quarta-feira, 6 de novembro de 2013

CABOCO NA CASA DO BARÃO (4)





BELÉM DO PARÁ CELEBRA FRONTEIRA NORTE

Conforme comentário na primeira postagem desta série, realizou-se no dia 05/11/2013 a cerimônia de entrega da medalha "Euclides da Cunha" comemorativa dos 80 anos da Primeira Comissão Demarcadora de Limites (PCDL), agência técnica do Ministério das Relações Exteriores (MRE). O evento aconteceu na sede da mesma à Avenida Governador José Malcher, número 349, Belém do Pará, e se tornou uma significativa confraternização entre dirigentes, funcionários, pessoal aposentado fazendo parte da homenagem, amigos e familiares dos mesmos que há muito tempo não se viam.

Vindo especialmente de Brasília, presidiu a solenidade o Ministro da carreira de Diplomata Márcio Fagundes, Coordenador-Geral das Comissões Demarcadoras de Limites; que inclusive representou no referido ato o Embaixador Antonio Simões, Subchefe-Geral da América do Sul, Central e Caribe. O Ministro Márcio Fagundes abriu a sessão e leu mensagem especial do Embaixador Antonio Simões dirigida aos antigos servidores da PCDL discorrendo a respeito do significado da medalha e da sua importância para todos que, ao longo da história da Amazônia Brasileira, contribuíram à formação, identificação, delimitação e demarcação da Fronteira Norte do Brasil continuando ainda a colaborar para sua consolidação e manutenção nos dias de hoje em relação ao futuro da integração dos países amazônicos no âmbito da UNASUL.

De maneira historicamente conexa, o supracitado ato de Belém do Pará converteu-se numa celebração da antiga Cidade do Pará, sede das demarcações de fronteiras da Amazônia Brasileira desde a primeira tentativa demarcatória do Tratado de Madrí de 1750, concomitante à transferência de capital da Amazônia portuguesa da cidade de São Luís do Maranhão para Belém do Grão-Pará - esta última cada vez mais Belém da Amazônia, em marcha aos 400 anos da metrópole regional -, fundada em 12 de janeiro de 1616, pela união de armas portuguesas e tupinambás na ereção do forte do Presépio, sob pavilhão da União Ibérica. Pela qual a Fronteira Norte, irradiada desde a Nova Lusitânia (Olinda, Pernambuco) estacionou, temporariamente, junto a Feliz Lusitânia (Belém do Pará) na chamada Costa-Fronteira do Pará (margem ocidental da baía do Marajó), conforme determinações do Tratado de Tordesilhas (1494).

Este blogueiro caboco - doravante orgulhoso marajoara portador da medalha "Euclides da Cunha" - é fã do maravilhoso acaso, conforme anteriormente declarado. Considera ele a presença de representante do Prefeito de Belém, Senhor Zenaldo Coutinho, à solenidade em apreço como oportunidade de diálogo entre a dita Fronteira e a Cidade sede das demarcações de limites da Amazônia. Um diálogo acima de particularidades para a velha metrópole se empoderar de sua histórica conquista do rio das Amazonas, notadamente no que tange às comemorações dos 400 anos de fundação, em 2016, quando então poderá encerrar solenemente o mandato do atual gestor. 

Não é que se ignore dificuldades existentes para superar clivagens locais e regionais fracassantes. Mas, por isto mesmo, aproveitar a monumental história da Fronteira Norte para dar uma chance ao diálogo suprapartidário contemplando horizonte maior da expressão geográfica da Cidade de Belém do Grão-Pará, como Eidorfe Moreira mostrou. Portanto, praticar a cultura de fronteiras no chamado mundo "sem fronteiras", configura oportunidade histórica para cidadãos de Belém e seus representantes políticos democraticamente eleitos elegerem patamar político superior. Onde todos possam participar do desenvolvimento da região e do Brasil, no quadro geral da cooperação amazônica. Na verdade, nos últimos tempos, Belém não tem lembrado suas origens nativas e ultramarinas com a importância e profundidade que deveria.

Ora, de repente, o carioca Euclides da Cunha - 110 anos após a missão do Alto Purus - se credencia como um extraordinário pilar da ponte Rio - Belém, por onde transita a integração nacional de Sul a Norte e Norte a Sul. Ou, como se diz popularmente, do Oiapoque ao Chuí, com todas suas potencialidades, contradições e realizações de sucesso.

Euclides Rodrigues da Cunha nasceu em Cantagalo-RJ, a 20 de janeiro de 1866 e faleceu no Rio de Janeiro, em 15 de agosto de 1909. Foi engenheiro militar, físico, naturalista, professor, jornalista, romancista, ensaísta, filósofo, geólogo, geógrafo, hidrógrafo, historiador e sociólogo. O gênio de Euclides revela-se na obra "Os Sertões - campanha de Canudos" (1902), tornando o autor famoso. A obra divide-se em três partes: A terra, O Homem e A luta. Nela as características ecológicas, botânicas, zoológicas e hidrográficas do Nordeste ressaltam com a vida, os costumes e a religiosidade sertaneja no contexto das quatro expedições repressivas enviadas ao arraial contra os insurgentes liderados pelo carismático Antônio Conselheiro. A obra-prima euclidiana valeu-lhe eleição à Academia Brasileira de Letras (ABL) e vaga no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). 

Com a Fronteira Norte Euclides imortalizou-se ao ser nomeado, em agosto de 1904, para chefiar a Comissão Mista Brasileiro-Peruana de reconhecimento do Alto Purus. O objetivo da missão foi o de subsidiar a demarcação de limites da fronteira entre o Brasil e Peru. A extraordinária experiência de Euclides da Cunha com a profunda natureza da Amazônia produziu a obra póstuma do escritor "À Margem da História", na qual ele denunciou a servidão dos seringueiros da floresta amazônica, oitenta anos antes de Chico Mendes (Francisco Alves Mendes Filho, Xapuri-AC, 15/12/1944 - Xapuri-AC, 22/12/1988). 

Euclides partiu de Manaus para o Purus onde a Comissão chegou às nascentes do rio em agosto de 1905, quando Euclides adoeceu. Ele com seus camaradas prosseguiram os trabalhos de reconhecimento dos limites entre o Brasil e o Peru suportando grandes dificuldades, comuns a toda zona de fronteiras. O ensaio "Peru versus Bolívia", publicado em 1905, é resultado da supracitada viagem, bem como a obra filosófica "Judas-Ahsverus" que se poderia talvez afirmar "antropoética" (cf. Edgar Morin) avant la lettre. Inteligência multifacetada, Euclides retornou da Amazônia para o Rio de Janeiro onde proferiu a conferência Castro Alves e seu tempo, prefaciou a obra Inferno verde, de Alberto Rangel, e Poemas e canções, de Vicente de Carvalho.



NOTÍCIA DA COSTA-FRONTEIRA DO PARÁ

Ainda o Brasil não fora descoberto e já a fronteira luso-espanhola se achava delimitada por um meridiano a 370 léguas a oeste de Cabo Verde, segundo o Tratado de Tordesilhas de 1494. Em princípio, tal linha de partição do mundo achado e por achar, entre as duas coroas ibéricas, passaria sobre as atuais cidades de Belém do Pará, ao Norte, e Laguna-SC, ao Sul.

Em 1498, o cartógrafo oficial do rei de Portugal Duarte Pacheco Pereira teria vindo em viagem secreta ao Pará a fim de fazer observações astronômicas e cartografar os limites setentrionais de Portugal com a Espanha na América do Sul permitindo assim descobrir (revelar) o Brasil, que os navegadores portugueses já conheciam reservadamente na busca do caminho oriental marítimo das Índias. 

Em 1500, a poucos meses antes de Pedro Álvares Cabral desembarcar em Porto Seguro, o navegador espanhol Vicente Yañez Pinzón esteve no Nordeste brasileiro, achou a foz do rio Amazonas, capturou 36 índios na ilha Marinatambalo [Marajó], que foram os primeiros "negros da terra" da América do Sul. Porém, o relato desta viagem foi mantido em segredo pelos espanhóis devido à falta de certeza cartográfica sobre os direitos entre as duas monarquias rivais.

No entanto, segundo a linha de Tordesilhas a Fronteira Norte pairava sobre o grande mar de água doce (Pará-Uaçu, dos povos Tupi; Grão-Pará na tradução ao português), da margem direita do Rio Pará para leste a posse de Portugal, pela margem esquerda a oeste a Espanha amazônica ou Nueva Andaluzia, desde a beira mar do Amapá e contracosta do Marajo rio acima; conforme o título de terras concedido ao descobridor do rio das Amazonas, Francisco de Orellana. Já em fins do século XVIII, o naturalista de Coimbra Alexandre Rodrigues Ferreira mencionava ainda a "Costa-Fronteira do Pará" localizada no litoral da ilha do Marajó entre a ponta do Maguari (Soure) e o Itaguari ("ponta de pedras", no município de Ponta de Pedras), na separata da "Viagem Philosophica" (1783-1792), denominada "Notícia Histórica da Ilha Grande de Joanes, ou Marajó", publicada em Lisboa em 1783.

A pulsão conquistadora da terra dos Tapuias, transmitida de Pernambuco, do Nordeste ao Norte guarda, evidentemente, a saga Tupinambá em busca daquela utopia selvagem que, por acaso e determinismo heliocêntrico, levou os índios buscadores da Terra sem males até os contrafortes dos Andes (cf. relato do mameluco Diogo Nunes (1538), apud Nelson Papavero et. al. em "O Novo Éden"). 

Todavia, pela parte contrária vindo de norte para o sul, aquela antiga Fronteira Norte conforme a linha de Tordesilhas coincidia, de fato, com a Costa-Fronteira do Pará entre povos indígenas migrantes do circum-Caribe, vindos através do Cabo Norte (Amapá) e mais antigos ocupantes da região. Enquanto os guerreiros Tupinambá chegaram depois pela costa do Nordeste através do Maranhão e o sertão até as barrancas do rio dos Tocantins, donde fizeram os tapuias recuar para as ilhas do Pará. Por acaso, o "front" do Grão-Pará estava estabelecido muito antes de Tordesilhas...

E a "ruptura" da linha tordesilhana começou com a expulsão dos holandeses e ingleses no Xingu, Baixo Amazonas e Amapá (1623-1647), pela aliança de arcos e remos da nação Tupinambá e as armas portuguesas. Então, a Fronteira Norte subiu o Amazonas a bordo da flotilha do capitão Pedro Teixeira e seus 1200 índios de arco e remo até o Napo, na viagem de entrada (1637-1639) de Belém a Quito (Equador), ida e volta... 

Mas, foi preciso esperar pelo fim da União Ibérica e restauração da independência do reino de Portugal (1640) para promoter a abolição do cativeiro dos índios e conquistar a paz dos Nheengaíbas (povos marajoaras insubmissos jamais vencidos em guerra), em 1659, dando termo a 44 anos de guerra desde o Maranhão, em 1615, para iniciar no terreno com a simples edificação das aldeias de Aricará (Melgaço) e Aracaru (Portel) o uti possidetis defendido com sucesso por Alexandre de Gusmão nas difíceis negociações diplomáticas do Tratado de Madri de 1750.

Foi assim, ao longo de muitas luas, sois e inúmeras gerações que o pedrão da Fronteira Norte arrancado do solo da velha Lusitânia fez sua travessia do Mar-Oceano e naufragou no Rio Negro durante a primeira tentativa de demarcação de limites na Amazônia. O pedrão português, alicerce do uti possidetis brasílico de um novo país de língua portuguesa sob a constelação do Cruzeiro do Sul. Mas, a gente não sabia que da fundura do Rio Negro em todas direções da rosa-dos-ventos os Tapuias, na idade da pedra, começaram a aventura pela volta grande do Caribe para retornar à terra firma em busca do Arapari? O país do futuro sob o Cruzeiro do Sul...

Duzendo anos no fundo do rio, o marco de 1750 amazonizou-se no seio das águas no rio de Ajuricaba, na intimidade dos cardumes, mitos e lendas indígenas do Rio Negro. Foi resgatado e, finalmente, implantado em Barcelos (Estado do Amazonas) para chegar em Brasília e ficar à entrada do palácio Itamaraty. Marco histórico (quatro marcos em verdade) que também ficou plantado em Belém do Pará: um exemplar na praça D. Pedro II em frente ao Museu de História do Estado do Pará, Palácio Cabanagem e Solar do Barão de Guajará; outro no pátio do casarão da PCDL. Lugar de memória da Fronteira Norte.


À MARGEM DA HISTÓRIA: PENSAMENTO DESCOLONIAL NA ACADEMIA DO PEIXE FRITO .

Euclides da Cunha foi vidente do país do futuro. E agora o Brasil é o maior país amazônico do mundo: "O Amazonas tanto embarrigou, que acabou parindo o Acre". A frase, não tenho certeza, é de Abguar Bastos ou Raul Bopp. Um e outro foram confrades de Bruno de Menezes na Academia do Peixe Frito. Seja como for, a frase acaba calhando como luva à missão de Euclides da Cunha no Alto Purus. Lá o geógrafo de Cantagalo-RJ acharia o homem amazônida, filho da Cobragrande Boiúna; senhor dos caminhos de água; marginalizado pela História. Pior ainda, exilado do jardim do Éden pela historiografia luso-brasileira como Ferreira de Castro poderia atestar melhor...

As fronteiras são naturais, geodésicas, mortas ou vivas, secas ou molhadas... Além disto há fronteiras outras, invisíveis, onde tanto a geografia quanto a história se escondem da luz do dia. Então, já estamos falando da cultura e literatura das fronteiras. E, aí ainda, não será estranho falar de Fronteira Norte no Ver O Peso, sobretudo se a gente estiver na feira do Açaí ao pé do Forte do Castelo onde, a 07/01/1619, o cacique Guamiaba, dito Cabelo de Velha, morreu lutando contra a humilhação e escravidão de seu povo ao pular a muralha durante revolta dos índios Tupinambás contra a perfídia dos colonizadores que antecedeu a revolução Cabana de 07/01/1835... 

A Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo, cavando trincheiras entre modernistas e conservadores, se alastrou das margens do riacho Ipiranga com o grito de independência das letras nacionais e mais artes do Brasil pelo país inteiro. Deu filhotes nas províncias da cultura brasileira. Abguar Bastos e Mário de Andrade criaram contraponto entre si ao mesmo tempo que confrontaram juntos cânones externos da conjuntura sociocultural e aspectos internos colonizadores. 

 Seus heróis demonstram necessidade de considerar fatores externos inovadores e aspectos internos das obras. Com isto, levaram a uma reflexão sobre o posicionamento e adesão política nas artes e cultura. Portanto, se não existe neutralidade da ficção, a neutralidade política é uma ficção... Desta maneira questões de nacionalidade e regionalismo aparecem como alinhamento do diálogo e contraposições do escritor paraense e do paulistano.
  
Abguar Bastos é visto como um inovador escritor "regionalista" amazônico. Ou seja, um intelectual orgânico que expressa visão "interna" da Amazônia; todavia sem romper influências e vínculos das correntes modernistas que marcaram o período na cidade de Belém do Pará. No cenário regional, Abguar Bastos e outros intelectuais amazônicos foram divulgadores das novidades estéticas propaladas de São Paulo. Mas sem mimetismo.  De maneira que Abguar está próximo de Oswald de Andrade e se não foi ele "antropófago", pelo menos terá sido um ictiófago radicalmente amazônida.

Nos idos imediatamente após a Semana de 22, formou-se rede de ideias modernistas por várias regiões brasileiras. Mesmo um escritor nordestino como Joaquim Inojosa, por exemplo, tendo assumido no Norte e no Nordeste papel de porta-voz e divulgador das novas ideias estéticas da Paulicéia, salienta que na Amazônia tais ideias já se faziam presentes em pequenos círculos artísticos e intelectuais, com discurso regional e lideranças locais, tais como os "Vândalos do Apocalipse" e "Grupo do Peixe Frito". 

O poeta Bruno de Menezes, considerado o principal organizador da Academia do Peixe Frito, é outro nome de relevância na Amazônia modernista no bojo das inovações estéticas por sua origem social e militância anarquista, mas também por uma poesia livre de amarras do parnasianismo, apesar do simbolismo no primeiro momento. Como também, apesar da distância e da língua, se aparenta ele do poeta Aimé Cesaire, da ilha da Martinica, um dos chamados pais da Negritude. 

Vários círculos literários regionais atingiram organização e consistência com a criação de revistas literárias, que tinham por finalidade divulgar as novas ideias abrindo confronto com representantes do passadismo reinante. Embora o ambiente intelectual de Belém tenha, muitas vezes, se generalizado para a Amazônia como um todo, também identifica-se naquela época em Manaus a mesma efervescência duma intelectualidade "local" em busca duma fisionomia estética própria, em torno do Clube da Madrugada, por exemplo. Nomes associados ao evento modernista paulistano como Menotti del Picchia e Raul Bopp faziam-se presentes em publicações de Belém e Manaus, criadas não só como difusão do novo ideário, mas também como instrumento de identidade cultural entre "novos" e "antigos". 

Revistas como Redenção e Equador, ambas de Manaus, e Belém Nova, da capital paraense, surgidas no meado e final da década de 1920, foram exemplos de trabalho intelectual coletivo e de acirrada disputa pela genuína definição da realidade amazônica, que no início do século Euclides da Cunha mostrou pela primeira vez. 

Aí estão, dentro da Fronteira Norte, várias fronteiras do arquipélago cultural das regiões amazônicas. Ainda hoje, a visão hegemônica do Sudeste sobre os diversos Brasis, em especial a Amazônia Brasileira, sobrepõe a Biodiversidade aos aspectos socioeconômicos e à diversidade cultural. 

Ademais, por circunstâncias internas, nas quais pesou a Ditadura militar de 1964, entre a morte de Bruno de Menezes, em 1963, ocorrida na cidade de Manaus, e as comemorações do Centenário de nascimento do romancista Dalcídio Jurandir, em 2009 na cidade de Belém, quando a confraria dos amigos da Academia do Peixe Frito promoveu o retorno daquela confraria cultural do Ver O Peso, verificou-se um enorme hiato com importante perda de memória.

Hoje poucos sabem do que se trata realmente a reduzindo tão somente à degustação de açaí com peixe frito... Entretanto, para ser fiel às suas raízes, agora certamente a Academia veropesina terá mais a ver com o pensamento pós-colonial ou desmodernizante em curso, do que apenas o resgate de figuras do fim da belle époque da Borracha amazônica.

Com o desdobramento do movimento modernista da sua fase estética hegemônica para outra mais ideológica, o tema do regionalismo não só ganhou realce e se transformou em acirrada concorrência entre intelectuais de regiões diversas do país, como no caso de Gilberto Freyre ao contestar, ainda em meados da década de 1920, o monopólio paulista acerca dos usos do termo "moderno". Além disto, fez surgir diferenças e disputas internas a cada uma das regiões culturais do Brasil. No caso do círculo de intelectuais e artistas em torno da revista Belém Nova, por exemplo, isso ficou evidente em diferentes momentos.

O regionalismo de Bruno de Menezes contrasta com o de Abguar Bastos, embora ambos se encontrem engajados no combate ao passadismo filiados a movimentos vanguardistas da época. A ideia regional ganhou diversas conotações em um e outro. Para Bruno o regionalismo amazônico deveria ser pensado conforme se passava nas mais regiões brasileiras, notadamente no Sul. Para Abguar um "regionalismo amazônico" deveria ter feição própria, completamente dissociado de outras influências regionais e nacionais.

As diferentes abordagens de Bruno de Menezes e Abguar Bastos demonstram que se achava em questão o modo de representar a Amazônia e elevar a criação artística amazônica a um outro nível revestido de legitimidade por novos agentes sociais. Neste sentido, não é por acaso que a literatura de Dalcídio Jurandir, particularmente afeiçoado ao poeta de "Batuque", chama atenção dos críticos. A incorporação de novos elementos estéticos traduzidos das vanguardas europeias, mesmo em parte filtrados pelos modernistas paulistas, associou-se a elementos próprios da Amazônia paraense conhecidos pelos intelectuais locais. A negritude na poesia de Bruno e no romance de Dalcídio, entretanto, guardam parentesco fundo com o indianismo de Abguar.

Para o poeta João de Jesus Paes Loureiro, da fase pós 1950, a Amazônia é a pátria natural do realismo-mágico. O primitivismo, por exemplo, tema recorrente de várias vanguardas, casava-se perfeitamente ao cenário selvagem da paisagem cultural amazônica. A fim de identificar os meandros percorridos por Abguar Bastos na representação regional, se faz necessário tomar contato com seus escritos iniciais como o manifesto "Flaminaçu", de 1927, e o romance de estreia "Terra de icamiaba", de 1931. Além disto, reunir à produção intelectual do autor o contexto de acirramento intelectual e político que permeou a criação destas obras no plano regional e nacional.

Quando sua posição como "autor regional" reconhecido consolidou-se, seu "manifesto aos intelectuais paraenses" converteu-se num ato de afirmação de liderança e a publicação do seu primeiro romance, "Terra de icamiaba", pretendia contrapor-se ao recém-publicado Macunaíma, de Mário de Andrade. Revelando aproximações e rupturas no modo de perceber a relação dialética regional-nacional e reforçar uma oposição entre um autor e outro, no cipoal de estratégias para dinamizar o campo literário do período. 

Quanto à posição de Abguar a outros "autores regionais", também obedecia a uma estratégia de aproximação e afastamento com escritores considerados líderes do modernismo paulista, Oswald de Andrade e Mário de Andrade. Abguar Bastos nasceu em Belém no dia 22 de novembro de 1902. Seus estudos primário e secundário foram realizados na cidade natal até 1921, quando ingressou na Faculdade de Direito de Manaus, bacharelando-se em 1925.  Foi bancário em Belém e depois secretário da prefeitura de Coari, no estado do Amazonas; onde assumiu interinamente o cargo de prefeito. De 1926 a 1928 exerceu ofício de tabelião tornando-se, em 1929, redator de debates da Assembleia Legislativa do estado do Amazonas. A atividade jornalística, por sua vez, marcou seu ingresso no "mundo das letras" com sua inserção nos círculos intelectuais de Manaus e Belém.

A inquietação intelectual do começo do século XX, na Amazônia, associada à ascensão e queda do extrativismo da Hevea brasiliensis. Dependente de bancos estrangeiros e da indústria na Europa e Estado Unidos, em meio à crise de 1929 que afetava os centros intelectuais europeus e do Brasil, que se refletia na Amazônia abalando as elites locais interessadas na civilização Paris n'América, como se lê em "Belém do Grão Pará", de Dalcídio Jurandir, por exemplo.  

Um estado de espírito que transformava a poesia simbolista em demonstração de desagrado por parte de jovens literatos com tudo o que estava estabelecido como cânone. Mas, a necessidade de agir diante das calamidades sociais e econômicas, prevaleceu na atitude de reformar e remodelar tudo. Prova desse clima de rebeliões, comum ao movimento tenentista no campo político; Abguar Bastos reproduz em seu depoimento a Edgard Cavalheiro, numa carta de Raul Bopp a ele endereçada, onde o sentimento de estar à beira do rio e na margem da História, advindas de Euclides da Cunha, perpassa os espíritos:
[...] Nós precisamos, é como eu escrevi há tempos, recrutar os fatores postos à margem, forças escondidas e mal aplicadas. Demolir a velha sensibilidade (do bacharel, do literato fofo e palavroso). Tomar o pulso da terra. Consultar a floresta. Você aí agite essa Amazônia em combinação com o pessoal do Pará. Hostilmente. Intolerantemente. Não se pode fazer uma cruzada amena. Derrubada grande. Enforque o pessoal a cipó [...].
A carta de Raul Bopp não deixa dúvida quanto às angústias que acometiam os jovens da Amazônia da década de 1920. Os tais "fatores postos à margem", recordava Euclides da Cunha com seu libelo em "À margem da História"...  Uma conjuntura predeterminada por uma "sensibilidade envelhecida". Daí a convocação de uma literatura nova que retomasse os elementos nativos da Amazônia, como motivos principais de criação passou a ser um mote a guiar os novos. Afinidade e aproximação, portanto, entre grupos de jovens intelectuais amazônicos e figuras tais como Oswald e Mário de Andrade eram inevitáveis. Mas os próprios Andrades do modernismo divergiam entre eles, para concordar no principal. O próprio Abguar Bastos reconhecia isto no momento que elencou as influências mais marcantes naquele período.

Se Mário de Andrade merecia louvor isso ocorria de maneira tímida em função da novidade de "Paulicéia desvairada". Já a influência de Oswald de Andrade na obra de Abguar Bastos deve ser destacada pelo impacto causado no autor paraense através do "programa" reformador da arte e literatura nacional no Manifesto pau-brasil, de 1924. Foi Oswald a figura que mais impressão causou a Abguar sendo motivo de divergências com Bruno de Menezes.

Sob impacto do Manifesto pau-brasil foi que Abguar Bastos, em 1927, publicou na revista Belém Nova uma espécie de "versão amazônica" do "programa oswaldiano": o Flaminaçu, que em tupi (flami-n'-assú, pela grafia original) significa "grande chama". Sua pretensão era não só combater o passadismo literário da região, mas também convocar os intelectuais paraenses para o movimento renovador iniciado em São Paulo e que na Amazônia deveria ganhar feições próprias. Ouvi:
"Primeiramente vós, poetas e prosadores divinos da minha geração; depois de vós, prosadores e poetas, apajelados à sombra das vossas tabas primitivas e que estais a ver, espetados em paus sagrados, os despojos, as glórias, as caveiras - das vossas escaladas às cordilheiras da ilusão. Àqueles a minha voz vai confinada. A estes ela se intimida. Àqueles ela se recolhe como um zangão à sua colméia. A estes ela recalcitra. Não que os receie no choque, mas, de fato, porque eles não procurarão, sem esforços dolorosos, metê-las em suas sacolas de Arte.
Assunto-vos agora o meu propósito de uma corrente de pensamento, cara a cara à que se inicia no sul com esta pele genuína: "Pau-brasil" (Bastos, apud Jornal da União Brasileira de Escritores, 2002, p. 9)
A partir desse manifesto, endereçado não só aos jovens literatos interessados em encampar novos princípios estéticos e políticos abertos pelo movimento modernista, mas também destinado a combater todos representantes duma literatura passadista, que o próprio Abguar Bastos se viu forçado a produzir um romance em conformidade com o programa então esboçado.

Mas, então, a retomada da universidade da maré, doravante, precisaria contemplar o "dedo cortado" do monumento de Niemeyer à Cabanagem. Consolidar a fratura regional sem anular a diversidade cultural da Fronteira Norte: as fronteiras da História visitadas pelas artes dos próprios amazônidas. O congresso das cidades amazônicas pelo diálogo e amizade  do ajuricabano, não exige redução das expressões regionais, nem a rendição do pensamento descolonizador. Muito pelo contrário, é na diversidade cultura da descolonização que a Amazônia se resguarda e o nosso Brasil se agiganta perante o mundo "sem fronteiras", pra inglês ver.


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