segunda-feira, 25 de novembro de 2013

A CABO DE REMO EM MONTARIA A FIM DE CONHECER O LAGO (8).

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... "Quanto, antão, o camarado se acordou ele não prestou atenção que a gente tinha mudado de direção no escuro e continuou a remar: a Favorita, canoa safada, talvez com saudade do Bacurituba queria voltar rio abaixo... Pai d'égua! Haja a gente, quase no bagaço, ter que recomeçar a viagem". Daí em diante carecia ter mais respeito por aqueles abaeteuaras e goiabas danados que iam e vinham pelo curso do rio com suas canoas a vela ou a remo trabucar e buscar o de comer no lago Arari pra abastecer de peixe seco casas de comércio e mercados das cidades da redondeza, assim que a população ribeirinha das varjas de baixo. Acumulação primitiva no país da Criaturada grande, via dolorosa por onde se fizeram grandes fortunas: cada casa de comércio da terra um manda chuva, cada fazenda um reizado mais alienado que outro. Que nem as origens das sesmarias dos Barões de Joanes: elas cá metidas no barro da barbaridade da Ilha Grande e eles lá residentes da civilização da pedra polida de Portugal... O regime de morgadio das ilha da Madeira, Açores e Cabo Verde transplantado à grande ilha do Marajó não podia mesmo dar certo neste rio incerto, não é verdade Vadico?



MORTOS DE SONO OU MUNDIADOS PELA BOIÚNA


Cada estirão do rio Arari a caminho do Lago é uma coisa de dia e outra coisa muito diferente de noite. Acima do igarapé São José trazendo águas do Lavrado, por exemplo, há dois cursos diferentes de paisagem: um é curso vespertino e outro noturno... Quando o sol aparece no parto da manhã o camarada vê de perto pra contar de certo todo verde das margens e das ilhas campestres espalhadas no lavrado misturar-se ao azul do céu infinito salpicado de grossas nuvens de algodão no tecido de águas emendadas, de alto a abaixo, pelo cordão das chuvas. Sorte nossa que, na ocasião, a gente estava na força do verão... 

O sono vai-se embora e a gente segue remando confiado na hora da chegada e com mais satisfação escuta urros de gado do vento e ouve recordações... velhas estórias contadas à margem de outras viagens a remo, tais quais idas e voltas de tio Cidoca ao Alto Arari. Compreende, antão, que a vida é que nem um rio comprido e cheio de voltas onde a gente passa, de bobuia, a bordo duma barca de sonhos em busca duma quimera...  

Olhar de longe distintas malhadas imaginárias e reais na lonjura do pastoreio, lotes de éguas correndo em liberdade de lés a lés e o relincho do garanhão que emprenha a imensidão do espaço vazio; revoada de marrecas pretejando o cimo dos balcedos, a graça das garças em quantidade e a revoada geral da passarada denunciando cardumes numa boca de igarapé ou furo de laguinho que vaza pro rio. Quem vai perder o espetáculo desses depois de uma noite daquelas? 

Claro, o  sumano pescador e o trabucador da lida presos desde o cordão umbilical à cadeia da murrada debaixo da ditadura da água, quase não acha nadinha daquilo bonito, pr'esta gente até paresque é um castigo, sem outra coisa pra fazer da própria vida... Masporém pra marinheiro de primeira viagem, que nem eu e meo camarado Vadico; uma tal viagem de descoberta do Alto Arari, como esta, era lindeza pura que nunca se pode esquecer na vida.

Aí, quando o sol se deita em riba do campo lavrado e desaparece atrás da linha do horizonte, o clarão do fim da tarde resta ainda por um bom par de tempo e bandos de curicas e papagaios atrasados na volta pro ninhal povoam a boca da noite com seus gritos agudos. Antão, os campos vão escurecendo devarinho ao contrário da mata fechada que anoitece de repente. Masporém, antes do cair da tarde meo camarado Vadico havia se alembrado, paresque, que tio Cidoca dizia ser naquelas paragens de ribanceiras limpas bom pra levar a canoa na sirga e adiantar viagem...

Eu nunca tinha visto nem ouvido falar de tal coisa. A sirga é maneira expedita de rebocar embarcação puxada de terra, principalmente ao longo das margens de canais. Antão, era chegada a hora e a vez da sirga quando a Favorita chegou num bonito estirão descampado, onde paresque a vista não alcançava o fim. O gado espalhado no campo era coisa muito linda de ver... Vadico começou a emendar corda com corda, que a gente trazia na canoa pra qualquer precisão. Com isto ele fez um cabo comprido, o qual cuidou de enrolar na mão pra levar à terra. "Encosta a montaria na beira, que eu vou saltar e puxar a canoa de terra" - disse-me ele. 

O camarado amarrou o cabo bem amarrado no bico de proa da canoa e saltou com a ponta passada por riba do ombro lá dele e, antão, o caboco foi andando por terra e levando a montaria com beira... Eu, na canoa sentado no banco de popa só carecia, com o cabo do remo passado debaixo duma perna pra dar firmeza, fazer o leme e jogar tudo pra fora, como se acaso a gente quisesse atravessar o rio. De terra, o sumano puxava ao contrário e destarte a Favorita ia pra frente com mais rapidez que dois remos a bordo não podiam andar. Quando a gente não tem lancha-vapor de reboque e o remo vai devagar, a sirga é quebra-galho se o estirão tá livre e desimpedido de chavascal pela ribanceira. Morrendo e aprendendo: bem que meo pai dizia, a necessidade é a mãe da invenção...

Assim, antão, graças à sirga maneira a gente fomos descontando, naquela tarde calma, parte do prejuízo do tempo perdido ao voltar pra trás na noite passada. Culpa do cansaço e o desconforme sono. Ou a mundiação da cobragrande mãe do rio: aquela monstra que, diz-que, mora debaixo da capela de Nossa Senhora das Mercês da fazenda Arari. Que foi, no passado distante sesmaria dos frades Mercedários e depois propriedade da matriarca dos fazendeiros do Arari, Dona Leopoldina Lobato. Todo mundo sabe que pra sossegar a Boiúna carece a Madre de Deus pisar a cabeça daquela maria caninana: por isto, paresque, os frades fizeram o altar da santa em riba do sumetume da cobragrande. Sumetume, pra quem não sabe, é buraco servindo de suspiro pra bicho que mora no fundo da terra com varadouro pra dentro d'água. A paca e a capivara, por exemplo... Tio Cidoca conta - dizendo Vadico -  que, certa vez, o antigo feitor da fazenda Arari experimentou tirar a santa imagem da capela, tendo cuidado antes de rezar ladaínha a fim de acalmara a besta fera. Por que, devido ao tempo, carecia mandar encarnar a santa imagem por santeiro oficial do arcebispado em Belém. Ah, pordeus!... Nem bem a lancha desatracou com a santa a bordo, a cobragrande se acordou lá no fundo do sumetume, paresque, e a terra toda da capela tremeu e as telhas voaram longe...

Um vaqueiro, diz-que, saiu a todo galope pra atalhar caminho e chegou na curva do rio antes da lancha passar. Ele se pôs a fazer sinal com o chapéu: Pára, pára... Que foi que aconteceu? A cobra se mexeu e a terra tremeu, paresque a fazenda vai pro fundo... Eita, confusão seo patrão! Aí, foi só colocar a imagem de volta no altar e acabou a assombração.



CIDADE FANTASMA FOGE PELOS CAMPOS


Contra correnteza três dias e três noite pegado a cabo de remo, comendo mal e mal dormindo em riba de japá no chão de terra dura. Remar e remar, sem jamais chegar ao Lago ambicionado no fim do rio, retorcido que nem uma cobragrande. Noite fechada, uma lua apagada por nuvens escuras paresque um borrão esbranquiçado sobre fundo preto sem estrela. A umidade latejava no ar e a gente numa entalada dessas sem saber mais onde estava: já o mapa falado do tio Cidoca não valia nada... Onde, paresque, os dois goiabas do Curral Panela foram se meteram naquela noite escura?

O sumano Vadico estava, de vera, por demais embatucado... A gente tinha desembocado num largo a cabo da derradeira curva do rio. Seria ali o tal Lago falado? "Mas, bom...", disse eu meio decepcionado: em meu pensamento o lago Arari sempre foi que nem o vasto mar... Foi aí, antão, q'eu vi paresque a vila do Jenipapo na beira do lado esquerdo da canoa. A vila dormia em silêncio profundo, será? Haja a gente a remar direto ao porto: masporém não se via nenhum bico de luz, nenhum candeeiro ou uma zinha lamparina que fosse... 

A coisa tava ficando estúrdia. E a gente querendo apressar a chegada metemos força nos remos fazendo a escuridão recuar e estrondar lá na beira. Na sombra já se podia divisar um casario rasteiro, paresque, casas caiadas a modo. Foi, antão, que o espanto sucedeu: com a canoa chegando perto as casas se levantaram e saírem de carreira pro campo mergulhando no escuro. Égua!... Nunca eu tinha visto assombração. Que sucedia? A vila do Jenipapo, sumiu do mapa com a chegada daqueles goiabas sonâmbulos? Na verdade, não era vila nem casa nenhuma, mas o sono; tresmalhado sono que fez duma malhada de gado nelore, por acaso, uma cidade assombrosa.

E agora? Fosse numa hora boa o camarado rebatia: "caga na mão e joga fora"... Mas não; desta vez a coisa tava feia: "Meo Deus do céu!" - Vadico gemeu toda nossa desorientação naquela triste situação, mortos de sono e fadiga depois de três dias e três noites a subir o rio a cabo de remo. Embarcamos os remos da desolação. A Favorita ficou como cavalo sem rédea podendo escolher caminho pra ver aonde, dali em diante, a gente ia parar.  Aquele rio negro em sua súbita largueza era, paresque, uma baia lisa como um espelho onde não soprava nenhuma brisa. 

A malhada sumiu engolida pela noite dos campos e os goiabas cegos, ceguinhos no furo escuro... Vadico relutava com o sono mas ainda buscava se alembrar das últimas recomendações de tio Cidoca... "Hum, hum... paresque a gente estamos é na boca do Anajás", disse ele como que, finalmente, saindo do labirinto. Pra mim àquela hora estúrdia, estar ou não estar na boca do Anajás-Mirim ou em outro lugar não adiantava. Morrendo de sono eu já nem sentia medo de onça ou de assombração, a gente podia encostar a canoa e dormir na beira até o outro dia.

Foi aí que a canoa foi "andando" sozinha e apareceu, distante, uma luzinha pelo lado direito. Podia ser uma geleira na espera de pescador com peixe, disse o meo camarado. De qualquer maneira, era uma luz na escuridão e melhor seria ir remando naquele rumo a fim de perguntar qual era o caminho para o Lago. De novo, metemos remos n'água e fomos indo em direção àquela luz: aí, o sumano Vadico já se lembrava do que tio Cidoca dizia, que a parte mais estreita do rio pela margem direita de quem vai era, sim, a Boca do Lago. Na esquerda ficava a dita boca do Anajás-Mirim que vinha dos centros... Que a gente prestasse atenção, meo ermão.

Haja a remar e nada de chegar à tal geleira. Puta merda!... Ora, mais perto não era mais a tal geleira que parecia ser à distância, agora já era um barco desses uns de carregar boi pro curro. Devia vir baixando com sua brilhante luz elétrica acesa na ponta do mastaréu, já se podia ouvir a zoada do motor possante. Antão, desse instante em diante eu, no piloto, carecia ter muita atenção ao banzeiro quando o barco passasse pela ilharga da montaria chapada de carga, pois nessa hora podia alagar. 

Era preciso encostar bem pra beira e deixar o barco passar, em seguida aproar a canoa de tal maneira pra pegar a onda pela frente. Tudo isto se passava em meus pensamento enquanto a gente remava entre as curvas do rio rumo à boca do lago, onde, enfim se encontraria a vila do Jenipapo. Masporém, nada do tal barco cruzar com a canoa. Oras o mastaréu brilhante por riba do mato da beira aparecia do lado direito e, de repente, surgia da banda esquerda, na demonstração de quantas curvas o rio tem até o estirão final. 

O sono era tanto qu'eu começava a ficar tonto. Agora a zoada do barco-motor parecia perto a pouco metros de distância, tinha eu que me preparar com todo cuidado e enfrentar o banzeiro a qualquer instante. Opa! Eis o barco frente à frente da montaria!... Mas, coisa estranha: na verdade, a embarcação embora com motor ligado para manter as luzes acesas estava atracada ao trapiche do Jenipapo: pela primeira vez eu vi o grande Lago Arari falado em todas redondezas do Marajó. Venerável mar negro megulhado na escuridão donde vinha um rumor do fundo das águas e o vento galopava no dorso da grande noite prestes a passar. De surpresa, veio de terra o cantar em coro de mil e um galos, paresque, anunciando a alvorada com a notícia da chegada da Favorita. E, do alto de seus poleiros sobre a terra encharcada, inventaram outra manhã.

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