da memória à luz do crepúsculo. Muita coisa se apagou e outras tantas agora se misturam numa pálida lembrança. Masporém, os cacos da história refazem a viagem e por esta causa fui saber, tempo depois, que na repartição do vasto mundo marajoara ainda faltava contar com a incrível, inimaginável e incomunicável Jebre... A Jebre é terra de febre nos bravos mondongos e Contracosta, terra dos negros da terra capturados por Pinzón. 

A Jebre assustadora é chavascal geral onde bichos, gente perigosa, encantados e fantasmas sobreviventes do interminável passado das malocas e mocambos, antigamente, se refugiaram à margem da história. Dizem as más línguas, que a Jebre é quartel-general de ladrões de gado: todavia, como podem dizer isto aqueles que, muitas vezes, roubaram a história dos cabocos, se nenhum civilizado jamais conheceu a Jebre e muito menos sabe da crua existência do jebrista explorado pelos verdadeiros gatunos? 

Tenho pra mim, que voltei a Santa Cruz, e fui repórter do fim do mundo cerca dos primeiros anos da criação do município desmembrado do distrito do Alto Arari de Ponta de Pedras, que o homem da Jebre é, sobretudo, um sobrevivente da conquista do Marajó e da ditadura da água. Mestre Giovanni Gallo chegou com os ventos da renovação da igreja romana, cerca de dez anos depois desta citada passagem, confirmando ele em memoráveis reportagens transformadas em livro o que Dalcídio escreveu em romance, desde 1939, na vila de pescadores de Salvaterra, distrito de Soure

Pra quem não sabe, meu bisavô materno era camponês da Galiza (Espanha) veio ele para o Marajó, com uma mão à frente e outra atrás, que nem outros imigrantes que, após a Cabanagem, ganharam terra, gado e escravos para refazenda da então decadente pecuária no Pará velho de guerra. Camponês da pobre Galiza, teve ele sua chance no Baixo Arari, onde viveu e morreu trabalhando, com seu quinhão de terra no Fé em Deus, por obra e graça do império brasileiro no Rio de Janeiro. Sem o que não estaria eu contando estória...

Por que então, agora, não consentir uma lasca de terra à criaturada na beira do rio e algumas linhas de memória a esta gente despossuída de história decente? Não acho justo ver fazer uma coisa dessas com caboco e enfiar viola no saco... Mais ainda concordar com a inconsciência de descendentes de índio, preto e imigrante que são contra as tais "afirmações positivas", vulgo inclusão social e redistribuição de renda. Dói na lembrança recordar um vaqueiro tonto a tirar do sono e enxotar dois goiabas cansados de remar a fim de conhecer o Lago Arari, na inconsciência da condição humana negreira para dar satisfação ao feitor da fazenda.

O tuxáua Plasmódio toma conta da porteira da Jebre: acho que a malária que eu peguei no Lago Arari foi um batismo de fogo a 40 graus de febre... Último reduto da resistância marajoara à conquista do rio das Amazonas... Lugar além da imaginação civilizadora, onde branco não anda e vaqueiro que tem juízo não mete a cara sozinho. O caboco da jebre - mais bicho do que gente, que nem seu extinto parente índio aruã - não conhece cidade, em compensação ele sabe tudo que se passa no reino das fazendas, mas as fazendas não sabem o que se passa na jebre. Como me disse, mais tarde, um morador de Santa Cruz: "Os cabocos sabem que os brancos não sabem"...

A primeira contradição do Marajó é a ditadura da água, como o padre Gallo falou. A segunda e imediata contradição é o engano da vista da gente vendo tanta amplidão de terra neste mundão e, quando acaba; vai saber, é tudo quinhão de poucos. Retiros de gado e feitorias de pesca se batem num combate surdo e feroz, ai de nós; dois goiabas chegando que nem cego em meio ao tiroteio...

Nenhum comentário:

Postar um comentário