sábado, 23 de novembro de 2013

A CABO DE REMO EM MONTARIA A FIM DE CONHECER O LAGO (7).


... "Quando, desta vez, os donos do pedaço piores que feitor de fazenda ranzinza e onça faminta, apareceram num átimo de dentro do mato e caíram em riba dos goiabas de primeira viagem... Eram, paresque, milhões e milhões de carapanãs e muriçocas. Aí a gente saiu de carreira da beira pra dentro da canoa empurrando pra fora e se coçando, "vumbora, sumano, vumbora..."... "Égua, porra!". Se eu disser que nunca corri de praga, estarei faltando com a verdade". Aí, a escuridão caiu sobre os remadores como se fosse o manto da lenda da primeira noite do mundo. Vozes noturnas tomaram conta do rio com a sua polifonia: jacurutus, bacuraus, mil e um coaxos, urutaí mãe da lua... E ainda vieram os búfalos caír n'água a pouco metros da canoa.



O labirinto na noite do rio

Deixa estar que a gente da parte baixa do Arari até as beiras do Marajó-Açu, passando pelo Canal e o Curral Panema, não conhecia o tal de búfalo falado. O pessoal que subia o Arari quando baixava vinha com estória cabeluda, diz-que o bicho era um terror. Quando eu era pirralho tinha até pesadelo com a figura do búfalo imaginado, animal estranho no Marajó até boa parte do tempo.  

A gente ia remando durante a noite inteira e quando o sono pegava um tirava cochilo na proa e o outro passava à popa pra pilotar e continuava remando até se cansar. E assim a Favorita ia navegando devagar até o dia raiar... Pelo meio dia, mais ou menos, a gente encostava na beira pra preparar a boia, dormia um pouquinho em riba da coberta de palha estendida no chão e mais adiante continuava a viagem.

Antão, altas horas da noite, era mea vez de pilotar a montaria e a gente ia calmamente passando paresque em frente à fazenda Pindobal, conforme disse meo camarado Vadico, mais ou menos seguindo as informações do tio dele, chamado Cidoca; o qual diz-que havia recomendado muito cuidado aos búfalos que existiam em quantidade na tal fazenda... A gente tinha as piores notícias dos búfalos no alto Arari: bichão brabo, paresque o Minotauro da estória; que virava canoa no rio e atacava o pessoal em terra. Muitos relatos chegavam nas bandas de baixo sobre ataques, sobretudo dos rosilhos: a pior das piores raças de búfalo segundo esta gente dizia.

Foi aí qu'eu vi aquilo no meio do campo, pintado de carvão, uns certos vultos parrudos, como se fossem ilhas escuras que vinham vindo no rumo da beira. Ouvi Vadico murmurar, "búfalo"... Ah, pordeus! Fiquei todo arrepiado e de cabelo em pé. Os bichos caíam n'água fazendo estrondo que nem barranco quando despenda da ribanceira fazendo tibum... Aquela zoada surda ecoava no medo da gente, de margem a margem. Ainda mais que o rio Arari do seu médio curso pra cima é estreito e cheio de curvas formando um labirinto danado.

Búfalos nadam como o diabo e são ótimos mergulhadores: quando reparei, o rio estava coalhado de búfalos e a canoa estava cercada por muitos deles. Botavam focinho fora d'água soltando bufos de ar e eu tive impressão de que um grandão veio boiar de propósito bem do lado da borda direita pra espiar de perto que bicho ia passando. O'zolhos do animal paresque brilhavam à fraca luz do rio na superfície... Ouvi dizer que os bichos em geral sentem o cheiro do medo da gente e o medo vinha do fundo querendo paralisar as remadas. Calados que nem um baú fechado!... Masporém, algo dizia pra gente não dar parte de fraco e não parar de remar nem remar de com força. Antão a gente fomos passando, devagar, sem fazer barulho... E quando vimos que já era boa a distância: força na remada, quero ver meo mano, vir nos pegar!...

O rio fazia mil e uma curvas que nem o rasto da Cobragrande e alongava as distâncias. Me alembrei do meu avô Alfredo contando como foi que os búfalos vieram parar no Marajó, comecei a conversar pra espantar o sono e o sumano Vadico ia perguntando. Aquela conversa paresque servia para as vozes da noite se calarem e as curujas prestar atenção. Diz-que, antigamente, uns condenados de Caiena fugiram num barco com carregamento de algumas cabeças de búfalo e acabaram naufragando na Contracosta da ilha do Marajó onde os animais se soltaram e chegaram em terra a nado. O certo, dizia meu avô que foi secretário do coronel Bento na intendência da vila de Cachoeira; o irmão do dito coronel, chamado doutor Bertino Lobato de Miranda; trouxe um lote de búfalos para a fazenda São Joaquim donde os animais se espalharam. Depois dessa levada de búfalos para a São Joaquim, o doutor Vicente Chermont de Miranda trouxe mais búfalos de fora e mandou para as fazendas dele, Dunas e Ribanceira; masporém aí os bichos se amoitaram e ficaram brabos... Eram da raça Rosilho, dito Carabao. Ai "sô home" é que começou a estória de búfalo brabo fazendo o diabo quando topava com gente pela frente. Conversa estava boa, mas era hora d'eu passar pra proa da canoa e tirar mea soneca...

A viagem voltou pra trás...

Com efeito! A gente já tinha adiantado bastante o caminho quando, ao cair da tarde do terceiro dia de viagem, a Favorita passava mansamente em frente duma bonita casa grande de fazenda... "Que lugar é este?" - eu perguntei. "Paresque, a fazenda São José"- respondeu Vadico. O burro perguntando ao que não sabia. Uma viagem como está o que, zinho, livra da ignorância é a suposição... E ainda tem ignorante que não sabe o valor duma boa suposição. O camarado guia da viagem nunca havia feito o curso superior do Arari, masporém ele tinha tio Cidoca por valia de mestre e muita gente conhece geografia por ouvir dizer, por que a tal ilha do Marajó são ilhas do labirinto maior do que o reino de Portugal, paresque. 

A gente fala aqueles nomes de fazenda como as contas do rosário: Matinada, Diamantina, Cueiras, Espirito Santo, Oriente, Santa Bárbara, Santa Quitéria, Por Enquanto, Mãe Maria, Montenegro, Santa Catarina, Tapera... E quanto acaba ninguém foi lá, masporém estórias desta e daquela fazenda vem à roda de conversas de compadres pelas vilas e pelas anedotas de tripulação de barcos e mais embarcações na espera de maré. Literatura escrita tão só na cabeça dos contadores de causos. Quem é destas bandas, falou no nome da fazenda já sabe que se trata da família tal e qual, lembra quem foi a baronesa dona Leopoldina ou o rei do gado coronel Antero. De toda maneira, bom saber, como diz o outro: os cabocos sabem que os brancos não sabem...

Mais uma vez caiu a noite fechada e a gente no meio do rio sem nenhum lume que não fosse estrela do céu e olho de jacaré pela beira do aturiá. Lutando contra o sono e a lonjura. Coube ao Vadico pilotar a montaria no último estirão da madrugada. Ai amanheceu e o sumano remando, remando... Quanto, antão, me acordei e vi que a canoa tinha "andado" pra trás... "Eh, sô home, olha lá... aquela não é a tal fazenda São José que a gente passemos ontem de tardinha?". Vadico soltou um grito: "Puta que pariu! Ela mesma."... O mano reconheceu, segundo a instrução falada de navegação a remo por tio Ciloca, que a gente estava voltando por vontade própria da canoa. 

Como assim? É que da vila da Cachoeira pra cima a subida do rio é sempre contra a correnteza que desce do Lago serpenteando entre voltas e contravoltas: eu dormindo na proa e o piloto na popa, com certeza, vencido pelo sono ou a mundiação da Boiúna, sem afrouxar o remo da mão; deu um baita cochilo e a montaria indo de bubuia rodopiou na correnteza... Quanto, antão, o camarado se acordou ele não prestou atenção que a gente tinha mudado de direção no escuro e continuou a remar: a Favorita, canoa safada, talvez com saudade do Bacurituba queria voltar rio abaixo... Pai d'égua! Haja a gente, quase no bagaço, ter que recomeçar a viagem.

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