domingo, 17 de novembro de 2013

A CABO DE REMO EM MONTARIA A FIM DE CONHECER O LAGO (2).


... dissemos na primeira parte desta viagem: "Fomos e voltamos com a "Favorita" até o lago Arari a cabo de remo. Meu camarada Vadico tinha um ou dois anos de idade a mais que eu, era o mais entendido e já conhecia o caminho do rio até Cachoeira. Eu ainda não havia passado da ilha de Sant'Ana nem uma remada rio acima. Meu negócio, na verdade, era conhecer o lago falado por meus velhos. Na volta pela parte que me toca, uma malária a mais no currículo. Como diz o outro, tudo vale a pena se a alma não é panema...". Na foto em riba, imagem de montaria em hora de folga na faina, que nem a dita "Favorita" do compadre Manduquinha do Bacurituba. Com diferença de que a canoa de meu compadre era nova em folha, toda pintada, nos trinques. Enquanto essa está tuíra pelo serviço e o dono dela, paresque, não teve tempo, dinheiro ou esmero. Talvez até carecia os três elementos duma boa conservação pra dar uma demão de tinta na canoa. É a regra geral na lida nessa nossa vida ribeirinha, cuja economia duma embarcação se reparte em três do apurado no fim da viagem: uma parte pro dono, uma pra canoa e, por último, a parte do pescador ou trabucador (vulgo, marreteiro).


Subindo a remo o rio da memória


Esta história canoeira é dedicada aos amigos da Marenteza com certeza de que a canoagem e a navegação à vela no Pará ainda há de ter lugar destacado no nosso Brasil sem desprezar jamais a tradicional construção naval e a pesca artesanal como patrimônio histórico de relevante interesse sócio-econômico associado aos esportes e ao turismo. Por isto, a gente d'academia do peixefrito tem especial consideração pela turma de canoistas tida e havida em alta conta como nossos confrades natos. 

Neste pensamento viajante nos acode até a memória da primeira travessia oceânica a remo da África a América, paresque cem anos antes de Colombo, pela grande flotilha do rei mandinga Abu Bakari II que, segundo a tradição da cidade do Cairo (Egito) espalhada ao resto do mundo, o imperador do Mali aproveitando a correnteza marítima equatorial passou pela boca do Amazonas rumo às Guianas e Antilhas indo parar, diz-que, no Haiti. Na descoberta do mundo "viajar é preciso, viver não é preciso" (Fernando Pessoa).

Juntos e misturados por diferentes modos de parentesco e afeto fazemos história à beira do prato e da cuia de açaí. Ou remando pelas margens dos rios: isto é o genuíno clube do remo, onde Remistas "doentes" e torcedores fanáticos do Papão se dão as mãos... Quem dera a sociedade em geral aprendesse com a gente ribeirinha a arte de se aviar em terra e remar pela beira contra maré e trovoada até estar pronto a atravessar o mar bravio e o infinito desconhecido... 

Masporém não estou aqui pra filosofar e sim pra contar um pouco como foi que eu e meu 'camarado" Vadico - no verão de 1955 -, gastamos três dias e três noites mais ou menos, a cabo de remo, pra ir e voltar do Bacurituda, no Curral Panema, até à vila do Jenipapo, no lago Arari como se esta aventura estúrdia fosse a coisa mais importante do mundo achado ou por achar. Dois caboquinhos do Curral Panema a remar pelo vasto rio Arari contentes da vida pelos caminhos de dentro da grande ilha do Marajó. A gente era muito ignorante, masporém não era burro: o contato direto com a natureza numa viagem qualquer, mesmo de casa para a feira, já é coisa bastante pra dar o parto das ideias adormecidas em cada um pelo curso das gerações.
  
Se o Lago está morto, viva o Lago!

O Marajó é mundo à parte no planeta Amazônia. Dentro deste, no Arari e Anajás, mora o tempo com uma idade de mais de mil e tantos anos desde a supimpa invenção da primeira aldeia em riba do primeiro teso levantado do barro dos começos do mundo. Aterro este cavado com as próprias mãos do índio ancestral saído do bucho da cobragrande Boiúna no parto da primeira noite do mundo. 

Expedita invenção durante a gapuiação coletiva primordial pra pegar o peixe nosso de cada dia e matar a fome do vir a ser... É claro que eu não sabia nadinha destas coisas e nem desconfiava até a idade de meus vinte e poucos anos. Na mocidade era eu um perfeito caboco, mais tapado que caroço de tucumã da lenda da primeira noite do mundo, por onde a luz do dia não passa nem tiquinho por um buraquinho. 

Noves fora dia santo de guarda, a gente crescia naqueles sítios como Deus criou a mandioca e o açaizeiro; não se sabia o que era domingo, feriado ou horário certo de trabalho. A gente dependia da maré pra tudo e o relógio despertador era o galo no poleiro da madrugada e saracura cantando na varja quando a maré quebrava, inclusive na tapagem e despesca de igarapé; lanciação pra pegar camarão com rede de cambito, o de comer só chegava em casa quando a maré dava... 

Na voz dos mais velhos o lago Arari era pra nós que nem a Meca, um lugar sagrado onde a gente carecia ir uma vez na vida, pelo menos, ver de perto pra contar de certo como era que lenda e realidade se misturavam. Hoje em dia, infelizmente, o antigo e venerado Lago já se acabou... Se o Lago está morto, viva o Lago! Por isto esta refazenda estravagante e a viagem da memória na vã tentativa, paresque, de salvar as últimas recordações de uma vida.

Durante ladainhas era costume ouvir contadores de estória enquanto esperava-se chegar todos os convidados da reza com tiração de esmola pra festa ou pagamento de promessa: ali era ocasião pra rememorar todos aqueles causos. A vida das fazendas e a pesca imemorial agitavam a imaginação dos pequenos ouvindo os causos à distância nas vilas e sítios afastados. Lugares onde chegava carne de capivara salgada ou de boi orelhudo roubado, pirarucu, jacaré, marreca, variada abundância de peixe acará, aracu, mandubé, tamuatá, traíra, jeju, cachorrinho do padre, tucunaré... 

Minha mãe havia sido criada numa grande fazenda do padrinho dela rei do gado, na beira do lago, coisa de novela tipo a espetacular Pantanal da televisão... Tudo que ela me contava eu pintava em minha mente num mural invisível com as tintas da imaginação. Espantava-me a enorme quantidade e variedade de aves: tuiuiús, guarás, garças, marrecas, jacurutus, arapapás... Quando eu cresci e me desemburrei mais foi maior meu espanto ao ler relatos tais como do sábio Alexandre Rodrigues Ferreira e de Emilio Goeldi que excediam, em realidade, tudo quanto eu tinha escutado ou pensado a respeito do famosíssimo Lago com suas árvores de folhagens transformadas em pássaros. 

Meu pai morava na vila de Ponta de Pedras, mas o pai dele, meu avô Alfredo, morou durante muitos anos na vila de Cachoeira, ele contava das tantas viagens que a família fazia duma vila a outra: sempre em canoas a remo com longos preparativos, contratação de remadores, aviamentos, providência para armar panacarica onde mulheres e crianças iam abrigadas da inclemência do sol ou das chuvas; pernoitar no Serrame e no Araquiçaua até chegar ao destino...  Cada pernoite desses era motivo para serões e atualizar as novidades de parte a parte.

O tempo das canoas a remo e da vela era lento. Pouca novidade de uma ou outra lancha-vapor vindo de Belém, como no caso da "Aida", a qual mais adiante entra na história de uma maneira interessante. Naquele tempo o abastecimento de peixe nas cidades de Belém, Abaeté, Cachoeira do Arari e Ponta de Pedras dependia, em grande parte, do famoso lago Arari. A pesca lacustre era tão importante para abastecimento de Belém que o próprio governador Magalhães Barata, em pessoa, ia todos os anos à vila do Jenipapo abrir a temporada oficial da pesca, mais ou menos no mês de junho, conforme a ditadura das chuvas. 

Nós estamos falando duma estúrdia viagem de dois "goiabas" novatos (nativos de Ponta de Pedras que faziam marretagem no Arari, a modo do antigo escambo, ou seja troca de mercadorias em espécie), isto cinco anos antes da criação do município de Santa Cruz do Arari em 1960. Quanto a canoa "Favorita", enfim, chegou ao porto da vila do Jenipapo esta ainda pertencia ao distrito do Alto Arari do município de Ponta de Pedras e o Arari era, então, o mais importante centro de pesca artesanal do Pará. Hoje em dia as coisas estão muito mudadas ali, inclusive na ausência do museu que o padre Gallo inventou 17 anos depois da viagem da "Favorita".

Notícia histórica da vila do Jenipapo



À margem duma reunião de diretoria do Instituto Histórico e Geografico do Pará (IHGP), o ex-presidente Guaraciaba Gama, falecido recentemente, em conversa informal nos contou da origem da vila do Jenipapo, em Santa Cruz do Arari. Posteriormente, numa memorável degustação de canhapira em sua residência, no bairro de Nazaré em Belém, ele acrescentou como foi que as primeiras canoas geleiras com carregamento de peixe para o mercado do Ver O Peso inicialmente recebiam peixe do rio Arari até seu curso médio, donde regressavam com carregamento a Belém. 

Até aí os pescadores saiam de sua moradias com toda família, cachorros e mais xerimbabos pra montar feitoria de pesca, desde começos do verão até início das chuvas, em geral de junho a dezembro. Tais feitorias eram motivo de encrenca com fazendeiros, enquanto as comunidades da pesca alegavam estar com feitoria em terra de marinha, os proprietários de terra diziam que o que valia ali era sesmaria da época dos barões de Joanes, que não contemplavam tal situação. 

Na verdade, o que azedava a relação entre as partes conflitantes era já naquele tempo o alastrado costume do roubo de gado. Não raro acabando a corda por arrebentar do lado mais fraco, com violência, prisão na famosa Cadeia de São José e morte. As histórias dessas travancas e malquerenças varavam noites de espera da maré e viajavam na memoria de canoeiros e tripulantes de igarités, barcos de gado e geleiras. Andando de boca em boca até aos confins dos sítios mais distantes, inclusive na doca do Ver O Peso e subúrbios de Belém à espera do apurado na travessia pra voltar à ilha.

O doutor Guaraciaba Gama, respeitável médico obstetra e grande contador de causos, era filho ilustre de Cachoeira do Arari, contemporâneo do autor de "Chove nos campos de Cachoeira", onde ele se identificava num dos personagens do romance retratado como um certo "Tales de Mileto"... Disse ele que a pesca no lago Arari tradicionalmente atendia ao comércio interno da ilha e que, pouco a pouco, igarités abaeteuaras (comércio de regatão proveniente de Abaetetuda) começaram a trocar mercadorias por peixe seco e salgado, às vezes carne de capivara, uma ou duas reses atoladas que levavam salgada e misturada com carne de capivara ou junto com mantas de pirarucu; dois ou três jacarés peiados, pencas de muçuã... O velho escambo do tempo dos índios, sem dúvida, sobrevivendo até metade do século XX. Quando fábricas de gelo fizeram aparecimento na Capital transformando igarités veleiras em geleiras motorizadas como hoje se vê.

Tomando pé na estória

Tudo isto é importante para o amigo leitor entender a jornada da montaria "Favorita" ao lago Arari. Dizendo eu ainda o que ouvi, mais ou menos, o doutor Guaraciaba contar: que na medida que os cardumes dos rios escasseavam, as geleiras remontaram, pouco a pouco, até chegar finalmente ao lago. Foi então, quando um migrante paraibano de nome João Barros, conhecido como Juquinha; montou casa de aviamento na Boca do Lago para fazer freguesia com pescadores do lugar e contratar venda do peixe às geleiras, assim chamadas por resfriar e conservar o peixe em gelo até o mercado de Belém. Isto foi sim uma revolução. Pois até então tudo carecia de sal em poucas horas após a pesca e  secar ao sol, sob pena de estragar e botar a perder todo o trabalho de muitos em um dia. Pode-se imaginar.

Com a fome do povo de Belém e a carne não dando para quem queria, o chamado peixe do mato vindo do Marajó, mais o vinho de açaí era o socorro da pobreza. Então, a casa de comércio do sr. Juquinha na Boca do Lago prosperou do dia pra noite. E como existisse às proximidades dela um pé solteiro de jenipapo, o lugar passou a ser assim chamado, dando nome à vila do Jenipapo até hoje. Notável pela salinidade do solo na beira do Lago raro é o arbusto nativo que cresce ali e se destaca com o rigor do clima. Razão pela qual, no Jenipapo havia comércio de frutas e víveres vindos do baixo rio. A vila de Santa Cruz concentrava famílias de criadores de gado, boa parte oriunda de antigos imigrantes da Espanha; enquanto os pescadores nativos moravam no Jenipapo. 

As duas comunidades mantiveram, até recentemente, relacionamento bastante hostil entre si cujas raízes históricas se perdem nos idos da capitania hereditária da Ilha Grande de Joanes, certamente. Sendo criadores de gado aliados naturais dos fazendeiros. Estes são os chamados grandes proprietários, raramente presentes nas suas fazendas, moram em Belém com suas famílias e administram a propriedade através de feitores, os quais por sua vez cuidam dos vaqueiros e do gado. Antigamente, cada fazenda era autossuficiente como um feudo. Criadores moram principalmente na sede em Santa Cruz e são minifundiários, criam animais soltos no pasto em geral sem cercas e praticam um tipo de pecuária familiar. 

Comerciantes e políticos, todavia, pendiam por interesse econômico ao lado dos pescadores. Embora o poder econômico dos grandes fazendeiros predominasse junto ao poder em Belém, localmente o número de pescadores apesar da exploração do trabalho e da pobreza, não passava desapercebido aos olhos dos políticos. O populismo baratista, então, montou arraial nos municípios do interior e com o Jenipapo não foi diferente.

O próprio Juquinha Barros teria tido a ideia de convidar o governador Magalhães Barata para abrir oficialmente a temporada de pesca no lago Arari a cada ano, dando ali uma festança. Conta-se anedota, segundo a qual numa das idas de Barata ao Jenipapo, alguns pescadores o procuraram para se queixar da exploração que o Juquinha fazia contra eles vendendo-lhes caro o material de pesca e as mercadorias de consumo e pagando barato pelo peixe em contrapartida. 

Na hora do discurso, Barata se saiu com uma de Salomão. Agradecendo a hospitalidade do amigo dele, senhor João Barros; homem honrado e trabalhador que promovia a pesca no Jenipapo. Porém, naquele dia, fora informado de que um sujeito chamado Juquinha andava a explorar aquela pobre gente. Pedia, então, ao caro amigo Barros que verificasse o caso e, caso as queixas continuassem, no próximo ano ele, governador, voltaria para levar preso o tal Juquinha para o temível São José... Claro, de uma maneira ou outra, as queixas sumiram por encanto.

O lago Arari além de ter sido o clímax da milenar Cultura Marajoara, desde a doação das fazendas dos jesuítas, na segunda metade do século XVIII, passou a despertar grande interesse. Diversos cientistas o visitaram e historiadores escreveram sobre o Marajó em geral e o lago Arari em particular. Eis um trecho de autoria do naturalista Alexandre Ferreira a respeito dos chamados "Contemplados" (pessoas que receberam por doação do governo fazendas expropriadas da Companhia de Jesus), onde a fazenda Santo Inácio da boca do lago veio a ser hoje o município de Santa Cruz do Arari:

"Sete foram as fazendas de gado que na ilha tiveram os jesuítas: quatro no Arari e três no Marajó-guaçu. Das sete fazendas, considerarei as que tinham no Arari, em primeiro lugar, a saber: a primeira, rio acima, é a fazenda de Nossa Senhora dos Remédios, em que foi contemplado o mestre-de-campo José Miguel Aires, hoje de seu filho Antônio Miguel Aires. A segunda, no igarapé São José, em que foi contemplado o defunto José Correia de Lacerda;
a terceira, a do Menino Jesus, a do rio Mari, à esquerda, em que foi contemplado o sargento-mor da praça, João Batista de Oliveira, hoje de seu genro o alferes Antônio José Lima; quarta, a fazenda da boca do lago Santo Inácio (grifei), em que foi contemplado o sargento-mor da cidade, Manoel José Henriques de Lima, hoje de seu genro, sargento-mor de auxiliares, Carlos Gemaque. Além destas quatro, farei menção dos dous retiros, como chamavam, isto é, duas fazendas de beneficiar gado: um nas cabeceiras do lago Nanatuba, em que foi contemplado o coronel Miguel Joaquim Pereira de Souza Feio, e outra nas cabeceiras do rio Anajás, que deságua no Arari, na contemplação do sargento-mor José Pedro da Costa Souto Maior. Quanto às três de Marajó-guaçu, na São Brás, contemplou-se João Falcato da Silva; na de São Francisco, o sargento-mor Domingos Pereira de Morais, na do Rosário, o alferes Francisco da Costa Almeida da Silva, hoje de sua mulher, Dona Ana Felícia de Queirós, que já acima disse que casou segunda vez. (Alexandre Rodrigues Ferreira, "Notícia Histórica da Ilha Grande de Joanes, ou Marajó", separata da "Viagem Filosófica", 1783).


Eis que as circunstâncias da viagem foram expostas nestas mal traçadas linhas. Agora é hora de carregar a "Favorita" com feixes de casca de muruci, que Vadico e eu mesmo fomos tirar no campo, com machado e cuidado de não matar as árvores. Já se vê que ainda não se usava linha de náilon, velas, redes de pesca e linha precisavam de tinta extraída de casca de muruci para conservar. Eu estava então com 18 anos de idade e tudo isto era para mim um aprendizado. Vadico era um ano mais velho e seu pai e tios lhe ensinaram como fazer a viagem. Ele, paresque, tinha um portulano na cabeça e falava com piloto veterano duma nau. 

O problema é que nenhum dos dois "goiabas" novatos havia jamais ido ao Lago. O tal piloto se vangloriava de ter ido uma vez à festa de São Sebastião da Cachoeira: masporém, a Cachoeira fica rio abaixo a menos da metade da viagem... No igarapé Bacurituba de maré cheia pela mata adentro a gente ainda esperando maré virar, completamos a carga com cachos de banana inajá e paneiros de manga. Saracura deu o sinal na varja. "Até mais mea gente"... A comadre e o compadre na beira do igarapé disseram as palavras de praxe, "Vão com Deus e voltem em paz"...  "Se Deus quiser", Vadico completou: a gente levava tudo isto muito a sério, acreditando que as palavras tem força. Minha avó dizia que, antigamente, quando um parente premeditava viajar pra Cidade, carecia rezar novena e ir de casa em casa se despedir dos parentes. Quando regressava, são e salvo, deixava uma vela de cera amarrada num pedaço de miriti que ia cair, direitinho, no remanso e bater aos pés de Nossa Senhora do Tempo em sua ermida na beira do rio Barcarena onde o zelador ou zeladora recolhia para as rezas...

Demos aos remos com força estrondando dentro da varja, a maré começava a vazar e a Favorita entrou na correnteza pronta a fazer a sua estreia. Na boca do Bacurituba pés de aninga se agitavam na correnteza, pelo espingarito dos mangues ciganas voavam como quê pra ver aonde iam aqueles doidos àquela hora... No rio a vazante pegava sustância, Vadico ia no piloto e eu na proa forcejando pra canoa pegar força. Logo a gente passava do sítio Meia Noite com seus barrancos pela margem direita do rio e na esquerda o velho Serrame com sua história naufragada no fundo do rio comido pela erosão... Um olhar e um pensamento de até logo... Ninguém na beira àquela hora. Umas vaquinhas no pasto, o laranjal amofinava com a ausência do meu finado avô Chico...

Próxima parada, o síto Tainhas pra comerciar com "seu" Prego Tavares vinte sacas de sal, três grades de cachaça, café em grão e moído, açúcar, meio alqueire de farinha d'água e quatro rolos de tabaco. Noves fora a farinha, café moído e açúcar do gasto, tudo mais era capital a ser aplicado à compra de peixe-seco. Com este na volta, enfim, a viagem redonda teria o seu lucro. Como de fato, pouco, masporém ainda rende até hoje nestas maltraçadas linhas.

Olha, pra começar, até que a gente não se saiu mal: das sete da manhã no Bacurituba chegamos no Baixo Arari pouco acima do furo das Laranjeiras com o finzinho da maré e do dia. Havia um silêncio profundo e o calor do dia se despedia do corpo dos remadores, Mais acima ficava o Araquiaçau, eu ainda não sabia o aquele sítio representou na história desta gente... "Espera sumano - disse Vadico - tem coisa errada aqui...". Segundo cálculos do piloto, baseado em informações de seu experiente tio Cidoca, aquele ponto era pra estar cheinho de canoas à espera da lancha-vapor Aida que iria nos rebocar a todos até o Alto Arari. Já começava escurecer e nada de lancha nem de companheiros... Algo estava fora do eixo da estória. Foi aí então que se ouviu a inconfundível zoada de remos n'água. Só podia ser uma montaria esquipada que se aproximava, então a gente poderia saber o que estava acontecendo. Uma voz das sombras saudava os panemas... E perguntava o que a gente fazia. "A gente vamos subir o rio e estamos na espera da Aida..." - disse o sumano Vadico. "Mas, quando, parente?! - exclamou a voz passante e os remos estrondaram se afastando - Amanhã é dia de eleição e a lancha foi buscar eleitor em Belém pra votar na Cachoeira... Eu gritei, "puta merda!"... Só faltava essa.

A gente vivia tão por fora, ou melhor tão dentro da ilha que até perdia a noção da história. Foi aquela a última eleição que Magalhães Barata concorreu e foi eleito pra depois morrer no cargo. E olha lá que eu sabia ler e escrever, graças ao populismo do Coronel Barata que obrigou professora normalista ir pro interior antes de lecionar na Capital. Que fazer agora parado na beira à espera do reboque que não vinha mais? Voltar pra trás ou seguir adiante se fosse capaz?

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