jamaxi indígena adaptado pelas populações cabocas no trabalho agroextrativista e utilizado pelos 'suraras' nas demarcações de fronteira na Amazônia.
HONRA AOS 'SURARAS' DA FRONTEIRA NORTE
O caboco não hesita em dizer que se não existissem "suraras" a demarcação de limites internacionais na Amazônia - sabe-se lá com com que consequências! - teria que esperar por muito mais tempo pela ocupação dos confins. Garimpeiros, seringueiros, madereiros e todos mais aventureiros, dos quais a ocupação do Acre em conflito armado com o vizinho Peru é exemplo, como também outros conflitos de fronteira entre países amazônicos; teriam chegado antes às raias delimitadas em tratados desde recuadas eras entre as metrópoles coloniais. Fato histórico que dá bem uma ideia do que foi o trabalho imprescindível de índios da faixa de fronteiras e mateiros cabocos, aqui chamados vulgarmente de "suraras", acostumados aos duros trabalhos de demarcação.
Surara, na língua-geral amazônica, significa o índio militarizado ou mameluco a serviço de grandes expedições exploratórias ou demarcatórias da Amazônia, desde a tentativa do Tratado de Madri de 1750. Até inícios da década de 80, no século passado, a figura do trabalhador de campanha (surara) era indispensável ao serviço demarcatório. Sem esta base humana, com jamaxi à costa, a grande obra diplomática do Barão restaria desfalcada de sua maior façanha: alicerce da integração da América do Sul. Acredito que, em tempos idos, escrever sobre estas coisas poderia até dar motivo a severas reprimendas.
Todavia, depois que o maior país amazônico do mundo elegeu um trabalhador de modesta origem nordestina para Presidente da República, não se poderia deixar o fato sem registro nas comemorações dos 80 anos da PCDL: gigantesco papel dos suraras na demarcação da Fronteira Norte. Graças a este trabalho humilde, porém fundamental; puderam finalmente topógrafos chegar justo ao ponto geográfico onde plantar o marco de limites. Depois disto os cartógrafos atestaram de maneira certa as respectivas coordenadas georeferenciadas. Portanto, se trata de localizar, in situ, o território nacional de maneira plena. Cada confinante certo do que é seu dá crédito ao dito que a PCDL realça: demarcar e aproximar a Amazônia.
Só depois de concluído o complexo processo desta obra coletiva, os demarcadores de ofício puderam efetivamente assinar os termos finais da demarcação. Ou seja, afiançar a obra geopolítica dos estadistas e diplomatas desde Alexandre de Gusmão até a UNASUL, antecedida recentemente pelo TCA e OTCA aproximando e integrando a comunidade dos países amazônicos (exceto a região francesa da Guiana, que tem papel exclusivo de observador na OTCA).
Por acaso, em 1977, um ano antes da assinatura do Tratado de Cooperação Amazônia; tive eu oportunidade de participar da campanha de "adensamento" (implantação de marcos intermediários entre pontos fundamentais da demarcação efetiva, terminada oficialmente em 1964) na linha de limites entre nosso país e a Venezuela. Fiquei no acampamento-base em Uaiacás, à margem direita do rio Uraricoera, um dos formadores do Rio Branco. O estimado leitor vá juntando os pontos... Servidor da Casa de Rio Branco testemunha demarcação do divisor de águas Amazonas-Orenoco, na beira do Rio Branco... E lembre-se da construção do território e da nacionalidade com os títulos nobiliárquicos extraídos da topografia pátria. Ou deveria ser mátria? Já que, no caso, o "reino das Amazonas" se converteu em Amazônia... Talvez, melhor seria dizer a fátria brasileira. Onde todas regiões fossem consideradas irmãs.
REMANDO VAI-SE LONGE
Dissemos, na segunda postagem desta série, como foi que o caboco estava destinado a ir a Georgetown (Guiana) e, por acaso, chegou a Montevideu (Uruguai). O maravilhoso acaso é na realidade o autor da História... O leitor fica confuso nas idas e voltas da maré destas nossas letras estúrdias. Masporém não há remédio. O comum dos mortais se espanta, por exemplo, do caboco estar contando um caso sobre a Casa da Beira, na terrinha natal de Ponta de Pedras; e de repente emendar conversa com uma lembrança lá longe, nas Antilhas... Freud explica? Claro, Freud explica que o pensamento funciona por associação de ideias.
Na verdade, os fatos narrados ou comentados numa história qualquer são eventos no tempo. E o tempo voa... O contador conta o conto como lhe parece, não como na realidade o caso foi. Por isto, a poesia faz parte do modo particular como cada qual vê a realidade e a imagina ao mesmo tempo. Dificilmente dois relatos são coincidentes, cem por cento, com os fatos. O que não quer dizer que um ou outro, ou até mesmo ambos, sejam falsos, noves fora na mentira deliberada.
Longo parágrafo pra dizer como foi que o acaso levou o Chanceler Saraiva Guerreiro, àquela manhã em 1982 na embaixada brasileira em Montevidéu, e a entrar na tesouraria dando de cara com o caboco a preparar documentação contábil daquele posto diplomático.
Volta... Dá replay. Aquele inesperado encontro em Montevidéu houve antecedente no Tratado de Cooperação Amazônica (Brasília, 03/07/1978). Que o caboco tem a ver com o TCA? Nada. Todavia, se não existisse o tratado entre os 8 países amazônicos (Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela), o dito cujo não teria ofertado um lindo remo ornamental de sua particular estima ao Chanceler durante visita deste à PCDL, por ocasião de reunião em Belém sobre o tratado, acabado de assinar em Brasília e celebrado em reunião ministerial em Manaus.
Volta... Dá replay. Aquele inesperado encontro em Montevidéu houve antecedente no Tratado de Cooperação Amazônica (Brasília, 03/07/1978). Que o caboco tem a ver com o TCA? Nada. Todavia, se não existisse o tratado entre os 8 países amazônicos (Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela), o dito cujo não teria ofertado um lindo remo ornamental de sua particular estima ao Chanceler durante visita deste à PCDL, por ocasião de reunião em Belém sobre o tratado, acabado de assinar em Brasília e celebrado em reunião ministerial em Manaus.
Disse o caboco, mais ou menos, ao Ministro de Estado que a história da Amazônia fora feita a remo... O veterano diplomata concordou completamente e agradeceu pela inusitada lembrança na coincidência do TCA. Manda a verdade que se diga que o caboco, por temperamento, não é chegado a adular o poder. Em compensação ele é fiel às suas amizades. O venerável mestre e amigo Ivonilo (chefe da PCDL) havia visto aquele remo, magnífica obra de arte do artesão Ernani, de Manacapuru (Amazonas), e que me fora presenteada pelo fraterno amigo Mario Rocha, em Manaus. Ivonilo aconselhou-me, então, a assinalar a passagem do Ministro de Estado das Relações Exteriores na PCDL com aquele remo... Confesso que tive grande relutância em me desfazer do presente do Mário, mas acabei concordando com a ideia por amor a causa.
Que causa então? A causa nativa amazônica. E haveria algo mais representativo que um remo para lembrar o trabalho dos suraras da PCDL? Ou seja, a potencial integração dos países amazônicos desde as lindes da floresta... Indubitavelmente, a história da Amazônia profunda foi iniciada em tempos pré-coloniais pelos próprios povos amazônicos em esticadas viagens a cabo de remo.
Sem esquecer o Porantim sagrado, dos Tupinambá; remo armorial que acompanha a saga mítica da Yby Marãey (terra sem mal) na conquista do "rio das Amazonas". Claro, não seria numa simples troca de gentilezas na recepção da PCDL ao Ministro de Estado que se iria dissertar sobre o tema. Tampouco, quando o magnífico acaso fez o Chanceler aproveitar um tempinho de folga na conferência da ALADI para visitar a Embaixada, onde ele fora embaixador há tanto tempo e não deixava de passar por lá e cumprimentar seus antigos auxiliares do corpo administrativo. Entre estes, Luci (de nome próprio Lucrécia, que ela detestava). Luci, um amor de pessoa, minha chefinha adorável durante o estágio.
A melhor parte das viagens é o regresso. Lá vai meu pensamento bater no Rio de Janeiro ... século XVI!... Qualquer um fica confuso numa hora destas, sobretudo se se trata de um caboco metido a querer saber quem inventou o mundo. A frase não é minha, mas do romancista francês Jean-Christophe Rufin em "Rouge Brésil", quando ele faz um personagem recusar a chance de colonizar o Brasil ao ser informado de que não voltaria nunca mais a velha França. Pois, assim como a melhor parte das viagens é o regresso; podemos dizer também que a melhor parte do regresso é prosseguir a viagem, com mais vagar, pelo rio das recordações. Na distância e com tempo, aquele pequeno detalhe ocorrido no tumulto do momento; passa a constituir mais importância. O remo em apreço, por exemplo, é um rico de detalhe onde se esconde o símbolo de algo maior.
remo decorativo com pintura indígena: símbolo da história social da Fronteira Norte
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