terça-feira, 19 de novembro de 2013

A CABO DE REMO EM MONTARIA A FIM DE CONHECER O LAGO (4).


... depois de breve parada no trapiche de Cachoeira recomeçamos a subir o rio: "Vadico desceu de terra e passou para a proa. Prosseguimos a viagem. O dia ainda estava longe mas a gente não queria perder tempo por nada deste mundo."


AMANHECEU NA FEITORIA À BEIRA DO RIO

Passado um dia e uma noite, quando o segundo dia de viagem clareou a gente viu, de verdade, que já estava dentro do Arari falado: feliz da vida... O tempo estava apenas começando e passava devagar sem pressa de acabar como a saborear uma boa caneca de café. A Favorita fazia boa viagem e começava com pé direito, graças a Deus... Naquelas paragens do Marajó velho, sem Deus pai, Santa Maria mãe do Menino Jesus, o Divino Espírito Santo, todos os santos e os caruanas nada andava pra frente nem que o caboco quisesse andar direito. Sem acreditar nessas crenças todas, paresque, dava uma pissica danada e o sujeito não levantava cabeça...

Era um mundinho ribeirinho onde São Pedro Safadinho reinava com pescador, a ver paresque se o cara tinha merecendência para herdar o antigo paraíso perdido. Masporém ninguém gostaria de ir embora do Marajó sem mais nem menos, mesmo aguentando às vezes as piores injustiças e necessidades. Meu pai dizia que quando chegava em Cachoeira e os olhos dele davam em riba dos verdes campos lavrados a perder de vista, o peito se abria com a respiração farta e seu coração se alegrava tanto: antão eu vi que era verdadeiro o que meu pai me dizia. E eu que sentia saudades de alguma coisa que só conhecia por ouvir dizer... Pena que já não fosse mais o velho e bom Arari do tempo do gado do vento crescendo amoitado que nem capivara ao deus dará e das vacas gordas da malhada vivendo fora de laço e curral, como mea mãe contava de quando ela era mocinha na Diamantina e no Porto Santo, lá pelos idos mais ou menos de 1920. O rio da memória também é rio dos outros, que a gente se empodera pela história contada ou escrita por muitos.

Agora imagina a fartura d'outras eras e a primitiva antiguidade do Marajó antes das escassas sesmarias dos barões, que desde longe desta terra com a sua ávida inconsciência inventaram a pobreza da despossuída gente! O que eu e o sumano Vadico Ferreira, bancando goiaba sem eira nem beira; íamos ver no Arari era, paresque, a última liquidação do antigo tempo bão... Por acaso, duzentos anos depois que o governador irmão do Marquês de Pombal mandou o capital Florentino Frade, fundador da freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Cachoeira do rio Arari, levantar o inventário das fazendas dos padres. Pra você ver com quantos paus se faz uma canoa... Mas, àquela hora da primeira manhã rio acima, a gente não sabia nadinha do passado ainda escuro nem do futuro que ainda iria vir.

O desmemoriado pescador das tribos perdidas e pobre descendente de índio desafortunado, lutando por uma nesga de terra a fim de armar barraca de pesca junto d'água onde ele e seus camarados pudessem jogar tarrafa e estender a rede de pesca pra arrumar o de comer. Enquanto fazendeirão de pés no seco dentro de sapato no bembom da cidade, mandado feitor meter a porrada, expulsar da beira e tratar a gentinha ribeirinha a coices. 

A gente era analfabeta de pai e mãe e os ricos diziam que Deus nosso senhor fez o mundo assim, desigual e sem jeito, desde os princípios. Nisto porém a gente não podia acreditar, porque Deus é pai, não é padrasto... Portanto, era a luta manhosa do pobre sempre acusado de ser ladrão de gado contra fazendeiro malino que roubou a terra que Deus pai havia dado aos índios e contra a polícia de fazendeiro escroto que não deixa a gente sossegar num canto.

Prova da castigada inocência da gente, é que no dia da Favorita zarpar do igarapé Bacurituba rumo ao Alto Arari, 3 de outubro de 1955, foi dia de eleição para o cargo de governador do estado e a gente não sabia nadinha, dado o ilhamento a que se havia chegado depois de certo tempo após a quebra da Borracha (logo no Serrame, que foi um dia no passado distante comércio e estaleiro!). Compadre Manduquinha, metido a pajé; até o Vadico sempre tão esperto, a comadre Didi que tudo sabia por ali, papai tão ligado à política de Ponta de Pedras através do jornalzinho falado chamado tia Lodica; mamãe que era uma águia e a memória viva da família, ninguém sonhou... Se não, não tinham nos deixado sair do porto... 

Lá pelo Curral Panema adentro todo mundo era Barata desde criancinha, mas ninguém perdia tempo pra falar em política nem em time de bola. Se havia algum eleitor ali iria votar no Itaguari. Tanto que os dois goiabas, que eu e meu camarado Vadico éramos, nem nos demos conta que dia da semana a gente estava e, muito menos, que o dia da viagem ia calhar com a eleição. Égua da ignorância, sumano!... 

Qu'eu me lembre bem, a única pessoa lá pelas bandas do Serrame que falou na tal eleição que ia ter naquele ano, mas não disse o dia, foi o seu Benedito Santiago Frangalho, um senhor de meia idade, mulato, dono do sítio Meia Noite e da igarité Oliveirazinha. Ele era do contra sem barulho, aliás o único contrário ao Barata naquelas bandas, que eu saiba. Dizendo ele que iria votar no doutor Epílogo de Campos, cujo nome eu nunca tinha ouvido falar e ele não se atrevia a dizer direito, chamando-o curiosamente de Doutor Pilogo de Campos... Bom vizinho e homem viajado porém de origem humilde, não sei dizer por que motivo seu Benedito Frangalho ficou do contra ao baratismo, se o baratismo era do lado dos pobres. Talvez por influência do Doutor Romeu Santos, chefe dos contra em Ponta de Pedras, ou do deputado João Viana, de Arariúna, aliás Cachoeira... Este um, diz-que, ficou inimigo do Interventor uma vez que este tendo tirado a Comarca de Cachoeira para levar a Ponta de Pedras; fez um ardido discurso de protesto e acabou preso por desacato à autoridade. Era a revolução de 1930 abrindo o verão na ilha...


Quanto custa uma arroba de peixe? 

Devo confessar que eu estava deveras muito cru naquele negócio metido no papel de goiaba com meu sócio Vadico. Também ele já não me parecia o bambambã da marretagem da hora da partida, lá no Bacurituba. Passando de Cachoeira pra cima éramos dois abestados por igual incompetência. O tio Cidoca era o guia mental daquela estúrdia viagem, ele lá no Itaguari, constantemente lembrado por nós meio na casa do sem jeito e no mato sem cachorro. 

O bom leitor já pescou que a palavra camarada é feminina no vocabulário caboco; portanto, o Vadico era capaz de se ofender e até puxar briga se alguém desconsiderasse que ele era macho até debaixo d'água... Em compensação, uma caboca batizada como Maria do Socorro, no Curral Panema acabava sendo chamada de dona Socorra, posto que socorro é masculino. Paresque, meu camarado levava um mapa traçado na cabeça, lá dele; com aqueles nomes de fama pelas beiras remontando o rio Arari: Laranjeiras, ilha do Setúbal, Itacoã, Porto Santo, Fé em Deus, Gurupá, Curral de Meias, Mãe Maria, São José, Jutairana, Manjerona, Pindobal, Mercês... Eu nem pra perguntar a quem sabia de fato! Vadico dizia conforme lhe parecia de acordo com o relato verbal do tio Cidoca, pronto já eu dava por certo... Mas, agora no fim da estória, como refazer o mapa da memória que já vai esmaecendo? Se o mapa não é o território, devo saber...

De fato, onde localizar aquela primeira feitoria a qual nós fomos parar pra tomar café e fazer o primeiro negócio, vendo aquela gente tratar e salgar o peixe? Terras da Jutairana? Não sei... O certo é que aproei a canoa rumo à beira, fomos folgando remadas e nos aproximando. Um cachorro magro se levantou do seu canto, latiu como era de obrigação e voltou a deitar em riba da juçara pra coçar suas pulgas... O pessoal estava avexado, cedo a pesca acontecia antes do sol se levantar. Uma feitoria de pesca é mundo na beira do rio: gente, mulher e criança tudo misturado... Todo mundo pitiú tratando peixe em quantidade, ao mais que depressa, para não deixar estragar... Não há tempo a perder: quem escama escama, quem tica tica; quem destripa destripa e quem salga salga... De tarde, barriga cheia e folga na rede de dormir até madrugada quando o galo canta pra pegar a outra rede e batalhar n'água com arraia, cobra, piranha, jacaré a fim de trazer o peixe. Aquela gente vivia de rede em rede: da conceição ao parto, vivia a bem dizer de rede em rede da hora do descanso e do trabalho, até na morte a sorte do caboco era ir da barraca ao cemitério dentro de rede.

O patrão dono de geleira ficou na cidade ou no balcão da taberna num sítio remediado, aviou tudo que o pescador e sua família carece pra montar feitoria. Agora esta gente tem que dar conta do recado, direitinho, se não o crédito acaba. Antão, também acaba o sal, querosene, açúcar, café, cachaça, tabaco... O jeito só Deus sabe, quando o panema perde crédito do patrão e o Diabo da fome manda procurar rês atolada roubando-a primeiramente aos urubus.

"Bom dia", disse Vadico na proa da montaria ao se aproximar. "Pode vir", respondeu o dono da feitoria se levantando e caminhando em direção aos recém-chegados. "Cadê a cachaça?" O homem perguntou e Vadico respondeu, "taqui, sô home"... Na feitoria tudo é improviso, barraca de palha, jirau de taboca, crianças, cachorros, papagaio, periquito, mulheres pegadas ao serviço, rede de pesca, linha, tarrafa largada ao chão, tudo meio misturado à lama em confusão, rede atada com o jitinho de peito dentro todo mijado e cagado, moscas... Sacas de sal em riba dum estrado perto do fogão ao chão sobre o qual a panela pendurada numa forquilha inventa a trempe que não há e a lenha acesa embaixo faz o que faz. 

Ali ninguém estava a fim de maiores gentilezas, dizendo por exemplo sou fulano de tal, como é a sua graça? beltrano, muito prazer, etecetera e tal... A mulher cara de índia pura passava um café e entregou ao homem duas canecas de esmalte fumegantes que ele serviu aos supostos fregueses recém-chegados... Vadico cortou fora quatro dedos de tabaco num mole que parecia ter uma braça de comprimento e deu de agrado ao dono da feitoria. Este um tinha um tope maranhense aclimatado ao interior do Pará há uns quantos tempos; passando a ele também uma garrafa de cachaça. Era de praxe tais trocas pra ficar freguês. 

Aí eu já me entremeti no assunto sem ser chamado e perguntei, "o senhor pode nos vender peixe?"... Hoje me dei conta que eu disse uma besteira e tanto: era como se eu fosse na padaria da esquina perguntar se podiam me vender pão. Eita, porra!... O homem me olhou com cara de riso e perguntou: "quantas arrobas o amigo quer?... Disse-lhe, "não senhor, é pouca coisa só pro almoço"... Antão o homem viu logo que o goiaba era marinheiro de primeira viagem, deu uma risada safada e emendou. "Tu quer a boia, não se vende boia pra ninguém. Me veja um paneiro". Peguei na canoa o único paneiro que estava vazio, era um de meio alqueire. O homem encheu o paneiro de ituí-cavalo, jeju e traíra até a boca... Coisa como quinze quilos, pra dois cabocos tirar o bucho da miséria estava muito bom. O Arari dava lição de comunidade que era uma beleza. "Adeus, mea gente", disse Vadico soltando o cabo da montaria. "Vão com Deus", disse o dono da feitoria. O nome do Todo Poderoso, ali paresque, era a modo passaporte ou salvo-conduto pra gente chegar e voltar do Lago, são e salvo. Masporém, a viagem estava só no comecinha. Era dia 4 de outubro, segunda-feira, talvez, pouco mais ou menos cerda das oito horas da manhã.

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